Significado de João 1

João 1

João 1 é de importância significativa na teologia cristã, pois apresenta conceitos e temas-chave relativos à identidade de Jesus Cristo. O capítulo começa introduzindo o conceito de “o Verbo” (Logos em grego), que é identificado como divino e eterno. Diz-se que a Palavra está com Deus e também é o próprio Deus. Esta ideia estabelece as bases para a crença cristã na divindade de Jesus.

O capítulo continua explicando que todas as coisas foram criadas através da Palavra, enfatizando o poder criativo e a natureza divina da Palavra. Isso se alinha com o conceito de Jesus ser o agente da criação.

O autor introduz a ideia da “Luz” que brilha nas trevas. Esta Luz é uma referência a Jesus Cristo, que traz iluminação espiritual e compreensão à humanidade. O capítulo apresenta João Batista, que não é a Luz, mas dá testemunho dela. O papel de João é preparar o caminho para a vinda de Jesus e testemunhar o Seu significado.

A parte mais significativa do capítulo 1 é a declaração de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Este versículo ressalta a crença na Encarnação, onde o Verbo divino assumiu forma humana na pessoa de Jesus Cristo.

João 1 também enfatiza que através de Jesus Cristo, os crentes recebem graça e verdade. Isto significa que Jesus traz perdão, salvação e a revelação da verdadeira natureza de Deus. O capítulo termina com o testemunho de João Batista sobre Jesus, destacando a preeminência e superioridade de Jesus sobre João.

Este capítulo é uma profunda introdução teológica ao Evangelho de João, enfatizando a divindade de Jesus, o Seu papel na criação, a Encarnação e o poder transformador do Seu ministério. É uma passagem chave para a compreensão da crença cristã em Jesus como Filho de Deus e Salvador da humanidade.

I. Explicação de João 1

João 1.1-18 

Esses primeiros versículos são os mais lindos e profundos descritos em toda a Palavra de Deus. Eles nos transportam para antes do início da criação e nos fazem viajar no tempo e no espaço da história humana. Eles revelam, como em nenhuma outra parte das Escrituras, que o Jesus que fez parte da história da humanidade (Jo 1.14) é o Deus Criador, descrito em Gênesis 1.1. O texto em João 1.1-18 revela a relação eterna entre Pai e Filho e mostra que podemos andar na luz e ter a vida eterna quando aceitamos aquele que é a maior revelação do Pai: Jesus Cristo!

João 1:1 

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. (Gr.: En archē ēn ho logos, kai ho logos ēn pros ton theon, kai theos ēn ho logos — Tradução literal: “No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava voltada para Deus, e Deus era a Palavra.”) Em João 1:1, a frase “No princípio” já coloca tudo no lugar: antes de qualquer coisa existir, a Palavra já era; e ela não aparece como criatura elevada, mas como alguém que está em relação real com Deus e, ao mesmo tempo, participa plenamente do que Deus é quando afirma que “era Deus”. Essa abertura conversa diretamente com Gênesis 1:1, porque a criação começa com Deus no começo de tudo, e João está dizendo que, nesse começo absoluto, a Palavra já estava lá. Isso também encaixa com a forma como o Antigo Testamento descreve Deus criando e sustentando pela sua palavra, como em Salmos 33:6: não é só “discurso”, é ação criadora e eficaz. Quando o Novo Testamento afirma que tudo foi criado “por meio dele” e que ele é “antes de todas as coisas”, em Colossenses 1:15-17, e que Deus “fez o universo” por meio do Filho e ele sustenta todas as coisas, em Hebreus 1:2-3, não está acrescentando um enfeite teórico: está dizendo que o evangelho se apoia num Salvador que é Deus de verdade, e por isso pode dar vida nova de verdade. Como aplicação pastoral (não como afirmação histórica sobre cada detalhe da sua rotina), isso muda o jeito de viver a fé: confiar em Jesus não é só adotar valores; é descansar a alma em alguém que não começou ontem e não falha amanhã, e isso desloca o centro da vida do medo e do controle para a adoração e a confiança.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

“Princípio”: archē (“princípio”) é um substantivo abstrato em “-ē”, e os léxicos o fazem remontar ao verbo archō (“começar”, “governar”), como se a palavra carregasse na própria ossatura a ideia de “ponto inaugural” e, ao mesmo tempo, “ato de comandar”: raiz verbal + sufixo que fixa a ação em conceito, como quem prende em metal a faísca do primeiro gesto. 

Na literatura grega secular, isso aparece com nitidez: o mesmo archē (“princípio”) pode nomear o começo/origem (“beginning, origin”) e também o “lugar de poder” (“sovereignty”), e o próprio léxico marca esse desdobramento, observando que o sentido político de “soberania” não é homérico, ao passo que o sentido de “origem” é abundantemente atestado em citações de Homero, Heródoto e outros (por exemplo, expressões do tipo “archē de X”, “o começo de X”, com genitivo do que se inaugura). E, quando a língua entra no terreno da filosofia secular, o termo ganha um peso de “princípio primeiro”: o léxico registra o uso técnico de archē (“princípio”) como “primeiro princípio/elemento”, atribuído já aos primeiros filósofos, e esse emprego é justamente o que faz a palavra soar, para ouvidos gregos, não apenas como “primeiro instante”, mas como “fundamento” — aquilo de onde o real se levanta.

“Deus”: theon (“Deus”), forma acusativa de theos (“Deus”), é o termo grego de largo curso para “deidade” — um nome comum do sagrado no discurso greco-romano, capaz de servir tanto ao horizonte politeísta (“um deus”, “deuses”) quanto, por extensão contextual, ao Deus singular. Mas, quando se pede etimologia em sentido estrito (origem histórica do vocábulo e sua formação primeira), os próprios recursos lexicográficos advertem que a derivação última é debatida: há múltiplas propostas antigas e modernas, e a tradição registra a discussão como etimologicamente incerta (“oito ou mais derivações propostas...”, com remissão a bibliografia), ao mesmo tempo em que aponta que o termo é corrente desde Homero, isto é, plantado no solo mais antigo da literatura secular grega que nos resta.

O sintagma preposicional en (“em”) + archē (“princípio”) é formalmente uma construção em que en (“em”) rege o caso dativo e, por essa regência, instaura uma moldura adverbial de esfera (no caso, temporal) para a oração, vinculando-se ao verbo finito que segue. O verbo ēn (“era”) é forma finita no imperfeito do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, funcionando aqui como cópula/verbificação de existência em oração nominal, e recebe como sujeito o sintagma nominal ho (“o”) + logos (“palavra”), em que o artigo ho (“o”) marca o núcleo nominal como nominativo masculino singular e o sinaliza, no encaixe da frase, como sujeito explícito do predicado verbal. 

