Provérbios 4:23 — O que significa “guardar o coração”?
O que significa “guardar o coração”?
“Guardar o coração”, em Provérbios 4:23, significa montar sentinela no centro da pessoa — a mente-vontade-afeto — porque é daí que nasce tudo o que fazemos e dizemos. O verbo hebraico נָצַר (nāṣar) não é passivo: é vigiar, proteger, cultivar. E “coração” (לֵב, lēv) não é só emoção; é o painel de controle da vida, onde se decidem rumos, se amadurecem desejos e se pesam valores. Por isso o texto pede “com toda vigilância” (literalmente, “mais do que a qualquer outra guarda”) e explica o motivo: “dele procedem as saídas/fontes da vida” — ou seja, caráter, palavras, escolhas, hábitos, tudo jorra desse núcleo.
Na prática, guardar o coração é filtrar o que entra e o que sai de nós. Entradas: o que você escuta, vê, repete, inveja, consome, com quem caminha. Saídas: a boca, os impulsos, as decisões. Guardar não é fechar‐se por medo, mas cuidar da nascente para que o rio não se contamine. É escolher verdades que formem o interior, cortar influências que o distorçam, treinar a atenção e a fala para que a vida que sai de você seja limpa, justa e pacífica. Através da Palavra de Deus aprendemos como fazemos para guardar nosso coração em todos os sentidos. Além disso, Jesus Cristo advertiu claramente: “Pois do interior, do coração dos homens, saem os maus pensamentos...” (Mateus 15:19 NVI). E nos exortou a vigiar e orar, dizendo: “Vigiem e orem para que vocês não entrem em tentação” (Mateus 26:41 NVI).
Em termos simples: trate o coração como um poço artesiano. Se a água da nascente for boa, o curso da vida será bom. Por isso, acima de tudo, faça vigília aí dentro — porque é desse “dentro” que brota o seu “fora”.
I. Estado da questão e delimitação do problema
A questão hermenêutica que abriga o significado de “guardar o coração” em Provérbios 4:23 no original hebraico exige começar pelo gênero e pela macro-arquitetura sapiencial. O provérbio é parte de uma unidade de instrução paternal (4:20–27) que compõe um tecido de atenção — ouvidos, olhos, lábios, olhar e pés convergem para o centro volitivo e cognitivo da pessoa, o “coração”. Os estudos recentes têm insistido que não se trata de máximas isoladas, mas de “clusters” coesos por vínculos linguísticos e temáticos; o contexto imediato, portanto, tem “significado hermenêutico”, articulando teologia e forma. Os “ditos são organizados em ‘grupos’ por meio de ligações linguísticas e temáticas” (DELL, The Cambridge Companion to Biblical Wisdom Literature, 2022, p. 22). Ainda na chave de gênero, o paralelismo antitético clarifica a retórica comparativa por contraste — procedimento que disciplina a semântica do “guardar” ao opor rumos e destinos. “Esta máxima segue o que é conhecido como paralelismo antitético.” (ibid., 2022, p. 103).
No nível textual, a expressão hebraica é: מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ כִּי־מִמֶּנּוּ תֹּצְאוֹת חַיִּים (mi-kol mišmār nĕṣōr libbekhā, kî mimmennû tōtsaʾōt ḥayyîm [“acima de toda guarda, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida”]). A forma massorética condensa, com tersidade típica da poesia hebraica, três nós exegéticos: o intensificador comparativo “מִכָּל” (mi-kol [“acima de todo/mais que qualquer”]), o substantivo “מִשְׁמָר” (mišmār [“guarda, posto de vigilância, custódia”]) e o plural “תּוֹצָאוֹת” (tōtsaʾōt [“saídas, efluxos, fontes”]) que perfila o coração como nascente. A LXX verte: μετὰ πάσης φυλακῆς τήρει σὴν καρδίαν... ὅτι ἐξ αὐτῆς ἐξόδοι ζωῆς (meta pasēs phylakēs tērei sēn kardian... hoti ex autēs exodoi zōēs [“com toda vigilância, guarda o teu coração... porque dele [são] saídas de vida”]), ratificando as coordenadas semânticas de φυλακή (phylakē [“vigia/guarda”]) e ἐξόδοι (exodoi [“saídas”]) e preservando o movimento imagético da nascente. Essa leitura de forma-e-teologia reclama, por conseguinte, técnicas de interpretação que não separem retórica de semântica nem metáfora de ética.
Do ponto de vista dos recursos poéticos, paralelismo, imagens-raiz e macro-metáforas estruturam a leitura. Nas páginas dedicadas à Sabedoria veterotestamentária, destaca-se a tese de que Provérbios 1–9 se organiza sobre “metáforas-raiz” que modulam pessoas, convites, “caminhos”, “mulheres” e “casas”, de modo que o leitor interprete cada sentença à luz de uma cartografia simbólica ampla. Dentro desse campo de forças, a ética é incessantemente dramatizada como um ato de eleição entre trajetos: a “metáfora dos dois caminhos” estabiliza a inteligibilidade do verbo “guardar” ao localizá-lo no cruzamento entre escolhas repetidas e direção existencial. É a “metáfora dos “dois caminhos” entre os quais as pessoas têm constantemente de fazer uma escolha” (FIRTH, Interpreting Old Testament Wisdom Literature, 2017, p. 59).
Uma hermenêutica responsável de Provérbios 4:23, portanto, deve articular três níveis: forma poética (paralelismo, tersidade, concatenação por palavras de gancho), semântica dos lexemas-chave e macro-imaginário sapiencial. Na forma, a técnica de mapeamento de “clusters” evita a atomização proverbial; na semântica, “נָצַר” (nāṣar [“guardar, vigiar, custodiar”]) não se reduz a observar estatutos, mas implica ação de proteção ativa; “לֵב/לֵבָב” (lēb/lēbāb [“coração”]) abrange intelecto, volição e afeto; “מִשְׁמָר” (mišmār [“guarda, posto de vigia”]) qualifica a intensidade da custódia; e “תּוֹצָאוֹת” (tōtsaʾōt [“efluxos/fontes”]) perfaz o coração-nascente. Essa leitura integrada coincide com o quadro que a pesquisa recente traça para a poesia sapiencial: paralelismo antitético, especificação por cola e micro-encadeamentos tornam-se parâmetros metodológicos, não ornamentos. “Esta máxima segue o que é conhecido como paralelismo antitético.” (ibid., 2022, p. 103). Verifica-se, ainda, que a seleção e o posicionamento de provérbios “religiosos” dentro de conjuntos maiores desafiam a hipótese de que a teologia teria sido enxertada tardiamente; a “colocação” tem valor interpretativo.
No horizonte comparado do Antigo Oriente Próximo, o artigo clássico de Nili Shupak demonstrou que determinados termos e idiomatismos sapienciais israelitas se esclarecem quando cotejados com a instrução egípcia, especialmente quanto à escola, ao escriba e ao vocabulário formativo. Esse dado não dilui a especificidade israelita, mas pressupõe um tráfego cultural de formas e sentidos dentro do qual Provérbios respirou: As “as expressões só podem ser totalmente compreendidas quando consideradas em seu contexto egípcio” (SHUPAK, The ‘Sitz im Leben’ of the Book of Proverbs, 1987, p. 102). Nas técnicas de interpretação, isso reclama uma disciplina filológica que compare provérbios, imagens e fórmulas do “coração” (hebr. לֵב lēb [“coração”]; egíp. ib) sem romantizar empréstimos, mas identificando convergências pedagógicas da literatura sapiencial. (ibid., 1987, p. 99–105).
Aplicadas a Provérbios 4:23, tais técnicas conduzem a um protocolo operacional. Primeiro, leitura estrutural da perícope 4:20–27, assinalando paralelos internos: ouvido/olhos/boca/olhar/pés convergem no “coração”, núcleo do sistema moral. Em seguida, análise de paralelismo (sinonímico e antitético) que governa as relações entre imperativos de vigilância e o princípio-fonte “vida”. Depois, exame lexical dos termos decisivos com apoio nas versões antigas: “guard(a)” na LXX (φυλακή phylakē [“vigia/guarda”]) reforça a leitura de intensidade; “saídas” (ἐξόδοι exodoi [“saídas”]) sustenta a metáfora hidráulica da nascente; por fim, a inserção do provérbio nos “clusters” de advertências paternas condiciona sua interpretação a um circuito pedagógico cumulativo, onde “guardar” significa custodiar a nascente para que o fluxo não se corrompa. (DELL, ibid., 2022, pp. 22, 72, 103; FIRTH, 2017, pp. 40, 59).
Com esse aparato, o exato sentido de “guardar o coração” se ilumina como guarda ativa, contínua e prioritária do centro decisório, cognitivo e afetivo do sujeito, a partir do qual brotam comportamentos, percursos e destinos. A própria forma do provérbio instrui o método: a concisão convoca inferência; o paralelismo disciplina a leitura; a macro-metáfora dos dois caminhos exige que “guardar” seja interpretado como custódia que antecede e orienta cada escolha. A metáfora de fontes torna-se decisiva para a ética: tudo o que corre nos canais da vida humana procede da nascente; a técnica interpretativa deve, pois, vigiar a nascente linguística (lexemas), retórica (paralelismo/imagens) e teológica (relação entre “vida” e “coração”) ao mesmo tempo. “incorporates a variety of these genres”.
Essa metodologia impede leituras moralistas que amputem a poética: a poesia hebraica não adorna a ética; ela a cria linguisticamente. O imperativo נְצֹר (nĕṣōr [“guarda!”]) não é um apelo vago, mas o comando de levantar sentinela no poço da pessoa, “acima de toda guarda” — isto é, priorizando a custódia do coração sobre todas as outras tarefas de vigilância. A arte sapiencial, ao ordenar a percepção por paralelismo e metáfora, treina o leitor a vigiar não apenas comportamentos externos, mas o foco de onde jorram as “תּוֹצָאוֹת חַיִּים” (tōtsaʾōt ḥayyîm [“fontes da vida”]). Na aplicação hermenêutica, isso se traduz em disciplinas de leitura que mantêm unidas forma, semântica e ética; “guardar o coração” é, assim, um gesto interpretativo e existencial: ler o mundo a partir de sua nascente.
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| As leis divinas nos ajudam a guardar nosso coração |
II. Gênero e macro-texto:
A forma que nos recebe em Provérbios 1–9 é a de uma coleção de discursos de instrução (musar) ancorados na voz parental: “שְׁמַע בְּנִי מוּסַר אָבִיךָ” (šĕmaʿ benî musar ʾābîkā [“ouve, meu filho, a disciplina de teu pai”], Provérbios 1:8). A unidade retórica que vai de Provérbios 1:8 a 9:18 estabelece uma pedagogia poética: o “pai” interpela o “filho” e constrói uma catequese moral por paralelismo, imagens e encadeamentos de períopes que funcionam como lições e interlúdios. Não é mero prólogo; é um programa didático cujo alvo é dotar o leitor de competência interpretativa para penetrar os enunciados lapidares do miolo do livro (Provérbios 10–29). Arthur Jan Keefer mostra que o preâmbulo (Provérbios 1:1–7) promete precisamente isso, por meio de dois verbos programáticos, ambos em hiphil: בִּין (hēbîn) – aqui, não só “entender”, mas “explicar/explicitar” – e לָמַד/לָקַח no encadeamento dos infinitivos de propósito (Provérbios 1:2–6). Keefer sustenta que Provérbios 1–9 “funciona didaticamente”: ensina a ler os provérbios enigmáticos que virão, oferecendo molduras literárias, retóricas e teológicas para eles (KEEFER, Proverbs 1–9 as an Introduction to the Book of Proverbs, 2020, p. 7; p. 183).
Esse desenho explica por que Provérbios 4 – e com ele “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mi-kol mišmār nĕṣōr libbekhā [“acima de toda guarda, guarda o teu coração”], Provérbios 4:23) – pertence organicamente ao gênero instrução paternal. Em termos literários, o imperativo נָצַר (nāṣar [“guardar, custodiar”]) ganha densidade quando lido no percurso pedagógico de 1–9: os sentidos, a boca, os pés e os olhos são “treinados” como varandas da interioridade; o coração (לֵב lēb [“coração”]) aparece como nascente (tōṣāʾôt ḥayyîm [“fontes/efluxos de vida”]) que exige vigilância prioritária. A própria macroforma de 1–9 – palestras (1:8–19; 2; 3:1–12, 21–35; 4; 5; 6:20–35; 7) intercaladas por interlúdios (1:20–33; 3:13–20; 6:1–19; 8; 9) – trabalha o leitor em competências de escuta, inferência e julgamento, que depois se aplicarão às sentenças breves (cf. a síntese de estrutura em Cambridge Companion, que descreve o preâmbulo, as “lectures” e os “interludes” como arcabouço pedagógico; DELL; MILLAR; KEEFER, The Cambridge Companion to Biblical Wisdom Literature, 2022, p. 151).
O macrocontexto didático delineado por Provérbios 1–9 dialoga com práticas sapienciais do Antigo Oriente Próximo, particularmente o modelo egípcio de instruções (sbꜣyt) como Amenemope. Keefer registra o paralelismo formal entre o preâmbulo hebraico (Provérbios 1:1–7) e o egípcio (Amenemope I, 1–12), ambos inaugurados por um título nominal seguido por séries de infinitivos de propósito que explicitam os objetivos do livro (KEEFER, op. cit., 2020, p. 10). A passagem inicial de Amenemope convoca o aprendiz a “dar o coração para entender” e a guardar os ditos no “estojo do ventre”, imagem que reemerge na pedagogia de Provérbios 22:17–21 e confirma o parentesco de formas e intenções (KEEFER, op. cit., 2020, p. 10).
Esse ambiente escolar suposto por Provérbios 1–9 – um espaço onde se “deposita” o ensino no coração para governar fala e conduta – encontra defesa clássica no ensaio de Nili Shupak sobre o Sitz im Leben de Provérbios. Seu argumento mostra convergência terminológica entre o léxico dos sábios hebreus e o vocabulário das escolas egípcias, sugerindo que Provérbios teria servido como manual para a formação do escriba: “Parece razoável supor... que o Livro dos Provérbios tenha servido como livro didático nessas escolas.” (SHUPAK, ibid., 1987, pp. 98–99). Do ponto de vista metodológico, isso não implica dependência servil; antes, ilumina o lugar social da instrução bíblica: uma escola de sabedoria comunicada por “pai/filho”, onde a memorização e a internalização moldam a prudência. (SHUPAK, op. cit., 1987, pp. 98–104).
A hipótese próemio-funcional de 1–9 é reforçada também por analogias intra-bíblicas: Eclesiastes e Jó empregam prólogo e epílogo como molduras interpretativas que dão unidade e orientam a leitura de materiais enigmáticos. Keefer sintetiza: prólogos e epílogos em Eclesiastes 1:1–11; 12:9–14 e o enquadramento narrativo de Jó 1–2; 42:7–17 “suportam a hipótese de que Provérbios 1–9 funcione como guia didático” para 10–29 (KEEFER, op. cit., 2020, p. 7). A função, aqui, não é ornamentar, mas ensinar a ler: o livro promete (Provérbios 1:2, 6) a competência de entender e explicitar provérbios, ditos, palavras dos sábios e חִידוֹת (ḥidot [“enigmas, charadas”]), e cumpre essa promessa treinando o leitor nos capítulos inaugurais (KEEFER, op. cit., 2020, pp. 4–7).
No detalhe filológico, esse treinamento se dá por léxicos-chave e formas recorrentes. O vocativo בְּנִי (benî [“meu filho”]) estabelece a relação de ensino; מוּסָר (mūsār [“disciplina/formação moral”]) e תּוֹרָה (tôrāh [“ensino/instrução”]) definem o conteúdo; o paralelismo (por vezes antitético) e os padrões imagéticos constroem o “mapa moral” em que o leitor aprende a discernir (בִּין bîn). Quando, então, Provérbios 4:23 ordena “נְצֹר לִבֶּךָ” (nĕṣōr libbekhā [“guarda o teu coração”]), o comando não paira no vácuo: ele é o ápice pedagógico de um bloco (4:20–27) que instrui ouvidos, olhos, língua e pés a convergirem no centro cognitivo-volitivo. É precisamente esse entrelaçamento forma-teologia que a moldura de 1–9 treina o leitor a perceber e performar (KEEFER, op. cit., 2020, p. 1–7; 183).
Nesse cenário, Amenemope serve como paralelo heurístico e não como derivação mecânica. O ponto, para nossa seção metodológica, é que tanto em Amenemope quanto em Provérbios 1–9 o prólogo declara finalidades pedagógicas (“pôr no coração”, “guiar”, “salvar”), e a composição subsequente induz memória, prudência e domínio de si como competências do ofício sábio. Keefer, à luz de vários textos do ANE, resume: prólogos e, às vezes, epílogos motivam a escuta e a prática, criam contexto discursivo e mostram consciência do próprio texto – traços que aproximam Provérbios desses corpora (KEEFER, op. cit., 2020, pp. 10–11).
Se tomamos a sério esse gênero e seu macrocontexto, o sentido de “guardar o coração” deixa de ser conselho genérico e torna-se um ato escolar: um exercício de vigilância prioritária no ponto de origem da vida moral, aprendido no banco da escola da Sabedoria. O pai ensina o filho a ordenar a percepção (ouvir, ver, falar, andar) para preservar a nascente – “תּוֹצָאוֹת חַיִּים” (tōṣāʾôt ḥayyîm [“efluxos/fontes de vida”], Provérbios 4:23). A instrução paterna, assim, não só afirma valores, mas forma o leitor numa ars interpretandi que o habilita a aplicar o mesmo método às sentenças breves de 10–29. É por isso que Provérbios 1–9 não é um pórtico decorativo, mas um ateliê hermenêutico: “supre molduras interpretativas” e cumpre a promessa do preâmbulo, capacitando o intérprete a entender e explicar (KEEFER, op. cit., 2020, p. 183; p. 7).
