Amaleque, Amalequitas — Enciclopedia da Bíblia Online
AMALEQUE, AMALEQUITAS
Amaleque (ʿămāleq) é o eponímico neto de Esaú — filho de Elifaz e Timna — indicado nas genealogias como ancestral de um grupo tribal do sul (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36). Nos relatos históricos, seu nome passa a designar o inimigo paradigmático de Israel que atacou o povo recém-saído do Egito em Refidim e, por isso, ficou associado a uma memória teológica de oposição a YHWH e a Israel (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19; Números 24:20).
Amalequitas (ʿămālēqî) são o povo nômade/semi-nômade ligado a Amaleque, atuante no Neguebe, Sinai e fronteira sul de Canaã, retratado como agressor recorrente de Israel — notadamente por investidas contra os retardatários e exaustos durante a peregrinação — e, por isso, alvo do mandato de memória e de juízo (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19). As Escrituras registram choques com esse povo nos períodos dos Juízes e da monarquia, incluindo a campanha de Saul sob ḥērem e a figura de Agague, bem como confrontos no ciclo de Davi (Juízes 3:13; 6:3, 33; 7:12; 1 Samuel 14:48; 15; 27–30; 2 Samuel 1). Em oráculo de Balaão, “rēʾšît gôyim ʿămāleq” (“primícia das nações é Amaleque”), mas seu fim é descrito como destruição, reforçando o retrato bíblico de inimigo arquetípico cuja memória deveria ser apagada (Números 24:20; Deuteronômio 25:19).
![]() |
A Batalha de Israel e Amaleque de Luca Giordano (1692) |
I. Genealogia e etnogênese segundo a Bíblia
Amaleque é apresentado como neto de Esaú (ʿēsāw), filho de Elifaz (ʾĕlîfāz) com Timna (timnāʿ), eponímico do grupo que leva seu nome (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36). O uso do antropônimo para designar o coletivo aparece quando o oráculo de Balaão declara “rēʾšît gôyim ʿămāleq” (“Amaleque é a primícia das nações”), assinalando sua notoriedade como inimigo paradigmático de Israel (Números 24:20). A genealogia ancora os amalequitas (ʿămālēqî) no universo edomita, pois Amaleque figura entre os chefes de Edom, e a ligação com Timna conecta essa linhagem aos ḥoritas (ḥōrî) da região de Seir (sēʿîr), pela menção a Lotã (lōṭān), irmão de Timna (Gênesis 36:16, 22).
A ocorrência precoce de “campo dos amalequitas” nos dias de Abraão (Gênesis 14:7) precede, na trama, o nascimento de Amaleque, e é explicada pela toponímia retrospectiva adotada pelo narrador: o território é identificado pelo nome que o público já reconhecia a partir da presença posterior do grupo. Esse recurso literário convive, sem contradição, com a definição genealógica de Amaleque como descendente de Esaú (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36), ao mesmo tempo em que preserva a memória da proeminência hostil sintetizada pelo dito “rēʾšît gôyim ʿămāleq” (Números 24:20).
Os amalequitas constituem um povo nômade ou semi-nômade do sul, atuante na fronteira entre o Neguebe e o Sinai, com presença recorrente nas franjas meridionais de Canaã. O primeiro choque decisivo com Israel dá-se em Refidim, quando a investida amalequita inaugura a memória teológica do conflito e o juramento de guerra “de geração em geração” (Êxodo 17:8–16). Mais tarde, o mandamento de lembrar o que fez Amaleque e “apagar a memória de Amaleque” — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq — é ancorado no ataque covarde aos retardatários e exaustos durante a marcha (Deuteronômio 25:17–19). O padrão de hostilidade no limiar de Canaã reaparece quando amalequitas e cananeus derrotam Israel em Hormá (Números 14:45).
No período dos Juízes, a inserção tribal de Amaleque entre povos do deserto explica alianças fluidas com Midiã (midyān) e com os “filhos do Oriente” (bənê qedem), que, montados em camelos, empreendem razias sazonais para devastar colheitas e submeter Israel (Juízes 6:1–5; 7:12). A continuidade dessa pressão é lembrada entre as opressões que exigem livramento divino (Juízes 10:12). Já na monarquia, Saul combate em todas as direções e “feriu os amalequitas, e os livrou da mão dos que os saqueavam” (1 Samuel 14:48), sendo então incumbido do ḥērem contra Amaleque, com o episódio de Agague marcando a tensão entre obediência e sacrifício (1 Samuel 15). Nos dias de Davi, as incursões amalequitas atingem Ziclague, ao passo que Davi derrota esses grupos e encerra o ciclo com a notícia — trazida por um amalequita — da morte de Saul (1 Samuel 27–1 Samuel 30; 2 Samuel 1). A memória residual de focos amalequitas é registrada no fim do período persa, quando descendentes de Simeão expulsam “o resto dos amalequitas” que havia escapado para Seir (1 Crônicas 4:42–43), enquanto a lista de inimigos coaligados contra Israel volta a nomeá-los entre os povos hostis (Salmo 83:6–8).
Esse percurso — da raiz edomita de Amaleque (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36), passando pela prolepse toponímica dos dias de Abraão (Gênesis 14:7), pelo arquétipo de inimigo fixado por Balaão (Números 24:20) e pelo mandamento de memória e juízo (Deuteronômio 25:19) — explica por que “Amaleque” se tornou na Bíblia tanto um nome de pessoa quanto o emblema de um povo fronteiriço cuja mobilidade, alianças e violência o tornaram o antagonista recorrente de Israel (Êxodo 17:8–16; Números 14:45; Juízes 6:1–5; 7:12; 10:12; 1 Samuel 14:48; 15; 27–30; 2 Samuel 1; 1 Crônicas 4:42–43; Salmo 83:6–8).
É preciso confrontar explicitamente a tese de que os amalequitas teriam origem muito anterior à de Esaú, lembrando que a menção a “campo dos amalequitas” em Gênesis 14:7 antecede, na cronologia narrativa, o nascimento de Amaleque. Esse ponto deve ser visto como um caso de designação prolepse (o território recebe o nome pelo povo que viria a ocupá-lo mais tarde) e acrescenta que Moisés, ao narrar fatos dos dias de Abraão, empregou a toponímia conhecida de sua audiência para identificar a área. Essa leitura — que concilia a ocorrência de Gênesis 14:7 com a genealogia de Gênesis 36:12 — é também registrada na literatura de referência, que nota o uso retrospectivo do etnônimo para nomear região já conhecida por essa associação posterior, e discute a tensão entre o título de Balaão (Números 24:20), e a descendência edomita em Gênesis 36 (alguns eruditos incluem esse contraste como ponto de debate e o resolvem pela natureza literária do oráculo e pela notoriedade precoce do grupo; ver igualmente a análise de prolepse e de anacronismo toponímico).
Quanto à etnogênese, as notas do seu material destacam a ligação de Amaleque a Edom por via de Elifaz e sublinham a figura de Timna como ponte com as populações ḥoritas (ḥōrî) da região de Seir (sēʿîr). Fontes judaicas antigas preservadas em compêndios enciclopédicos identificam Timna como parente dos ḥoritas (irmã de Lotã, lōṭān), ressaltando que a união com Elifaz integra linhagens edomita e ḥorita na origem do grupo amalequita (Gênesis 36:12; 36:22); esse dado ajuda a entender a inserção inicial dos amalequitas no ambiente edomita e as conexões familiares que amarram essas tribos da fronteira sul.
A Bíblia também apresenta a distribuição territorial que compõe o pano de fundo da etnogênese: associação inicial a Edom (Gênesis 36:16); presença nas bordas do sul de Canaã e de Judá, onde “deserto e terra cultivada se encontram”; e uma diáspora nômade que percorre vasta área, com mobilidade que favorece ataques sazonais e controle de passagens. É possível ver que a precariedade hídrica e a necessidade de deslocamentos tornaram a territorialidade amalequita difusa, o que explica sua aparição tanto no Neguebe e Sinai quanto a leste do Jordão, inclusive em contextos de razias de longo raio.
No tocante às relações com povos vizinhos, a Bíblia mostra os amalequitas estreitamente ligados aos edomitas por genealogia e contiguidade geográfica, em conflito com moabitas e amonitas nos movimentos militares do período monárquico (ver o panorama de 1 Samuel 14:47–48, que entrelaça lutas de Saul contra Moabe, Amom, Edom, Zobá e Amaleque), e com alianças fluidas com midianitas e os chamados “filhos do Oriente” (bənê qedem). Essa rede aparece com destaque em Juízes 6–7, onde midianitas, amalequitas e os bənê qedem atuam conjuntamente, empregando camelos como vetor de mobilidade para devastar as colheitas e impor domínio sazonal; ressalta-se a massa humana “incontável como gafanhotos” e a logística de camelos (Juízes 6:3–5; 7:12), exatamente o quadro que a pesquisa histórica sobre nômades do Levante meridional espera encontrar em tribos do deserto.
Essa mesma documentação ressalta que, ao longo do período dos Juízes, os amalequitas aparecem associados, ora como aliados de midianitas, ora compondo incursões com grupos parentais do deserto (por vezes identificados em fontes secundárias como ismaelitas, hagarenos etc.), refletindo a porosidade das designações tribais. A história nota que os etnônimos de grupos nômades variam conforme a conjuntura e que, em fases posteriores, vários nomes caíram em desuso ou foram sub-sumidos por rótulos mais gerais como “árabes”, o que complica a tentativa de mapear “linhas duras” entre clãs do deserto ao longo de muitos séculos.
Vale ressaltar o papel de Balaão, cuja sentença “rēʾšît gôyim ʿămāleq” (Números 24:20) é lida no dossiê bíblico como reconhecimento da proeminência antiga dos amalequitas entre os povos fronteiriços, sem negar a descendência edomita, e indica que a reputação bélica precoce do grupo ajuda a explicar por que topônimos e etnônimos amalequitas são usados retroativamente em Gênesis 14:7. A análise externa que cotejei confirma a leitura corrente: a expressão “campo dos amalequitas” funciona como atualização toponímica para os leitores de Moisés, que reconheceriam a área por esse nome posterior.
Por fim, e ainda dentro do escopo genealógico-etnográfico, não possuímos menções extrabíblicas indiscutíveis a “amalequitas” como tal, o que obriga a reconstrução histórica a apoiar-se em paralelos de nômades do Neguebe/Sinai e em descrições bíblicas de mobilidade, alianças e antagonismos regionais; isso não invalida a genealogia edomita (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36), mas recomenda prudência na demarcação rígida de fronteiras tribais em períodos distintos.