A conjunção kai (“e”) coordena, por parataxe, uma segunda oração de mesma tessitura: novamente ho (“o”) + logos (“palavra”) ocupa a posição de sujeito, retomando o referente por repetição formal, e ēn (“era”) volta a exercer o papel de cópula; a novidade sintática está no complemento preposicional pros (“para”) + ton (“o”) + theon (“Deus”), em que pros (“para”) rege acusativo e, por essa marca formal (acusativo sob preposição direcional), constrói um valor semântico básico de direção/relacionamento orientado “para” um alvo, aqui identificado pelo artigo ton (“o”) e pelo nome theon (“Deus”), acusativo masculino singular, objeto interno da preposição. 

A terceira oração, novamente coordenada por kai (“e”), reorganiza a predicação: theos (“Deus”) aparece como nominativo masculino singular sem artigo (forma anártra) e antecede ēn (“era”), ocupando a posição típica de predicativo do sujeito em oração copulativa; em seguida, ho (“o”) + logos (“palavra”) reaparece com artigo, e essa assimetria formal (predicativo anártro + sujeito articular) é precisamente o sinal morfossintático que permite identificar ho logos (“o palavra”) como sujeito e theos (“Deus”) como predicativo, não como simples inversão de identidade por artigo duplicado. Com a amarração gramatical completa, a exegese formal pode ser formulada sem sair do terreno da sintaxe: as três orações justapostas por kai (“e”) compõem um período em progressão, no qual a moldura temporal de en archē (“em princípio”) governa a leitura do imperfeito ēn (“era”) como estado contínuo no passado (não evento pontual), a relação expressa por pros ton theon (“para o Deus”) funciona como predicação relacional vinculada à cópula, e a oração final, por meio do predicativo anártro theos (“Deus”) em posição preverbal, realiza uma predicação de qualidade/natureza do sujeito (em vez de simplesmente igualar, por artigo, sujeito e predicativo), exatamente o tipo de configuração debatida na literatura técnica sobre predicativos anárthros em João 1:1.

B. Versões Comparadas

João 1:1, à luz de en archē (“no princípio”) e do substantivo archē (“começo; origem; princípio; primazia”), cuja formação se liga ao verbo archomai (“começar”), já expõe por si mesma o primeiro ponto de variação nas versões: algumas apenas acompanham a forma tradicional “no princípio”, enquanto outras tornam explícita a ideia de anterioridade e continuidade que o imperfeito ēn (“era/estava”) sugere no encadeamento da frase, sem “pontuar” um começo temporal como se fosse um instante isolado. Na convergência mais literal, NASB 1995/ESV/NRSV/ASV/KJV dizem: “In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God.” (Pt: “No princípio era a Palavra; a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.”). YLT preserva o mesmo encaixe, mas com pontuação própria: “In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God;” (Pt: “No princípio era a Palavra… e a Palavra era Deus;”). 

CEV, ao contrário, explicita o referente e intensifica a predicação, quebrando o período em linhas e adicionando ênfase interpretativa: “In the beginning was the one / who is called the Word. / The Word was with God / and was truly God.” (Pt: “No princípio existia aquele que é chamado Palavra… e era verdadeiramente Deus.”). O ponto onde todas essas escolhas se “decidem” contra o grego é a preposição pros (“para; em direção a; junto de”), que rege acusativo em pros ton theon (“para Deus / voltado para Deus”): traduzir por “with/com” comunica proximidade e relação, mas atenua o valor direcional e de orientação relacional que pros carrega com o acusativo na literatura grega em geral. Ainda no nível lexical, “Word/Palavra/Verbo” está em torno de logos (“palavra; fala; discurso; razão expressa”), e o uso de “Verbo” é uma opção tradicional (latinizante) que não é a tradução mais imediata do campo semântico de logos em grego secular, ao passo que “Palavra” aproxima-se mais do núcleo semântico comum.

Quando se passa às versões em português, ARA/ACF mantêm a cadência clássica e a equivalência formal, mas optam por “Verbo”: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” NTLH aproxima-se do impulso explicativo que certas versões populares fazem em inglês, tornando a anterioridade mais “ouvida” no português: “No começo aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus.” NVI personaliza o sujeito logo após a perífrase identificadora: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus.” NVT mantém “Palavra” e também explicita a anterioridade, mas com formatação em linhas: “No princípio, aquele que é a Palavra já existia. / A Palavra estava com Deus, / e a Palavra era Deus.” Aqui, para medir “fidelidade ao grego” sem sair do trilho do texto, o critério mais controlável é observar (i) se a versão deixa pros ton theon soar apenas como “com Deus”, ou se ao menos preserva a ideia de orientação relacional; e (ii) se ela mantém a força nominal de theos (“Deus; divindade”) em “theos ēn ho logos” (theos “Deus” + cópula + sujeito com artigo), ou se adiciona intensificadores (“truly” / “verdadeiramente”) que não estão formalmente marcados no grego, ainda que possam ser defendidos como explicitação do sentido.

C. Interpretação Teológica

As primeiras palavras de João, “No princípio,” soam como uma lembrança deliberada das primeiras palavras da própria Bíblia. O primeiro livro da Bíblia Hebraica foi conhecido pelo nome “NO-PRINCÍPIO” (tirado das palavras iniciais do texto hebraico, que soam como uma, embora esteja no estado construto: bereshit); por isso, a expressão circulava com naturalidade e seria prontamente reconhecida. João está falando de um novo começo, de uma nova criação, e escolhe termos que fazem eco à primeira criação. Não demora para ele retomar também outras palavras decisivas de Gênesis 1, como “vida” (v. 4), “luz’’ (v. 4) e “escuridão” (v. 5). Em Gênesis 1 está a descrição da primeira criação de Deus; aqui, o tema é a nova criação de Deus. E, assim como a primeira, a segunda não se realiza por meio de algum agente subordinado: ela acontece mediante a ação do Logos, a própria Palavra de Deus. Há continuidade com a criação antiga: a Palavra estava “no princípio,” o que indica que ela é anterior a tudo o mais.

É nesse ponto que a tradução de Knox, “No princípio do tempo,” entra como contraste, porque o en archē (“no princípio”) de João é, ao mesmo tempo, mais conciso, mais abrangente e mais impressionante. Um caminho para sentir melhor essa força é considerar o ap archēs (“desde o princípio”) de 1 João 1:1: ali, o foco recai no que transcorre a partir do começo, ao passo que aqui o texto aponta para o fato de que, no começo, “a palavra já estava lá” (tradução de Barclay). E há uma formulação precisa de Barth: “Esta Palavra não era, como todas as outras palavras, uma palavra humana criada, meramente relacionada a Deus, meramente falando de Deus e sobre Deus. Como a Palavra, ela é proferida no lugar onde Deus está, ou seja, έν άρχῇ, in principio de tudo o que é.” (Church Dogmatics, I/1 [Edinburgh, 1955], p. 459). Ao inserir a transliteração, o ponto se mantém: en archē (“no princípio”), “in principio”, como a esfera onde Deus é, antes e acima do curso do tempo e do vir-a-ser do mundo.