O Sitz im Leben que emerge — a escola da sabedoria, com sua disciplina lexical e pragmática — legitima a leitura de Provérbios 4 como discurso formativo em que a guarda do coração é “prioridade sobre toda guarda”. No vocabulário de Shupak, tal cenário aproxima o sábio bíblico do ambiente escolar egípcio e sustenta a tese de Provérbios como livro-manual para o ofício do viver sábio (SHUPAK, 1987, p. 98–105).
III. Unidade literária 4:20–27
Em primeiro lugar, a sequência 4:20–27 confirma o caráter de “instrução paterna” típica de Provérbios 1–9, mas com um giro retórico que estrutura a perícope como uma anatomia da atenção. No NICOT, Bruce K. Waltke observa que o novo apelo ao “filho” distingue esta “sétima lição” da anterior (4:10–19) e “muda o código” de dois caminhos para a anatomia do discipulado, com a enumeração de orelha, olhos, coração, corpo, boca/lábios, olhos/pupilas e pés, entrelaçada por um léxico de orientação física (inclinar, estender, desviar-se, tornar-se torto, endireitar, etc.) (WALTKE, ibid., 2004, pp. 406–407). Esse deslocamento formal é decisivo para nosso verso: a injunção a “guardar o coração” situa-se como o pivô que coordena a recepção da instrução (ouvidos/olhos), a interiorização (coração) e a execução reta (boca/pés).
No WBC, Roland E. Murphy apresenta a tradução do bloco com a conhecida concisão poética — “Acima de tudo, proteja seu coração, pois dele procedem as fontes da vida” — inscrevendo, com a tersidade típica do gênero, o paralelismo entre a custódia do interior e o curso vital (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 26). Em seguida, na seção de comentário, ele explicita o desenho pedagógico: o apelo a cada “órgão” se encadeia e culmina no coração como “o mais importante de todos”, de modo que só após o correto funcionamento de ouvido, olhos e coração é que a “vida” (v. 23) se assegura; a relação “coração–caminho” já fora indicada em 2:10–13 e reaparece aqui (MURPHY, ibid., p. 28). Essa leitura confirma que “guardar” não é apenas conhecer os preceitos, mas ordenar a interioridade para manter a rota reta: o coração como nascente que irriga todo o percurso.
No centro dessa arquitetura, a forma de v. 23 desempenha papel singular. O NICOT identifica o versículo como janus, simultaneamente retrospectivo e prospectivo, pois contém em uma linha o adágio (“guarda!”) e o argumento (“porque de lá fluem...”); olhando para trás, fecha o arco da introdução (vv. 20–22), em que os verbos de atenção e o depósito das “palavras” conduzem até o coração; olhando adiante, o coração “anima” as ações corporais que seguem, mantendo-as na trilha direita. Para Waltke, “O versículo 23 funciona como um Janus, contendo de forma única em um único versículo tanto admoestação (23a) quanto argumento (23b)”, de modo que o imperativo “נְצֹר לִבֶּךָ” (nĕṣōr libbekhā [“guarda o teu coração”]) “constrói-se” sobre o imperativo anterior de resguardar as palavras no coração (v. 21b), e o motivo “porque dele flui a vida” alicerça-se na afirmação prévia de que as palavras do pai “são vida” (v. 22) (WALTKE, ibid., 2004, p. 407).
A análise de Murphy converge nesse ponto, ainda que por trilha própria. Depois de ressaltar a recorrência de ideias na perícope e o escrutínio dos “órgãos” pela pedagogia paterna, ele salienta que “most important of all, the heart”, e que a “vida (v. 23) se assegura” somente quando a atenção é total e concentrada; a “guarda do coração” é, assim, a disciplina que torna efetiva a escuta e a visão, preservando a direção justa do caminho (MURPHY, ibid., p. 28). Ao amarrar “coração” e “caminho”, Murphy reafirma que o provérbio não flutua como conselho genérico, mas opera no ateliê formativo de 1–9, onde se aprende a andar “sem tropeçar” ao vigiar o ponto de origem das decisões.
Em termos semânticos, a chave de v. 23 reside no tripé נָצַר (nāṣar [“guardar, custodiar”]), לֵב/לֵבָב (lēb/lēbāv [“coração”]) e תּוֹצָאוֹת (tōṣāʾôt [“saídas, efluxos, fontes”]), encabeçado pela expressão intensificadora “מִכָּל־מִשְׁמָר” (mi-kol mišmār [“acima de toda guarda”]). O WBC reforça a leitura intensiva de “mi-kol” como prioridade de vigilância, e a imagem de “saídas” como jorros vitais: a vida “surge” do coração e se transforma em caminho, fala, gesto (MURPHY, ibid., p. 26–28). O NICOT chama atenção para o encadeamento entre a guarda das palavras “dentro do coração” (v. 21b) e a guarda do próprio coração (v. 23a), sublinhando a organicidade entre recepção, interiorização e fluxo vital; a metáfora hidráulica que perfila o coração como nascente dá lastro teológico e retórico ao imperativo.
No que tange ao gênero e macrocontexto, ambos os comentários reafirmam o lugar de 4:20–27 na escola de sabedoria que molda Provérbios 1–9 como próemio didático. No WBC, o tratamento de 4:1–27 organiza o material em “Tradução” (p. 25), “Comentário” (p. 27–28) e “Notas”, com observações que conectam termos e imagens através do capítulo e com antecedentes imediatos (3:1–12; 2:10–13), confirmando o modo como a coleção treina a leitura por paralelismo, eco e encaixe (MURPHY, ibid., p. 25–28). No NICOT, a leitura em termos de “lição 7” e “código de orientação” ressalta uma poética da direção, onde o “não te desvies” organiza o campo semântico de verbos e advérbios, e onde o v. 23 não é apenas conteúdo moral, mas nó retórico que sustenta a lógica da peça (WALTKE, ibid., p. 406–407).
Como consequência metodológica para a interpretação de “guardar o coração”, impõe-se uma leitura integrada da perícope: a forma (enumeração “anatômica”, paralelismo, código de orientação) e a semântica (lexemas e metáfora da nascente) convergem para uma ética performativa. Em Murphy, a “vida” não é mera abstração ontológica; ela é o resultado pedagógico de órgãos “operando corretamente”, com o coração em centralidade funcional; “o jovem deve tomar a peito as instruções parentais e então guardar o coração” (MURPHY, ibid., 1998, p. 28). Em Waltke, o v. 23 “olha para trás” e “para frente”, fechando o apelo de recepção e abrindo a sequência de execução reta, de modo que “guardar o coração” seja literalmente a sentinela posta na nascente, donde procederão as “תּוֹצָאוֹת חַיִּים” (tōṣāʾôt ḥayyîm [“fontes/efluxos de vida”]) (WALTKE, ibid., pp. 406–407).
A essa luz, a tradução de Murphy serve como guia de leitura: “Acima de tudo, proteja seu coração, pois dele procedem as fontes da vida” — com a cadência tripartida que incita a prioridade de vigilância, o objeto da guarda (לֵב lēb [“coração”]) e a causalidade (“porque dele emanam as תּוֹצָאוֹת”); a seção “repete ideias ... mas lhes dá um novo viés ao enfatizar as partes do corpo” e a centralidade do coração para a consecução de “vida”. O efeito é que “guardar o coração” se define como custódia ativa e prioritária da nascente interior, sem a qual a ética sapiencial se desfaz em gestos dispersos.
IV. Semântica de lēb / lēbāb (“coração”) no hebraico bíblico
A. Definição, escopo e parentesco semítico.
No vocabulário antropológico do Antigo Testamento, לֵב / לֵבָב (lēb / lēbāb, “coração”) designa o centro funcional da pessoa — sede integrada de cognição, volição e afeto — e não apenas o órgão físico. O levantamento lexicográfico de Jenni Westermann mostra que o termo pertence a um campo semítico amplo: “A palavra libb- é comum [nas línguas semíticas]... o significado de ‘coração’ é amplamente representado (Ac. libbu ‘interior’, Árabe lubb ‘interior, núcleo, mente’)” (JENNI; WESTERMANN, Theological Lexicon of the Old Testament, 1997, p. 821; explicação entre colchetes minha). Essa constelação de cognatos orienta a leitura do hebraico ao indicar que “coração” reúne sentidos de “interior”, “miolo”, “centro”, incluindo dimensões mentais. Ainda no mesmo verbete, os autores registram a coexistência formal das variantes לֵב (lēb) e לֵבָב (lēbāb), sem que se possa determinar uma sequência cronológica firme; a distribuição varia por corpora (p.ex., Deuteronômio e a redação deuteronomista preferem לֵבָב (lēbāb), sem diferença semântica robusta (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 821).B. Morfologia, frequência e nota sobre o denominativo.
Do ponto de vista morfológico e estatístico, o TLOT computa ca. 853 ocorrências somadas de לֵב e לֵבָב no corpus hebraico/aramaico, com particular concentração em Salmos, Provérbios, Jeremias, Deuteronômio e Eclesiastes (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 822). O mesmo verbete registra um denominativo לֵבֵב (lbb), Ni. “tornar-se perspicaz” (Jó 11:12) e Pi. “ganhar entendimento” (Ct 4:9), sinalizando que “coração”, por metonímia, já se encontra intrinsecamente ligado à faculdade intelectiva (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 821).C. Uso literal e metafórico; órgão e sede de faculdades.
A mesma entrada esclarece o duplo horizonte de referência: o uso literal do órgão — “Israel tinha conhecimento do ‘ataque cardíaco’... A batida do coração era considerada um sinal de excitação” — e o uso antropológico-teológico, no qual o “coração” regula corpo e conduta (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 822). Esse deslizamento entre órgão e centro pessoal explica a elasticidade semântica que, no discurso sapiencial, torna lēbāb/lēb o pivô da inteligência prática, do querer e do sentir.D. Traduções antigas e mapeamento conceitual.
A síntese do New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis confirma o valor nuclear de לֵב / לֵבָב (lēbāb/lēb): “os termos hebraicos são geralmente traduzidos como ‘coração’, ‘mente’, e em alguns casos ‘peito’ e ‘consciência’”, com uso metafórico dominante como “centro da vida física e espiritual” (VANGEMEREN [ed.], NIDOTTE, vol. 2, 1997, p. 748). O mesmo verbete explicita o espelho grego na LXX: καρδία (kardía) para a maioria das ocorrências e, em menor número, διάνοια (diánoia), indício de que o antigo tradutor percebeu a dimensão mental e deliberativa de לֵב / לֵבָב (VANGEMEREN [ed.], NIDOTTE, vol. 2, 1997, p. 748). Ao lado da inteligência e da vontade, o “coração” também é locus da disposição moral, o que se vê, por contraste, na dureza do coração em Êxodo, onde os verbos חָזַק (ḥāzaq), כָּבֵד (kāvēd) e קָשָׁה (qāšâ) descrevem sua obstinação diante da palavra divina — um dado que projeta a semântica do לֵב (lēb) como “câmara de decisão” (VANGEMEREN [ed.], NIDOTTE, vol. 2, 1997, p. 748).E. Antropologia bíblica, afetos e metáforas corporais.
A semântica do “coração” não se esgota na cognição; ela pulsa, literalmente, na gramática dos afetos. O estudo clássico de Mark S. Smith, ao abrir seu ensaio, define o problema da linguagem corpórea para emoções. No exame comparativo, Smith demonstra que, embora fígado/entranhas apareçam pontualmente para emoções (p. ex., Lamentações 2:11), o hebraico bíblico recorre com muita maior frequência ao לֵב (lēb) para vocalizar tanto angústia quanto alegria, ao passo que rins e gordura funcionam como metáforas de escrutínio divino e insensibilidade, respectivamente; assim, “tanto pensamento quanto emoções são atribuídos ao ‘coração’” — isto é, o לֵב (lēb) integra o eixo noético e o afetivo em uma só sede (SMITH, 1998, p. 428–430).F. Hipótese psicofisiológica e intuição semântica.
O mesmo artigo propõe uma hipótese ancorada em dados transculturais: emoções são associadas ao coração e às “entranhas” porque são fisicamente percebidas nesses lugares. A formulação é programática: essa chave psicofisiológica ajuda a entender por que לֵב / לֵבָב (lēbāb/lēb), além de deliberar e compreender, “sente” — e por que o discurso sapiencial pode pressupor que da qualidade interior do לֵב (lēb) procedem expressões externas e padrões de ação.(1) Convergência lexicográfica: centro intelectivo-volitivo-afetivo. Postos lado a lado, TLOT e NIDOTTE convergem na “tridimensionalidade” semântica do לֵב / לֵבָב (lēbāb/lēb). O TLOT anota, de um lado, que o coração é “sede de desejos” (Ezequiel 16:30), e, de outro, registra o denominativo לֵבֵב (lbb) com valor de “tornar-se perspicaz/ganhar entendimento”, antecipando a gramática sapiente da mente que discerne (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 821). O NIDOTTE, por sua vez, sistematiza o uso metafórico como centro da vida física e espiritual e registra as escolhas da LXX — καρδία (kardía) e διάνοια (diánoia) — que espelham a dupla ênfase afetiva e intelectiva (VANGEMEREN [ed.], NIDOTTE, vol. 2, 1997, p. 748).
G. Implicações para Provérbios 4:23.
Quando Provérbios 4:23 convoca: מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ כִּי מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים — “Mikkol-mišmār nəṣōr libbekhā, kî mimmennû tôṣāʾôt ḥayyîm” — “acima de tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida”, a escolha de לֵב (lēb, “coração”) como foco do imperativo pressupõe exatamente a semântica estabelecida pelas fontes lexicográficas: ele é o “centro” de onde brotam percepções, deliberações e afetos, e, por isso, o ponto de origem (tôṣāʾôt, “saídas/efluxos”) dos comportamentos que configuram a vida. A antropologia sapiente alinha, assim, o dever de “guardar” com a natureza do objeto guardado: o לֵב (lēb) não é mero reservatório emotivo, mas o órgão da pessoa integral, onde saber, querer e sentir se trançam. O pano de fundo semítico reforça essa leitura: como libbu acádico evoca o “interior/miolo” e a LXX alterna entre καρδία e διάνοια, Provérbios 4:23 não trabalha com um dualismo moderno entre “razão” e “emoção”, mas com uma unidade psicossomática que demanda vigilância existencial (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 821–822; VANGEMEREN [ed.], NIDOTTE, vol. 2, 1997, p. 748).V. O verbo-núcleo: נָצַר (nāṣar “guardar, vigiar, preservar”)
A forma que comparece em Provérbios 4:23 é o imperativo Qal masculino singular נְצֹר (nĕṣōr), que articula a imagem de uma sentinela posta à porta do ser: “Guardar” aqui não é mera atitude passiva, mas atenção vigilante que se traduz em ação. A nuance geral do verbo é bem marcada por um traço semântico que a literatura lexicográfica descreve como “observação visual que conduz a atos consequentes”, i.e., “guardar, proteger, observar com aplicação resultativa” (WAGNER, TDOT, vol. IX, 1998, pp. 461–467).
No corpus hebraico, nāṣar aparece predominantemente em contextos de espiritualidade e sabedoria; há uma concentração notável em Salmos e Provérbios, o que sustenta a centralidade do verbo no discurso sapiencial sobre a vida interior. Como nota a análise clássica, “é impossível não notar a concentração de usos em Provérbios e Salmos”, com especial densidade na poesia didática (WAGNER, ibid., pp. 461–467). Em Provérbios, essa vigilância se desdobra em duas direções: ora indica a proteção ativa de Deus sobre o justo (Provérbios 2:8), ora convoca o discípulo a preservar a instrução no mais íntimo (Provérbios 3:1; 4:13; 6:20; 4:23), compondo uma reciprocidade ética-teológica — “guardar” os mandamentos e ser “guardado” por eles e por Deus.
No próprio livro, essa reciprocidade assume forma retórica. Um quiasmo intencional entre nṣr (נצר) e šmr (שׁמר) é um trocadilho em šmr e nṣr é estruturado quiasmaticamente (נצר/שׁמר em v. 8; שׁמר/נצר em v. 11), oferecendo fecho à primeira metade do discurso. Essa justaposição é relevante para Provérbios 4:23: a ordem נְצֹר (nĕṣōr) recai sobre לֵב (lēv), e o construto מִכָּל־מִשְׁמָר (mikkāl-mišmār, “com toda guarda/atalaia”) reforça a imagem de vigilância permanente, onde mišmār deriva do campo de šāmar (שׁמר) e fornece a moldura técnico-ritual de “guarda/turno” aplicada metaforicamente ao coração (SAUER, TLOT, 1997, p. 1715).
No plano semântico, os léxicos maiores convergem: nāṣar Qal “guardar, proteger, preservar”; Niphal “ser guardado/precaver-se”; Piel “reverenciar”; Hitpael “guardar-se/atentar” (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, p. 1712). O uso em sabedoria oscila entre o concreto e o figurado: “guardar” vinhedos e figueiras (nṣr como tutela de bens), mas também “guardar” instruções e tôrāh, de modo que a obediência preserva o discípulo do mal.
A LXX verte nāṣar (נָצַר) por uma constelação de verbos gregos que captam tanto a ideia de vigilância quanto de preservação: ekzētein (ἐκζητεῖν — “buscar diligentemente”), phylassein (φυλάσσειν — “guardar, proteger”), tērein (τηρεῖν — “observar, manter”) e exairein (ἐξαίρειν — “remover, livrar”). A variabilidade traduz o espectro de nāṣar, desde o “cuidar/cercar” até o “guardar por observância” (WAGNER, Theological Dictionary of the Old Testament, vol. IX, 1998, pp. 461–467).