II. Primeiras menções e panorama cronológico bíblico
A designação “amalequita” ocorre trinta e cinco vezes no Antigo Testamento, aparecendo desde a narrativa patriarcal até alusões pós-exílicas, com amplitude suficiente para delinear um ciclo de hostilidades que vai do período do Êxodo à monarquia unida e aos ecos tardios em listas de inimigos. A referência mais antiga surge na campanha dos reis do Oriente, quando se diz que eles “feriram toda a terra dos amalequitas” ao voltar a En-Mispate (Cades), antes de atacarem os amorreus em Hazazom-Tamar (Gênesis 14:7). Como a genealogia situa Amaleque (ʿămāleq) como neto de Esaú por Elifaz (ʾĕlîfāz) e Timna (timnāʿ) (Gênesis 36:12; 1 Crônicas 1:36), a menção em Gênesis 14:7 é lida como toponímia retrospectiva: o território é identificado pelo nome que a audiência conhecia posteriormente por causa da presença amalequita, sem contradizer a linha genealógica. A tradição judaica enciclopédica destaca justamente essa dupla perspectiva — origem edomita por via de Elifaz/Timna, de um lado, e menção territorial anterior na narrativa patriarcal, de outro.
A primeira colisão direta entre Amaleque e Israel ocorre em Refidim, quando os amalequitas atacam o povo recém-saído do Egito. A vitória de Israel sob Josué, com Moisés sustentando as mãos, gera um memorial e um juramento de guerra “de geração em geração”, marcando o início da memória teológica do conflito (Êxodo 17:8–16). A tradição histórico-enciclopédica resume esse episódio como a batalha inaugural de uma longa inimizade no corredor setentrional do Sinai e no Neguebe.
A hostilidade recebe uma formulação ética e litúrgica em Deuteronômio 25:17–19, que ordena lembrar o que fez Amaleque e apagar sua memória — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq — por ter investido contra os exaustos e retardatários durante a marcha. Esse mandamento aparece no pano de fundo do oráculo de Balaão que chama Amaleque de “primícia das nações”, título que ressalta sua proeminência antiga como inimigo paradigmático e cujo fim é descrito como destruição (Números 24:20). A leitura enciclopédica observa que tal proeminência suscita o uso do etnônimo para nomear, por antecipação, regiões posteriormente associadas a esse povo.
No limiar de Canaã, após a recusa em subir, amalequitas e cananeus desferem contragolpe e derrotam Israel em Hormá (Números 14:39–45), área que retorna em catálogos geográficos de Josué (Josué 12:14; 15:30). Esse eixo sul de Canaã, entre o Neguebe e o Sinai, configura a faixa de atuação amalequita; mais ao norte, uma memória toponímica persiste quando Abdom, juiz de Israel, é sepultado “no monte dos amalequitas” em Efraim (Juízes 12:15), sinal de que a projeção desse grupo alcançou, ao menos por um período, as colinas efraimitas.
Durante os dias dos Juízes, Amaleque aparece em alianças fluidas com Midiã (midyān) e os “filhos do Oriente” (bənê qedem), promovendo razias sazonais com logística de camelos para devastar colheitas e subjugar Israel (Juízes 6:1–5; 6:33; 7:12). Esse padrão de opressão é lembrado entre os flagelos dos quais o Senhor livra o povo (Juízes 10:12). A literatura enciclopédica de referência ressalta a mobilidade nômade/semi-nômade desse cinturão tribal do deserto e explica, por essa razão, a amplitude geográfica das incursões.
Na monarquia, Saul trava guerras em todas as fronteiras e “feriu os amalequitas, e os livrou da mão dos que os saqueavam” (1 Samuel 14:48). Segue-se o episódio decisivo do ḥērem ordenado contra Amaleque (1 Samuel 15): o aviso aos queneus, presentes “entre Amaleque”, para que se apartem (1 Samuel 15:6), a captura de Agague e a censura profética à obediência parcial de Saul, culminando com a morte de Agague por Samuel. A tradição judaica preserva Agague como regente amalequita paradigmático e liga, em leituras posteriores, a designação “agagita” ao campo de memória de Amaleque.
Nos dias de Davi, a faixa sul continua crítica. Tendo recebido Ziclague (próximo a Berseba) de Aquis, rei de Gate (1 Samuel 27:6), Davi enfrenta uma incursão amalequita que devasta Ziclague e sequestra mulheres e bens; guiado por um egípcio abandonado, ele alcança o acampamento, derrota os inimigos — com a nota de que “quatrocentos jovens fugiram em camelos” — e recupera tudo (1 Samuel 30:1–20). Um amalequita traz, em seguida, a notícia da morte de Saul e recebe juízo por admitir ter lhe dado o golpe final (2 Samuel 1:1–16). Em listas de despojos e tributos destinados ao Senhor, Crônicas e Samuel registram a menção de Amaleque entre as nações vencidas (2 Samuel 8:12; 1 Crônicas 18:11), o que espelha o declínio desse poder tribal sob a monarquia unida.
Como fecho narrativo, a tradição de 1 Crônicas 4:42–43 relata que quinhentos simeonitas subiram ao monte Seir e “destruíram os que restavam de Amaleque”, estabelecendo-se ali “até hoje”; esse apontamento, situado na composição pós-exílica de Crônicas, preserva a memória de remanescentes amalequitas nas franjas edomitas e sugere a extinção prática do grupo como ator político reconhecível. Enciclopédias e sítios de referência lembram Seir como o cenário dessa última notícia.
Após o período davídico, as menções diretas a amalequitas tornam-se raras. Salmo 83:6–8 ainda os inclui em uma coalizão inimiga, testemunhando a persistência do nome no imaginário bélico de Israel. Fora da Bíblia, não há atestação inequívoca do povo sob essa etnônima, fato repetido nas grandes enciclopédias bíblicas; a tradição posterior associa “agagita” à memória de Amaleque ao narrar a figura de Hamã no livro de Ester, o que aponta para a longuíssima duração simbólica do antagonismo inaugurado em Refidim (Ester 3:1; 3:10; 8:1; 9:10, 24).
III. Amaleque no ciclo do Êxodo e do deserto
O primeiro choque ocorre em Refidim (rəfîdîm), quando Amaleque investe contra Israel em pleno deslocamento pelo deserto (Êxodo 17:8–16). Josué combate em campo aberto enquanto Moisés, com o cajado de Deus, mantém as mãos erguidas; quando as mãos descem, Amaleque prevalece; quando se elevam, Israel leva vantagem. Arão e Hur sustentam-lhe as mãos, e a narrativa conclui com dois atos de memória: “Escreve isto para memorial no livro” — ketōb zōt zikkārôn bassefer — e a edificação de um altar nomeado “O Senhor é minha bandeira” — YHWH nissî — seguido do juramento de que haverá guerra do Senhor contra Amaleque “de geração em geração” (Êxodo 17:14–16). A tradição judaica preservou esse duplo memorial — escrita e altar — como paradigma litúrgico para lembrar o ataque e a promessa de juízo, enfatizando que o episódio fixa a memória pública do crime e do veredito (Êxodo 17:14–16).
O contraponto normativo vem de Deuteronômio 25:17–19, que explicita o caráter do ataque: Amaleque “te surpreendeu no caminho e feriu os de trás” — wayzannēb bəḵā, “cortou a retaguarda” — quando estavas “cansado e exausto” — ʿāyēp wəyāgēaʿ — e “não temeu a Deus” — lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm. Daí o preceito: “apagarás a memória de Amaleque” — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq — e “não te esquecerás” (Deuteronômio 25:17–19). Essa formulação, lida em conjunto com Refidim, tornou-se leitura obrigatória na liturgia judaica anterior à festa de Purim, como rememoração de um inimigo que atacou os retardatários e vulneráveis (Deuteronômio 25:17–19).
No itinerário do deserto, Números descreve o espaço onde Amaleque opera e as consequências da incredulidade de Israel. No relatório dos espias, “os amalequitas habitam a terra do Neguebe; os hititas, jebuseus e amorreus, a serra; e os cananeus, o litoral e o Jordão” (Números 13:29), sinal de que Amaleque dominava a faixa sul, limítrofe à entrada de Canaã. Rejeitando subir, o povo tenta forçar a marcha e encontra, no contragolpe, amalequitas e cananeus, que os ferem em Hormá (Números 14:39–45); antes disso, o próprio Senhor advertira a contornar a zona de contato com Amaleque (Números 14:25). Essas referências situam o inimigo na borda meridional e explicam a estratégia de interdição de passagem que marca a transição do deserto para a terra.
Ainda em Números, o oráculo de Balaão confere a Amaleque um título que resume sua notoriedade: “rēʾšît gôyim ʿămāleq” — “Amaleque é a primícia das nações” — mas seu fim é “perdição para sempre” (Números 24:20). Em chave teológica, o dito reconhece a proeminência antiga desse povo como primeiro agressor e fixa seu destino sob juízo, em coerência com o memorial de Refidim e o mandamento de Deuteronômio (Êxodo 17:14–16; Deuteronômio 25:17–19).
IV. Amaleque na época dos Juízes
As primeiras ocorrências nesse período mostram os amalequitas atuando em coalizões oportunistas. Eglom, rei de Moabe, “ajuntou a si os filhos de Amom e de Amaleque, e foi e feriu a Israel, e tomou a Cidade das Palmeiras” — ʿîr hattəmārîm, isto é, Jericó (Juízes 3:13; comparar Deuteronômio 34:3). Na “Canção de Débora”, uma linha obscura preserva a memória de presença amalequita antiga na serra central: “De Efraim desceram os que têm sua raiz em Amaleque” — minnî ʾEfrayim šāršām baʿămāleq (Juízes 5:14); a leitura remete a ocupação anterior da região efraimita por grupos amalequitas e se harmoniza com a nota de toponímia em que Abdom é sepultado “em Piratom, na terra de Efraim, no monte dos amalequitas” (Juízes 12:15).