Ainda assim, é provável que haja mais conteúdo concentrado nesse termo. A palavra traduzida por “beginning” pode também carregar o sentido de “origin”, no sentido de causa básica. (Assim, BAGD dá como primeiro sentido “princípio” e como segundo “a primeira causa.” Tertuliano explora longamente a dupla acepção de archē (“princípio”) em Gn. 1:1 (LXX) no argumento contra Hermogenes (XIX; ANF, III, p. 488).) Temple parece acertar ao entender que a frase reúne duas camadas de sentido, “no princípio da história” e “na raiz do universo.” Isso combina com um traço recorrente do evangelista: o gosto por expressões que sustentam mais de uma leitura. Se fosse raro, poderia parecer coincidência e exigiria que se escolhesse, com rigor, entre alternativas; mas acontece com frequência suficiente para ser intencional. É um modo de ampliar o alcance do que está sendo dito: aqui, o quadro sugere que João quer que se percebam simultaneamente as duas possibilidades e que o evangelho se abra com uma expressão que pede dupla escuta. E as duas importam: nunca houve um tempo em que a Palavra não existisse; nunca houve coisa alguma cuja existência não dependesse dela.

Nesse cenário, o verbo “era” se entende com mais naturalidade como afirmação de existência eterna: “a palavra era existia continuamente.” O termo ēn (“era”) não é egeneto (“veio a ser”), que é usado nos vv. 3, 6, e 14. Westcott observa em sua tradução comentada do texto grego de João 1:1 em seu contexto:

“A frase remete o leitor a Gênesis 1:1, o que necessariamente fixa o sentido do princípio. Aqui, como lá, “o princípio” é o momento inicial do tempo e da criação; mas há uma diferença: Moisés se detém naquilo que parte do ponto inicial e traça o registro da ação divina desde o princípio (cf. 1 João 1:1, 2:13), enquanto São João eleva nossos pensamentos além do princípio e se detém naquilo que “era” quando o tempo, e com o tempo do ser finito, começou seu curso. Cf. Provérbios 8:23. Já quando “Deus criou os céus e a terra”, “o Verbo já existia”. O “ser” do Verbo é, portanto, necessariamente levado além dos limites do tempo, embora a pré-existência do Verbo não seja explicitamente declarada. A simples afirmação da existência, neste contexto, sugere uma concepção mais elevada do que a da pré-existência, que é limitada pela ideia de tempo.” (HORT, The Gospel according to St. John, 1892, p. 100)

Não convém forçar o tempo verbal além do que ele pode sustentar, mas é seguro afirmar que o verbo não sugere um estado concluído nem um processo de vir-a-ser. É um verbo adequado à existência eterna e imutável. João está afirmando que a Palavra existia antes da criação, antes do tempo cronológico existir, e isso torna claro que a Palavra não é criada, não é uma criatura. Segurar esse ponto é crucial. Outros, especialmente entre judeus que ressaltavam o Deus único como fonte de todas as coisas, podiam conceber a Palavra como de altíssima dignidade, porém subordinada, como um ser criado. Em João, isso não cabe: para ele, a Palavra não pode ser colocada no conjunto das coisas criadas. “No princípio” — com toda a plenitude que essas palavras comportam — a Palavra “era”. Donald Guthrie comenta: “Ele é visto como maior que todas as coisas, maior que o tempo, imutável como a eternidade.” (GUTHRIE, A Guide to John's Gospel, 1986, p. 18).

A maneira como João usa o termo “Palavra”, lançado logo na primeira linha, como se já fosse conhecido do leitor, coloca desde o início uma dificuldade que acompanha todo o caminho. Não é possível demonstrar de forma conclusiva se, do modo como João o emprega, ele deve ser explicado a partir de um horizonte judaico, grego, ou de outra procedência. R. P. Casey afirma que a principal dificuldade do Prólogo de João “não reside no seu estilo nem na sua terminologia, mas no fato de o seu autor ter os pés firmemente assentes em dois mundos: o do Antigo Testamento e o da filosofia helenística, e permitir que o seu olhar vagueie facilmente de um para o outro. Em cada ponto importante, ele não só tem dois pensamentos em vez de um, como também dois conjuntos de alusões em mente”. (JThS, n.s. IX [1958], p. 270). Tampouco é imediatamente evidente o que João quer dizer com precisão: ele não o explica, e o leitor é levado a descobrir por conta própria a alusão exata e o alcance do que está sendo afirmado. Essa situação se repete muitas vezes, e isso não significa que o pensamento do evangelista seja confuso ou que o texto seja indecifrável; ao contrário, o raciocínio é nítido e o estilo é luminoso. O que acontece é que, ao unir simplicidade e profundidade, João frequentemente deixa a impressão de que talvez não se tenha captado tudo o que está ali.

Ainda assim, pode-se afirmar com segurança um ponto central: “a Palavra” aponta para a verdade de que a revelação pertence à própria natureza de Deus. A palavra de uma pessoa é o meio pelo qual ela dá a conhecer o que pensa; de modo análogo, “A Palavra de Deus é o Seu pensamento (por assim dizer) expresso de forma que os homens possam compreendê-lo.” (C. H. Dodd, How to Read the Gospels (London, 1944), p. 29) Deus, portanto, não deve ser concebido como distante e indiferente: ele se dá a conhecer. Mas ele se dá a conhecer do modo que lhe apraz, não como fruto de imposição externa. Karl Heim comenta: 

“A palavra distingue-se apenas da escuridão do silêncio. Se não há silêncio, o orador não consegue fazer-se entender. Suas palavras, então, se perdem no ruído. Portanto, não há compreensão da palavra de Deus em todas as filosofias que não reconhecem a distinção entre essas duas formas da presença de Deus, o silêncio e a palavra, que sustentam a opinião de que Deus está igualmente inatingível em todos os lugares, ou que Ele pode ser experimentado em todos os lugares da mesma maneira e está sempre igualmente próximo.” (HEIM, Jesus the Lord [Edinburgh and London, 1959], p. 154).