No acadiano, o cognato clássico é naṣāru “guardar, proteger, conservar”, frequentemente grafado silabicamente como na-ṣa-ru (𒈾𒍝𒊒), e amplamente atestado na esfera jurídico-administrativa e na metáfora régia de tutela. A literatura comparada do artigo de TDOT assinala sua presença como cognato semítico central (WAGNER, TDOT IX, 1998, pp. 461–467). A ponte comparativa com CAD N e AHw é apontada ali mesmo, consolidando o campo semântico comum de “guardar” no Crescente Fértil. “Para o acádio, ver AHw II, 755; CAD N 33ss.”
No Ugarítico, o verbo que ocupa o mesmo núcleo semântico é nġr (G), com os sentidos “proteger, guardar; vigiar/precaver-se”, e formas como o imperativo nġr e o particípio ativo nġr. Os dicionários registram ainda a fórmula epistolar: “ʾilm tġrk tšlmk — ‘que os deuses te guardem e te deem bem-estar’”, uma peça notável do uso pragmático do verbo (DEL OLMO LETE; SANMARTÍN, DUL, 2003, p. 616). A documentação comparativa no próprio verbete conecta nġr a Hb. נצר (nāṣar) e ao ac. naṣāru, fortalecendo a leitura de um núcleo semântico pan-semítico centrado em “guardar/proteger” (DEL OLMO LETE; SANMARTÍN, ibid., p. 616).
Esse quadro comparativo retorna a Provérbios 4:23 e ajuda a calibrar o valor imperativo de נְצֹר (nĕṣōr). O sintagma “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mikkol-mishmār nĕṣōr libbekhā) indica mais que um cuidado emocional genérico; instaura uma disciplina vigilante de tutela e preservação do centro decisório e cultual da pessoa. O contraste com šāmar (שׁמר) — frequentemente usado para “guardar/observar” preceitos, turnos e fronteiras cultuais — ilumina a força de נְצֹר (nĕṣōr) em Provérbios: com objetos concretos, נְצֹר (nĕṣōr) e שׁמר (šāmar) convergem em “proteger de dano para preservar”; com objetos sapienciais (instrução, mandamentos), נְצֹר (nĕṣōr) sublinha “preservar cuidadosamente por obediência” (SAUER, ibid., 1997, p. 1715).
A distribuição de נצר (nĕṣōr) em Provérbios confirma essa leitura. O verbo recobre “trabalho, cultivo, cuidado” (Provérbios 27:18) e, no registro de piedade, qualifica a observância que desemboca em honra (Provérbios 28:7), escorando o ethos sapiencial em que “guardar” é a fisionomia prática da sabedoria (WAGNER, ibid., pp. 461–467). Concomitantemente, o léxico teológico acentua que, no Qal, נצר (nĕṣōr) exprime “proteger/guardar/preservar” e, no conjunto do AT, seu uso recorre a tutelar bens e pessoas, mas também “guardar” preceitos (JENNI; WESTERMANN, TLOT, 1997, pp. 1712; 1715).
O mesmo mosaico se entrevê nas tradições correlatas. No Qumran, embora o campo lexical de “guardar” seja preferido para Deus como sujeito ativo, conserva-se a correlação ético-teológica entre o “guardar” humano e o “ser guardado” no horizonte da aliança, mostrando continuidade com a espiritualidade dos Salmos (WAGNER, TDOT IX, 1998, pp. 461–467). Na teologia bíblica mais ampla, נצר (nĕṣōr) descreve o agir de YHWH que “guarda” o seu povo — o mesmo campo metafórico que, em Dt 32:10 (“como a menina de seus olhos”), conjuga ternura e tutela.
Do ponto de vista paleográfico, a forma נצר (nĕṣōr) pode ser representada no paleo-hebraico como 𐤍𐤑𐤓 (n-ṣ-r), atestando a continuidade gráfica e simbólica do ato de “guardar” desde a antiga tradição alfabética semítica. Para orientação paleográfica e histórico-gráfica do alfabeto, ver as sínteses introdutórias de Benner com a evolução dos sinais e quadros de equivalência (BENNER, Ancient Hebrew Language and Alphabet, 2004, pp. 10–14; Apêndice C, pp. 110, 114, 116). Em termos greco-hebraicos, a escolha da LXX por tērein (τηρεῖν — “guardar, observar”) e phylassein (φυλάσσειν — “vigiar, proteger”) sinaliza o eixo semântico do “vigiar-guardar” e sustenta a leitura de Provérbios 4:23 como um ato tanto de atenção lúcida quanto de preservação fiel (WAGNER, Theological Dictionary of the Old Testament, vol. IX, 1998, pp. 461–467).
Se voltamos ao texto de Provérbios 4:23 — “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mikkol-mišmār neṣōr libbekhā — “com toda a guarda, guarda o teu coração”) — a sintaxe intensifica o imperativo: “com toda guarda, guarda o teu coração”. A duplicação semântica (o campo de mišmār e o de נצר) adensa o efeito: “o coração” é simultaneamente o objeto a preservar e o posto de vigia donde se vigia o resto da vida. A melhor exegese de נצר nesse locus, portanto, matiza três nuances, todas documentadas nos léxicos e paralelos semíticos: “vigiar” como proteção ativa (sentinela, atalaia), “preservar” como manutenção fiel (manter ileso, conservar íntegro), e “observar” como obediência diligente (guardar instruções)—nuances que se interpenetram no Provérbio (SAUER, ibid., p. 1712; WAGNER, ibid., pp. 461–467; DEL OLMO LETE; SANMARTÍN, ibid., p. 616).
Não por acaso, a mesma dinâmica ressoa em outros loci sapienciais: “o entendimento te guardará” (Provérbios 2:11) e “o que guarda [nōṣēr] a figueira comerá do seu fruto” (Provérbios 27:18) articulam o espectro concreto-figurado do verbo, do cuidado diligente ao fruto preservado (WAGNER, ibid., pp. 461–467). Pode então se afirmar que nōṣēr denota proteger e defender de exposição, dano ou destruição com objetos sapienciais, significa preservá-los cuidadosamente pela obediência fiel.
Para afixar: נָצַר (nōṣēr) em Provérbios 4:23 impõe ao leitor uma custódia integral do coração, conjugando o campo veterotestamentário de “guardar” que a LXX verteu por τηρεῖν (terēin) / φυλάσσειν (phylassein) e que os cognatos semíticos (ac. naṣāru 𒈾𒍝𒊒; ug. nġr) confirmam como dieta comum da linguagem da tutela. A imagem poética se eleva a programa ético: quem “guarda” a instrução no coração preserva a si mesmo; quem se deixa “guardar” pela instrução, guarda a vida que dele dimana.
VI. “Mais que toda guarda”: (intensificador comparativo)
O objetivo desta seção é fundamentar, com gramáticas de referência, os mecanismos de grau (comparativo/superlativo) e intensificação relevantes para a leitura de “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mikkol-mišmār nəṣōr libbekhā [“acima de toda guarda, guarda o teu coração”], Provérbios 4:23), com especial atenção ao papel de מִן (min) e construções correlatas na sintaxe do Hebraico Bíblico.
A. Ausência de morfologia comparativa/superlativa e recurso às perífrases.
A tradição gramatical é unânime em assinalar que o Hebraico Bíblico não possui flexão morfológica de comparativo/superlativo no adjetivo; tais valores são expressos por construções perifrásticas. Gesenius–Kautzsch formula o princípio de maneira programática: “O hebraico não possui formas especiais nem para o comparativo nem para o superlativo do adjetivo. Para expressar um comparativo, a pessoa ou coisa ... é ligada à palavra atributiva pela preposição [מִן]” (KAUTZSCH, Gesenius’ Hebrew Grammar, 2008 [repr.], §133, p. 429–430). Em paralelo, a gramática de referência de Van der Merwe confirma e estrutura a matéria: “O adjetivo no hebraico bíblico não possui formas para indicar os graus de comparação... O grau comparativo é estabelecido por meio de outras construções... A preposição מִן é usada para indicar o padrão com o qual um objeto está sendo comparado.” (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, A Biblical Hebrew Reference Grammar, 2ª ed., 2017, §30.4; p. 271). Este dado de base já dispõe, em termos normativos, a leitura de Provérbios 4:23: מִן (min) é um marcador natural de comparação/seleção de padrão, frequentemente com valor comparativo (mais ... do que) ou elativo-intensivo (“acima/para além de”).B. O comparativo com מִן (min): construção e semântica.
No uso mais direto, adjetivo (ou particípio/verbo estativo) + מִן introduz o “padrão” da comparação: “חָכָם... מִן־דָּנִאֵל” (ḥākām ... min-Dāniʾēl [“mais sábio do que Daniel”], Ezequiel 28:3), exatamente como descreve Van der Merwe (§30.4.1) (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, ibid., p. 271). Já em Gesenius–Kautzsch, o escopo semântico de min nos comparativos é caracterizado como ideia de separação/distinção/superioridade “de... sobre/ante...” (KAUTZSCH, 2008 [repr.], §133 c–e, p. 430). A obra ilustra tanto o comparativo com nomes (“mais alto do que o povo”) quanto com infinitivo como termo de comparação (“melhor que dar a outrem”, Gênesis 29:19), mostrando a plasticidade argumental do construto com מִן (KAUTZSCH, 2008 [repr.], §133, pp. 429–430).Uma nuance capital para Provérbios 4:23 é a construção com מִן + כֹּל (min + kol), isto é, “mais ... do que todos”, que formaliza um comparativo intensivo de amplitude. Gesenius registra usos típicos e pragmáticos, como “amou José mais do que todos os seus filhos” (Gênesis 37:3), explicitando que min + kol seleciona um conjunto para expressar superioridade comparativa sobre “todos” (KAUTZSCH, 2008 [repr.], §133 Rem., p. 430). Esse modelo sintático explica com limpidez por que “מִכָּל־מִשְׁמָר” (mikkol-mišmār) em Provérbios 4:23 pode e deve ser lido como “mais do que toda guarda” — não como um mero “com toda guarda”, mas como comparativo intensivo seguido do imperativo “נְצֹר לִבֶּךָ” (nĕṣōr libbekhā).
C. O superlativo: meios absolutos e relativos; pertinência para “מִכָּל־מִשְׁמָר”.
Do lado superlativo, o Hebraico Bíblico recorre a diversas perífrases. Van der Merwe descreve o superlativo absoluto por “constructo de identidade” (X de X: הֲבֵל הֲבָלִים, heḇel hăḇālîm [“vaidade das vaidades”], Eclesiastes 1:2), por sinônimos em construto (Salmos 43:4), e por adverbiais intensificadores como מְאֹד (məʾōd [“muito”]) (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 2017, p. 272). Para o superlativo relativo, a gramática mostra soluções com artigo e outras marcações definidoras (Jeremias 6:13, “do menor ao maior”, como moldura ordinal de extremos) (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 2017, p. 272). Acrescente-se que Van der Merwe reconhece também o papel do artigo na leitura superlativa quando associado a certas construções (Deuteronômio 7:7), explicitando que o sistema distribui a noção de “máximo” por meios sintagmáticos e não flexionais (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 2017, §24.4.3, p. 218; §24.4.3[3], p. 219).Gesenius, por sua vez, oferece um catálogo de perífrases superlativas — do partitivo (“o mais oculto...”) ao construto X de X — acentuando que a leitura superlativa emerge do contexto e do gênero (KAUTZSCH, 2008 [repr.], §133 Rem., p. 430). Embora Provérbios 4:23 não empregue um superlativo “X de X”, seu “מִכָּל־מִשְׁמָר” (mikkol-mišmār) se aproxima funcionalmente do superlativo por via do comparativo abrangente (“mais do que toda guarda”), intensificando prioridade e amplitude do ato de guardar o coração.
D. Intensificação e elipse: o “מֵם comparativo” no próprio Provérbios 4:23.
A discussão textual de Provérbios 4:23 — se com מִן (min) ou com בְּ (be-) — é conhecida. A leitura massorética (מִן) encontra apóstolos fortes na filologia recente. Na análise exegética do NICOT, Bruce K. Waltke classifica מִן (min) em Provérbios 4:23 como “comparative mem” (מֵם comparativo) e aduz um paralelo em Aḥīqar 98: “More than all watchfulness watch your mouth” — construção e sentido gêmeos à nossa linha hebraica (WALTKE, ibid., 2004, pp. 406–407; nota 956). Uma observação de peso, também lembrada por Waltke, vem do BDB: “às vezes em poesia a ideia subentendida do comparativo não é expressa e precisa ser suprida pelo leitor” — exatamente o que se passa quando “מִכָּל־מִשְׁמָר” abre a linha e o imperativo “נְצֹר לִבֶּךָ” a completa, formando o gesto total “mais do que toda guarda, guarda o teu coração” (WALTKE, 2004, p. 407; BDB em p. 582, s.v. מִן, citado por Waltke).
Essa leitura comparativa-intensiva, já prevista pelo aparato das gramáticas (§133 de Gesenius; §30.4 de Van der Merwe), não impede que outros ingredientes estilísticos funcionem junto: Waltke ainda nota que מִן pode, aqui, depender de um verbo de movimento elidido — expediente poético de elevada frequência (WALTKE, 2004, p. 407; remissão a IBHS 11.4.3d–e). A elipse não anula o comparativo; ao contrário, acentua a aceleração retórica do imperativo “נְצֹר” (nĕṣōr [“guarda!”]) e destaca o semema de prioridade frente a toda outra forma de vigilância.
E. Outras estratégias de intensificação relevantes ao campo: adverbiais e repetição.
Além do comparativo com מִן e da leitura superlativa por perífrase, o sistema dispõe de intensificadores adverbiais como מְאֹד (məʾōd [“muito”]), que, embora não caibam diretamente em Provérbios 4:23, constituem o pano de fundo elativo do estilo sapiencial (VAN DER MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 2017, p. 272). Também a repetição pode intensificar o valor adjetival (Gesenius lembra Juízes 11:25) — mecanismo retórico que guarda afinidade com a prioridade implicada por “מִכָּל־מִשְׁמָר” (KAUTZSCH, 2008 [repr.], §133, p. 430).
F. Implicações para a tradução e exegese de Provérbios 4:23.
Reunindo as peças: (i) מִן (min) é o marcador ordinário do comparativo; (ii) מִן + כֹּל (min + kol) perfaz um comparativo de amplitude (“mais do que tudo”), com abundantes paralelos em prosa e poesia (Gênesis 37:3; cf. KAUTZSCH, §133); (iii) o Hebraico Bíblico prefere perífrases para o superlativo, o que legitima a leitura elativa de construções intensivas; (iv) em Provérbios 4:23, a edição massorética com מִן (min) é sustentada pela gramaticalidade do comparativo e reforçada pela intertextualidade sapiente (Aḥīqar 98), de modo que a melhor tradução padrão não é “com toda guarda”, mas “mais do que toda guarda” — reforçando que todo o “aparelho de vigilância” deve convergir para a guarda do coração. Em suma, o mecanismo de intensificação comparativa aqui hierarquiza prioridades: “acima de toda guarda” (valor gradativo) “guarda o teu coração” (ato mandamental). Essa leitura harmoniza-se nematicamente com o tecido de Provérbios 4:20–27 e, metodologicamente, obedece ao sistema de graus do Hebraico Bíblico, tal como descrito nos compêndios.
G. Observação filológica e paleográfica complementar.
Como observação marginal, mas útil para a visualidade didática da seção, note-se que o sinal massorético מִן (min) — que em epigrafia alfabética antiga corresponderia, grosso modo, à sequência 𐤌𐤍 (m–n) no paleo-hebraico — é, na sintaxe, o pivô da leitura comparativa aqui defendida. Embora gramáticas concentrem-se no Hebraico quadrático, o princípio funcional de min como preposição de separação/seleção é o que produz, no nível semântico, a ideia de “mais do que” em construções como “מִכָּל־מִשְׁמָר”. (Para a história do alfabeto e a equivalência gráfica, cf. BENNER, Ancient Hebrew Language and Alphabet, 2004, quadros de evolução do sinal e correspondências.)A gramática descritiva do Hebraico Bíblico — de Gesenius–Kautzsch (§133) a Van der Merwe (§30.4; §24.4.3) — oferece o andaimo formal para ler Provérbios 4:23 como comparativo intensivo (“mais do que toda guarda”), e não como simples comitativo. A ancoragem exegética de Waltke confirma o מֵם comparativo no próprio verso e convoca um testemunho sapiente extra-bíblico (Aḥīqar 98), afinando a tradução com o habitus do gênero: a perícope impõe hierarquia de atenções; a guarda de tudo deve ceder lugar à guarda do centro — לֵב (lēb [“coração”]) — porque dele emanam as תּוֹצָאוֹת חַיִּים (tōṣāʾôt ḥayyîm [“efluxos/fontes de vida”]). Em termos técnicos: מִן (min) perfaz o comparativo, מִן + כֹּל (min + kol) promove o alcance superlativo por via elativa, e a elipse poética intensifica o imperativo. É com este padrão gramatical que o artigo científico deve prosseguir à análise semântica e discursiva dos demais termos do versículo.