A fase gideônica apresenta o padrão mais característico de guerra amalequita: razias sazonais sobre áreas agrícolas, em aliança com Midiã (midyān) e com os “filhos do Oriente” — bənê qedem. “Quando Israel semeava, os midianitas subiam, e os amalequitas, e os filhos do Oriente… e acampavam contra eles, e destruíam a produção da terra até Gaza, e não deixavam mantimento algum em Israel, nem ovelha, nem boi, nem jumento” (Juízes 6:3–5). O quadro tático enfatiza mobilidade de deserto e logística de camelos — gāmālîm — descritos como “sem número, como a areia que está à beira do mar” (Juízes 7:12); é exatamente essa massa móvel que Gideão dispersa com ataque noturno, “sob a direção do Senhor” (Juízes 7:19–23). Em chave histórico-enciclopédica judaica, os amalequitas aparecem nesse período “sempre hostis a Israel”, aliados ora a amonitas (Juízes 3:13), ora a midianitas e aos povos do oriente (Juízes 6:3; 6:33; 7:12), compondo o cerco de desgaste que a memória de Salmo 83 também evoca.
A avaliação teológica retrospectiva do livro ressalta que os amalequitas figuram entre os opressores citados pelo próprio Senhor ao enumerar libertações anteriores: “os sidônios, os amalequitas e os maonitas vos oprimiram, e clamastes a mim, e eu vos livrei” (Juízes 10:12). Essa lembrança confirma a duração do conflito e o caráter paradigmático do inimigo que ataca em ciclos de colheita e controla corredores de fronteira. Em síntese desse bloco narrativo, “amalequitas… eram saqueadores hábeis de comunidades agrárias”, atuando no território atribuído a Israel e Judá e nas franjas transjordânicas, padrão que se vê na tomada da “Cidade das Palmeiras” (Juízes 3:13), nas razias com Midiã (Juízes 6:3–5; 6:33; 7:12) e na persistência do topônimo “monte dos amalequitas” em Efraim (Juízes 12:15).
V. Amaleque na monarquia unida
Saul enfrentou os amalequitas como parte de uma campanha de pacificação das fronteiras, “feriu os amalequitas, e livrou Israel da mão dos que o saqueavam”, e recebeu a ordem de executar o ḥērem contra Amaleque (1 Samuel 14:48; 1 Samuel 15). O relato sublinha um dado social importante: os queneus (qēnî), aliados históricos de Israel, “habitavam entre Amaleque”; por isso, Saul ordena: “retirai-vos, apartai-vos, para que eu não vos destrua com eles”, preservando-os do juízo (1 Samuel 15:6). Em seguida, Saul derrota Amaleque “desde Havilá até Sur, que está defronte do Egito”, captura Agague (ʾagag) vivo, e poupa “o melhor das ovelhas e dos bois e dos animais cevados”, em flagrante violação do ḥērem (1 Samuel 15:7–9). Quando confrontado por Samuel, o rei alega intenção cultual com o šālāl (saque), mas a sentença profética corrige a teologia do culto: “obedecer — šĕmōaʿ — é melhor do que sacrificar — zevaḥ —, e dar ouvidos — qāšab — é melhor do que a gordura de carneiros”, pois “rebeldia é como pecado de adivinhação” (1 Samuel 15:22–23). A narrativa culmina com a rejeição de Saul por causa da desobediência e com a execução de Agague por Samuel (1 Samuel 15:24–33). O nome Agague, único antropônimo amalequita preservado com destaque, aparece em paralelo profético quando se diz que o rei de Israel “será mais alto do que Agague” (Números 24:7), motivo pelo qual muitos veem em ʾagag um possível título dinástico amalequita; de todo modo, o texto histórico apresenta Agague como rei concreto julgado sob o ḥērem.
O ciclo davídico retoma a contenda. Aquis, rei de Gate, concede a Davi a cidade de Ziclague (ṣiqlāg), ao norte de Berseba (1 Samuel 27:6; ver 1 Samuel 27:8–12 para o quadro de razias no Neguebe). Na ausência de Davi e seus homens, uma força amalequita saqueia Ziclague, incendeia a cidade e leva cativas as mulheres, entre elas as esposas de Davi (1 Samuel 30:1–5). Com orientação do Senhor, Davi parte em perseguição, encontra um egípcio abandonado que o guia até o acampamento inimigo, onde os amalequitas “estavam espalhados… comendo, bebendo e festejando por causa do grande šālāl”; Davi os fere “desde o crepúsculo até a tarde do dia seguinte”, recupera todos os cativos e os bens, e a narrativa destaca o traço logístico típico desse povo: “quatrocentos jovens montados em camelos — gāmālîm — fugiram” (1 Samuel 30:11–20; 1 Samuel 30:17). Logo depois, um amalequita apresenta-se a Davi afirmando ter acabado de matar Saul no campo de batalha de Gilboa; longe de receber recompensa, ele é julgado e executado por ter “levantado a mão contra o ungido do Senhor” (2 Samuel 1:1–16). Em registros régios, os despojos provenientes de Amaleque figuram entre os tributos consagrados ao Senhor (2 Samuel 8:12; 1 Crônicas 18:11), sinalizando que a guerra com esse inimigo acompanhou a consolidação do poder davídico.
A documentação histórica ainda observa que os confrontos mais detalhados e decisivos entre Israel e Amaleque concentram-se nas narrativas de 1–2 Samuel, com eixo geográfico no cinturão do norte do Sinai, em torno de Cades (qādeš barnēaʿ), e projeções para a fronteira sul de Judá (1 Samuel 15; 1 Samuel 27–30). O período encerra-se com a notícia, já em composição pós-exílica, de uma expedição de quinhentos simeonitas que “destruíram os que restavam de Amaleque” em Seir, estabelecendo-se ali “até hoje” (1 Crônicas 4:42–43), o que preserva a memória de remanescentes amalequitas nas franjas edomitas após as campanhas de Saul e Davi.
VI. Geografia histórica
A presença amalequita se articula em torno das franjas meridionais de Canaã, especialmente no Neguebe (negeb, “sul/terra seca”) e no Sinai, com projeções para a Arabá (ʿărāvāh) e as fronteiras de Edom (ʾĕdōm) e Seir (sēʿîr). A referência patriarcal à campanha de Quedorlaomer menciona a derrota “em En-Mispate (que é Cades), também a terra dos amalequitas, e aos amorreus em Hazazom-Tamar” (Gênesis 14:7), o que fixa três marcos toponímicos que moldam o cenário: Cades (qādeš, com a forma mais extensa qādeš barnēaʿ), usualmente situada na borda norte do Sinai; Hazazom-Tamar (ḥaṣaṣôn tāmār), identificada com En-Gedi (ʿên gedî), no litoral ocidental do Mar Morto; e a “terra dos amalequitas” ao sul de Canaã. A identificação de En-Mispate com Cades é tradicional (Gênesis 14:7), e a bibliografia de atlas bíblicos costuma localizar Cades em Ein el-Qudeirat ou Ein Qedeis, área que concentra achados dos períodos pertinentes (Deuteronômio 1:46; Números 13:26; 14:40–45). Em paralelo, a maioria das obras de consulta reconhece Hazazom-Tamar como o nome antigo de En-Gedi, oásis de palmeiras e água perene nas encostas de Judá voltadas ao Mar Morto (2 Crônicas 20:2; ver também Gênesis 14:7 quanto ao elo com a rota de Quedorlaomer).
Na etapa do Êxodo, o primeiro choque registra Amaleque investindo em Refidim (rəfîdîm), em contexto desértico, quando Israel ainda circulava entre o Sinai e o deserto de Zim. O quadro supõe disputa por oásis e rotas de água em corredor de wadi, com hipóteses modernas propondo o vale de Feirã no Sinai ou, em alternativas minoritárias, sítios ao norte de Madiã; a literatura de referência acadêmica recente tende a preferir uma identificação no sudoeste do Sinai, em linha com os itinerários de Êxodo 17:1–16 e Números 33:14–15. Essa geografia explica a tática amalequita de atacar a retaguarda — os cansados e retardatários — quando Israel se deslocava, e dá lastro ao mandamento de memória e juízo em Deuteronômio 25:17–19.
O Neguebe configura a “terra de encontro entre o deserto e a seara”, zona de transição onde a vida nômade/semi-nômade controla passagens, água e rebanhos. Relatórios antigos descrevem o Neguebe como planalto árido, porém propício a pastoreio, com listas de povoados atribuídas a Judá e Simeão, e menção explícita de amalequitas como habitantes da faixa sul nos relatos de reconhecimento (Números 13:29; Josué 15:21–32; 19:1–8; 1 Samuel 27:10; 30:14). Essa moldura territorial corrobora a associação primitiva de Amaleque a Edom (Gênesis 36:16) e as aparições constantes no cinturão sul, incluindo a área de Berseba, Ziclague (ṣiqlāg) e a estrada para Cades.
As rotas de mobilidade amalequitas combinam travessias no Sinai, corredores da Arabá e passagens transjordânicas, com alcance que, em certos momentos, tocou as colinas do centro; o sepultamento de Abdom “no monte dos amalequitas” em Efraim (Juízes 12:15) preserva uma memória toponímica de presença episódica mais ao norte. No período dos Juízes, a parceria operacional com Midiã (midyān) e com os “filhos do Oriente” (bənê qedem) revela logística avançada de camelos, que multiplicava o raio das razias e permitia devastar colheitas ao longo de amplos arcos do Neguebe e do vale do Jordão (Juízes 6:1–5; 6:33; 7:12). A literatura enciclopédica judaica clássica resume esse padrão como o de um povo do Neguebe e dos desertos adjacentes, em hostilidade recorrente contra Israel desde o Sinai até a aurora da monarquia.
A toponímia do ciclo davídico situa Ziclague, recebida por Davi de Aquis (1 Samuel 27:6), na borda meridional de Judá, próxima ao eixo Berseba–Neguebe. A incursão amalequita que saqueia Ziclague e sequestra mulheres e bens — com fuga de quatrocentos jovens “montados em camelos” — confirma a centralidade do deserto como plataforma de ataque e retirada (1 Samuel 30:1–20). Catálogos de despojos no reinado lembram Amaleque entre os povos derrotados (2 Samuel 8:12; 1 Crônicas 18:11), enquanto, em tempos tardios, registra-se a eliminação de remanescentes amalequitas em Seir por grupos de Simeão (1 Crônicas 4:42–43), sinal de focos residuais nas franjas edomitas.