É justamente aqui que convém proteger a leitura de dois desvios. O primeiro é imaginar a revelação como algo estático, como se se resumisse a um depósito de verdades sobre Deus. O conhecer a Deus, porém, é a “vida eterna” (17:3), e isso exige reconhecer que o conhecimento que a Palavra traz não é mera informação: é vida. A Palavra, nesse sentido, é criativa. Barrett comenta que “o termo Logos é visto como uma descrição de Deus no processo de autocomunicação — não apenas na comunicação do conhecimento, mas numa autocomunicação que inevitavelmente inclui a transmissão do verdadeiro conhecimento. O Logos é uma Palavra de Deus que, ao mesmo tempo, declara a sua natureza e dá origem a uma vida criada na qual circula um poder divino.” (BARRETT, The Gospel according to St. John, 2nd edn. (Philadelphia, 1978), p. 61). O segundo desvio é reduzir a Palavra a um simples atributo — ou, no máximo, uma atividade — de Deus. João pensa a Palavra como vindo à terra na pessoa de Jesus de Nazaré (v. 14); e, ao mesmo tempo, como participante do ser mais íntimo de Deus, pois “a Palavra era Deus.” É difícil ler o Prólogo de João sem associar imediatamente essas linhas a Jesus, mas é útil lembrar que não há nada que una explicitamente as duas coisas até que se chegue ao versículo 14. Até lá, os primeiros leitores teriam pensado na Palavra como um Ser ou Princípio supremamente grandioso; e, se se deseja medir o impacto pretendido dessas frases, é preciso manter esse dado em mente.

Muitos comentadores (por exemplo, Bernard, Boismard) negam que o termo grego pros com o acusativo difira de para com o dativo. J. Rendel Harris afirma categoricamente que a construção usada aqui se deve ao “grego do escritor ou do tradutor, ou, se preferirmos, à falta de grego” (HARRIS, The Origin of the Prologue to St John’s Gospel [Cambridge, 1917], p. 5). Mas o grego deste Evangelho não é negligente. Dods sustenta que a preposição “implica não apenas a existência ao lado de, mas também uma relação pessoal. Significa mais do que μετά ou παρά, e é regularmente empregada para expressar a presença de uma pessoa com outra”. (cf. Mateus 13:56; Marcos 6:3) De acordo com A.T. Robertson “a ideia literal se expressa bem, ‘face a face com Deus’” (Robertson, p. 623). Ele também diz que a expressão “conversa face a face” está implícita (p. 625). Pode-se afirmar que esta preposição  grega expressa proximidade combinada com a sensação de movimento em direção a Deus, indicando assim uma relação ativa. O Logos e Deus não existem simplesmente lado a lado, mas estão em comunhão viva, e tal comunhão implica personalidades distintas. É difícil imaginar algo diferente disso.

B. F. C. Atkinson percebe, na construção, um tom de intimidade, como se nela estivesse o sentido de familiaridade, o sentido de “estar em casa.” Para ilustrar esse uso, ele cita: “Eu me levantarei e irei para casa, para meu pai... E ele se levantou e foi para casa, para seu pai.” (Lucas 15:18, 20) A partir disso, entende que a frase equivale a: “A palavra estava no lar de Deus” (ATKINSON, The Theology of Prepositions, p. 19). Se se insistir numa leitura estritamente literal, o movimento sugerido seria “a Pàlavra estava voltada para Deus.” Isso não abre espaço para qualquer tensão entre a Palavra e o Pai; antes, descreve uma existência inteira orientada para ele. É por isso que a preposição parece carregar, ao mesmo tempo, duas ideias inseparáveis: acompanhamento e vínculo. E não se trata de uma escolha ocasional, pois o enunciado retorna no versículo 2, sinalizando que há peso deliberado no modo de dizer (cf. 1 João 1:2). No primeiro passo, fica afirmada a existência pessoal da Palavra; agora, o foco avança para o seu caráter pessoal em relação ao Pai. Não basta dizer que ela existia “in the beginning”; é preciso notar que ela existia no laço mais estreito possível com o Pai. A expressão distingue os dois, e essa distinção pode também funcionar, por implicação, como uma recusa à ideia de que a Palavra seja apenas uma emanação afastada do próprio Deus. Palavra e Deus não são idênticos; contudo, são um.

Godet acredita que, se essa palavra tivesse sido usada para se referir ao Logos, teria denotado “uma quase-divindade, uma condição intermediária entre Deus e a criatura”. (GODET, 1978, Commentary on the Gospel of John, p. 246) João não está dizendo isso, mas afirmando a plena divindade do Logos. Abbott destaca que é mais comum um adjetivo do que um substantivo nessa posição (1994a; ele cita 6:60), o que torna o uso do substantivo por João ainda mais significativo. A dificuldade na construção reside na ausência do artigo com Θεός (theós). Assim como as Testemunhas de Jeová, Strachan afirma dogmaticamente: “a palavra theos não tem artigo, conferindo-lhe, portanto, o significado de um adjetivo”. (STRACHAN, The Fourth Gospel, 1951, p. 99; cf. A Palavra era “Deus” ou “um deus”?, artigo da JW.org) Mas isso é simplista demais. Os que negam a divindade de Jesus alegam que se o significado pretendido por João fosse dizer que a Palavra era Deus, o apóstolo não poderia ter dito “a Palavra estava com Deus”. A verdadeira explicação para o artigo está muito bem fundamentada por E. C. Colwell, que demonstrou que, no Novo Testamento, os substantivos definidos que precedem o verbo geralmente não possuem artigo (COLWELL, A Definite Rule for the Use of the Article in the Greek New Testament, JBL, LII [1933], pp. 12-21). 

Sobre este versículo, ele comenta: “A ausência do artigo não torna o predicado indefinido ou qualitativo quando precede o verbo; ele é indefinido nessa posição apenas quando o contexto o exige. O contexto não faz tal exigência no Evangelho de João” (p. 21. Veja também os comentários de B. M. Metzger sobre a visão de Colwell (ExT, LXIII [1951-52], pp. 125-26) e a discussão de J. Gwyn Griffiths (ExT, LXII [1950-51], pp. 314-16). A afirmação de Strachan ignora o uso do Novo Testamento, assim como traduções como a de Moffatt. N. Turner comenta sobre a tradução de Moffatt: “Mais uma vez, a diluição da elevada cristologia de um autor do Novo Testamento se baseia em um apelo falacioso a princípios gramaticais infundados” (TURNER, Grammatical Insights, p. 17). 

B. A. Mastin tem algumas reservas quanto à abordagem de Colwell, mas rejeita firmemente a ideia de que a passagem signifique apenas que o Verbo era divino. Ele conclui que é “extremamente provável que João 1:1 descreva o Logos preexistente como Deus” (NTS, 22 [1975-76], p. 37, destaque meu). A equipe de tradução da NEB traduz: “o que Deus era, o Verbo era”, e J. A. T. Robinson dá grande importância a essa tradução em sua objeção à compreensão convencional das palavras (ROBINSON, Honest to God [Londres, 1963], p. 71). Para registrar a forma grega sem recorrer a caracteres gregos, o núcleo pode ser expresso como theos ēn ho logos (“a Palavra era Deus”), e, se a alternativa fosse o adjetivo, ela corresponderia a theios (“divino”), que não é o termo empregado; o contraste é justamente o que sustenta o argumento de que João afirma deidade plena, não uma condição intermediária.