VII. Termo יָצָא (yatsa) semântica de Provérbios 4:23
A semântica de יָצָא (yatsa [“sair”]) cruza, como você já demonstrara, os registros literal e figurado de maneira extensiva. Em uso literal, o verbo cobre movimentos básicos de “ir para fora / vir para fora”, bem atestado em narrativas e prescrições legais; em uso figurado, ele se torna metafórico para “proceder”, “emanar”, “deflagrar”, inclusive em campos como o jurídico (“sair da escravidão”), o discursivo (“palavras que saem”), o cósmico (“nascer do sol pela sua ‘saída’”) e o soteriológico (o “fazer sair” divino do Êxodo). O léxico público do Blue Letter Bible (BDB/Strong) captura essa amplitude: “Ir (causativamente, trazer) para fora, em uma grande variedade de aplicações, literal e figurativamente.” (BDB via BLB, H3318). Em vez de reduzir yatsa a mero deslocamento espacial, convém lê-lo como verbo de limiares: transições que reconfiguram estatutos, abrem veios, lançam ao visível aquilo que estava latente.
Num plano morfossintático, Provérbios 4:23 coordena esse campo por meio do sintagma nominal תּוֹצְאוֹת חַיִּים (totsa’ot ḥayyim [“efluxos/saídas da vida”]), do qual yatsa é a raiz etimológica. O paralelismo interno do provérbio indica a direção da leitura: “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ, כִּי־מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים” (mikkol-mišmar nəṣor libbekha, ki-mimmennu totsa’ot ḥayyim [“mais do que toda guarda, guarda o teu coração, pois dele procedem os efluxos da vida”]). O מִן comparativo (min), conforme as gramáticas padrão, hierarquiza a prioridade da guarda do לֵב (lev [“coração”]), enquanto o predicado מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים explica o porquê: do coração “saem” os fluxos vitais. Essa cadeia yatsa → totsa’ot enraíza a tradução que opta por processo (“fontes/saídas”) ou por fonte (“mananciais/nascentes”), como comentarei adiante.
A força jurídico-existencial de yatsa — “saídas” do cativeiro, dissoluções vinculares, aberturas de escape — ajuda a compreender a contundência sapiencial do versículo. Se yatsa pode nomear a passagem de um estado a outro, “as totsa’ot da vida” descrevem resultados que eclodem do núcleo interior da pessoa. Daí versões que preferem interpretar a imagem em chave pragmática (“a vida que você leva emana do seu coração”, “o rumo de sua vida procede dele”). Um leque de traduções modernas explicita essa direção: NVI “pois tudo o que você faz flui dela”; NET “pois dela provém a fonte da vida”; LSB/ESV “pois dela fluem as fontes da vida”. Tais soluções não apagam o lastro lexical de yatsa; antes, desenham o percurso do que “sai”: do interior para o exterior, do afeto e da vontade para as condutas e destinos.
No plano discursivo, yatsa também figura a linguagem como evento que irrompe: palavras “saem” da boca e se tornam atos no mundo. Isso ilumina, por contraste, o imperativo de guardar o coração: guardar a nascente para governar o curso do que “sai” na fala e na ação. Por isso, versões como ASV e YLT preservam a metáfora processual “fontes/meios de vida”, que mantém o gesto dinâmico do “sair” (yatsa) e reveste totsa’ot com a ideia de emanar/proceder: “Pois é daí que surgem as questões/despesas da vida.” Já a família ESV/LSB/LEB/TLV enfatiza o polo hidrológico (“nascentes/fonte de vida”), aproximando totsa’ot dos termos que cristalizam o campo “fonte” (מוֹצָא, motsa’; מָקוֹר, maqor), muito produtivo em Provérbios.
Em sapienciais, a metáfora hídrica é recorrente: “A boca do justo é fonte de vida” (מְקוֹר חַיִּים; Provérbios 10:11), “a instrução do sábio é fonte de vida” (13:14), “o temor do SENHOR é fonte de vida” (14:27), “a prudência é fonte de vida” (16:22). Os léxicos hebraicos indexam מָקוֹר (maqor) como fonte, problema, nascente, poço (ou nascente), com concordância em Provérbios 10:11; 13:14; 14:27; 16:22. Essa malha convida a ler yatsa e seus derivados na ecologia da nascente: onde yatsa estrutura o evento de egressão, maqor/motsa’ desenham o lugar/origem de onde a vida jorra; totsa’ot pode, sem trair sua raiz, nomear tanto o fluxo quanto o ponto de egressão — por isso as oscilações tradutórias são semanticamente legítimas.
Um texto-chave para aferir a polissemia é Salmo 68:20: “a Deus, o Senhor, pertencem as saídas/escapes da morte”. Múltiplas versões mantêm “problemas/despesas” (KJV, YLT) ou traduzem “escapes/deliverances”, e a nota exegética tradicional explica: “A palavra hebraica significa, propriamente, uma saída, uma libertação; então, um lugar de saída... uma fonte (Provérbios 4:23).” O mesmo eixo semântico aparece, portanto, tanto em totsa’ot ḥayyim (saídas/efluxos da vida), quanto nas “saídas da morte” — uma economia de margens e egressões, onde a vida e a morte se abrem caminho.
A decisão terminológica em português — “fluxões da vida”, “efluxos da vida”, “fontes da vida”, “nascentes da vida” — deve espelhar a dupla face que yatsa oferece ao substantivo derivado. “Fluxões/efluxos” preserva o dinamismo do processo (o que sai continuamente), dialogando com “fontes/saídas”. “Fontes/nascentes” privilegia o lugar/origem, harmonizando totsa’ot com maqor e motsa’ quando o foco literário é hidrológico. Na matriz de versões que você forneceu, a família “fontes/saídas” (ASV, KJV, YLT, DBY, WEB) mostra a herança literal de yatsa → totsa’ot; a família “mancial/fonte” (ESV, LSB, LEB, TLV, LBLA/NBLA, NR) sublinha a imagem de nascente própria de Provérbios; as paráfrases cognitivas (NIV, NLT, CEV, ERV, GNB, PDT) fazem o mapeamento semântico para “curso” ou “controle” da vida — um movimento interpretativo coerente com a pragmática do provérbio, sem, porém, traduzir yatsa estritamente.
Essa citação clássica ilustra a ponte que liga yatsa ao léxico de fonte: “procedem” (evento) e “fonte” (lugar) são dois polos de um mesmo campo, o que explica por que totsa’ot pode ser traduzido ora como “saídas/fontes”, ora como “springs/sources”, sem desfigurar o hebraico.
Sob esse prisma, a melhor política tradutória para Provérbios 4:23 é admitir o biformismo semântico de totsa’ot ḥayyim. Em uma edição comentada, é possível propor: “Guarda o teu coração acima de toda vigilância, pois dele emanam as fontes/efluxos da vida” — com nota justificando que totsa’ot ora enfatiza o fluir (derivado do yatsa processo), ora a nascente (em sinergia com maqor/motsa’ em Provérbios 10:11; 13:14; 14:27; 16:22). A análise lexical pública disponível sustenta ambas as leituras: BDB via BLB H3318 para o verbo, H8444 para totsa’ot, H4161 para motsa’ e H4726 para maqor.
Em termos exegéticos, a opção por fluxões/efluxos sublinha a temporalidade processual do comportamento: o coração como gerador de saídas que se objetivam em atos, fala, escolhas. A opção por fontes/nascentes intensifica a topografia simbólica: o coração como manancial, de cujo interior brotam linhas de vida. Ambas se coadunam com a ética sapiencial: “sobre tudo o que se deve guardar” é preciso guardar a nascente para não poluir o rio que nasce dela.
VIII. Termos תּוֹצָאָה / תּוֹצְאוֹת (totsa’ah / totsa’ot), מוֹצָא (motsa’), מָקוֹר (maqor)
O substantivo feminino תּוֹצָאָה (pl. תּוֹצְאוֹת, totsa’ot) deriva formalmente do radical י־צ־א (yatsa), e, como registra o BDB, ocorre apenas no plural coletivo com três núcleos de sentido: “saída, extremidade (da fronteira); fonte (de vida); fuga (da morte)”. Essa tripla rubrica já revela a amplitude semântica: (1) limite/terminação (as “saídas” de um território: Números 34; Josué 15–19); (2) fonte/origem (Provérbios 4:23, “totsa’ot ḥayyim”); (3) escape/deliberação (Salmo 68:20, “saídas da morte”). O vocábulo vive, portanto, em interseção: é ao mesmo tempo produto-processo do “sair” e lugar-fonte de onde algo emerge.
Essa bidirecionalidade explica as famílias de tradução que você listou. A família “issues/outgoings” (ASV, KJV, YLT, DBY, WEB etc.) preserva o traço processual da raiz yatsa, destacando que a vida sai do coração como efluxos. A família “mananciais/nascente” (ESV, LSB, LEB, TLV; em espanhol LBLA/NBLA “manantiales”; em italiano NR/RL “sorgenti”) privilegia o traço locativo/originário, preferindo “nascentes/fontes”. Uma terceira família parafrástica (NIV, NLT, CEV, ERV, GNB, PDT) atece o campo figurado, traduzindo “rumo/curso/controle da vida”, espraiando totsa’ot como resultado global que se manifesta no viver. Todas as três podem ser defendidas lexicalmente, desde que o aparato crítico explicite a decisão.
Para מוֹצָא (motsa’ [“saída, lugar de onde sai, nascente, fonte”]), o BLB (BDB/Strong H4161) oferece o espectro: “ato ou lugar de saída, emissão, exportação, fonte, nascente;... nascer (do sol); pode referir-se a ‘nascentes’” — com concordância ampla em Provérbios e nos Profetas (2 Reis 2:21; Isaías 58:11; 2 Crônicas 32:30 etc.). O mesmo substantivo navega do evento de sair à topografia da nascente: quando o contexto é hídrico, motsa’ é literalmente nascente; quando é discursivo, pode referir-se ao “que sai” dos lábios; quando é econômico, ao que “sai” como exportação. Em termos de Provérbios, motsa’ funciona como pivô imagético que legitima a leitura hidrológica de totsa’ot ḥayyim: se motsa’ é frequentemente “nascente/fonte”, não é estranho que totsa’ot seja interpretado como “springs/sources”.
O substantivo מָקוֹר (maqor [“fonte, nascente”]) é, em Provérbios, o tópico semântico estabilizador da metáfora. O BLB (BDB/Strong H4726) o define como “fonte, questão, nascente, poço (ou nascente)”, com um inventário clássico: “A boca do justo é fonte de vida” (10:11), “A instrução do sábio é fonte de vida” (13:14), “O temor do SENHOR é fonte de vida” (14:27), “O entendimento é fonte de vida” (16:22). Essa cadeia didatiza a imagem para o leitor: há uma nascente de vida que, em Provérbios, pode ser boca, ensino, temor, discernimento. Quando chegamos a 4:23, onde a “nascente” é o coração, a rede intertextual empurra a tradução para “mananciais/fontes de vida”, sem que isso anule a legitimidade de “fontes/saídas”.
A crux interpretativa é a relação entre os três nomes. Uma heurística útil: ler תּוֹצְאוֹת (totsa’ot) como perfil do fluxo (o que sai continuamente), מוֹצָא (motsa’) como lugar de egressão (o “bocal” por onde jorra), e מָקוֹר (maqor) como nascente propriamente dita (o manancial). Com isso, Provérbios 4:23 pode ser vertido de duas maneiras sem traição lexical: “dele procedem as fluxões/efluxos da vida” (foco em totsa’ot como processo) ou “dele brotam as fontes/nascentes da vida” (foco em totsa’ot no valor locativo-derivado, por assimilação do campo de motsa’/maqor).
Duas passagens-controle ajudam a arbitrar nuances. Primeiro, Salmo 68:20, cujo paralelismo com Provérbios 4:23 é frequentemente lembrado: “a Deus pertencem as saídas da morte”. A tradição lexicográfica inglesa comenta que a palavra significa “emana”, depois “lugar que emana... fonte (Prov 4:23)”. Esse mesmo eixo explica as escolhas de versões tanto para 68:20 (“fontes/saídas”) quanto para 4:23 (“fontes/mananciais”). Segundo, Provérbios 10:11, onde o uso de מָקוֹר é inequívoco, confirmando a produtividade da imagem de nascente em Provérbios.
No plano exegético, a prática de versões que optam por “fontes/mananciais” ressalta o nexo causal entre coração e conduta: aquilo que a pessoa é no centro (afetos, volições, disposições) sai e se torna mundo. Essa leitura é particularmente útil quando se quer destacar a responsabilidade moral do sujeito — o coração como usina de egressões que configuram o estilo de vida. Já a prática que prefere “springs/sources” enfatiza a prioridade ontológica do centro: a transformação não se dá no leito do rio, mas na nascente — a reforma do coração purifica os mananciais e, por consequência, o curso subsequente. Ambas convergem na ética sapiencial, mas acentuam aspectos diferentes do mesmo campo.
Em termos de crítica textual e de estilo, lembre-se de que o verso tem, além do predicado “מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים” (mimmennū tōṣʾōt ḥayyîm — “dele procedem as fontes da vida”), a abertura com “מִן + כָּל” (min + kol — “acima de toda guarda”), que, como vimos na Parte 6, marca comparativo intensivo. Essa moldura reforça a leitura hierárquica do provérbio: a guarda do coração precede — e regula — toda outra forma de “guarda”. A conclusão semântica de totsa’ot precisa, então, encaixar nessa hierarquia: ou como efluxos que, se poluídos na nascente, contaminam o curso todo; ou como fontes cuja pureza determina o vigor da vida. As duas famílias de tradução, de novo, só divergem na enfocagem.
A. Texto, semântica e tradução (Provérbios 4:23).
O hemistíquio inicial, “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mikkol-mišmār nĕṣōr libbekhā), pede uma leitura que preserve a comparação intensiva “mais do que toda guarda”, seguida do imperativo “נְצֹר” (nĕṣōr) do verbo “נָצַר” (nāṣar — “guardar”, “velar”, “observar”). C. H. Toy nota que “מִשְׁמָר” (mišmār) aqui não deve ser lido como “o que é guardado” (substantivo de resultado), mas como “ato” ou “estado de guarda” — daí a paráfrase proposta pelo autor: “com mais vigilância do que em qualquer outro caso, vela o teu coração” (TOY, A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Proverbs, 1899, p. 99). No NICOT, Bruce Waltke estrutura a perícope com um subtítulo programático — “Guarda o coração, fonte de todo o comportamento (4:23)” — e, mantendo a força do comparativo, afirma que o coração, como locus volitivo-cognitivo, é a “fonte” de onde dimanam os comportamentos (WALTKE, ibid., 2004, pp. 410–411).
B. תּוֹצְאוֹת חַיִּים: “saídas/emanações/fontes”.
O plural “תּוֹצְאוֹת” (tōṣʾōt) deriva do campo verbal de “יָצָא” (yāṣāʾ — “sair”, “irromper”), cuja rede semântica abarca tanto movimentos concretos — o ato de sair, de emergir — quanto extensões figuradas, como saídas jurídicas, discursivas e até cosmológicas. O NIDOTE (edição portuguesa) mapeia minuciosamente yāṣāʾ e seus derivados, notando como “מוֹצָא” (mōṣāʾ — “nascente”, “ponto de origem”) e “תּוֹצָאָה/תּוֹצְאוֹת” (tōṣāʾāh/tōṣʾōt — “resultado”, “efluxo”, “o que sai”) podem deslocar-se do evento (“sair”) para o lugar (“nascente, origem”) e para o produto (“o que procede, o que emana”), inclusive aplicando-se a fontes hídricas ou vitais — as “saídas” que alimentam o curso da existência (VANGEMEREN, Willem A. [org.], Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, vol. 2, 2011, pp. 496–497). Nessa moldura, תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tôṣʾôt ḥayyîm) perfila “emanações/‘jorros’ da vida”, uma imagem que aceita, sem violência, as glosas “issues/outgoings” (processo) e “springs/sources” (topos de origem), desde que o paralelismo e o campo imagético sustentem a opção (VANGEMEREN [org.], 2011, pp. 496–497).C. Por que algumas versões preferem “springs/sources of life”.
A oscilação tradutória entre “issues/outgoings” e “springs/sources” nasce exatamente da polissemia direcional mapeada pelos léxicos: do ato de sair ao lugar de onde sai. Em textos sapienciais, onde “vida” é frequentemente irrigada por metáforas hidráulicas (cf. מָקוֹר, māqôr, “fonte”), “springs/sources” harmoniza com o imaginário de nascente — algo que Waltke explicita ao definir o coração como “source of all behavior” (WALTKE, 2004, p. 410). Já Murphy, ao preferir “surges”, acentua a cinética do plural: a vida irrompe do coração, como fluxos que se sucedem (MURPHY, 1998, p. 26). Ambos preservam o movimento de י־צ־א, apenas enfatizando aspectos distintos — processo (surges/outgoings) ou topos (springs/sources) — legítimos no horizonte de תּוֹצְאוֹת (VANGEMEREN [org.], 2011, p. 496–497).D. O coração (לֵב/לֵבָב) como centro integrador.
Os três comentários convergem no ponto antropológico: “coração” na poesia sapiencial não é mero affectus, mas a sede integradora do pensar, querer e decidir. Em Toy, a exortação de guardar o coração “mais do que toda guarda” fundamenta-se na sua centralidade pragmática para o caminhar justo na unidade 4:23–27 (TOY, 1899, p. 99). (Waltke, por sua vez, toma v. 23 como eixo programático da estrofe — um “nó” que amarra o corpo (boca, olhos, pés) ao interior (coração), pois “dali” se desdobram as condutas (WALTKE, 2004, pp. 410–411). Murphy articula o mesmo encadeamento com a sua tradução de cadência intensiva, fazendo de תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tôṣʾôt ḥayyîm) o motor semântico da sequência 24–27 (MURPHY, 1998, pp. 26–28).E. Micro-sintaxe do comparativo e decisão tradutória.