Alguns estudos de geografia bíblica discutem identificações pontuais que orbitam esse mapa: Hormá (ḥormāh), ligada à derrota em Números 14:45 e às listas territoriais de Josué, tem sido proposta por certos autores como identificável em sítios do Neguebe setentrional (por exemplo, Tell Masos, a leste de Tel Sheva/Berseba), embora haja debate e outras sugestões concorrentes; a menção a En-Mispate como Cades (Gênesis 14:7) converge com a tradição que localiza Cades em Ein el-Qudeirat/Ein Qedeis, na orla norte do Sinai; e o antigo nome Hazazom-Tamar como sinônimo de En-Gedi é usualmente aceito, preservando o elo entre a rota do sul e o oásis do litoral do Mar Morto. Tais propostas visam explicar a coerência das narrativas: as entradas pelo deserto de Parã (pārān), os contragolpes em Hormá (Números 14:39–45), a defesa de oásis estratégicos como En-Gedi e a oscilação entre zonas de pasto e margens agrícolas.
No conjunto, a geografia histórica de Amaleque e dos amalequitas se descreve como um arco móvel com centro no Neguebe–Sinai e braços que alcançam a Arabá e a Transjordânia, apoiado em oásis e vales de escoamento (wadis), com uso intensivo de camelos para transporte e guerra, e uma toponímia que inclui Cades (qādeš), Refidim (rəfîdîm), Hazazom-Tamar/En-Gedi (ḥaṣaṣôn tāmār/ ʿên gedî), Hormá (ḥormāh), Berseba e Ziclague (ṣiqlāg). Essa malha espacial explica por que a narrativa ora fixa Amaleque como vizinhança de Edom e do deserto do Sinai (Êxodo 17:8–16; Números 13:29), ora o encontra cruzando o Jordão em razias sazonais (Juízes 6:3–5), ora o localiza na fronteira sul de Judá (1 Samuel 27:6; 30:1–20), sem contradição interna, mas como expressão de um modo de vida nômade/semi-nômade que explora corredores de invasão e oásis estratégicos.
VII. Perfil socioeconômico e modo de vida
Os amalequitas aparecem como povo nômade ou seminômade do deserto meridional, com base no Neguebe e no Sinai e projeções para a Arabá e as franjas de Edom (ʾĕdōm) e Seir (sēʿîr), operando em zonas marginais “além” da faixa agrícola central (Números 13:29; Juízes 12:15). A própria narrativa bíblica os descreve deslocando-se com “rebanhos e tendas”, acompanhados por camelos (gāmāl), o que configura um modo de vida pastoril-móvel que explorava sazonalidade, oásis e corredores de wadi: “subiam com o seu gado e as suas tendas… eram inumeráveis, tanto eles como os seus camelos, e entravam na terra para a devastar” (Juízes 6:5; 7:12). Enciclopédias judaicas registram que, “como guerreiros do deserto”, realizavam razias “montados em camelos”, padrão também observado quando Davi alcança os saqueadores e anota que “quatrocentos jovens montados em camelos” escaparam (1 Samuel 30:17), evidenciando o papel do camelo como vetor de mobilidade e de ataque de longo raio.
A economia amalequita combinava pastoreio, pilhagem (šālāl) e controle oportunista de passagens. Em época de colheita, alianças de amalequitas com Midiã (midyān) e com os “filhos do Oriente” (bənê qedem) atravessavam o Jordão e devastavam as safras, “como enxames de gafanhotos”, sinal de razias planejadas para maximizar impacto sobre excedentes agrícolas e rotas de abastecimento (Juízes 6:3–5; 7:12). O primeiro confronto relevante, em Refidim (rəfîdîm), ocorre em contexto de disputa por água e rotas desérticas (Êxodo 17:8–16), e o contragolpe em Hormá revela a mesma dinâmica de fronteira (Números 14:39–45). A longo prazo, esse padrão consolidou a imagem de Amaleque como inimigo paradigmático — “rēšît gôyim ʿămāleq” (“Amaleque é a primícia das nações”, Números 24:20) — e motivou o preceito de memória e juízo em Deuteronômio 25:17–19.
O uso militar e logístico do camelo pelos povos do deserto melhora enormemente a amplitude das razias. Estudos arqueozoológicos situam a presença significativa de camelos domésticos no Arabá a partir do fim do século X a.C., em Timna e Wadi Faynan, com difusão tecnológica que, no início do primeiro milênio a.C., favoreceu tanto o transporte de carga quanto a cavalaria de camelos (Tel Aviv 40 [2013], 277–285; ver também sínteses posteriores). Isso não invalida as alusões textuais em Juízes 6–7, mas sugere que o predomínio regional do camelo como sistema de mobilidade no sul do Levante se firmou em fase avançada da Idade do Ferro, coerente com o cenário de fronteira do Neguebe e da Arabá.
Além das razias, a posição geográfica dos amalequitas os colocava em pontos de fricção e intermediação das rotas meridionais. A historiografia do deserto do Neguebe mostra que, ao longo de milênios, o intercâmbio caravaneiro (incenso, metais, animais de carga) estruturou poderes locais capazes de condicionar passagens e oásis — um pano de fundo que explica a eficácia de grupos nômades/seminômades no assédio a zonas agrícolas e na tributação informal de tráfego. Embora esse quadro não permita identificar “estações amalequitas” específicas, ele é compatível com o modus operandi observado em Juízes 6–7 e 1 Samuel 27–30 (incluindo Ziclague ṣiqlāg). A literatura de referência acrescenta que designações como “cidade de Amaleque” podem denotar “acampamento fortificado” mais que urbanismo estável, o que corresponde ao perfil de mobilidade e à plasticidade territorial do grupo.
No plano político e organizacional, Amaleque apresenta formas de liderança clânica e régia. Amaleque (ʿămāleq), neto de Esaú (ʿēsāw), figura entre os “chefes” de Edom, termo que corresponde a chefias de clã (ʾallûp) no catálogo de Gênesis 36:15–16, o que indica uma malha de parentescos e alianças tribais na fronteira sul. Em paralelo, a tradição preserva a figura de Agague (ʾagag) como rei amalequita (1 Samuel 15) e sugere que “Agague” funcione como título régio ou dinástico, à semelhança de fórmulas como “Faraó”, hipótese reforçada pela menção de Números 24:7 (“o seu rei será mais alto do que Agague”), que pressupõe um nome régio reconhecido entre os povos do sul.
Como atores de fronteira, os amalequitas ocupavam a “terra de encontro entre o deserto e a seara”, alternando períodos de acampamento prolongado em zonas estratégicas (Cades qādeš, En-Gedi ʿên gedî, Berseba) com movimentos de largo alcance. Sob Davi, uma incursão amalequita saqueou Ziclague, e a resposta israelita — com perseguição, resgate de cativos e menção aos “quatrocentos montados em camelos” que escaparam — confirma a centralidade da camelaridade no teatro de operações (1 Samuel 30:1–20). Enciclopédias assinalam que, após as campanhas de Saul e Davi, “Amaleque” desaparece como etnônimo operacional, restando menções residuais (1 Crônicas 4:42–43), e que, em fases posteriores, grupos nômades semelhantes passam a ser referidos genericamente como “árabes”, o que explica a dificuldade de fixar fronteiras rígidas ou sítios materiais atribuíveis exclusivamente aos amalequitas. Até o presente, não há atestação extrabíblica inequívoca do povo sob esse nome; essa ausência requer prudência na correlação direta entre cultura material e etnônimo bíblico. (jewishencyclopedia.com)
O perfil socioeconômico amalequita combina pastoreio itinerante, logística baseada em camelos (gāmāl), razias sazonais sobre áreas agrícolas e controle oportunista de rotas e oásis; organização por chefias de clã (ʾallûp) e lideranças régias como Agague (ʾagag); e alta mobilidade espacial no arco Neguebe–Sinai–Arabá. O léxico teológico que emerge desses embates — desde Refidim (Êxodo 17:8–16) até o mandamento “timḥēh ʾet zēḵer ʿămāleq” (Deuteronômio 25:19) — explica por que, além de realidade histórico-tribal, “Amaleque” se torna símbolo de hostilidade predatória ao povo em marcha, cuja memória é fixada por narrativas de guerra, de saque (šālāl) e de defesa de fronteiras (Números 14:39–45; Juízes 6:1–5; 7:12; 1 Samuel 14:48; 15; 27–30).
VIII. Táticas militares e padrões de conflito
A atuação amalequita caracteriza-se por ataques de oportunidade contra alvos vulneráveis, iniciando-se com a investida em Refidim (rəfîdîm), quando Israel ainda peregrinava no deserto e disputava água e passagem; a narrativa descreve um ataque não provocado que exige resposta imediata sob comando de Josué, enquanto Moisés intercede com as mãos erguidas (Êxodo 17:8–16). O retrato normativo de sua conduta está em Deuteronômio 25:17–19: “lembra-te do que te fez Amaleque”, pois ele surpreendeu no caminho e “atacou na retaguarda” — wayzannēb bəḵā — “todos os debilitados” — kol hanneḥešālîm — quando Israel estava “cansado e esgotado” — ʿāyēp wəyāgēaʿ —, atitude sumariada por “não temeu a Deus” — lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm (Deuteronômio 25:17–19). O contraste com a prática de guerra prevista na própria Torá — oferecer termos de paz antes do cerco — ressalta o caráter predatório da tática amalequita (Deuteronômio 20:10–12).
O padrão recorrente é o assédio sazonal e de desgaste, com razias sobre áreas agrícolas no tempo de colheita, devastando plantações, saqueando rebanhos e cortando o sustento do inimigo. Em Juízes, amalequitas se articulam com Midiã (midyān) e os “filhos do Oriente” (bənê qedem) para cruzar o Jordão e “acamparem na terra”, destruindo a produção “até Gaza”, sem deixar “ovelhas, gado ou jumento”; subiam “com seus animais e suas tendas” em multidões “como gafanhotos”, impossíveis de contar, “eles e seus camelos” (Juízes 6:3–5). O emprego intensivo do camelo (gāmāl) amplia o raio das incursões e a velocidade de retirada, compondo massas móveis descritas novamente como “inumeráveis como a areia do mar” em Juízes 7:12. A mobilidade desértica, o conhecimento de wadis e oásis, e a elasticidade de alianças tribais definem um teatro de operações centrado no Neguebe e no Sinai, com projeções ao vale do Jordão, o que explica a amplitude geográfica dos ataques. O mesmo ciclo destaca que o inimigo escolhe momentos e alvos de fraqueza — como a própria investida inaugural de Refidim, e o golpe no limiar de Canaã, quando amalequitas e cananeus derrotam Israel em Hormá (Números 14:39–45).