Assim, João não está apenas sugerindo que exista algo “divino” em Jesus; ele está afirmando que ele é Deus, e o faz de modo enfático, como se percebe na ordem das palavras.  Isso era muito impactante para um judeu. Ε. M. Sidebottom afirma:

“É inevitável sentir que a tendência de escrever “o Verbo era divino” em vez de θεός ήν ό λόγος surge de uma relutância em atribuir a João a posição cristã completa. Não basta dizer que o significado é que o Verbo “pertence à mesma esfera do ser que Deus”; Filo poderia ter aceitado alguma fórmula semelhante... Mas Filo era judeu. Ele não poderia ter aceitado o que a Igreja ensinava sobre Cristo.” (SIDEBOTTOM, The Christ of the Fourth Gospel [London, 1961], pp. 48-49). 

Se essa afirmação soa vertiginosa ao leitor moderno, não há motivo para supor que tenha sido menos impactante para um autor judeu, como João. Algo levou o apóstolo a construir uma teologia onde a divindade de Jesus seria abertamente atestada, e isso deveria vir com um peso muito grande de sua própria experiência com Cristo. Para os judeus daquele tempo, o monoteísmo não era mera opinião religiosa: era convicção defendida com firmeza e zelo. Era basicamente a crença que os diferenciava de todos os povos, especialmente os romanos. Não poderia existir dois deuses. É nesse pano de fundo que se deve ouvir que “a Palavra era Deus” em um sentido de transcendeu à compreensão judaica do ser de Deus. 

E há ainda uma precisão importante: ele escreve que “a Palavra era Deus,” e não “Deus era a Palavra.” A segunda forma teria sugerido identidade total, como se “Deus” e “a Palavra” fossem a mesma realidade sem distinção. Ao manter a formulação original, João preserva a possibilidade de que haja mais em “Deus” do que na “Palavra”, mas estabelece com nitidez que nada menos do que Deus basta para compreender a Palavra. D. M. Baillie ressalta isso ao dizer: 

“Quando Justino, Irineu, Tertuliano, Clemente e Orígenes se propuseram a debruçar-se sobre a questão de saber se o Logos era a própria essência de Deus desde toda a eternidade, a discussão não se centrava em algum ponto remoto da metafísica antiga. A questão era: o propósito redentor que encontramos em Jesus faz parte da própria essência de Deus? É isso que Deus é? É da Sua natureza criar, revelar-Se e redimir a Sua criação? Não seria, portanto, algum ser subordinado ou intermediário, mas o próprio Deus Eterno, que Se revela a nós e se encarnou em Jesus para a nossa salvação?” (BAILLIE, God Was in Christ [London, 1955], p. 70).

Talvez valha observar que João volta a chamar Jesus de Deus no versículo 18 e em 20:28. Se aqui o foco recai sobre a Palavra pré-encarnada como Deus, o versículo 18 retoma o mesmo eixo para a Palavra encarnada e 20:28 o fixa para o Cristo ressuscitado; em três pontos decisivos de sua narrativa, o evangelista afirma a deidade do seu Senhor.

O peso esmagador da evidência com base tanto em gramática grega, como a teologia inteira do evangelho de João, bem como o conjunto das tradução da Bíblia, composto de centenas de especialistas do texto original grego, apontam em consenso pleno para se traduzir que a Palavra era Deus, porque a Palavra tinha a mesma natureza de Deus. Mesmo versões heterodoxas, que traduzem diferente, além de poucas, não foram feitas para contestar a divindade de Jesus como igual em divindade ao Pai, como pode ser visto abaixo. As poucas traduções que fogem da linha ortodoxa, incluindo a Bíblia das Testemunhas de Jeová, são as seguintes, com os respectivos comentários:

  • Tradução do Novo Mundo (TNM, Testemunhas de Jeová) — traduz João 1:1c como: “and the Word was a god.” (Pt.: “e a Palavra era um deus”)
    Comentário: Para as TJs, o Logos não é o Deus Todo-Poderoso, mas um ser divino distinto, um outro deus, e a própria literatura oficial das Testemunhas de Jeová apresenta essa escolha como deliberada, amarrada à leitura que fazem do grego anartro (theos sem artigo).

  • The New Testament in an Improved Version (1808, associada ao círculo unitarista inglês) — aparece citada como vertendo João 1:1c com artigo indefinido (“…was a god” / “era um deus”).
    Comentário: diferentemente de traduções confessionais trinitárias, esse tipo de redação costuma caminhar junto de projetos unitaristas, onde a linguagem do verso é acomodada para não identificar o Logos com o Deus absoluto no mesmo sentido do “God” precedente.

  • The New Testament in Greek and English (A. Kneeland, 1822) — também é listada como traduzindo João 1:1c com artigo indefinido (“…was a god” / “...era um deus”).
    Comentário: o ponto aqui não é apenas gramática: a forma inglesa escolhida tende a produzir, no ouvido do leitor, uma hierarquia ontológica (um “deus” derivado), que se ajusta melhor a leituras subordinacionistas/anti-nicenas do que à linguagem trinitária clássica.

  • Moffatt (James Moffatt) — é explicitamente lembrada em notas textuais como traduzindo o trecho com linguagem qualitativa: “the Word was divine.” (Pt.: “a Palavra era divina”)
    Comentário: isso não implica, por si só, unitarismo; pode ser uma tentativa de dizer “da ordem do que Deus é”, sem confundir “pessoa” e “natureza”. O próprio Moffatt era um ministro ordenado no contexto da Igreja da Escócia (matriz historicamente trinitária), o que reforça a necessidade de separar opção tradutória de rótulo confessional automático. 

  • New English Bible (NEB) — é citada em literatura acadêmica com a famosa paráfrase explicativa: “What God was, the Word was.” (Pt.: “O que Deus era, a Palavra era.”)
    Comentário: a frase tenta preservar duas coisas ao mesmo tempo: (1) o Logos não é o mesmo “Deus” pessoal mencionado em “com Deus”, e (2) o Logos possui tudo aquilo que constitui a realidade divina (“o que Deus era, o Verbo era”). Assim, ela protege o leitor do “dois deuses” sem diluir a afirmação de deidade. (Repositório Divinity)

  • NET Bible — traduz João 1:1c como: “and the Word was fully God.”
    Comentário: aqui a própria nota do tradutor declara a intenção: evitar que “divine” soe fraco/ambíguo no inglês contemporâneo, e ao mesmo tempo deixar claro que há distinção pessoal entre “the Word” e “God” em “the Word was with God”, preservando uma leitura explicitamente compatível com a confissão trinitária.