Aqui está a reformulação do trecho no estilo solicitado:
Sustentar מִכָּל־מִשְׁמָר (mikkol-mišmār) como comparativo (“mais do que toda guarda”) tem implicações: (i) evita a leitura “acumulativa” (“acima de tudo”), que apaga a imagem de vigia em favor de uma adverbialização enfática; (ii) preserva a metáfora vigilante que domina a secção (olhos, boca, pés), e (iii) reforça, no segundo cólon, a derivação consequente: “porque dele [do coração] são as tōṣəʾôt da vida”. Toy argumenta explicitamente contra tomar מִשְׁמָר (mišmār) como “coisa guardada”, e defende o comparativo de grau: “acima/com vigilância mais atenta do que em qualquer outro caso” (TOY, ibid., 1899, p. 99). Essa leitura coaduna-se com a cadência de Murphy (MURPHY, ibid., 1998, p. 26) e com a moldura teleológica de Waltke (WALTKE, ibid., 2004, p. 410).
F. Léxico-teologia de יָצָא aplicada a Provérbios 4:23.
A constelação semântica de יָצָא (yāṣāʾ, “sair”) reforça o valor processual de תּוֹצְאוֹת (tôṣʾôt). O NIDOTE observa que, ao lado dos usos literais, há um robusto feixe de usos figurados: a “saída” de palavras (Deuteronômio 8:3), a “saída” como nascente (Isaías 58:11), e os êxodos teológicos (Êxodo e restaurações), todos gravitando em torno de “irromper de uma fonte/centro” (VANGEMEREN [org.], 2011, pp. 496–497). Assim, quando Provérbios 4:23 fala nas תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tôṣʾôt ḥayyîm), a escolha entre fontes/saídas e mananciais/nascentes não é uma oposição, mas um continuum inerente ao campo: processo → produto → lugar de origem. É exatamente esse contínuo que comentários como o de Waltke e o de Murphy exploram em registros distintos, sem trair o hebraico (WALTKE, 2004, pp. 410–411; MURPHY, 1998, pp. 26–28).
G. Coerência intrassapiencial: מָקוֹר como “fonte da vida”.
A metáfora hidráulica não é externa ao corpus sapiencial: “מָקוֹר” (māqôr — “fonte”, “nascente”) é recorrente em Provérbios (10:11; 13:14; 14:27; 16:22). Isso legitima, em certas versões, a sincronização imagética entre “תּוֹצְאוֹת” (tōṣʾōt — “efluxos”, “saídas”) em Provérbios 4:23 e “מָקוֹר” (māqôr) em 10:11 etc., autorizando “springs/sources” como glossas contextuais quando o topos de origem prevalece (VANGEMEREN, Willem A. [org.], ibid., 2011, p. 1085).
A decisão de Murphy por “surges”, porém, lembra que a linha de 4:23 afirma fluxo antes de fixar lugar — uma nuance que conversa finamente com o paralelismo subsequente da perícope (língua, olhos, pés), em que a vitalidade se expressa em movimento contínuo e não em contenção (MURPHY, Roland E., ibid., 1998, pp. 26–28).
A leitura comparativa de “מִכָּל־מִשְׁמָר” (mikkol-mišmār) reintroduz o ethos de vigilância como gesto primeiro; o imperativo “נְצֹר” (nĕṣōr) de “נָצַר” (nāṣar) não é guarda abstrata, mas guarda criteriosa, pois o “interior” é origem de tudo o que advém. A ambivalência seminal de “תּוֹצְאוֹת” (tōṣʾōt — “processo/lugar”) permite duas tradutibilidades legítimas e complementares: “fontes/saídas” (dinâmica do irromper) e “mananciais/nascentes” (topologia da nascente). Toy protege a sintaxe do comparativo e a coesão 23–27; Waltke ancora a teleologia do v. 23 como programa da estrofe; Murphy verte com a cadência que preserva a cinética do plural. Juntos, sustentam uma tradução que, em português acadêmico, poderia ser representada assim: “Mais do que toda vigilância, guarda teu coração, pois dele irrompem as emanações da vida” — sem interditar, para leituras imagéticas, a alternativa “... pois dele brotam as fontes da vida” quando se quiser explorar a rede intertextual de “מָקוֹר” (māqôr).
IX. A LXX em escolha semântica
Costurando o vocabulário grego da LXX diretamente com a semântica que já estabelecemos no hebraico, para que φυλακή (phylakē [“guarda, vigilância, custódia”]), καρδία (kardía [“coração”]) e a imagem das ἐξόδοι ζωῆς (exódoi zōês [“saídas da vida”]) iluminem de modo orgânico Provérbios 4:23.
μετὰ πάσης φυλακῆς τήρει σὴν καρδίαν, ἐκ γὰρ τούτων ἐξόδοι ζωῆς.
(meta pasēs phylakēs tērei sēn kardian, ek gar toutōn exodoi zōēs)
— “Com toda a vigilância, guarda o teu coração, porque dele procedem as saídas da vida.”
A LXX interpreta o hebraico “מִכָּל־מִשְׁמָר נְצֹר לִבֶּךָ” (mikkol-mišmār nĕṣōr libbekhā) de forma comparativa e intensiva: meta pasēs phylakēs (“com toda guarda” ou “mais do que toda vigilância”). O verbo tērei (τηρεῖν — “guardar”, “observar”, “vigiar”) reproduz o campo semântico de nāṣar (“vigiar”, “preservar”), enquanto exodoi zōēs (“saídas da vida”) traduz o plural tōṣʾōt ḥayyîm (“efluxos da vida”).
O paralelismo entre phylakē (“vigia”, “guarda”) e tērei (“guarda!”) mantém o ritmo intensivo da sentença hebraica e confirma a leitura que você vem adotando: trata-se de uma ordem comparativa e vigilante, não de mera ênfase adverbial, ecoando o mesmo sentido que Toy (1899, p. 99), Murphy (1998, pp. 26–28) e Waltke (2004, p. 410) observam.
A linha grega introduz duas escolhas de tradução decisivas. Primeiro, “μετὰ πάσης φυλακῆς” (meta pasēs phylakēs — “com toda vigilância/guarda”) — genitivo de espécie ou maneira — verte o hebraico “מִכָּל־מִשְׁמָר” (mikkol-mišmār) como “com toda guarda/vigilância”, deslocando o substantivo hebraico de “o que é guardado / vigilância” para o campo concreto de phylakē (“guarda”, “serviço de vigia”, “posto de sentinela” ou mesmo “prisão/custódia”, conforme o contexto). Em seguida, “τήρει σὴν καρδίαν” (tērei sēn kardian — “guarda o teu coração”) escolhe tēreō (τηρέω — “guardar”, “vigiar”, “preservar”) para o verbo hebraico “נָצַר” (nāṣar — “guardar”, “vigiar”, “preservar”), mantendo a imagem de vigilância contínua sobre o interior. Finalmente, “ἐκ γὰρ τούτων ἐξόδοι ζωῆς” (ek gar toutōn exodoi zōēs — “pois delas são as saídas da vida”) traduz “תּוֹצְאוֹת חַיִּים” (tōṣʾōt ḥayyîm — “efluxos/saídas da vida”) usando exodos (ἔξοδος) no plural (exodoi), e, em alguns manuscritos principais, lê “ἐκ τούτων” (ek toutōn — “a partir destas [coisas]”) onde o Texto Massorético tem “מִמֶּנּוּ” (mimmennū — “dele [do coração]”). Esse detalhe não altera a metáfora da eclosão vital, mas sugere, no grego, uma ancoragem mais ampla no conjunto de exortações do contexto imediato (Provérbios 4:20–22).
No léxico grego de referência, “φυλακή” (phylakē) abrange quatro eixos semânticos: (1) o ato de vigiar; (2) o vigia ou guarda enquanto agente; (3) o lugar de custódia, “prisão”; e (4) o “turno da noite”, as “vigílias”. Essa polissemia é atestada amplamente em literatura clássica e koiné e, crucialmente para nós, também na LXX, onde “οἶκος φυλακῆς” (oikos phylakēs — “casa da prisão”) verte o hebraico bêt ha-masger (“casa do cárcere”) e “φυλακὴ τῆς νυκτός” (phylakē tēs nyktos — “vigília da noite”) designa os turnos noturnos de guarda (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3ª ed., 2000, pp. 949–950). A amplitude do verbete reforça que φυλακή não é um termo abstrato rarefeito; ele carrega o peso institucional e ritual da guarda: vigiar um rebanho, um templo, a cidade, cumprir turnos, manter alguém sob custódia — e, por extensão, vigiar a própria καρδία.
Esse campo casa-se com o pano de fundo hebraico. Os substantivos מִשְׁמָר (mišmār) e מִשְׁמֶרֶת (mišmeret) cobrem tanto “vigília/turno de guarda” quanto “encargo a ser guardado”, incluindo funções cultuais, militares e prisionais; o mesmo termo pode nomear o local guardado (“prisão”) e o ato/serviço de guardar. Assim, “corte da guarda” em Jeremias, plantões no templo em Crônicas e turnos levíticos em Números desenham um leque que a LXX normalmente verte com a família “φυλ-” (phyl- — raiz de phylassō, “vigiar”, “guardar”) (TEOLÓGICO Jenni/Westermann, verbete de “שׁמר” (šāmar), especialmente sobre mišmār / mišmeret: “guarda”, “vigília”, “prisão”; e sobre a distribuição das vigílias da noite) (JENNI–WESTERMANN [eds.], Theological Lexicon of the Old Testament, 1997, pp. 1712–1713). Nesse quadro, “μετὰ πάσης φυλακῆς” (meta pasēs phylakēs) é a relexicalização grega exata da ideia hebraica: vigiar com a integralidade dos turnos e com o zelo dos guardas — desta vez, porém, sobre o santuário interior do ser humano.
A escolha de “καρδία” (kardia) para o “coração” prossegue outra tradição robusta. Em grego do período, kardia designa o centro da vida interior, sede de afetos, deliberações e decisões — não reduzida à emoção, mas capaz de abarcar vontade e intelecto. O verbete padrão descreve esse centro como locus da personalidade moral e religiosa, alvo de avaliação divina e palco de crer, querer, compreender e decidir (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, ibid., 2000, p. 450). A LXX de Provérbios confirma esse uso por sua frequência de kardia em construções de reflexão, deliberação e disposição, por exemplo: “καρδία εὐφραινομένη” (kardia euphrainomenē — “coração alegre”) e “καρδία δικαίου” (kardia dikaiou — “coração do justo”), conforme a macrodistribuição observada por Wolters, com ocorrências exemplares nos capítulos 6, 15, 17, 23 e 27.
Essa antropologia subjacente explica por que a cláusula τήρει σὴν καρδίαν não é mero moralismo genérico. Τηρέω — o verbo dos guardas, zeladores e sentinelas — entra no registro sapiencial para prescrever um “serviço de guarda” interior. Em termos lexicográficos, τηρέω e o campo de φυλάσσω/φυλακή descrevem tanto a ação de “vigiar/proteger” quanto a função durativa de manter alguém/algo em segurança; φυλακή, substantivo correlato, é o próprio “posto/turno/serviço” (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, 2000, p. 950; cf. o verbete de φυλάσσω com os usos em “proteger” alguém/algo).
O fecho do verso em “ἐξόδοι ζωῆς” (exodoi zōēs) é decisivo para a imagem. A LXX nomeia os fluxos vitais com o substantivo da “saída/egresso”, pluralizado para acentuar a multiplicidade de eclosões; a metáfora hidráulica permanece intacta, apenas deslocada do hebraico “תּוֹצְאוֹת” (tōṣeʾôt — “saídas”, “emanações”) ao grego “ἔξοδος” (exodos — “saída”, “êxodo”). Essa escolha é semântica e estilisticamente motivada: em sabedoria grega e na LXX, exodos tanto pode referir-se a “saída/processo de egressão” quanto, figuradamente, às “vias” por onde algo se manifesta. A leitura “ἐκ τούτων” (ek toutōn — “a partir destas [coisas]”) em Vaticano B (contra o “dele” do TM) não dilui a metáfora; apenas convoca as exortações precedentes — palavras guardadas “no interior” (4:21–22) — como o conjunto de “estas coisas” das quais procedem as saídas da vida; o canal, contudo, continua sendo a kardia guardada, como atesta a própria sintaxe do hemistíquio inicial (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, texto de 4:23).
A vastidão de ocorrências de “φυλακή” (phylakē) na LXX — da “casa da prisão” em Gênesis 40–41, passando pelos turnos levíticos em Números 3–4 e 18, guardas do palácio em Reis e Crônicas, até a “torre de vigia” profética em Habacuque 2:1 — confirma que o termo estabiliza um imaginário de disciplina, encargo e fronteira. Em termos de tipologia: (a) phylakē como ato/função (vigiar, manter, observar turnos), (b) como instituição/lugar (prisão, custódia), e (c) como tempo (as “vigílias” da noite). É precisamente essa tríade que empresta à frase “μετὰ πάσης φυλακῆς” (meta pasēs phylakēs) a densidade de um dever abrangente: o coração é posto sob a soma de todas as guardas. Em lexicografia técnica, essa amplitude está mapeada ponto a ponto. (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, 2000, p. 949–950; COLIN BROWN [ed.], ibid., vol. 2, 1976, p. 134, s.v. φυλακή).
Ao conjugar “φυλακή” (phylakē) com “καρδία” (kardia), a LXX de Provérbios opera algo mais que simples equivalência lexical: ela aproxima o vocabulário do templo e da cidadela do corpo interior. O “posto” de guarda é agora a interioridade, e a mišmeret (o “encargo a ser guardado”) converte-se em “τηρεῖν τὴν καρδίαν” (tērein tēn kardian). Assim, a semântica cultual-jurídica que antes vigiava portões e pátios passa a vigiar pensamentos, desejos e deliberações — movimento coerente com a antropologia bíblica do “coração” como sede das faculdades (lēb/lēbāb, “coração”, centro cognitivo-volitivo) (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, 2000, p. 450; JENNI–WESTERMANN, ibid., verbete lēb/lēbāb).
No plano intertextual, a imagem das “saídas da vida” encontra na própria LXX redes semânticas paralelas. Em outros pontos de Provérbios, “καρδία” (kardia) aparece como fonte de ponderação, inclinação e alegria triste, articulando o dentro e o fora por meio da linguagem, dos gestos e dos caminhos (WOLTERS, ad loc. em 6:18; 15:28; 23:15–19; 27:21a–23). A convergência com a metáfora hidráulica (fonte, nascente, jorro) já foi observada no hebraico por meio de “מוֹצָא” (mōṣāʾ, “nascente/saída”) e “מָקוֹר” (māqôr, “fonte”); no grego, “ἐξόδοι” (exodoi) mantém a direção imagética: o que está resguardado “transborda” pelos canais do viver, e o texto exige que esses canais sejam vigiados na origem — não apenas na foz.
Do ponto de vista sintático-estilístico, “μετὰ πάσης φυλακῆς” (meta pasēs phylakēs) pode ser lido como genitivo de conteúdo/qualidade (“com toda espécie de guarda”) ou genitivo partitivo (“com toda guarda possível”), ambiguidade produtiva que reforça a ideia de abrangência máxima do zelo. A forma verbal “τήρει” (tērei) (imperativo presente, 2ª singular) perfila habitualidade: vigiar sempre, manter a guarda ativa, não esporadicamente. A LXX, assim, não enfraquece o imperativo hebraico, mas o tinge da cor técnica dos turnos (“φυλακαί”, phylakai) e da disciplina do sentinela.
No registro lexicográfico de padrão teológico, “φυλακή” (phylakē) em Colin Brown confirma o acento duplo “guarda/prisão”, e “καρδία” (kardia) figura como centro da pessoa — sede da fé, do entendimento e da orientação ética; ambos os verbetes convergem no modo como a linguagem cristã primitiva herda da LXX a gramática da vigilância interior, tema que Provérbios 4:23 oferece em estado nascente (BROWN [ed.], Dictionary of New Testament Theology, vol. 2, 1976, p. 134 [s.v. φυλακή] e p. 180 [s.v. καρδία]). Por sua vez, BDAG fixa a cartografia de usos, explicitando “φυλακή” (phylakē) como “ato de vigiar”, “guarda”, “prisão” e “vigília da noite”, com referências LXX que mostram a pertinência do termo em contextos legais, cultuais e militares (BAUER–DANKER–ARNDT–GINGRICH, 2000, p. 949–950).
Do lado hebraico, a vereda entre נָצַר (nāṣar [“guardar, preservar, vigiar”]) e שָׁמַר (šāmar [“guardar, observar”]) passa por seus derivados institucionais (מִשְׁמָר, mišmār; מִשְׁמֶרֶת, mišmeret), cuja plasticidade semântica explica por que “φυλακή” (phylakē) é termo de eleição na LXX para traduzir o encargo de vigiar — seja a guarda do templo, seja a custódia de pessoas, seja a vigilância do próprio interior (JENNI–WESTERMANN, ibid., 1997, p. 1712–1713).
No conjunto, a versão grega de Provérbios 4:23 desloca a perícia dos guardas da cidade para o espaço do “eu”: o coração é porta e pátio, muralha e fonte. A sentença imperativa, em registro técnico, diz: “serve como sentinela do teu interior”, pois das “saídas” que irrompem daí — decisões, palavras, afetos, orientações — brota a própria vida. Lida nessa chave, a LXX não apenas traduz; ela interpreta com gramática de guarda: aquilo que as vigílias protegem na noite, protege-se agora no íntimo.