No plano tático, destacam-se três traços: primeiro, o golpe por trás contra retardatários e exaustos, wayzannēb (Deuteronômio 25:18), termo que, no hebraico, descreve “alinhar pela cauda/cortar a retaguarda”, exatamente o tipo de ataque a coluna em marcha; segundo, a guerra de desgaste por saque sistemático de recursos — “devastar a terra” — e imposição de fome e deslocamento (Juízes 6:3–6); terceiro, a exploração de camelos como vetor de choque e fuga, formando “multidão inumerável” (Juízes 7:12).
A fase monárquica confirma esses elementos. Saul é incumbido do ḥērem contra Amaleque (1 Samuel 15), o que pressupõe a neutralização de centros de apoio e de rotas usadas para pilhagem; a própria ordem de advertir os queneus, “moradores entre Amaleque”, mostra a permeabilidade de acampamentos e “cidades” amalequitas e a convivência com grupos aliados (1 Samuel 15:5–7). Já no ciclo de Davi, o ataque amalequita a Ziclague — enquanto o contingente de Davi estava ausente — revela a tática de atingir povoados desguarnecidos, concentrar despojos e retirar-se rapidamente. Quando Davi alcança o acampamento inimigo, os saqueadores estavam “espalhados… comendo, bebendo e festejando” o grande šālāl (saque); após o contra-ataque, “quatrocentos jovens montados em camelos” escapam, prova do papel logístico e militar do gāmāl na doutrina amalequita (1 Samuel 30:16–18; 1 Samuel 30:17).
A tradição israelita interpreta essa forma de combater como hostilidade paradigmática que mereceu memória e juízo: “Amaleque é primícia das nações, mas seu fim é destruição” (Números 24:20), e “apagarás a memória de Amaleque” (Deuteronômio 25:19). Em leitura enciclopédica judaica clássica, esse inimigo inaugural e persistente simboliza o agressor que ataca os fracos e a retaguarda, o que explica a dureza do memorial e da resposta prescrita nas Escrituras.
Em síntese funcional: os amalequitas praticam ataque por retaguarda e surpresa (wayzannēb), guerra de desgaste por razias sazonais sobre colheitas e rebanhos (Juízes 6:3–6), e mobilidade estratégica baseada em camelos, que lhes garante alcance e evasão rápidos (Juízes 7:12; 1 Samuel 30:17). Esses padrões emergem já no deserto, rompem com o protocolo de “oferecer paz” anterior ao cerco (Deuteronômio 20:10–12) e reaparecem na monarquia sob formas de pilhagem oportunista e retirada veloz — um repertório coerente com a vida tribal do deserto e com o conhecimento técnico do terreno.
IX. Legislação e teologia
A. Memória dupla: lembrar e apagar
A Torá fixa dois gestos complementares diante de Amaleque: (1) memorial escrito e juramento de guerra “de geração em geração” após Refidim — ketōb zōt zikkārôn bassefer… kî māḥōh ʾemḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq (Êxodo 17:14–16) — e (2) o preceito programático de lembrar e apagar: “Lembra-te do que te fez Amaleque… quando estavas cansado e exausto… lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm… quando o Senhor teu Deus te der descanso… timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq… não te esquecerás” (Deuteronômio 25:17–19; com a caracterização do ataque por retaguarda, wayzannēb bəḵā). A literatura judaica destaca a tensão intencional entre zāḵôr (“lembra”) e “apagar a memória”, resolvida liturgicamente pela leitura pública anual (Shabat Zakhor) que cumpre o lembrar e catequeticamente pelo ensino intergeracional do crime e do veredito (Êxodo 17:14–16; Deuteronômio 25:17–19).
B. Natureza do ḥērem aplicado a Amaleque
O ḥērem (consagração ao juízo) aparece como resposta jurídica-teológica ao ataque oportunista e irreligioso de Amaleque. Em 1 Samuel 15, Saul recebe a ordem de executar o ḥērem contra Amaleque, advertindo primeiro os queneus que “habitavam entre Amaleque”, depois ferindo “desde Havilá até Sur, que está defronte do Egito”, mas poupando Agague e o “melhor” do šālāl (1 Samuel 15:3–9). A palavra profética corrige a racionalização cultual do rei: “obedecer — šĕmōaʿ — é melhor do que sacrificar — zevaḥ” (1 Samuel 15:22–23). Em chave enciclopédica judaica, a controvérsia de Samuel com Saul não questiona o mandamento, mas “a extensão” da sua implementação (Êxodo 17:14–16; Deuteronômio 25:17–19; 1 Samuel 15).
C. Recepção haláchica: lembrar e destruir como deveres permanentes
A tradição normativa fixou duas mitsvot positivas correlatas: apagar a memória de Amaleque e lembrar continuamente suas obras para suscitar rejeição do seu crime. Maimônides classifica a guerra contra Amaleque como milḥemet miṣvah (guerra obrigatória) e explicita o dever de “obliterar a memória de Amaleque” e “lembrar perpetuamente sua maldade e emboscada” (Deuteronômio 25:19), inserindo essa pauta no conjunto das guerras prescritas (Mishnê Torá, “Reis e Guerras” 5:5). A prática litúrgica do Shabat Zakhor, na véspera de Purim, reitera Êxodo 17:8–16 e Deuteronômio 25:17–19 como cumprimento comunitário do zāḵôr (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19).
D. Questões filológicas que afetam a interpretação
A fórmula “apagar a memória de Amaleque” sustenta-se no substantivo zēḵer (“memória”), em paralelo ao zikkārôn de Êxodo 17:14. Autores lembram o jogo — conhecido desde leituras talmúdicas — entre zēḵer (“memória”) e zāḵār (“macho”), que gerou, em tradições anedóticas, confusões de escopo; a recepção rabínica manteve, entretanto, o entendimento normativo de que o alvo primário é a “memória de Amaleque”, enquanto o ḥērem narrativo (1 Samuel 15) trata de um caso histórico particular (Deuteronômio 25:19; Números 24:20; 1 Samuel 15).
E. Justiça, memória e identidade do povo de Deus
A teologia bíblica associa o juízo contra Amaleque ao princípio de proteção dos vulneráveis: o crime foi atacar “os enfraquecidos” (kol hanneḥešālîm) na retaguarda, quando o povo estava “cansado e exausto” (ʿāyēp wəyāgēaʿ) e “não temeu a Deus” (lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm), razão por que o recordar e o apagar se tornam parte da autoidentidade de Israel como comunidade que rejeita a predação do fraco (Deuteronômio 25:17–19). O oráculo de Balaão, “rēʾšît gôyim ʿămāleq… o seu fim é destruição” (Números 24:20), canoniza Amaleque como inimigo paradigmático cuja sorte sob o juízo divino explica a dureza das medidas. Leituras contemporâneas discutem a tensão ética entre o mandamento de memória e o risco de absolutizações violentas, recomendando situar ḥērem no seu horizonte literário-teológico (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19; Números 24:20; 1 Samuel 15).
F. Do memorial escrito ao rito
O mandamento de “escrever… um memorial no livro” — ketōb zōt zikkārôn bassefer — em Êxodo 17:14 torna-se matriz de ritos de lembrança: leitura pública anual (Shabat Zakhor), releitura de 1 Samuel 15 como advertência contra “obediência parcial”, e a memorização da sentença “não te esquecerás”, que aparece interpretada pelos sábios como zāḵôr (com a boca) e lōʾ tishkāḥ (no coração) (Êxodo 17:14–16; Deuteronômio 25:17–19; 1 Samuel 15).
G. Integração com as narrativas: fundamento do decreto
A base histórica-teológica do decreto é o ataque inaugural de Refidim (rəfîdîm), com o altar YHWH nissî (“o Senhor é minha bandeira”) e o juramento de guerra “de geração em geração” (Êxodo 17:8–16), seguido do reforço programático do Deuteronômio (Deuteronômio 25:17–19) e da execução régia sob Saul (1 Samuel 15). Enciclopédias judaicas de referência e compêndios históricos registram Amaleque como “sempre hostil a Israel”, com a guerra de Saul entendida como aplicação do ḥērem de Deuteronômio (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19; 1 Samuel 15).
O dossiê bíblico constrói três pilares: (1) Crime — ataque covarde por retaguarda contra os fracos (wayzannēb… kol hanneḥešālîm, Deuteronômio 25:18); (2) Memória-rito — zāḵôr/zikkārôn e altar YHWH nissî (Êxodo 17:14–16; Deuteronômio 25:17–19); (3) Juízo — ḥērem histórico (1 Samuel 15) e destino oracular de extinção (Números 24:20). A recepção haláchica cristaliza lembrar e apagar como deveres permanentes; a recepção litúrgica mantém a leitura anual; e a reflexão ética contemporânea insiste em ler esses textos dentro de seu gênero teológico-histórico, evitando projeções indevidas. (sefaria.org)
X. Intertextualidade bíblica
A. “Inimigo paradigmático” e guerras de YHWH
O dossiê canônico articula Amaleque como o primeiro agressor de Israel no deserto (Êxodo 17:8–16) e fixa uma memória dupla — zāḵôr (lembrar) e “apagar a memória de Amaleque” (Deuteronômio 25:17–19). Esses textos ecoam na formação da teologia de guerra (ḥērem) aplicada a esse povo (1 Samuel 15), e funcionam como arquétipo para “guerras do Senhor”, nas quais o crime específico de Amaleque é atacar a retaguarda — wayzannēb bəḵā — “os enfraquecidos” — kol hanneḥešālîm —, sem “temor de Deus” — lō yārē ʾĕlōhîm (Deuteronômio 25:18–19). A liturgia judaica consagrou essa memória na leitura de Shabat Zakhor, imediatamente antes de Purim (Deuteronômio 25:17–19; Êxodo 17:8–16).
B. “Povos do sul” e o cinturão de fronteira
A lista dos espias situa Amaleque no Neguebe, enquanto hititas, jebuseus e amorreus estão na serra, e cananeus no litoral e no Jordão (Números 13:29). Essa divisão reaparece nos ciclos de crise: no limiar de Canaã, amalequitas e cananeus ferem Israel em Hormá (Números 14:39–45); nos dias dos Juízes, alianças de Amaleque com Midiã (midyān) e com os “filhos do Oriente” — bənê qedem — realizam razias com camelos — gāmālîm — para devastar colheitas (Juízes 6:3–5; 7:12). Esse padrão de hostilidade do deserto, partilhado com grupos do arco Neguebe–Sinai–Arabá, reaparece nas campanhas de Saul e de Davi (1 Samuel 14:48; 1 Samuel 30:1–20).