  • David Bentley Hart, The New Testament: A Translation — verte com contraste tipográfico: “and the Logos was god” (com “GOD” [“DEUS”] na ocorrência anterior e “god” [“deus”] em minúscula aqui). (No Other Foundation)
    Comentário: não é a mesma estratégia das Testemunhas de Jeová (que inserem “a god” / “um deus”); Hart tenta “mostrar no papel”, pela capitalização, a diferença entre a referência com artigo e a ocorrência anartro, como um modo de manter o leitor atento ao relevo gramatical do grego sem forçar um artigo indefinido.

João 1:2 

Ele estava no princípio com Deus. (Gr.: Houtos ēn en archē pros ton theon — Tradução literal: “Este existia no princípio voltado para Deus.”) Em João 1:2, a repetição não é redundância: ela firma que essa Palavra “estava... com Deus” desde o princípio, ou seja, não é uma presença ocasional, nem um plano improvisado; é uma comunhão constante, anterior a qualquer mundo. O Antigo Testamento já acostuma o coração a pensar em Deus como eterno, “de eternidade a eternidade”, como em Salmos 90:2, e João está dizendo que a história da salvação começa dentro dessa eternidade, não dentro do nosso caos. Quando Jesus fala de uma glória que ele teve “junto” do Pai “antes que houvesse mundo”, em João 17:4-5, ele mesmo puxa esse fio: o amor e a comunhão entre Pai e Filho não nascem da criação; a criação nasce sob esse amor. E isso chega em nós de modo bem concreto: a vida cristã não é uma espiritualidade solitária, mas um chamado para comunhão real com Deus, como 1 João 1:3 descreve; e, por consequência, quando a consciência treme e a culpa acusa, a segurança não está na sua força, mas no amor de Deus “em Cristo Jesus”, do qual nada pode separar, como em Romanos 8:38-39. Como aplicação pastoral, isso convida a praticar uma fé que volta sempre ao mesmo ponto: oração sem fingimento, perseverança sem heroísmo, e esperança sem desespero, porque o fundamento da sua vida com Deus não é você “dar certo”, mas Deus ser Deus e ter se aproximado de nós de forma definitiva.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

A repetição de “no princípio” reativa o mesmo archē (“princípio”) já descrito: e aqui é útil notar, por etimologia-formação e por tradição de uso, como o grego secular gosta de cristalizar archē (“princípio”) em locuções temporais com preposições — o léxico documenta, por exemplo, ex archēs (“desde o princípio”, “desde o começo”), fórmula amplamente atestada em autores gregos; assim, “en archē” (“no princípio”) se alinha naturalmente a uma família antiga de expressões em que a “origem” vira quase um lugar linguístico, uma espécie de marco fixo no mapa do tempo. E “com Deus” traz novamente theon (“Deus”): mesmo sem entrar além da etimologia, o dado lexical decisivo é que theos (“Deus”) é palavra de circulação pan-helênica e antiquíssima, já existente no tecido épico e continuamente reaproveitada; por isso ela pode, num texto tardio, ressoar ainda com ecos seculares — não por depender deles, mas por carregar, na memória do idioma, o lastro de séculos de nomeação do divino. 

O demonstrativo houtos (“este”) é pronome, nominativo masculino singular, funcionando como sujeito explícito e retomando anaforicamente o referente imediatamente estabelecido pelo sintagma sujeito anterior ho logos (“o palavra”), agora condensado em uma forma deíctica resumptiva; a predicação é novamente feita por ēn (“era”), imperfeito do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, mantendo o mesmo eixo verbal do período. O sintagma en (“em”) + archē (“princípio”), com en (“em”) regendo dativo, volta a operar como adjunto adverbial de esfera temporal, ligado ao verbo ēn (“era”) e reinstalando a mesma moldura de localização “no âmbito de” um começo, e o complemento pros (“para”) + ton (“o”) + theon (“Deus”), com pros (“para”) regendo acusativo, reaparece como predicação relacional orientada, dependente sintaticamente do verbo copulativo e formalmente marcada pela cadeia preposição + acusativo + artigo. Exegeticamente, ainda em chave estritamente formal, o versículo 2 funciona como sentença de reencadeamento: ao substituir o sujeito pleno por houtos (“este”) e ao repetir, sem variação estrutural, en archē (“em princípio”) e pros ton theon (“para o Deus”), o texto fecha a unidade sintática do versículo 1 por coesão anafórica e reforço paralelístico, amarrando as duas predicações (moldura temporal + relação orientada) ao mesmo referente, antes de avançar para novos predicados no fluxo do prólogo.

B. Versões Comparadas

João 1:2, na convergência mais simples, NASB 1995/ESV/NRSV seguem com sujeito pessoal e repetem o quadro: “He was in the beginning with God.” (Pt: “Ele estava no princípio com Deus.”). ASV/KJV mantêm um inglês mais arcaico, mas sintaticamente anafórico: “The same was in the beginning with God.” (Pt: “O mesmo estava no princípio com Deus.”). YLT, por sua vez, é o que mais “encosta” na forma do demonstrativo grego houtos (“este; este mesmo”), preferindo equivalência deíctica: “this one was in the beginning with God;” (português: “este estava no princípio com Deus;”). CEV substitui o demonstrativo por repetição nominal e expande en archē com uma locução temporal: “From the very beginning / the Word was with God.” (Pt: “Desde o princípio, a Palavra estava com Deus.”). O ganho aqui é de clareza imediata, mas o custo formal é duplo: a troca de houtos (“este”) por “the Word” e a ampliação de en archē (“no princípio”) para “From the very beginning”, que desloca o foco do sintagma preposicional para uma locução temporal interpretativa.

Em português, ARA/ACF preservam o sujeito masculino que corresponde melhor ao demonstrativo do grego (e ao encadeamento joanino que personaliza o referente): “Ele estava no princípio com Deus.” NTLH opta por repetição nominal e, com isso, evita a decisão de gênero pronominal: “Desde o princípio, a Palavra estava com Deus.” NVI, ao alinhar o pronome ao gênero gramatical de “Palavra”, produz: “Ela estava com Deus no princípio.” — uma solução natural em português, mas mais distante do valor demonstrativo masculino de houtos (“este”), que em grego não está “amarrado” ao gênero do equivalente português de logos e, no contexto, funciona como retomada de um referente pessoal já instalado no discurso. NVT mantém o sujeito pessoal e reforça a ideia de continuidade: “Ele existia no princípio com Deus.”