Observação sobre variantes: o texto de Vaticano B em Provérbios 4:23 testemunha ἐκ τούτων (ek toutōn) com ἐξόδοι ζωῆς (exodoi zōēs), onde o TM lê מִמֶּנּוּ (mimmennū, “dele [o coração]”). A leitura não subverte a metáfora das “saídas/emanações” vitais, mas sugere que, no horizonte do tradutor grego, as “saídas” estão vinculadas não só ao órgão-centro (kardia), mas também ao conjunto de preceitos imediatamente ensinados, cuja interiorização constitui precisamente o ato de “guardar a coração” (tērein tēn kardian) (WOLTERS, ad loc.).
A LXX nos permite ler Provérbios 4:23 como um édito de sentinela: com a integralidade das vigílias (μετὰ πάσης φυλακῆς, meta pasēs phylakēs), guarda-se a καρδία (kardia) — não por ascese estética, mas porque dela, por todos os canais de egressão (ἐξόδοι, exodoi), jorra a própria vida. A metáfora hidráulica que a sabedoria hebraica cunhou em תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tōṣəʾōt ḥayyîm, “emanações da vida”) permanece no grego como cartografia de fluxos, e o campo institucional de φυλακή (phylakē) leva a imagem para a esfera do dever: o interior transformado em posto de guarda, o viver convertido em disciplina de vigília.
X. Contexto comparado ANE I: Egito
A. Coração, maat e a arquitetura do “eu”: o quadro de Jan Assmann
A antropologia religiosa egípcia, tal como reconstruída por Jan Assmann, lê a morte como dissociação e a salvação como reinserção dos componentes da pessoa — ba, ka, sombra, corpo e, crucialmente, coração. “Vida é integração... morte é dissolução”; sobreviver requer “tecer relações” que reconectem esses elementos ao eu como centro organizador (ASSMANN, Death and Salvation in Ancient Egypt, 2005, p. 101). Essa lógica “conectiva” torna o coração o garante da coesão: ele precisa estar “vivo/acordado” e “no seu lugar”; o coração cansado ou ausente falha na função centralizadora, e a pessoa “se dissolve numa multiplicidade disparatada” (ASSMANN, 2005, p. 27–28).
Daí o relevo dos ritos que restituem o coração ao corpo e o “despertam” — com fórmulas que chegam a afirmar: “Meu coração cria meus membros; minha carne me obedece” (ASSMANN, 2005, p. 28). Ao mesmo tempo, a imaginação judicial egípcia exigia que o que a boca declara o coração confirmasse. Na “pesagem do coração”, a pessoa implora:
“Ó meu coração (jb) de minha mãe... ó meu coração (ḥaty) de minha existência terrena: não te ergas contra mim como testemunha... não te oponhas a mim no tribunal, não te voltes contra mim diante do senhor da balança!” (ASSMANN, 2005, p. 102).
Assmann distingue os dois termos egípcios para “coração”: jb (próximo de לֵב / לֵבָב lēv/lēvāv) e ḥaty, cuja história sugere nuances funcionais e cronológicas; a análise (seguindo Bardinet) aponta jb como “interioridades/entranhas” e ḥaty como sede mais personalista do centro volitivo e cognitivo (ASSMANN, 2005, p. 28, 58–63).
Esse coração, assim concebido, está intrinsecamente ligado à maat — verdade/justiça/ordem. O tribunal de Osíris pesa o coração contra a pena de maat; a salvação é reintegração do eu sob a ordem verdadeira, e a danação é a devoração do coração pela devoradora (Am-mt), privando o sujeito de “segunda vida” (ASSMANN, 2005, p. 126; cf. síntese enciclopédica em SABBAHY, All Things Ancient Egypt, s.v. “Weighing of the Heart”).
A ponte com Provérbios 4:23 ganha contorno: quando o sábio hebreu exorta “com toda vigilância guarda o coração” — נְצֹר לִבֶּךָ בְּכָל־מִשְׁמָר (nəṣōr libbekhā bəḵāl-mišmār) — e motiva “porque dele procedem as tōṣʾôt ḥayyîm” [“saídas/emanações da vida”], ele instala o coração como centro moral-fonte cuja integridade irrigará a existência. O universo egípcio, por seus próprios caminhos, também localiza no coração a convergência entre verdade/ordem e destino vital. A convergência tipológica é instrutiva; a dependência literária não é pressuposta.
B. Ib e ḥaty em foco: a distinção funcional (Ziskind)
Para refinar essa semântica, o estudo de Michèle Ziskind é decisivo ao cotejar jb e ḥaty em corpora funerários do Império Médio. Sua conclusão: não são meros sinônimos. O termo jb tende a designar o conjunto interior (entranhas; sede de afetos, consciência e memória), enquanto ḥaty recorta com maior nitidez o coração como órgão-pessoa, pivotando sentimentos, disposição moral, deliberação e fala verdadeira — exatamente o “coração que confirma o que a boca afirma” no tribunal (ZISKIND, “La conception du cœur...”, 2004, pp. 47, 64–66).
Essa distinção explica por que os textos da Confissão Negativa e os feitiços ligados à pesagem oscilam entre invocar o jb (“coração/entranhas” como arquivo da identidade) e o ḥaty (coração como testemunha moral). Em termos de filosofia da pessoa, o ḥaty é o ponto onde a interioridade adquire autoridade judicativa — a “memória que se lembra” e o “querer que confirma ou desmascara” — ao passo que o jb ancora a dimensão vital-orgânica da coesão (ZISKIND, 2004, p. 64–66).
Guardar o coração (Provérbios) e apresentar o coração leve (Egito) compartilham a ideia de governança do centro: no sábio bíblico, a vigilância é proativa — uma φύλαξις (phýlaxis) da καρδία (kardía) — “τὴρει σὴν καρδίαν ἐν πάσῃ φυλακῇ” (tērei sēn kardian en pasē phylakē, LXX) —; no egípcio, a leveza (maat) é a consequência de um exame que expõe o coração ao crivo da verdade. Em ambas as cosmovisões, o coração é mais que órgão: é foro e fonte.
C. O amuleto do coração: entre iconografia, ética e renascimento (Sousa, Heart of Wisdom; JARCE 43)
Rogério Sousa reuniu a documentação mais ampla sobre os amuletos do coração, distinguindo-os do escaravelho-cardíaco e mostrando seu papel em rituais de admissão cultual e vigilância ética. Na leitura de Sousa, um texto autobiográfico do Reino Médio (“medida do excesso”, m ḥsb.t ȝʿw) já alude a uma prova mensurativa do coração em chave judicial, cujo modelo inspira “confissões negativas” de caráter iniciático (SOUZA [ed.], Heart of Wisdom, 2010, pp. 30–31).
A iconografia da balança como símbolo do tribunal, reconhecida desde cedo, condiciona a ética como arte de aliviar o coração: bondade (nfrw), caráter (biȝ), paciência (waḥ-ib) “aligeiram” o coração, predispondo-o a igualar a pena de maat; o pecado “pesa” e corrompe (SOUZA [ed.], 2010, pp. 30–31).
No artigo “The Meaning of the Heart Amulets in Egyptian Art” (JARCE 43), Sousa sintetiza as semânticas do amuleto ao longo do primeiro milênio: de insígnia “política” (distinção recebida em vida por serviços ao Faraó), o amuleto se transfere, no fim da XVIII dinastia, ao horizonte escatológico como prêmio moral outorgado por Osíris na pesagem; na Época Baixa, com produção massiva, sua função apotropaica se populariza como sinal de pureza/luminosidade capaz de controlar trevas e mal e garantir saúde aqui e além (SOUSA, ibid., 2007, pp. 69–70).
O ponto-chave para nossa questão é a identidade gráfica do amuleto com o hieróglifo do coração (ib): “a leitura hieroglífica do objeto como ib é mandatória no contexto pictórico”; por isso, embora a forma derive do coração bovino, o uso metafórico do termo como sede da mente predomina — frequentemente “solarizado” (coração de ouro), como mente imortal formada pela prática de maat (SOUSA, JARCE 43, 2007, p. 69–70).
Essa mesma leitura permeia o volume Heart of Wisdom: a “medição do coração” qualifica não só a destinação post mortem, mas também admissões cultuais que espelham o juízo de Osíris, com o amuleto figurando como selo de justificação — uma espécie de “balança portátil” que atesta conformidade à maat (SOUZA [ed.], 2010, pp. 30–31).
D. Convergências tipológicas com Provérbios 4:23
A metáfora de Provérbios 4:23 — “dele [do coração] procedem as תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tōṣʾôt ḥayyîm [“saídas/emanações da vida”]) — assenta-se num campo lexical hebraico onde מוֹצָא / מוֹצָאֹות (mōṣāʾ / mōṣāʾōt) e מָקוֹר (māqôr) descrevem nascente, ponto de eclosão e origem. Em registro egípcio, Assmann articula o coração como mídia de conectividade — foco do querer, da memória e da consciência —, sem a qual não há fluxo vital integrador (ASSMANN, 2005, p. 27–28).
Ao traduzir a imagem egípcia para nossa problemática sapiente: “guardar” o coração (נָצַר, nāṣar) é guardar o centro conectivo por onde “jorram” as tōṣʾôt ḥayyîm. O paralelo egípcio afirma: “seu coração anima e lembra”, e por isso é reinserido no corpo e vigiado (phylakē, na versão grega de Provérbios) por um tribunal de verdade, para que não testemunhe contra o sujeito (ASSMANN, 2005, p. 28, 102).
De outra parte, a iconografia da balança — ib contra maat — ajuda a perceber por que tantas traduções de Provérbios preferem “springs/sources” para tōṣʾôt: tanto no hebraico quanto no egípcio o valor vital do coração se diz por metáforas hidráulicas (nascente, jorro) ou metrológicas (balança, medida), sempre remetendo a uma origem reguladora que sustenta a vida e expõe o caráter (SABBAHY, All Things Ancient Egypt, “Weighing of the Heart,” p. 573–574; SOUSA, JARCE 43, 2007, p. 70).
XI. Contexto comparado : o jb/ib egípcio
A gramática cultural do Antigo Egito parte do jb/ib (𓄣), termo que designa o órgão cardíaco e, simultaneamente, o centro de intelecto, volição e identidade moral. Essa duplicidade — somática e noética — é o ponto de encontro mais forte com o לֵב (lēv) bíblico: ambos condensam emoção, intenção e discernimento, mais que mero “sentimento”. A iconografia ritual culmina na pesagem do coração perante Osíris, imagem que condensa, em ato, o juízo sobre a vida. A cena é descrita e analisada em detalhe por manuais e enciclopédias de cultura egípcia: o coração (ib) numa das conchas da balança; do outro lado, a pluma de Maat, princípio de verdade/justiça; Anúbis ajusta o fiel; Thoth registra o veredito; Ammit aguarda o destino do réu (SABBAHY [org.], All Things Ancient Egypt, 2019, “Weighing of the Heart”, pp. 572–574).
A teologia prática do pós-morte dá ao ib uma agência peculiar: ele pode testemunhar contra o falecido. Por isso, a magia funerária cerca o coração de amuletos e fórmulas: o célebre “escarábeo-do-coração” traz gravada a súplica de que o coração não se erga como testemunha contra seu dono. O manual de Geraldine Pinch explica a função do Feitiço 30 (e suas variantes) do Livro dos Mortos: recitado sobre um escaravelho de pedra verde, ungido, “aberto a boca” e deposto “no lugar do coração”, para inibir a delação do órgão no tribunal (PINCH, Magic in Ancient Egypt, 1994, p. 154–155).
“O Feitiço 125 do Livro dos Mortos consiste em um relato detalhado do julgamento dos mortos... A ilustração padrão para este feitiço mostra o coração do falecido sendo pesado contra a pena que simboliza Maat... Se o coração estivesse pesado de pecado, pesaria mais do que o símbolo de Maat e o espírito culpado seria condenado... O Feitiço 30 do Livro dos Mortos permite que o falecido evite um veredicto de culpa, impedindo que seu coração confesse crimes... Os "escaravelhos do coração" inscritos com o Feitiço 30 são frequentemente encontrados no peito de uma múmia.” (PINCH, ibid., p. 154–155).
Note a lógica processual: o coração carrega memória ética e, por isso, precisa ser guardado — antes (pela vida em conformidade) e depois (por magia protetiva). A enciclopédia de Sabbahy confirma o uso padronizado do escaravelho cardíaco “atado sobre o peito” como amuleto de proteção contra um juízo desfavorável (SABBAHY [org.], 2019, “Amulets”, p. 22; idem, “Weighing of the Heart”, pp. 572–574).
Do ponto de vista da linguagem ritual, a “guarda” do coração egípcio articula palavra eficaz (heka) e suporte material (amuletos): o feitiço não nega ética, mas insere a pessoa na economia de graça/assistência divina (Thoth provedor de amuletos; heka dom de Rá) — um ponto que Pinch explicita ao ponderar que a magia funerária não foi percebida como “irreligiosa”, e que o recurso ao dom divino lembra, por analogia distante, a soteriologia da graça (PINCH, 1994, p. 155–156).
Esse ethos do coração-como-testemunha atravessa textos não estritamente funerários. Assmann coleciona fórmulas que descrevem o coração como sede de consciência, medo, fala e disposição (p. ex., “meu coração salta do lugar”, “meu coração dorme”, “a palavra se embaralha”): em todas elas, o ib aparece como mediador entre interioridade e ato, sinalizando que a pessoa é, em última instância, responsável por aquilo que o coração “traz a lume” (ASSMANN, ibid., 2005, notas e passagens exemplares, p. 433; 489).
Esse quadro ajuda a precisar o diálogo com Provérbios 4:23. Se, no Egito, guardar o coração poderia incluir falar-sobre-ele e amarrá-lo ao testemunho correto mediante amuletos e performativos sagrados, em Provérbios a guarda se dá como disciplina sapiencial: o coração orientado por instrução e vigilância moral. O ponto de contato está em conceber o coração como epicentro da vida e como órgão “depoente” — por isso “guardar” tem peso existencial, não cosmético.
A. Símbolo, rito e metáfora: do escarábeo-do-coração à ética do fluxo
A cultura egípcia é altamente icono-verbal: cada objeto carrega mitos, deuses, ritos. O escaravelho, imagem de Khepri (o sol renascente), simboliza renovação, “tornar-se” e eclosão diária — por isso, o escaravelho do coração, inscrito com a fórmula de não-testemunho do Feitiço 30, junta renascimento e absolvição numa só peça (PINCH, 1994, p. 108; 154–156).
Sabbahy sublinha a continuidade do uso amulético entre Textos das Pirâmides, Textos dos Caixões e o Livro dos Mortos, com inventários específicos de amuletos, materiais e ritos (SABBAHY [org.], 2019, “Amulets”, p. 21–22). O coração — por ser arquivo do eu — recebe amparo privilegiado: “ligado sobre o coração”, o escaravelho visa inclinar a balança para a vida (SABBAHY [org.], 2019, p. 22; 572–574).
Estudos monográficos sobre o amuleto-do-coração refinam esse quadro. A pesquisa The Heart of Wisdom observa que, embora o cap. 125 traga a iconografia da pesagem, os capítulos 30/30B se associam mais diretamente ao escarábeo e à re-animação do corpo — o que aponta uma dupla função: (a) jurídica (não delatar); (b) vital/solar (reintegrar o coração ao circuito da vida) (HEART OF WISDOM, Studies on the Heart Amulet in Ancient Egypt, 2011, pp. 40; 50).
Em linguagem ritual: guardar o coração é restituí-lo ao corpo e silenciá-lo como acusador. Quando o texto hebraico ordena “נְצֹ֣ר לִבְּךָ֔” (nĕṣōr libbekhā, “guarda o teu coração”), a metáfora de fontes/“saídas” (tôṣāʾôt ḥayyîm) ecoa bem o imaginário hidráulico de procedência que, do lado egípcio, se exprime no nascer do sol e nas eclosões que salvam da morte. Em ambos, o coração é origem: de fala, de intenção, de vida.
B. Sabedoria egípcia e Provérbios: Amenemope e a ética da interioridade
Para afastar leituras simplistas de “influência” direta, vale seguir o estado da arte. Nili Shupak revisa décadas de debate e admite paralelos sólidos entre Instrução de Amenemope e Provérbios 22:17–24:22, sem igualar dependência a cópia; sobretudo, mostra como ambos valorizam o interior (pensamento, intenção) como núcleo ético — o que aproxima o “guardar o coração” da vigilância egípcia sobre disposições invisíveis (SHUPAK, The Instruction of Amenemope and Proverbs 22:17–24:22..., 2021, pp. 1–3; 11–13).
Em chave de método comparativo, J. A. Emerton defende que a semelhança de forma-sentença, motivos e léxico não elimina originalidade israelita, porém situa Provérbios num horizonte sapiencial comum do Oriente Próximo: moderação de fala, justiça ao pobre, autocontrole — precisamente tópicos onde “coração” é governança de fluxos interiores (EMERTON, The Teaching of Amenemope and Proverbs..., VT 15/4, 1965, pp. 427–429).
Daí duas consequências exegéticas para Provérbios 4:23:
-
“Guardar” como vigiar intencional. No Egito, a guarda do coração inclui amarrá-lo às palavras eficazes; em Provérbios, “guardar” (נָצַר, nāṣar) é atenção, cautela e preservação moral contínua — não ritual, mas pedagógico-sapiencial. O que se guarda são entradas e saídas do interior, como quem defende uma nascente contra contaminação.
-
“Fontes/poços de vida” como emanações de caráter. A linguagem egípcia, ao pesar e restituir o coração, lê a vida como fluxo que nasce do centro pessoal; Provérbios 4:23 perfila o mesmo gesto: a vida jorra do coração — por isso, vigiá-lo é proteger a nascente. Se a LXX verteu com termos do campo de φυλακή (vigilância/guarda), não traiu a imagem: traduziu-a eticamente (vigilância) em lugar de ritualmente (amuletos). A semântica egípcia, porém, ajuda a ver por que “fonte/emanação” é imagem forte para a vida que procede do interior.