C. Oráculo de Balaão como chave canônica
O oráculo “rēšît gôyim ʿămāleq” — “Amaleque é a primícia das nações” — (Números 24:20) grava o status paradigmático de Amaleque e converge com Êxodo 17 e Deuteronômio 25 para configurar o inimigo inaugural a ser lembrado e julgado. No mesmo ciclo, Números 24:7 menciona um “rei… mais alto do que Agague” — com variantes antigas lendo “Gogue” em lugar de “Agague” (Septuaginta, Pentateuco Samaritano, e versões gregas antigas), criando ponte intertextual com o juízo escatológico de Ezequiel 38–39. Essa variação textual é reconhecida em estudos que mapeiam a recepção grega dos oráculos de Balaão.
D. De Gênesis a Juízes: ecos e topônimos
A menção patriarcal a “En-Mispate (que é Cades)… e a terra dos amalequitas” (Gênesis 14:7) funciona como toponímia retrospectiva que antecipa a associação do Neguebe a Amaleque, leitura compatível com as notícias posteriores: presença no Neguebe (Números 13:29), ataques de oportunidade (Números 14:45), e projeções episódicas mais ao norte (“monte dos amalequitas” em Efraim, Juízes 12:15). A “Canção de Débora” preserva uma linha difícil: “De Efraim desceram os que têm sua raiz em Amaleque” — minnî ʾEfrayim šāršām baʿămāleq (Juízes 5:14), testemunho de memórias sobre ocupações antigas e mobilidade tribal.
E. Monarquia: Agague como ponte entre oráculo e narrativa
O título ou nome régio “Agague” — ʾagag — surge no oráculo (Números 24:7) e, séculos adiante, no juízo contra Amaleque sob Saul (1 Samuel 15:8–33), ligando profecia e história na moldura do ḥērem. O episódio destaca ainda a convivência de clãs na fronteira (“queneus… habitais entre Amaleque”) e reforça a ética da obediência: “obedecer — šĕmōaʿ — é melhor do que sacrificar — zevaḥ” (1 Samuel 15:22–23). Enciclopédias reconhecem essa dobradiça canônica, na qual o nome “Agague” serve de eixo de leitura entre o oráculo de Balaão e a execução histórica do juízo.
F. Ester e a memória de Amaleque
A designação “Hamã, o agagita” projeta a figura do inimigo amalequita no período persa; por isso, a tradição lê Hamã como “amalequita” e associa a derrota em Ester (Ester 3:1; 3:10; 8:1; 9:10, 24) à memória de Êxodo 17 e Deuteronômio 25. Fontes judaicas clássicas observam que “agagita” é sinônimo de “amalequita” e que o autor emprega conscientemente esse rótulo como nome emblemático do adversário de Israel. Na mesma chave, a lembrança de Hamã na festa de Purim reforça o arco intertextual que vai de Refidim à corte persa.
G. Salmo 83 e a galeria dos inimigos
O catálogo de povos em Salmo 83 (versos 6–8) reagrupa adversários históricos — incluindo Amaleque — em uma coalizão simbólica, retomando memórias de opressões dos períodos dos Juízes e da Monarquia. Esse salmo funciona como “lembrança teológica” que recicla nomes e conflitos para formar uma súplica de juízo e restauração.
H. Tipologia teológica: orgulho, predação e oposição a Deus
Na trama bíblica, “Amaleque” torna-se tipo da agressão oportunista e do desprezo por Deus: ataca os fracos (kol hanneḥešālîm) e o faz “sem temor de Deus” (lō yārē ʾĕlōhîm), razão do mandamento de memória e juízo (Deuteronômio 25:17–19). Na leitura judaica posterior, esse inimigo evolui como emblema do mal reincidente — o “agressor de geração em geração” —, cuja lembrança litúrgica (Shabat Zakhor) busca manter viva a rejeição do seu caminho.
O fio que cospe o conjunto é claro: (1) Êxodo 17:8–16 inaugura a memória de guerra (zikkārôn e altar YHWH nissî); (2) Deuteronômio 25:17–19 normatiza o lembrar e o apagar (zāḵôr / timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq), qualificando o crime (wayzannēb); (3) Números 24:7, 20 eleva o conflito ao nível oracular (com a variante “Gogue” que abre ponte para Ezequiel 38–39); (4) Juízes documenta a tática de razias aliadas (Juízes 6:3–5; 7:12) e guarda memórias toponímicas (Juízes 5:14; 12:15); (5) 1 Samuel 15 encarna o ḥērem e fixa a lição de obediência; (6) Ester inscreve Hamã “agagita” na galeria de Amaleque; (7) Salmo 83 recompõe os nomes como súplica coral. Nesse tecido, “Amaleque” opera como personagem histórico e como signo teológico do orgulho que predará o fraco e afrontará o Deus de Israel — e cuja memória, por isso, deve ser lembrada e apagada.
XI. Tradições do Segundo Templo
A. Ester (Hamã, “o agagita”) e a atualização de Amaleque
No período persa, o livro de Ester reintroduz a figura de Amaleque por meio de Hamã, designado “agagita” — referência que vincula sua linhagem ao rei amalequita Agague (ʾagag) e, por extensão, ao povo de Amaleque (Ester 3:1; 3:10; 8:1; 9:10, 24). A historiografia judaica de época romana confirma a leitura: Flávio Josefo chama Hamã “amalequita de nascimento”, explicitando o elo entre Ester e a memória veterotestamentária do inimigo paradigmático (Antiguidades 11.6.5).
B. Targum Sheni (genealogia de Hamã) e a linha Esaú–Agague–Amaleque
Nas reescrituras aramaicas de Ester, o Targum Sheni fornece uma genealogia ampliada de Hamã que o faz descender de Agague e, adiante, de Amaleque e de Esaú (ʿēsāw), criando uma ponte explícita entre Ester e as tradições de Gênesis 36 e 1 Samuel 15 (Ester 3:1; 3:10; 9:10).
C. Josefo como intérprete do conflito Saul–Amaleque
Em sua releitura narrativa, Josefo amplia os detalhes da guerra de Saul contra Amaleque e do juízo sobre Agague, sublinhando que a punição atende ao mal cometido contra Israel “no deserto” e descrevendo táticas e alcance geográfico da campanha (1 Samuel 15). Em Antiguidades 6.7, ele destaca emboscadas e perseguição “até destruir” os inimigos, concluindo com a morte de Agague em Gilgal; em Antiguidades 11.6.5, ao tratar de Ester, volta a qualificar Hamã como amalequita, mantendo a coerência do arco “Amaleque–Agague–Hamã” (1 Samuel 15; Ester 3:1; 3:10).
D. Pseudo-Fílo (Liber Antiquitatum Biblicarum) e as expansões sobre Agague
A obra judaica conhecida como “Antiguidades Bíblicas” (Pseudo-Fílo) reelabora 1 Samuel 15 com detalhes midráshicos: Agague e sua esposa conceberiam um filho na noite anterior à execução, e esse descendente se tornaria “pedra de tropeço” — motivo que explica a persistência amalequita e o prolongamento da culpa de Saul; mais adiante, o texto menciona “Edab, filho de Agague” no episódio da morte de Saul (1 Samuel 15; 2 Samuel 1:1–16). Essas ampliações intertestamentárias visam justificar, teologicamente, por que a desobediência de Saul continuou a frutificar em males posteriores.
E. Qumran: ausência de Ester e Amaleque na guerra escatológica
Entre os manuscritos do Mar Morto, todos os livros bíblicos estão representados, “exceto Ester”, fato repetidamente registrado por instituições de referência; não há, portanto, ecos qumrânicos diretos do rótulo “agagita” (Ester 3:1). Por outro lado, a “Regra da Guerra” (1QM) enumera, entre os inimigos escatológicos dos “filhos da luz”, Edom, Moabe, Amom, Filístia, os “quitim” — e inclui também “os amalequitas”, preservando a galeria de antagonistas veterotestamentários em chave apocalíptica (1QM, col. I).
F. Variante de Números 24:7 (Agague/Gogue) e a leitura escatológica
O oráculo de Balaão que, no Texto Massorético, menciona “Agague” — ʾagag — em Números 24:7, aparece, em tradições antigas, com “Gogue” — gôg — (Leituras da Septuaginta, do Pentateuco Samaritano e de versões gregas), estabelecendo uma ponte direta com o inimigo escatológico de Ezequiel 38–39. Essa oscilação “Agague/Gogue” contribuiu, na literatura do Segundo Templo, para enquadrar Amaleque/Agague como peça de um tabuleiro maior de inimizades “finais”, reforçando o caráter paradigmático do povo na memória de Israel (Números 24:7).
G. Purim e a memória ritual de Amaleque
A identificação de Hamã com Amaleque sedimenta a prática do Shabat Zakhor (leitura de Deuteronômio 25:17–19 e Êxodo 17:8–16) às vésperas de Purim, quando a comunidade “lembra” — zāḵôr — o ataque covarde (wayzannēb bəḵā, Deuteronômio 25:18) e reafirma o decreto “apagarás a memória de Amaleque” (Deuteronômio 25:19), enquanto a Meguilá narra a queda do “agagita” (Ester 3–9). Enciclopédias clássicas resumem esse entrelaçamento entre rito e história na festa de Purim.
Nas tradições do Segundo Templo, “Amaleque” é relido (1) historicamente, por Josefo, que expande e racionaliza as guerras de Saul (1 Samuel 15); (2) midráshica e intertextualmente, por Pseudo-Fílo e pelo Targum Sheni, que prolongam a linha Esaú –Amaleque–Agague até Hamã (Ester 3:1; 9:10, 24); (3) escatologicamente, em Qumran e na variante “Gogue/Agague” de Números 24:7, que reforçam o lugar de Amaleque no catálogo dos inimigos “finais” (1QM; Números 24:7). Assim, a memória do ataque por retaguarda — wayzannēb bəḵā — (Deuteronômio 25:18) e o mandamento — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq — (Deuteronômio 25:19) atravessam a literatura intertestamentária, culminando na figura de Hamã e alimentando, liturgicamente, a leitura que vincula Purim à antiga sentença de lembrança e juízo (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19; Ester 3–9).
