Estudo sobre Apocalipse 21:1

Estudo sobre Apocalipse 21:1



Não há razão para definirmos aqui, como fazem tantos comentários, um novo bloco principal, interrompendo assim a ligação com a parusia (Ap 19.11-16). Sem que haja uma incisão mais profunda, o texto continua: “E vi” (cf. Ap 20.1,4,11). Retoma também plenamente o trecho há pouco lido a respeito do juízo final. Novamente lemos sobre “céu e terra” (v. 1 como em Ap 20.11), novamente também sobre o “mar” (v. 1 como em Ap 20.13), a “vida” eterna (v. 6 como em Ap 20.12), o “trono” de Deus (v. 3 como em Ap 20.11), tanto a primeira como a “segunda morte” (v. 4,8 como em Ap 20.13,14) e igualmente sobre o “charco de fogo” (v. 8 como em Ap 20.15). É precisamente o sombrio ponto final com o charco de fogo no v. 8 – é a última passagem desse tipo no Ap – que nitidamente insere também o presente texto na série de visões de Ap 19.11–21.8 (nota 924).
 
Em decorrência, a nova criação requer ser compreendida em sua ligação com a parusia.1024 A cavalgada para fora do céu, realizada pelo cavaleiro branco em Ap 19.11, é seguida agora pela descida da presença irrestrita de Deus sobre a terra (agora naturalmente renovada). Aquela “abertura” significou verdadeiramente um esvaziamento total do céu (cf. o comentário a Ap 19.11). Ainda mais, desde já a parusia visava esse sentido positivo. Os trechos de juízo intercalados, com sua gradativa anulação da velha constituição da terra, foram necessários, mas em seu âmago pressionavam para a nova criação. Criaram espaço para o mundo prometido, no qual habita a justiça [2Pe 3.13].
 
Assim, a passagem de Ap 21.1-8 eleva-se para um clímax há muito esperado. O livro das revelações culmina na revelação de Deus. É como se duas mãos afastassem para o lado uma camada de fumaça, para depois da visão dos abismos da história e da perdição mais extrema finalmente deixar visível o que é santíssimo: Deus, tudo em todas as coisas. Os v. 5-8 trazem – sem considerar os versículos de moldura – a única fala de Deus em todo o livro. Um estilo de balbucio e admiração1025 caracteriza as frases. Os olhos arregalados do vidente tornam-se cada vez mais dilatados e o grau de sua participação eleva-se ao máximo.
 
Assim como o outro trecho sobre a consumação em Ap 7.13-17 (cf. o comentário correspondente), também o atual está novamente repleto de associações com o AT (cf. nota 953). Não encontramos nenhum pensamento que não esteja próximo de uma formulação do at. Uma força poderosa mantém disciplinado o profeta tão intensamente interessado, de maneira que tudo o que nele ultrapassa os parâmetros espirituais e bíblicos prefigurados é tolhido, pois justamente quando se trata da nova criação e da consumação, nosso entendimento é pequeno demais para o assunto. Quem se torna prolixo e verborrágico demais nesse ponto, deixa transparecer que não sabe do que está falando.

 
Com alguns poucos traços, e numa clara associação com Is 65.17; 66.22, o v. 1 traz a visão de um novo mundo. Vi novo céu e nova terra. Em Isaías a nova criação na verdade significava mais um tipo de transfiguração do mundo existente, de sorte que se referia apenas à realidade sobre a terra antiga, porém não a ela própria. No presente versículo, no entanto, temos de pensar também a partir de Ap 20.11. O cosmos antigo desapareceu sem deixar vestígios. “As primeiras coisas (já) passaram”, diz Ap 21.4. Falta totalmente, p. ex., o mar cósmico (v. 1b). O novo é cabalmente separado do anterior. Não pressupõem nem melhoramento nem revisão do mundo, mas sim a dissolução do antigo.1026