C. Técnica e teologia: palavra, objeto e verdade
O ritual egípcio é articulação de fala e matéria: o escaravelho precisa de invocação, unção e posicionamento; as “técnicas” mágicas são performativas, quase “litúrgicas”, visando inserir o morto no dom de heka (PINCH, “Magical Techniques”, 1994, pp. 88–89).
Mas — como nota Pinch — a moral não desaparece: o Feitiço 125 mantém um criteriológio ético; a “Confissão Negativa” encena uma vida vivida à sombra de Maat (PINCH, 1994, pp. 154–155). O escaravelho não “compra” a absolvição; antes, ampara contra a arbitrariedade dos demônios e lembra ao coração sua verdade jurada. Esta tensão entre virtude e assistência divina ressoa, por contraste, na teologia sapiencial de Israel: o coração guardado pela instrução recebida (Provérbios 4:4–5), guiado pela verdade (אֱמֶת (ʾĕmet
)), preservado por uma palavra que não volta vazia. Aqui, a “magia” é substituída por didática e temor do SENHOR; mas o papel do discurso eficaz — palavra que cria e ordena — permanece, com outra ontologia.D. “Guardar o coração”: entre tribunal e nascente
(a) Centro antrópico. Tanto ib quanto לֵב (lēv) funcionam como centro decisório: é do coração que se delibera, fala e responde (ASSMANN, 2005, passim; SABBAHY [org.], 2019, “Weighing of the Heart”, p. 572–574).
(b) Figura jurídica e hidráulica. No Egito, o coração é testemunha; em Provérbios, o coração é nascente. As duas imagens convergem: o que jorra acusa — fluxos (palavras, atos) “testemunham” quem somos. Guardar o coração, portanto, é governar esse ponto de eclosão de onde “saem” as תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tôṣəʾôt ḥayyîm).
(c) Palavra vinculante. O Egito vincula coração à palavra performativa (heka); Provérbios vincula coração à palavra sapiencial (tôrâ paterna): em ambos, discurso forma o centro. Daí o caráter vigilante (φυλακή) que a tradição grega atribuiu ao guardar — vigiar o portal por onde o interior se torna mundo.
(d) Prática de guarda. O Egito “guarda” com amuletos e confissões; Israel “guarda” com instrução e temor do SENHOR. O gesto é análogo: proteger o órgão que decide a vida. Se o escaravelho insiste: “não te ergas contra mim como testemunha”, Provérbios insiste: “acima de tudo, guarda...”. Em ambos, o coração é fiel da balança — ora na sala do tribunal, ora na cabeceira da fonte.
XII. Contexto comparado: Mesopotâmia e Levante
Perseverando na costura que vimos nas seções anteriores, o eixo semântico–antropológico de לֵב (lēv), 𐎍𐎁 (lb) e libbu converge: o “coração” é o centro invisible de pensamento, vontade e afeto; a ele se dirige o imperativo de “guardar” — hebraico נָצַר (nāṣar), acádio naṣāru (𒈾𒍝𒊒), ugarítico 𐎐𐎕𐎗 (nṣr). Em Provérbios 4:23, “guarda teu coração” articula um princípio pan–semita de vigilância da interioridade, cuja gramática literária se deixa rastrear com precisão nas fontes mesopotâmicas e ugaríticas.
Na filologia acádia, libbu não é apenas órgão. O Chicago Assyrian Dictionary mapeia uma rede de usos que vão da fisiologia ao interior cognitivo. O libbu é “mente/ânimo”, sede de estados e decisões, como quando se fala em “ver o coração do homem”, “mudar o coração” ou “as intenções dos deuses são remotas como o centro dos céus” (ana pāte qereb libbi; “as intenções [libbū] do(s) deus(es) são tão distantes quanto o centro do céu”) — evidências que situam o pensar, querer e sentir no interior humano e divino (CAD L, s.v. libbu, p. 170; p. 167).
É notável que essa interioridade acádia seja semanticamente elástica: libbu pode referir “o interior do palácio”, “o centro” de regiões ou o “miolo” de plantas; essa espacialidade do “dentro” prepara a leitura sapiencial em que o coração é o “centro” de onde irrompem caminhos, palavras e destinos — uma pista essencial para entender por que as “תּוֹצְאוֹת חַיִּים” (tōṣəʾôt ḥayyîm) de Provérbios podem ser lidas como “saídas/fontes da vida” (CAD L, p. 167).
No mesmo dicionário, a entrada de naṣāru (𒈾𒍝𒊒) oferece o verbo técnico de “guardar/velar/proteger”. Ele nomeia o serviço de guarnições, a vigilância de cidades e fortalezas, o zelo cultual de templos e até “massartu” (posto de guarda, “vigia”) — um campo semântico que vai do militar ao administrativo e ao ritual (CAD N/2, s.v. naṣāru, pp. 33–36). Esse verbo não se limita, porém, a objetos externos. Quando as cartas, leis e composições falam de “guardar” algo no interior (ina libbi) de um território ou instituição, a sintaxe naṣāru + interioridade espelha a prudência sapiencial de vigiar o “centro” de decisividade — inclusive o libbu humano (CAD N/2, p. 35; cf. ina libbi māti... na-as-sa-ri “estão no interior da terra dele para guardá-la”).
Esse enlace entre interioridade (libbu) e vigilância (naṣāru) é reforçado pela antropologia literária mesopotâmica. Bottéro observa que, na ausência de uma categoria anatômica de “cérebro”, a cognição é “cardiocêntrica”; por isso se “diz no coração”, se “muda o coração”, e dele advém o conselho e a intenção (BOTTÉRO, Mesopotamia: Writing, Reasoning, and the Gods, 1992, pp. 34, 37, 263, 280, 1992.). Em Ugarítico e Hebraico, Mark S. Smith descreveu o mesmo deslocamento: funções que em línguas modernas atribuímos ao “cérebro” recaem no “coração”, de modo que o “dizer no coração” é expressão corrente de pensamento reflexivo; o coração também é sede de dolo (Sl 5:10) (SMITH, “The Heart and Innards in Israelite Emotional Expressions”, JBL 117, 1998, p. 432).
Ugarítico confirma a convergência. O DULAT registra 𐎍𐎁 lb “coração” em paralelismo com 𐎋𐎁𐎄 kbd (“fígado/entranhas”), com usos que vão de “vontade/desejo” a “planejar no coração” e “encher-se de alegria no coração” (1.3 II; 1.12 I; 1.19 I), isto é, o mesmo núcleo volitivo-cognitivo do semítico do noroeste (DULAT, s.v. lb). A análise de Smith e Pitard, no Baal Cycle, mostra que “coração” e “entranhas” funcionam em paralelismo poético para emoções e decisões, e sublinha, com exemplos do corpus épico, que lb é o locus de volição e reflexão, não um mero órgão somático.
Esse quadro semântico ilumina o imperativo sapiencial de “vigiar/guardar” o coração. No acádio, naṣāru tem parceiro nominal: massartu (“vigília/guarda”), que descreve a postura de quem permanece à porta, na muralha, no templo — em suma, nos umbrais que importam. Guardar libbu com massartu é um gesto natural na cultura que fez do coração o “interior de decisão”. (CAD N/2, pp. 34–36).
Tudo isso reaparece, traduzido para o ethos da sabedoria, nos Counsels of Wisdom e nos provérbios sumério–acádios (Šuruppak, et al.). O “vigiar” desloca-se da torre ao discurso e ao íntimo, consolidando uma ética do controle de si: conter a língua, não derramar o coração diante de todos, manter a palavra sob guarda. A amostra a seguir (atribuída por Lambert à tradição babilônica) cristaliza essa transição do militar ao moral, do perímetro urbano ao perímetro do eu:
“Não derrames teu coração diante de todos,
para que não diminuas o respeito por ti mesmo.
Não espalhes tuas palavras à multidão,
nem te associes ao indiscreto.
(...)
Que tua boca seja refreada, e tua fala vigiada.
(...)
meu filho, não tagareles em demasia até revelar toda palavra que te vem à mente,
pois em todo lugar há olhos e ouvidos; mas faze vigília sobre tua boca,
para que ela não seja tua ruína.”
(LAMBERT, Counsels of Wisdom [trad. cit. no Tyndale Bulletin], p. 44).
A retórica do “não derramar o coração” aproxima-se diretamente de Provérbios 4:23. O libbu é o centro de onde brotam decisões, e o verbo do perímetro — naṣāru — é recrutado para circunscrever esse centro. Em termos composicionais, é exatamente isso que um comentador como Murphy (WBC) percebe quando observa que o texto põe “todas as partes” sob disciplina para convergir na guarda do coração (WBC, ad Provérbios 4:20–27); Longman resume: “Acima de tudo, guarda o teu coração... daquilo deriva a vida”, é o clímax do discurso do caminho (Baker Commentary, 4:20–27).
Do lado da antropologia bíblica, a melhor síntese continua a ser a de Smith: ausência de um termo para “cérebro” leva a concentrar no “coração” o pensar e o querer; daí formulários como “dizer no coração” e a associação de dolo/bonomia ao lēv (JBL 117, p. 432). Esse dado torna coerente a leitura do hebraico נָצַר (nāṣar) em Provérbios: guardar o coração é estabelecer massartu no “interior” — uma guarda que é, ao mesmo tempo, cognitiva, moral e cultual (SMITH, 1998, p. 432; cf. CAD L, p. 170; CAD N/2, pp. 33–36).
Na tradição ugarítica, o léxico confirma o quadro hebraico. O verbete 𐎍𐎁 (lb) no DULAT reúne ocorrências onde “o coração se enche de alegria”, “planeja-se no coração”, “segundo o coração do rei” — tudo apontando para lb como sede de desejo, deliberação e impulso (DULAT, s.v. lb). A mesma tradição oferece paralelos expressivos para o esconderijo do dizer interior e para o contraste entre interior (lb/kbd) e exterior (boca/lábios): “não separar teu coração da tua língua” é uma máxima que circula igualmente em literatura sapiente egípcia e mesopotâmica, e que o Tyndale Bulletin recolhe em séries paralelas (p. 44).
Essa gramática pan–semita afeta também a tradução: se tōṣəʾôt ḥayyîm pode ser vertido como “saídas/emanações da vida”, é porque, de dentro (qereb/libbu), saem fluxos que definem a existência. CAD L registra mōṣāʾ-análogo acádio (p.ex., “abrir o interior do coração”), e tanto na poesia ugarítica quanto na bíblica “fonte/nascente” torna-se a metáfora natural para o que jorra de um centro. Nesse sentido, a escolha de versões por “springs/sources” não é mera opção estilística, mas uma leitura fiel do sistema imagético do semítico antigo, que pensa a vida como “irrupção” do dentro para o fora (CAD L, p. 170; DULAT s.v. lb).
Em termos de prática sapiencial, o par libbu–naṣāru produz uma ética da atenção. Guardar a cidade implica muralhas, turnos e sentinelas; guardar o coração supõe processos análogos: refrear a língua, filtrar os afetos, circunscrever as imaginações. Daí a insistência dos Counsels: “que tua boca seja refreada e tua fala vigiada... faze vigília sobre tua boca” — fórmulas onde naṣāru (o verbo da guarnição) migra para o regime do discurso e da interioridade (Tyndale Bulletin, p. 44; CAD N/2, pp. 34–36).
Por fim, é útil notar que no corpus hebraico e mesopotâmico a “guarda” nunca é apenas defensiva; ela é teleológica. A vigilância visa à vida, não ao enclausuramento. Waltke e Murphy advertiram, cada um à sua maneira, que a linha argumentativa de Provérbios 4:20–27 dirige o corpo inteiro para a integridade do “caminho”, e que “daí” — do coração bem guardado — “saem” as condições de vitalidade. Em paralelos mesopotâmicos, “guardar as portas” do templo/da cidade não é só impedir o mal, mas assegurar o fluir do culto, da justiça e da paz; na interioridade, guardar o coração é garantir que as tōṣəʾôt que jorram dele sejam fontes e não vazadouros. (LONGMAN, Baker Commentary, ad 4:20–27; CAD N/2 s.v. naṣāru, pp. 33–36).
A leitura intercultural conduz a uma equação consistente: libbu / 𐎍𐎁 / לֵב (lēv) = “centro decisório” (cognição–vontade–afeto); naṣāru / 𐎐𐎕𐎗 / נָצַר = “erguer sentinela” sobre esse centro. A metáfora hidráulica de Provérbios (“saídas/fontes da vida”) não é uma metáfora solta; ela nasce de uma antropologia do dentro e de uma ética da vigília, atestadas de Mari a Jerusalém, de Ugarit a Nínive. Guardar o coração, portanto, é instituir massartu no ponto de nascedouro do viver, para que dele não saiam vazamentos de desordem, mas nascentes de vida.
Perceba, antes de tudo, como a imagem de Provérbios 4:23 (“מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים”) já pressupõe uma topografia interior: o לֵב (lēb, “coração”) ocupa o centro e funciona como reservatório-fonte do qual se derramam fluxos que configuram a vida. Essa leitura se consolida quando articulamos a semântica bíblica do “coração” com ferramentas da linguística cognitiva (metáforas-conceituais de “centro”, “fonte” e “contenedor”), e a teologia sapiencial que toma a vida moral como algo que brota do núcleo interior. O resultado é um campo semântico denso, no qual a antropologia bíblica, os usos lexicográficos e a pragmática poética caminham juntos.
A metáfora do coração como “centro” emerge de modo recorrente na lexicografia teológica. O verbete “coração” da Theological Lexicon of the Old Testament assinala que לֵב/lēb e לֵבָב/lēbāb designam o “centro” da pessoa — sede integrada de intelecto, afeto, vontade e disposição religiosa — com usos que vão do pensar e decidir à coragem e à retidão (JENNI; WESTERMANN, Theological Lexicon of the Old Testament, 1997, pp. 821–826). Essa centralidade não é apenas espacial; é axiológica e causal: do coração procedem motivos, juízos e ações que moldam o caminho do indivíduo. Em linguagem cognitiva, trata-se de uma metáfora ontológica que perfila o “eu” como um organismo com “núcleo” controlador. É precisamente esse “núcleo” que Provérbios manda guardar: נְצֹר־לִבְּךָ (nəṣōr libbekhā, “guarda o teu coração”), pois dele saem as תּוֹצְאוֹת/tōṣəʾôt [“emanações/saídas”] da vida.
O coração, porém, não é apenas “centro”; ele é “contenedor”. A Bíblia Hebraica fala do coração “cheio” (מָלֵא לֵב) de planos, do “derramar” do coração (שָׁפַךְ לֵבָב, šāfakh lēbāb, Lamentações 2:19), de palavras que “saem” da boca como efluxos de um interior pressurizado. Na chave da metáfora do CONTENEDOR (um dos pilares da teoria clássica: o “interior” como locus de conteúdos que entram, permanecem e saem), o לֵב aparece como vaso-reservatório: recebe instrução (Provérbios 4:21), abriga mandamentos (bĕtōk libbekā, “no meio do teu coração”, Provérbios 4:21), transborda em fala e gesto (Provérbios 10:11; 15:28). A síntese poético-lexical em Waltke é precisa: o “coração governa todas as atividades” e “tudo o que fazes” glossado como “as fontes/saídas da vida” depende do que nele reside (WALTKE, ibid., 2004, p. 301).
No plano da linguística cognitiva aplicada à poesia hebraica, a rede metafórica permite observar como “coração” articula, simultaneamente, imagens de “fonte” e “contenedor”. A metáfora FONTE realiza a passagem do processo (יָצָא/yāṣāʾ, “sair”) para o lugar de origem (מוֹצָא/mōṣāʾ, “nascente/saída”), de tal modo que o interior humano é figurado como nascente de águas efluxivas. A metáfora CONTENEDOR convoca o eixo “dentro/fora” (בְּתוֹךְ/bĕtōk, “no interior”) e articula a ética como gestão de conteúdos: o justo “guarda” (נָצַר/nāṣar) e “observa” (שָׁמַר/šāmar) o que entra e permanece no coração, e por isso controla o que “sai” como palavra e conduta (Provérbios 4:21–27). Essa estruturação por redes, e não por metáforas isoladas, é crucial ao estilo sapiential — e tem sido descrita na literatura especializada sobre metáforas bíblicas como um modo de coesão semântica:
“Redes de metáforas [...] estabelecem conexões entre todos os tipos de textos e ideias, e oferecem a possibilidade de ler e interpretar o Saltério como um todo. [...] Relações metafóricas e metonímicas criam uma teia semântica na qual imagens individuais ganham coerência a partir da rede que habitam. [...] Essa compreensão da metáfora oferece novas leituras de passagens onde a exegese tradicional tem dificuldade em dar conta da densidade de imagens.” (HERMISSON; KUGEL; KRAUS apud LABAHN, “Imagining Stability in the Fourth Book of Psalms,” Metaphors in the Psalms, 2017, p. 223).
No interior dessa teia, Provérbios 4:23 atua como nó conceitual: “fonte” e “contenedor” convergem na expressão תּוֹצְאוֹת חַיִּים (tōṣəʾôt ḥayyîm), em que o plural tōṣəʾôt (de י־צ־א “sair”) aponta para efluxos múltiplos que se originam do coração — fala, decisões, afetos e gestos — compondo aquilo que Waltke chama de “manifold and varied issues of life” (WALTKE, ibid., 2004, p. 301–302).