XII. Recepção judaia (rabina e medieval)
A recepção judaica clássica entende “Amaleque” como inimigo paradigmático cuja lembrança deve ser mantida na boca e cujo memorial deve ser apagado quando houver possibilidade histórica. A halacá sistematiza três mandamentos derivados de Deuteronômio 25:17–19: lembrar — zāḵôr — o que Amaleque fez, não esquecer — lōʾ tiškaḥ —, e apagar — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq — a sua memória, articulados com o relato de Êxodo 17:8–16 e com a execução régia do ḥērem em 1 Samuel 15. Maimônides, ao codificar as guerras, classifica a guerra contra Amaleque como milḥemet miṣwāh e explicita o dever positivo de “obliterar a memória de Amaleque” e de “lembrar perpetuamente sua maldade e emboscada” (Deuteronômio 25:17–19). Ele também distingue entre os mandamentos relativos às “sete nações” — cujo cumprimento cessou porque “sua memória já foi apagada” — e a pauta específica sobre Amaleque, que permanece conceitualmente em vigor na lei (Mishnê Torá, “Reis e Guerras” 5:1; 5:4–5).
A prática comunitária fixou uma disciplina mnemônica: no Shabat imediatamente anterior a Purim lê-se publicamente Deuteronômio 25:17–19 (Shabat Zakhor), e a haftará recapitula o juízo contra Amaleque sob Saul em 1 Samuel 15, de modo que a memória do ataque por retaguarda — wayzannēb bəḵā… kol hanneḥešālîm — (Deuteronômio 25:18) e a ética da obediência — “obedecer — šĕmōaʿ — é melhor do que sacrificar — zevaḥ” — (1 Samuel 15:22–23) sejam reatualizadas na assembleia. Os códigos medievais e pós-medievais, como o Shulchan Aruch (Orach Chayim 685) e seus comentadores, consolidam esse calendário, normatizando a leitura de Zakhor no Shabat anterior a Purim.
As leituras midráshicas e a exegese rabínica expandem o sentido dos termos hebraicos do decreto. Sobre “ʾăšer qārəḵā badderekh” (Deuteronômio 25:18), os sábios exploram jogos de sentido: “ocorreu contigo” (ataque oportunista), “te esfriou” (apagou teu ardor), “te maculou”, compondo a imagem de um agressor que neutraliza o fervor espiritual de Israel. O Midraxe Tanchuma desenvolve a parábola do “banho a ferver” no qual um desavergonhado salta primeiro: ele se queima, mas “esfria” a água, encorajando outros a atacar; Rashi incorpora essa tradição e comenta ainda “e tu estavas cansado e exausto” — ʿāyēf wəyāgēaʿ — em referência direta ao contexto de Êxodo 17, acentuando a covardia de atingir os derradeiros (kol hanneḥešālîm) e a falta de “temor de Deus” — lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm (Deuteronômio 25:18–19).
A leitura litúrgica de Purim prolonga o dossiê: ao identificar Hamã como “agagita”, o livro de Ester projeta a linhagem amalequita no período persa (Ester 3:1; 3:10; 9:10, 24); a recepção judaica universalizou essa associação na prática de “apagar” o nome de Hamã durante a leitura da Meguilá, costume atestado desde a Idade Média nas comunidades franco-germânicas, onde se escrevia o nome do inimigo em pedras e se batia até apagá-lo — um gesto explicitamente inspirado no “apagarás a memória de Amaleque” (Deuteronômio 25:19). A partir daí difundiram-se variantes como os raʿašānîm (chocalhos), estalos e pancadas ao ouvir “Hamã” na leitura, todos entendidos como dramatização pedagógica da mitsvá de apagar o memorial do inimigo paradigmático.
No plano halácico, a obrigação de lembrar — zāḵôr — não é apenas individual e devocional, mas comunitária e verbalizada. Maimônides destaca que “lembrar” cumpre-se com a boca — zāḵôr bappēh —, que “não esquecer” fixa-se no coração — lōʾ tiškaḥ balleḇ — e que a guerra contra Amaleque pertence à categoria de guerra obrigatória antes de quaisquer campanhas optativas. Os compêndios clássicos de mitsvot, como o Sefer HaChinuch, enumeram explicitamente as três mitsvot correlatas: lembrar (n.º 603), destruir o “semente” de Amaleque (n.º 604) e não esquecer (n.º 605). A tradição de Shabat Zakhor, regulada por Orach Chayim 685 e por decisores como o Arukh HaShulchan, funciona como instrumento público para cumprir zāḵôr às vésperas de Purim.
Os mestres também registraram limites práticos para a aplicação histórica do juízo. O Talmud (Sanhedrin 94b) lembra que Senaqueribe “misturou as nações”, o que, para as “sete nações”, tornou inviável a identificação étnica e levou autores a reconhecer a cessação prática daquele mandamento; Maimônides codifica essa cessação no caso das sete nações, enquanto, no tocante a Amaleque, preserva a formulação do dever em tese, discutindo-se entre os comentadores se também aqui a identificação se perdeu ou se “Amaleque” opera como um estatuto (uma categoria jurídico-teológica) reconhecível por conduta hostil paradigmática. Essa tensão aparece em decisores medievais e posteriores ao avaliarem, de um lado, a impossibilidade de identificar linagens e, de outro, a permanente necessidade de manter a memória viva e a rejeição do seu “caminho”.
Nos midraxes e na literatura rabínica, “Amaleque” converte-se em rótulo simbólico para o ódio perene (“de geração em geração”, Êxodo 17:16) e, em certas peças tannaitas, pode até funcionar como cifra para Roma/Edom, dada a genealogia que liga Amaleque a Esaú; daí em diante, o nome passa a designar, por metonímia, “quem odeia Israel” em contextos de perseguição. Por isso, enciclopédias judaicas clássicas registram que os sábios fizeram de Amaleque “o tipo do arquiinimigo de Israel” e explicam a dureza do decreto à luz da agressão inaugural e da sua reencenação em Ester, onde o “agagita” é derrotado pela providência divina.
Em camadas mais espirituais, leituras místicas e hassídicas exploram o valor simbólico de Amaleque como “dúvida” (safēq), associando-o ao esfriamento do ardor de fé — uma maneira de parafrasear o “esfriar” de ʾăšer qārəḵā — e conclamando à luta interior contra a apatia que desprotege os “fracos da retaguarda” (Deuteronômio 25:18–19). Essas leituras não substituem a moldura halácica e litúrgica; antes, procuram traduzir, para a vida devocional, a memória ética do decreto: rejeitar a predação do vulnerável, manter viva a lembrança do crime e preservar a fidelidade à obediência que 1 Samuel 15 contrasta com o culto sacrificial.
Por fim, a cadeia “Amaleque–Agague–Hamã” mantém-se como eixo da memória judaica: o nome régio ʾagag em Números 24:7 reaparece em 1 Samuel 15, e Ester chama o opositor de “agagita”; a prática de Shabat Zakhor, a recitação da narrativa de Saul e a dramatização de apagar o nome de Hamã na leitura da Meguilá entrelaçam as camadas bíblica, rabínica e medieval, garantindo que zikkārôn e timḥāh caminhem juntos — lembrar em voz alta para não esquecer no coração, e educar a comunidade a rejeitar, em toda geração, o caminho de Amaleque (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19; 1 Samuel 15; Ester 3–9).
XIII. Recepção cristã antiga e medieval
A. Leitura tipológica: Amaleque como figura do pecado e dos demônios
Nos Padres da Igreja, “Amaleque” passa a designar o inimigo espiritual que ataca “os enfraquecidos” (kol hanneḥešālîm) na retaguarda (Deuteronômio 25:18), ou seja, as paixões e as forças demoníacas que investem contra os fiéis recém-libertos. Orígenes lê as guerras de Israel como paradigma de combate interior: a vitória de Josué (Yehōšuaʿ, “o Senhor é salvação”) sobre Amaleque significa a vitória de Cristo e dos cristãos sobre os vícios; os braços erguidos de Moisés evocam a oração perseverante (Êxodo 17:8–13) e, por extensão, a cruz, pela qual o mal é vencido. Em suas homilias, Orígenes trata expressamente as batalhas veterotestamentárias como imagens do conflito contra “as forças demoníacas” — expressão pela qual ele interpreta também o embate contra Amaleque — e desenvolve a pedagogia espiritual do texto: quando a oração “cai”, Amaleque prevalece; quando a oração “se eleva”, os vícios são derrotados (Êxodo 17:11–13).
B. Gregório de Nissa: da “história” ao “sentido espiritual”
Em A Vida de Moisés, Gregório de Nissa parte do relato histórico para conduzir o leitor ao sentido ascético: a peleja contra Amaleque ensina que a vida cristã é uma ascensão contínua na virtude, onde o combate contra as paixões exige vigilância, intercessão e cooperação comunitária (Arão e Hur sustentando as mãos de Moisés, Êxodo 17:12). Para ele, a narrativa mostra “pela história” como se trava a luta “na alma”: Amaleque é a soma das paixões que precisam ser cortadas “pela raiz”, e a elevação das mãos exprime a mente elevada a Deus, sem a qual o mal ganha terreno (Êxodo 17:8–16). Gregório conserva a literalidade do episódio e o transfigura em itinerário de perfeição.
C. Agostinho: do inimigo histórico ao inimigo da Igreja
Nas Exposições sobre os Salmos, Agostinho comenta o Salmo 83, onde “Amaleque” aparece no catálogo dos adversários do povo de Deus (Salmo 83:7). O bispo de Hipona lê essa galeria em chave eclesial: inimigos externos na história e, espiritualmente, os vícios e os perseguidores da fé. O clamor do salmo por juízo — “confundi-os… para que busquem o teu nome” (Salmo 83:16) — torna-se oração para que os inimigos sejam ou convertidos ou vencidos, a fim de que Deus seja conhecido. Assim, “Amaleque” tipifica tanto agressões históricas quanto hábitos desordenados que se levantam contra a Igreja.