C. Interpretação Teológica

Em João e nas Epístolas joaninas, o plural neutro com artigo ta panta (“todas as coisas”) nunca aparece. Em contraste, panta (“todas as coisas”) sem artigo ocorre em várias ocasiões com referência à obra de Jesus na terra (notavelmente em 3.35–36; 5.20; 13.3; 16.15; 17.7, 10; e especialmente 19.28). Em segundo lugar, surge a expressão di’ autou (“por meio dele”). Em todo o restante de João, dia (“por meio de”) com genitivo, quando aplicada a Cristo, remete ao seu papel mediador na obra da salvação (ver especialmente 3.17; 10.9; 14.6; 1 Jn 4.9; e, acima, sobre este versículo, sob 1). Em terceiro lugar, o verbo ginesthai (“tornar-se”, “acontecer”) ocorre três vezes neste versículo, cada vez com um sujeito neutro e indeterminado (panta [“todas as coisas”], oude hen [“nem uma”], ho [“o que”]). Sempre que essa construção aparece em outros pontos de João, ginesthai aplica-se a um evento histórico, que ou aconteceu, ocorreu (1.28; 3.9; 13.19 [x2]; 14.22, 29 [x2]; 19.36) ou que ocorrerá, virá a acontecer (15.7). O versículo 3, assim entendido, significaria então que cada evento, sem exceção, na história da salvação prestes a se desdobrar, acontece somente por meio do Logos, e que nada ocorre independentemente dele. Alguns acrescentam, como argumento final e confirmatório, que, nessa leitura, o Prólogo ficaria moldurado por uma dupla inclusio, com egeneto (“aconteceu”, “tornou-se”) duas vezes no início em 1.3 e duas vezes ao final (1.14, 17), em cada caso referindo-se a eventos históricos.

O mesmo (houtos [“este”]) significa literalmente “este”, aquele que foi nomeado primeiro, ou seja, a Palavra no v. 1. Quando o texto diz que a Palavra “estava no princípio com Deus”, fica evidente que os elementos dessa afirmação foram apresentados separadamente: a Palavra, o ser eterno da Palavra e sua comunhão ativa com Deus; aqui, eles se unem e ganham nova força. Essa mesma Palavra/Verbo não apenas era coeterno com Deus quanto ao ser (ēn [“era”]), mas estava eternamente em comunhão ativa com Ele (“no princípio com Deus”: pros ton theon [“com Deus”]). Note-se que aqui theon (“Deus”) vem com artigo, como na segunda proposição, onde Deus é mencionado de forma absoluta. 

Este versículo forma o ponto de transição entre a discussão do ser pessoal da Palavra e sua manifestação na criação. Se foi essa mesma Palavra, e nenhuma outra, que era Ela própria Deus e que, desde toda a eternidade, estava em comunhão ativa com Deus, então se segue naturalmente a afirmação de que todas as coisas foram criadas por meio dele, conectando a natureza essencial do Verbo/Palavra à sua manifestação na criação. Como a ideia do Verbo envolve conhecimento e vontade, sabedoria e força, a função criadora lhe é própria; daí sua estreita relação com as coisas criadas, especialmente com o ser humano, preparando o caminho para a encarnação e a obra redentora. A ligação entre criação e redenção é mais íntima do que comumente se percebe, pois ela está insinuada nas palavras de Isaías 46:4, “eu o fiz, e eu vos levarei.” (ARC) A redenção nasce do compromisso que a criação inaugura: porque Deus criou o ser humano à sua imagem, Ele se comprometeu com a restauração dessa imagem através da Palavra encarnada; porque Deus fez o ser humano, Ele o ama, o educa, o sustenta e o ampara ao longo da história, conduz a humanidade com paciência ativa, assume o peso de sua perversidade e cegueira, e manifesta esse compromisso de modo decisivo na encarnação e na obra redentora de Jesus Cristo. A redenção não é um acréscimo estranho à criação, mas a expressão histórica do vínculo que a criação já havia estabelecido.

João 1:3 

Todas as coisas vieram a existir por meio dele; e, sem ele, não veio a existir sequer uma coisa do que veio a existir. (Gr.: panta di’ autou egeneto, kai chōris autou egeneto oude hen ho gegonen — Tradução literal: “Todas as coisas vieram a existir por meio dele, e sem ele não veio a existir nem uma [coisa] que veio a existir.”) Aqui o apóstolo afirma duas coisas bem diretas: primeiro, que “todas as coisas” vieram a existir “por intermédio dele”; segundo, que “sem ele” não existe nem uma exceção, nada do que passou a ser pode ser entendido como autônomo ou independente. Isso coloca Jesus no centro não só da fé, mas do próprio fato de haver mundo, história e vida: o Deus que, “no princípio”, cria os céus e a terra não está distante de sua obra, porque a criação acontece segundo a sua própria Palavra atuando de modo eficaz, como o Antigo Testamento já canta quando diz que “os céus por sua palavra se fizeram”. (Gênesis 1:1) E o Novo Testamento retoma exatamente essa linha quando declara que “tudo foi criado por meio dele e para ele” e que “nele, tudo subsiste”, deixando claro que a criação não é só um evento passado, mas uma dependência contínua. (Colossenses 1: 16, 17) Na prática, isso muda o chão da vida cristã: a existência não é um acidente frio, e a fé não é um “acréscimo” sentimental sobre um universo neutro; é reconhecer que até o fôlego e o tempo estão sob uma mediação pessoal que não nos abandona, o que dá reverência e confiança para trabalhar, sofrer, agradecer e resistir à ansiedade, porque o mesmo Deus que “fez o universo” por meio do Filho também governa a história e sustenta o que criou. (Hebreus 1:12)

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

Na abertura, panta (“todas as coisas”) é a forma neutra plural de pas (“todo”), e, por ser neutro plural, pode funcionar como um “todo coletivo” que se apresenta como sujeito de um verbo no singular, sublinhando a totalidade como unidade abrangente, não como mera soma de itens. O eixo verbal é egeneto (“veio a existir”), forma do verbo ginomai (“tornar-se”, “vir a ser”, “acontecer”), aqui como verbo, aoristo, indicativo, médio (deponente), terceira pessoa do singular, com valor perfectivo: olha-se o vir-a-ser do conjunto da criação como fato completo, visto “de fora”, não como processo em desenvolvimento. A locução di’ autou (“por meio dele”) nasce de dia (“por meio de”) regendo genitivo, construção que, na sintaxe grega, exprime mediação/instrumentalidade (o “canal” pelo qual algo se efetiva), e não mera proximidade; por isso o genitivo pronominal autou (“dele”), pronome pessoal de terceira pessoa, genitivo, masculino, singular, é o termo dependente direto da preposição, marcando agência mediadora em vez de origem impessoal. 