O Senhor vindouro não derrama vinho novo em odres velhos (cf. Mc 2.22). Ele é muito mais radical que qualquer programa de melhoria do mundo. O adjetivo novo no Ap (cf. o comentário a Ap 2.17) sempre respira essa radicalidade divina. “Se pudermos ver como o mundo na verdade é terrível, como se revelou na perseguição aos cristãos, então compreenderemos que temos de esperar por um novo céu e uma nova terra. Então vemos que todas essas tentativas de cristianizar o mundo representam um projeto pequeno demais… É justamente por isso que no fim da Escritura Sagrada se encontra o Ap de João, para romper com todas essas utopias e ilusões e mostrar a esperança que persistirá face à realidade desse mundo.”1027 De forma alguma o Ap visa paralisar nossa ação com essa mensagem, porém deseja dar-lhe uma direção. As mensagens às igrejas (Ap 2,3) observam as “obras” com grande precisão, elogiam-nas, exigem-nas e esperam uma ação perseverante também no maior sofrimento. Contudo, toda a atuação do cristão tem o sentido de erigir sinais inequívocos neste velho mundo, os quais apontam para o Senhor vindouro e seu novo mundo.
 
Apreciamos o presente versículo também como premissa do seguinte, que fala de uma nova sociedade. A profecia não mostra o novo ser humano no “céu” nem no vácuo escancarado, sozinho na bem-aventurança com seu Deus, mas sim num novo cosmos. Portanto, no fim não existem apenas pessoas. Por isso o personalismo extremo não é um vaso apropriado para a mensagem cristã do futuro. No entendimento bíblico, o ser humano de hoje não pode ser compreendido desvinculado da terra e das condições terrenas. Adão significa “terrestre”. “Terra” em hebraico é adamá. O destino de ambos está intimamente interligado. Por isso o Ap também mostra as catástrofes da terra sempre em relação ao pecado humano, e os golpes de aniquilamento de Deus contra o cosmos como juízos contra os humanos. Do mesmo modo, porém, a paz entre Deus e ser humano liberará o milagre de uma nova terra restaurada, que não precisa mais fugir da face de Deus (Ap 20.11).
 
O novo mundo será um mundo sem demônios, como há muito foi profetizado pelos exorcismos dos evangelhos: e o mar já não existe. Ap 22.1 mostrará que essa visão do novo cosmos não exclui a água como tal. Os orientais davam enorme importância às fontes e águas e tinham imensa consciência da bênção do elemento líquido. É por isso que não podemos entender o termo “mar” nesse contexto de forma superficial.1028 Ele significa aqui o local de gestação do satânico, da rebelião contra Deus e sua boa criação (cf. o comentário a Ap 20.13). Do “mar” ergueu-se, em Ap 13.1, a besta com sua blasfêmia, sedução, perseguição e assassinato. Essa fonte maligna nunca mais jorrará na nova criação. Isso se dará em benefício da outra fonte de Ap 22.1, à qual Ap 21.6 também já se refere. Finalmente a nova humanidade viverá sem ameaças e sem apreensão. Não precisa mais contar a cada instante com uma perturbação terrível.1029 Ele “te desviará da angústia para um lugar espaçoso, em que não há aperto” (Jó 36.16 [rc]).
 
O comentário sobre a ausência, o mar já não existe – aqui o único traço ilustrativo da visão do novo mundo –, lidera uma longa série de notas de ausência semelhantes,1030 que passam como um fio vermelho pelos capítulos do Ap que tratam da consumação. Esse estilo denota a intensidade com que João vê as visões a partir de uma comparação com sua realidade e o cuidado pastoral com que ele escreve a seus destinatários, diante dos quais o mar ainda está rugindo, os quais a morte amedronta e nos quais o coração ainda treme. Na explicação dessas notas de ausência a compreensão desse ponto de partida pastoral terá grandes consequências.
 
No versículo seguinte o tópico “novo” mostra que o tema a nova criação tem continuidade. Contudo, comparado com Gn 1, João experimenta de imediato um salto para dentro da obra do sexto dia. Tão parca é a visão, ou tão preocupada está com o cuidado pastoral junto às pessoas que pranteiam, e tão pouco interessada numa variedade de informações para o pensamento especulativo. Já aparece o novo ser humano na nova terra.



Notas:
924 É característico para o segundo apêndice a repetida menção do lago de fogo (Ap 19.20; 20.10, 14,15; 21.8). Em lugar dele, o terceiro apêndice traz a idéia de que haverá os que ficam “de fora”, em Ap 21.27; cf. Ap 22.15.