D. Hamã “o agagita” e a cadeia Amaleque–Agague–Hamã
A tradição cristã antiga reconhece em Ester a atualização literária de Amaleque: Hamã é chamado “agagita” — eco do rei amalequita Agague (ʾagag) derrotado sob Saul (1 Samuel 15) — e figura o “perseguidor” que, por providência divina, cai no laço que armou (Ester 3:1; 3:10; 9:10, 24). Ao manter esse elo, os exegetas cristãos alinham Êxodo 17:8–16, Deuteronômio 25:17–19, 1 Samuel 15 e Ester 3–9 como um arco contínuo que vai do ataque covarde (wayzannēb bəḵā, Deuteronômio 25:18) à derrota dos perseguidores. Gregório de Nissa, ao reler a vida de Moisés para a edificação cristã, reforça essa ponte ao associar os “inimigos” do deserto aos adversários espirituais da comunidade. (Ecclesia.org.br)
E. Rábano Mauro e a alegoria medieval
Na alta Idade Média, a leitura alegórica consolidou-se: Rábano Mauro, em compêndios enciclopédicos e comentários, registra “Amaleque” no repertório dos inimigos paradigmáticos e o vincula ao combate espiritual e à memória do mal a ser extirpado. A recepção medieval torna sistemático o paralelismo: Amaleque = vícios/diabo; Josué = Cristo e o cristão militante; mãos erguidas de Moisés = oração/comunhão dos santos; derrota do inimigo = purificação interior e disciplina eclesial (Êxodo 17:8–16; Deuteronômio 25:17–19).
Elementos recorrentes da leitura patrística e medieval:
-
Identidade tipológica do inimigo. Amaleque torna-se signo do orgulho e da predação espiritual — paixões e demônios que atacam os “fracos da retaguarda” (kol hanneḥešālîm, Deuteronômio 25:18).
-
Meio da vitória. A cena das mãos erguidas destaca a oração incessante e a intercessão comunitária; quando “Moisés abaixa as mãos”, Amaleque prevalece; quando “as eleva”, Israel vence (Êxodo 17:11–12). Orígenes lê aqui a regra ascética do combate; Gregório de Nissa descreve a ascensão da mente e a sinergia eclesial.
-
Cristo/Josué como chave. O próprio nome de Josué (Yehōšuaʿ) sustenta a tipologia cristológica: é “o Senhor salva” quem derrota Amaleque. A vitória de Josué antecipa a de Cristo sobre os demônios e a dos fiéis sobre os vícios (Êxodo 17:13).
-
Teleologia do juízo. Em Agostinho, o pedido de confusão dos inimigos no Salmo 83 visa à sua conversão (“para que busquem o teu nome”), e, se não se convertem, à sua derrota, para a santificação do nome de Deus (Salmo 83:16–18).
(i) Notas textuais usadas pelos Padres. O oráculo de Balaão — “rēʾšît gôyim ʿămāleq… o seu fim é destruição” (Números 24:20) — e a menção a “Agague” (Números 24:7) funcionam como charneira entre profecia e história (1 Samuel 15), favorecendo a leitura que vê em Hamã “o agagita” a reencenação da hostilidade amalequita (Ester 3:1; 9:10, 24). Esses elos estruturam a catequese patrística sobre o mal que deve ser lembrado — zāḵôr — para ser apagado — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq (Deuteronômio 25:19). Gregório de Nissa expõe precisamente esse método de “subir” do histórico ao espiritual em sua obra.
XIV. História da interpretação moderna e debates éticos
A. O problema ético central
Dois textos estruturam o debate: o memorial de Refidim com o juramento “de geração em geração” (Êxodo 17:8–16) e o preceito de lembrar e apagar (Deuteronômio 25:17–19) motivado pelo ataque por retaguarda aos “enfraquecidos” — kol hanneḥešālîm — quando Israel estava “cansado e exausto” — ʿāyēf wəyāgēaʿ (Deuteronômio 25:18). O ápice narrativo ocorre no ḥērem sob Saul, que falhou em executá-lo plenamente ao poupar Agague e “o melhor” do šālāl (1 Samuel 15:3–9; 1 Samuel 15:22–33). Esses dados bíblicos — somados ao oráculo “rēʾšît gôyim ʿămāleq… o seu fim é destruição” (Números 24:20) — geram as questões modernas: como ler textos de violência sacral? que sentido tem “apagar a memória” na formação ética do povo?
B. Quadro histórico-critico: ḥērem na cultura de guerra do Antigo Oriente
Estudos situam o ḥērem como linguagem de consagração total ao juízo divino, com paralelos na região (por exemplo, a Estela de Mesa usa o verbo cognato para descrever destruição sacral). Em sínteses recentes, o ḥērem é posto em relação com pureza, terra e aliança, iluminando por que certas campanhas (como a de 1 Samuel 15) são apresentadas como “interditadas” e não como guerra comum (Deuteronômio 20:10–18; Josué 6:17–19; 1 Samuel 15:3).
C. Leituras judaicas modernas: entre normatividade e limites práticos
A tradição haláchica clássica formulou três mandamentos: lembrar — zāḵôr —, não esquecer — lōʾ tiškaḥ — e apagar — timḥeh ʾet zēḵer ʿămāleq —, e classificou a guerra contra Amaleque como milḥemet miṣwāh. Discussões contemporâneas retomam esses dados para perguntar “o que fazer com textos que permanecem”. Análises recentes mapeiam a tensão entre a permanência textual do dever e a impossibilidade prática de identificar “Amaleque” hoje, bem como as releituras que deslocam o foco do extermínio físico para a erradicação do “caminho de Amaleque” (predação do fraco, lōʾ yārēʾ ʾĕlōhîm). (KELLNER, 2014, pp. 153-179)
D. Teologias bíblicas e leituras canônicas: lembrar para curar
Em propostas teológicas recentes, “lembrar Amaleque” é lido como disciplina de memória ética: recordar a agressão covarde — wayzannēb bəḵā (Deuteronômio 25:18) — para rejeitar seu padrão e proteger os vulneráveis. Alguns autores cristãos (cf. CAMPBELL, Remembering Amalek, 2016, pp. 7-8) propõem uma recepção que assume a autoridade do texto e, ao mesmo tempo, circunscreve o ḥērem àquele caso histórico, reorientando “apagar a memória” para a extinção do ciclo de ódio e para a conversão do inimigo (ligando Deuteronômio 25:17–19 a Ester 3–9 e ao clamor do Salmo 83 por reconhecimento de Deus).
E. Memória e trauma: “lembrar para esquecer”
Estudos de memória cultural observam que a fórmula “apagar a memória” só é ética quando precedida de um “lembrar” que nomeia o mal e impede sua normalização: escreve-se o zikkārôn (Êxodo 17:14) para que a comunidade não repita Amaleque. Pesquisas sobre “lembrar e esquecer” exploram precisamente esse paradoxo — registrar para, ao fim, encerrar o ciclo de violência —, tomando o motivo “apagar a memória de Amaleque” como caso exemplar. (BERNARD-DONALS, Forgetful Memory: Representation and Remembrance in the “Amalek” Paragraph, 1996, pp. 97–116)
F. Perigos de instrumentalização: usos políticos indevidos
A literatura contemporânea também documenta deturpações do tema “Amaleque” para legitimar violências modernas. Em análises de teologias pós-genocídio, há relatos de apelos indevidos a Deuteronômio 25:17–19 e 1 Samuel 15 para justificar inimizações absolutas — sinal de que a leitura responsável deve distinguir entre a memória bíblica de um crime e a manipulação ideológica de rótulos sagrados. (SPIJKER, Focused on Reconciliation: Rwandan Protestant Theology After the Genocide, 2017, pp. 66-74)
G. “Punir Amaleque” na história da interpretação: continuidades e deslocamentos
Revisões acadêmicas de longo curso mostram como, do período rabínico à modernidade, o “castigo de Amaleque” foi entendido ora como dever histórico (quando havia inimigo identificável), ora como símbolo pedagógico permanente, com debates sobre linhagem, identidade e extensão do ḥērem. Esses levantamentos sublinham que, mesmo quando o vocabulário de destruição permanece, cresce a ênfase em memória, prudência e limites, especialmente após a impossibilidade de identificação étnica e à luz de catástrofes modernas. (RON, 2023, Avoid Amalek, pp. 260-262; KAMINSKY, 2023/2024, Did Election Imply the Mistreatment of Non-Israelites?, pp. 397-425)
Propostas éticas atuais:
-
Contextualização histórica do ḥērem: caso específico, linguagem de guerra sacral do Antigo Oriente (Deuteronômio 20:10–18; 1 Samuel 15), não programa replicável.
-
Recepção normativa circunscrita: lembrar (zāḵôr) e não esquecer (lōʾ tiškaḥ) como práticas de educação moral e litúrgica (Shabat Zakhor; Ester 3–9), sem licença para violência moderna. (ASI, The Punishment of Amalek in Jewish Tradition, 1994, pp. 323-346)
-
Leitura terapêutica da memória: documentar o mal para “apagar” o ciclo de ódio no sentido de desautorizar seu caminho e curar a comunidade ferida.
-
Vigilância contra abusos: denunciar usos políticos do rótulo “Amaleque” que alimentam perseguições atuais.
H. Como esse debate relê as narrativas bíblicas
O que se discute eticamente não apaga os dados canônicos: Amaleque foi o primeiro agressor (Êxodo 17:8–16), atacou por trás os fracos (wayzannēb… kol hanneḥešālîm, Deuteronômio 25:18), recebeu, por isso, o decreto de memória e juízo (Deuteronômio 25:17–19), e foi julgado sob ḥērem na monarquia (1 Samuel 15). A história moderna da interpretação busca honrar essa memória — que protege os vulneráveis — sem converter o símbolo bíblico em licença para novas violências.
Bibliografia
ABENÇOAR. In: TENNEY, Merrill C. (org.). Ameleque. In: Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. v. 1, p. 48–49.HERZOG, Ze’ev. Enclosed Settlements in the Negeb and the Wilderness of Beer-sheba. Bulletin of the American Schools of Oriental Research, n. 250, pp. 41–49, 1983.
__________. Amalek; Amalekites. In: FREEDMAN, David Noel (ed.). Eerdmans Dictionary of the Bible. Grand Rapids: Eerdmans, 2000. p. 48.
NAʾAMAN, Nadav. The Date of the List of Towns that Received the Spoil of Amalek (1 Sam 30:26–31). Tel Aviv, v. 37, n. 2, pp. 175–187, 2010.
PARR, Peter. Contacts between North West Arabia and Jordan in the Late Bronze and Iron Ages. In: HADIDI, Adnan (ed.). Studies in the History and Archaeology of Jordan. Amã: Department of Antiquities, 1982. v. 1, pp. 127–133.
Quer citar este artigo? Siga as normas da ABNT:
GALVÃO, Eduardo. Amaleque, Amalequitas. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].