A antropologia bíblica que sustenta essa leitura é explicitada em estudos histórico-lexicais sobre emoção e cognição. Smith mostrou, em análise paradigmática, que “coração” e “entranhas” funcionam como polos do vocabulário emocional israelita, sendo o לֵב locus de deliberação e intenção, sem romper a continuidade corpórea-afetiva da pessoa. Sua síntese ajuda a ler Provérbios 4:23 não como psicologismo moderno, mas como fisiologia simbólica da agência moral (SMITH, “The Heart and Innards in Israelite Emotional Expressions,” JBL 117/3, 1998, p. 429–431).
É dentro desse horizonte que a metáfora do coração como “fonte” adquire relevância particular. Em tōṣəʾôt ḥayyîm, o quadro imagético é explicitamente hidráulico: a vida flui porque há nascente; o fluxo é vital porque a nascente está íntegra. Por isso o imperativo é de “guarda” — vigilância tópica sobre o “reservatório” do qual tudo procede. Waltke comenta que a cláusula “מִמֶּנּוּ תּוֹצְאוֹת חַיִּים” (mimmennû tōṣʾōt ḥayyîm) traz mimmennû como ablativo de origem — não a guarda em si, mas o coração é a fonte — e que “as fontes” resultam em vida “moral-espiritual”. (WALTKE, ibid., 2004, pp. 301–302).
A teologia sapiencial desse versículo confirma o lugar do coração como eixo de integridade e vida diante de Deus. O manual de sabedoria supõe, desde os primeiros capítulos, que a instrução seja “guardada no meio do coração” (šomrēm bĕtōk libbekā, Provérbios 4:21), num paralelismo ousado: a torá no Santo dos Santos é imagem da instrução paterna alojada no âmago do discípulo (WALTKE, ibid., 2004, pp. 299–300). Essa interiorização permite que ḥayyîm não seja mera longevidade biológica, mas plenitude moral e relacional, “vida” como participação no shalom que a sabedoria distribui no corpo e no convívio (WILSON, Proverbs, 2018, pp. 41–43).
Assim, a exigência “acima de toda vigilância, guarda o teu coração” desenha uma disciplina da atenção: olhos, ouvidos, boca e pés operam como “portas” e “canais” que tanto informam o interior quanto deixam escoar os fluxos do interior para o mundo (Provérbios 4:24–27). A retórica instrutiva costura justamente esse duplo movimento: filtrar entradas e regular saídas, porque a fonte determina a qualidade do fluxo (MURPHY, Proverbs, 1998, pp. 28–29; WALTKE, ibid., p. 301–302).
Do ponto de vista pragmático, o imperativo de guarda pressupõe uma antropologia responsiva: o coração é moldável e responsável, suscetível tanto de sabedoria quanto de dureza. Waltke sublinha que a “condição espiritual” do coração (puro, sábio, perverso) determina decisão e ato; por isso, a pedagogia sapiential insiste na memorização afetiva, não na repetição mecânica (WALTKE, ibid., p. 300–301). Wilson observa que, em Provérbios, o coração é “o centro do ser e da tomada de decisão”, controlando a vida como tal; logo, 4:23 torna-se o ponto alto de uma arquitetura que desde 2:1–11 trabalha a interiorização (WILSON, Proverbs, 2018, pp. 41–43).
Convém notar que a metáfora do coração como “fonte” tem paralelos estruturais na rede sapiential mais ampla. O léxico bíblico conhece מָקוֹר (māqôr, “fonte/nascente”), literal e figurado, como “fonte da vida” (Salmos 36:9; Provérbios 10:11; 13:14; 14:27; 16:22), o que reforça, por contiguidade semântica, a leitura hidráulica de Provérbios 4:23. A análise do Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento (NIDOTE, ed. port.) destaca o uso de māqôr tanto no sentido físico (Jeremias 51:36; Oséias 13:15) como no teológico (“o Senhor, fonte do seu povo”), deixando ver como a “vida” é figurada por nascente que irriga conduta e comunidade (VANGEMEREN [org.], NIDOTE, vol. 2, 1998, p. 1085).
Essa convergência lexical-figurativa sustenta, então, uma teologia sapiencial do coração. Guardar o coração é ordenar o māqôr para que os efluxos sejam de vida, e não de morte. Murphy, em WBC, realça que 4:20–27 “repete ideias já anunciadas no capítulo, mas com nova inflexão” ao enfatizar os membros do corpo, “sobretudo o coração”, cuja correção funcional garante “vida” (MURPHY, ibid., pp. 28–29). A tradição exegética tem reconhecido a densidade dessa imagem: não se trata de moralismo sobre emoções, mas de uma teoria da agência que leva a sério a interioridade como lugar de decisão e de fluxo — onde a instrução paterna, acolhida e “guardada no meio do coração”, funciona como filtro e nascente para a ética.
A fenomenologia bíblica do “interior” também inclui a regulação da fala enquanto efluxo. A boca é conduto direto do e para o coração: a fala revela o interior e, reciprocamente, o afeta; por isso o controle dos lábios integra a guarda do coração. O provérbio 10:11 (“מְקוֹר חַיִּים פִּי צַדִּיק”, mĕqōr ḥayyîm pî ṣaddîq, “fonte de vida é a boca do justo”) alinha-se à mesma rede, explicitando a transdução entre “fonte interior” e “efluxo verbal”: o justo é fonte porque o seu coração o é.
Sob esse arranjo, a integridade moral não se mede apenas por atos externos, mas pela qualidade da nascente que os produz. Wilson sintetiza: o livro conhece a tensão entre “atos” e “atitudes subjacentes do coração”, e 4:23 fixa a régua: o cuidado primeiro é com o interior, porque dele tudo procede (WILSON, Proverbs, 2018, p. 41–43). Ao mesmo tempo, a responsabilidade não é dissolvida num determinismo fisiológico: Provérbios insiste na escolha atencional, na internalização de mûsār (disciplina) e na recusa da dureza (Provérbios 5:12; 28:14), o que mantém a metáfora hidráulica dentro de uma ética responsiva.
A semântica cognitiva aplicada a Provérbios 4:23 confirma o coração como “centro” e “contenedor”, e especifica a vida como “fluxo” que nasce da qualidade desse centro. A teologia sapiencial interpreta tal fluxo como vida moral-espiritual que vincula instrução, temor do Senhor e integridade. Nesse horizonte, o imperativo נְצֹר־לִבְּךָ (nəṣōr libbekhā, “guarda o teu coração”) é o comando-janela de todo o capítulo: dele depende a fonte, e da fonte dependem os rios.
XIII. Semântica cognitiva aplicada
A poesia sapiencial toma לֵב (lēv) / לֵבָב (lēvāv) como um “lugar” — centro decisório, contenedor de afetos e valores, e nascedouro de cursos de ação. Em Provérbios 4:23, a cadeia mimmennû tôṣəʾôt ḥayyîm delimita esse lugar como uma origem: do interior irrompem “fluxões da vida”, num trânsito fonte-→fluxo que as versões vertem ora por “issues/outgoings”, ora por “springs/sources”. A coerência dessa imagem emerge quando se lê metáfora não como peça isolada, mas como nó de uma rede. O capítulo programático de Danilo Verde insiste que metáforas acontecem em constelações, frequentemente “misturadas”, e que tais misturas, longe de vício estilístico, sinalizam a plasticidade cognitiva com que articulamos domínios-fonte distintos sobre um mesmo alvo — precisamente o que ocorre quando “coração” é simultaneamente centro (espaço), contenedor (recipiente) e nascente (hidrologia) (VERDE, Networks of Metaphors in the Hebrew Bible, 2020, p. 3).
“Independentemente do que Orwell inter alii possa pensar, a realidade é que metáforas mistas, que estão por toda parte na comunicação humana, não impedem necessariamente que falantes/escritores e ouvintes/leitores se entendam. O uso de metáforas mistas também não reflete necessariamente confusão e fraqueza conceitual. Em vez disso, a prática generalizada, deliberada e não deliberada, de misturar metáforas “oferece testemunho da flexibilidade cognitiva que é a marca registrada da inteligência e da criatividade humanas”.” (VERDE, ibid., pp. 3–4).
Ao descrever essa convivência, Verde propõe que o leitor observe “como expressões metafóricas individuais interagem e assim desenvolvem a complexidade da metáfora conceptual implicada”, tratando-as “não como unidades estáticas, mas como padrões dinâmicos, sensíveis ao contexto” (VERDE, 2020, p. 6). Assim, no horizonte de Provérbios 1–9, a metáfora do coração como “centro” acopla-se à metáfora do caminho (LIFE IS PATH), onde a decisão brota do lēv e orienta o derek do discípulo; Verde nota que tais “famílias de metáforas” fornecem um “repertório genuíno de imagens para pensar e falar de um domínio-alvo a partir de múltiplos pontos de vista” (VERDE, 2020, p. 6).
Esse enquadramento permite explicitar três mapeamentos que se cruzam em Provérbios 4:23:
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O coração como contenedor. A metáfora do CONTAINER atribui bordas ao interior humano: o lēv “guarda” conteúdos (sabedoria, intenções, palavras) e pode ser “cheio”, “vazio”, “apertado”, “alargado”. A ordem “guarda o teu coração” pressupõe um recipiente vulnerável à infiltração (Provérbios 4:20–23), cujas “saídas” (tôṣəʾôt) indicam transbordamentos — linguagem própria de recipientes e nascentes.
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O coração como centro. A topologia do lēv faz dele o “meio” do humano, sede da deliberação e da orientação (nous prático). Mark S. Smith lembra que, na Bíblia Hebraica, ao coração se atribuem “tanto pensamento quanto emoções”, enquanto outras vísceras (fígado, rins) não assumem esse papel cognitivo amplo (SMITH, “The Heart and Innards...”, JBL 117/3, 1998, p. 428–429).
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O coração como fonte. Quando tôṣəʾôt ḥayyîm é lido por “springs/sources of life”, a metáfora do RESERVATÓRIO/NASCENTE soma-se ao CONTAINER: o lēv não apenas contém, mas jorra. Essa justaposição — longe de confusão — é exemplo do que a linguística cognitiva descreve como mixed metaphors cognitivamente bem-sucedidas (VERDE, 2020, p. 3–4).
A antropologia textual de Smith adensa o pano de fundo somático: na expressão hebraica, órgãos internos servem de veículos simbólicos para comunicar estados afetivos e disposições. O ensaio abre destacando que nem a filologia comparada nem o repertório bíblico, por si, bastam para explicar por que lēv e “entranhas” cumprem essa função; por isso, a proposta cruza dados psicológicos e fisiológicos para fundar uma suposição plausível sobre o seu uso (SMITH, 1998, p. 427). Em particular, “coração quebrantado” não tematiza amor não correspondido, mas “luto/dor”, algo mais próximo do que chamaríamos uma “espírito esmagado” (SMITH, 1998, p. 428–429). Essa observação é decisiva: reforça que a metáfora do coração como centro moral não se limita a emoção bruta; ela cobre o processamento cognitivo que integra afeto e juízo — precisamente o que a rede de Provérbios requer para que as tôṣəʾôt ḥayyîm resultem em conduta.
O efeito cumulativo é uma malha: o lēv é centro (organiza), contenedor (retém) e fonte (emite). Verde descreve tal malha como “cadeias” em que metáforas “modificam, revertem, tensionam e até se contradizem para, por fim, reforçar-se” — mecanismo particularmente “pervasivo na poesia” (VERDE, 2020, p. 6). Em Provérbios 4:23, é essa mesma convivência que autoriza a leitura não excludente de “issues/outgoings” e “springs/sources”: o recipiente transborda porque é nascente.
No registro corporal, Smith registra ainda a sobreposição, típica dos antigos, entre linguagem de doença e de emoção; distinguir clinicamente dor física de dor afetiva não era prioridade conceptual — “nós tendemos a separar, mas os antigos não” (SMITH, 1998, p. 430). Essa continuidade corpo-emoção ilumina por que a tradição sapiente pode transitar sem atrito entre lēv que “pensa” e lēv que “dói”, e por que a emanação vital de Provérbios 4:23 pode ser dita em termos hidrológicos (fontes) e urbanísticos (saídas) ao mesmo tempo, sem “confusão conceitual” — nos termos de Verde, trata-se de uma “flexibilidade que é marca da inteligência e criatividade humanas” (VERDE, 2020, p. 3–4).
Se ampliamos o foco para a macroestrutura sapiencial, a metáfora arbórea em Provérbios — “pessoas são árvores” — funciona como metáfora “família” que atravessa o livro, conectando integridade, florescimento e discurso (resumo de ANSBERRY em VERDE/LABAHN, Networks of Metaphors, 2020, Introdução, p. 9–10). O coração, nessa rede, é raiz oculta cuja seiva (valores) sobe e frutifica em palavras e atos: a fonte interna explica o fruto externo. A leitura de Provérbios 4:23 como guardiã dessa nascente-centro ajusta-se, pois, ao repertório de imagens do próprio livro.
XIV. Teologia sapiencial do coração: moral, vida e integridade
Se a semântica cognitiva mapeia as metáforas, a teologia sapiencial interroga o seu telos: que vida é essa que “jorra” do coração? Em Provérbios, “vida” (ḥayyîm) não é mera sobrevivência, mas qualidade moralmente densificada — paz, estabilidade, fecundidade de relações, retidão no comércio do falar e do decidir. O lēv torna-se, então, órgão de integridade: aquilo que ele contém (sabedoria, prudência, temor do SENHOR) se derrama em trajetórias de justiça, e aquilo que nele se aninha (fraude, inveja, adultério) se extravasa em ruína.
Smith ajuda a ancorar teologicamente esse movimento ao recordar que o coração é o órgão mais abrangente do psiquismo bíblico (pensar/querer/sentir), ao passo que outros órgãos cumprem funções mais restritas (os rins, examinados por YHWH; a gordura, metáfora de insensibilidade) (SMITH, 1998, p. 428–429). Se o juízo divino “sonda o coração e os rins”, não é para opor razão a afeto, mas para aferir caráter como unidade. Desse modo, “guardar o coração” é uma disciplina de integração — tomar o todo humano como uma única fonte.
“Para expressar emoções, os textos israelitas às vezes usam partes internas do corpo, como o coração e o fígado/entranhas... O objetivo deste ensaio é fornecer informações extraídas de pesquisas interculturais, psicológicas e fisiológicas sobre o uso de órgãos internos na comunicação de emoções... Finalmente, algumas observações são oferecidas sobre o papel das emoções na comunicação externa.” (SMITH, “The Heart and Innards...”, JBL 117/3, 1998, p. 427–428).
O quadro que emerge de Provérbios 4:23, lido nesse registro, é mais que ético-comportamental; é litúrgico-corporal: o coração é um “santuário interior” a ser guardado, porque dele “saem” os ritos diários da vida (palavras, decisões), capazes de santificar ou profanar a existência. A metáfora da fonte torna palpável a economia moral de Provérbios: proteger o ponto de captação (o lēv) para que o curso (a vida) não seja contaminado.
O vocabulário da rede de metáforas reforça esse telos. Verde mostra como clusters poéticos “reversam, deslocam e até contradizem” imagens para alcançar um retrato mais rico do domínio-alvo; na sabedoria, o alvo é a vida boa diante de Deus (VERDE, 2020, p. 6). Assim, o coração-contenedor abre-se em coração-fonte para acenar que valores não podem ficar acumulados — destinam-se a fluir, irrigar; daí a ética da fala: “da abundância do coração, a boca fala”, imagem coerente com tôṣəʾôt ḥayyîm como efluxo.
Smith adiciona um vetor pastoral: como os antigos não demarcavam rigidamente “doença” e “emoção”, a experiência de colapso (dor, medo, luto) é dita em imagens de vísceras derramadas; e, reciprocamente, a cura espiritual pode ser dita em termos somáticos (fortalecimento do coração) (SMITH, 1998, p. 430). A teologia sapiencial acolhe essa gramática holística: a integridade não anestesia a carne, mas a integra — o coração preservado é um corpo ordenado.
Esse mesmo holismo legitima a convivência de metáforas “misturadas” na catequese sapiente: o discípulo aprende que sua interioridade é centro (onde se escolhe o caminho), contenedor (onde se guardam palavras) e fonte (de onde saem obras e discursos). É essa plasticidade que Verde e a pesquisa recente elogiam contra o preconceito estilístico: a Bíblia “commingles metaphors with remarkable frequency”, e isso é sinal de inteligência e criatividade textual, não de indigência (VERDE, 2020, p. 159).
No plano da moral, isso se traduz na integridade como coerência de fluxo: aquilo que entra no coração (ensinamentos, tôrâ paterna) deve sair como vida. O controle da atenção (ouvidos/olhos em Provérbios 4:20–25) preserva a fonte da poluição; a vigilância sobre inputs (discursos de sedução, consórcios violentos) é, portanto, cuidado de nascente. Essa “vigilância” é também doutrina de fala: a boca, “abertura” da fonte, deve ser guardada para que o que sai seja ḥayyîm (vida), não mawēt (morte). Tudo isso converge para uma teologia da retidão como hidráulica: vidas justas são cursos limpos; corações ímpios, olhos de água contaminados.
Smith observa que o “coração quebrantado” é dor moral e social, não tópico romântico (SMITH, 1998, p. 428–429). Em Provérbios, prevenir a quebra do coração não é blindá-lo contra feridas inevitáveis da existência, mas ordená-lo para que, mesmo quando ferido, continue a jorrar vida — como fonte perene. Essa é a promessa sapiencial: guardado o coração, preserva-se a nascente; preservada a nascente, o rio não seca. E, sob a ótica da rede de metáforas, isso é dito com a liberdade e potência de imagens que se cruzam: recipiente e nascente, centro e caminho — todos se convocam para anunciar, com a mesma voz, que da interioridade cuidada procede a vida.
- Veja nosso comentário completo de Provérbios 4.
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GALVÃO, Eduardo. Provérbios 4:23a — O que significa “guardar o coração”?. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], nov. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