1024 O trecho de Ap 21.1-8 na verdade não contém nenhuma referência direta ao Cristo manifesto, mas a situação é análoga ao trecho anterior de Ap 20.11-15. A conexão decisiva dessas visões com a cristologia é estabelecida lá com a expressão “livro do Cordeiro”, aqui com o termo “noiva (do Cordeiro)”.
 
1025 A impressão do balbucio surge, p. ex., pelo acúmulo incomum do “e” (onze vezes).

953 Para expor o espantoso volume desse processo, relacionamos aqui uma lista de cerca de 30 passagens do AT que foram combinadas por um ou vários exegetas com o reino dos mil anos, mas que repercutem no Ap somente depois da nova criação: Is 65.17; 66.22 (Ap 21.1). – Is 52.1; 61.10 (Ap 21.2). – Ez 37.27; 43.7; 48.35; Zc 2.10; 8.8 (Ap 21.3). – Is 25.8; 35.10; 65.16-19 (Ap 21.4). – Jr 31.22 (Ap 21.5). – Zc 14.8 (Ap 21.6). – Zc 8.8 (Ap 21.7). – Is 52.1; Ez 40.2 (Ap 21.10). – Ez 48.31 (Ap 21.12,13). – Ez 40.3,5; Zc 2.2 (Ap 21.15). – Ez 48.16,17 (Ap 21.16). – Is 60.1,19 (Ap 21.23). – Is 60.3,5 (Ap 21.24). – Sl 72.10,11 (Ap 21.26). – Is 52.1 (21.27). – Ez 47.1,12; Jl 3.18; Zc 4.8 (Ap 22.1,2). – Zc 14.11 (Ap 22.3).

1026 Sem dúvida Hallesby, em: Himmel, Tod und Hölle, Wuppertal 1958, pág. 94, passa dos limites quando explica a nova criação como uma ressurreição exata do velho mundo: “Logo tornaremos a encontrar tudo na manhã da ressurreição: nosso belo país (falando de seu país natal, a Noruega), ao qual Deus nos ligou com tantos e tênues laços. O amado local de moradia com as numerosas recordações, que são capazes de tornar tão jovem o velho espírito, e mole como cera o coração endurecido, a velha propriedade que se mostra no brilho dourado das recordações de infância, o cavalo, o cachorro, o gato e a ovelha – obteremos de volta tudo isso reunido!” De imediato ele acrescenta: “Sei muito bem que nesse ponto um ou outro filisteu poderá levantar perguntas capciosas.” Será que somente filisteus?

1027 H. J. Iwand, Gesetz und Evangelium, obras póstumas, vol. iv, 1964, pág. 227. O próprio Iwand constitui uma contraprova de que esses pensamentos não desautorizam uma ação responsável. Com seriedade ímpar e com toda a paixão ele se empenhou, ao lado da docência, no trabalho pela paz entre Leste e Oeste. Foi um dos iniciadores da “Conferência Cristã pela Paz” de Praga, vindo a falecer, prematuramente exausto, em 2 de maio de 1960.

1028 Em outros contextos “mar” também ocorre como parte de uma subdivisão do cosmos em céu, terra e mar, p. ex., em Ap 10.6; 14.7. É flagrante que esse entendimento não caiba no atual versículo.

1029 Uma das visões noturnas de Zacarias contém uma profecia similar. Em Zc 1.8 o profeta contempla “murtas que estavam na profundeza (do mar)” (rc). Portanto, essas profundezas do mar (meschulah), de resto arquiinimigas da criação, foram secadas e transformadas num jardim paradisíaco.

1030 Outros exemplos: não haverá lágrimas (Ap 21.4), nem morte, nem lamento, nem clamor, nem dor (Ap 21.4), nem traidores etc. (Ap 21.8), nem Templo (Ap 21.22), nem necessidade de luz dos astros (Ap 21.23; 22.5), nem fechamento dos portões (Ap 21.25), nem noite (Ap 21.25; 22.5) nem admissão de coisas impuras etc. (Ap 21.27), nem enfermidade (Ap 22.2) e nem maldição (Ap 22.3).