A segunda meia-frase reforça por negação total: chōris autou (“sem ele”) usa chōris (“separado de”, “à parte de”, “sem”) como preposição de separação, novamente prendendo-se ao genitivo autou (“dele”) para declarar exclusão absoluta de qualquer exceção; em seguida, oude hen (“nem um [só]”) combina a partícula negativa coordenativa oude (“e nem”) com o numeral hen (“um”), neutro, singular, funcionando substantivamente como “uma coisa sequer”, e prepara o relativo neutro ho (“o que”), nominativo, singular, sujeito de gegonen (“veio a existir”, “passou a existir”), verbo, perfeito, indicativo, ativo, terceira pessoa do singular, cujo perfeito traz a nuance de estado resultante: aquilo que “veio a ser” permanece como “o que existe como feito”. 

Sintaticamente, a coordenação com kai (“e”) não apenas soma cláusulas; ela encadeia uma afirmação positiva universal (panta… egeneto) a uma negação universal sem resíduo (chōris… oude hen…), de modo que a segunda cláusula funciona como cerca lógica da primeira: não se trata de dizer apenas que ele participou do fazer, mas que nada entra na esfera do “feito/existente” fora dessa mediação. Na comparação de versões, nota-se que algumas traduzem egeneto com linguagem de “fazer/criar” (por exemplo: “Por meio dele Deus criou todas as coisas, e sem ele nada foi criado.”), enquanto outras preservam o matiz de “vir a existir” (“Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito.”); ambas captam a universalidade, mas a segunda mantém mais visível que o verbo grego é o de “passar a ser”, não apenas o de “fabricar”, o que dialoga com o alcance ontológico do enunciado. 

A frase estabelece que tudo quanto pertence ao domínio do criado está do lado do “tornou-se”, e que o mediador está do lado daquele por meio de quem o “tornou-se” acontece; por isso a cláusula negativa não é redundância retórica, mas delimitação metafísica: a existência criada, em qualquer ordem e escala, é dependência, e essa dependência é mediada “por meio dele”, em sintonia com afirmações como Colossenses 1:16 e Hebreus 1:2, onde a criação é atribuída ao Filho como agente, e em contraste com qualquer leitura que o inclua entre as coisas que “vieram a ser”.

B. Versões Comparadas

O enunciado original grego afirma que tudo quanto entrou no âmbito do “feito/existente” o fez por mediação da Palavra, e reforça isso por negação total: nada do que veio a ser pode ser explicado à parte dela. Por isso, versões que preservam bem a ideia de surgimento/vir-a-ser do que foi criado (em vez de apenas “fabricar”) ficam mais aderentes ao peso do verbo de “tornar-se/existir” na frase: a NASB1995 diz “All things came into being through Him” e depois mantém a repetição negativa com “apart from Him nothing came into being that has come into being” (Pt: “Todas as coisas vieram a existir por meio dele… e, à parte dele, nada veio a existir do que veio a existir”). A NRSVUE segue o mesmo caminho, “All things came into being through him, and without him not one thing came into being”, e ainda deixa exposta a dificuldade de pontuação na sequência ao isolar “What has come into being…”, sinalizando a disputa sobre se essa oração final fecha o versículo 3 ou abre o 4 (Pt: “Tudo veio a existir por meio dele…; e, sem ele, nem uma só coisa veio a existir. O que veio a existir…”). 

Já ESV e KJV preferem o campo semântico de “fazer” e conservam a cadência clássica: “All things were made through him” e “without him was not any thing made that was made” (Pt: “Todas as coisas foram feitas por meio dele… e, sem ele, nada foi feito do que foi feito”). A ASV é quase irmã dessa forma, mas troca o fechamento para “that hath been made”, fazendo a última oração soar mais explicitamente ligada ao conjunto do que “tem sido feito” (Pt: “que tem sido feito”). A NIV mantém “made”, porém marca o perfeito (“that has been made”), o que se encaixa bem com a ideia de resultado permanente do que foi trazido à existência (tradução minha: “que tem sido feito”). A YLT tenta ser extremamente literal na ordem e no encadeamento, mas em inglês fica áspera: “all things through him did happen… happened not even one thing that hath happened” (Pt: “todas as coisas… aconteceram… não aconteceu nem uma coisa…”), o que ilumina a força da negação total, ainda que o verbo “happen” desloque um pouco o sentido criacional para o registro de “ocorrer”. 

A GNT/GNB e a CEV tornam explícito “God” e condensam: “Through him God made all things; not one thing… was made without him” e “God created all things. Nothing was made without the Word” (Pt: “Por meio dele Deus fez/criou…”), o que ajuda leitores leigos, mas se afasta do nível de “somente o que está dito” no grego ao inserir o sujeito “Deus” nessa oração. Entre as versões em português, ARA e NVI ficam muito próximas da ideia de mediação (“por intermédio dele”) e preservam a dupla afirmação/negação: a ARA diz “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele” e “sem ele, nada do que foi feito se fez”, e a NVI diz “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito” (tradução e tom levemente distintos na segunda metade). A ACF, ao escolher “por ele”, fica um pouco mais ambígua (pode soar como “agente direto” em português), embora ainda seja teologicamente compatível e tradicional: “Todas as coisas foram feitas por ele…”. A NTLH e a NVT, como já é do estilo delas, explicitam “A Palavra” e “Deus” e simplificam a negação: “Por meio da Palavra, Deus fez todas as coisas…”, “Por meio dele Deus criou todas as coisas…”, ganhando clareza catequética, mas interpretando mais do que simplesmente espelhando a forma do período.

C. Interpretação Teológica

A expressão “todas as coisas” — panta — “vieram a existir”, foi entendida, desde o século II, como referência à criação. Pollard, art. cit., porém, entende que a expressão pode apontar de modo mais amplo para todas as ações externas de Deus, inclusive a história da salvação, porque o Quarto Evangelho não estaria interessado em cosmologia; ainda assim, convém lembrar que o Prólogo teve uma história própria, em certa medida independente do Evangelho, e nem sempre pressupõe a mesma teologia do restante da obra. De todo modo, “todas as coisas” é mais abrangente do que “o mundo”, a esfera humana que aparecerá em João 1:9–10, e o verbo “vieram a existir” é egeneto (“veio a ser”, “passou a existir”), usado de modo consistente para criação na LXX de Gênesis 1. A frase “à parte dele” também carrega peso: Boismard, p. 11, insiste que “sem ele” não traduz bem, porque não se trata apenas de causalidade, mas de presença implicada.

A articulação entre João 1:3b e João 1:4 é, desde cedo, disputada por uma questão de pontuação. Há quem divida assim: “e à parte dele não veio a existir nem sequer uma [coisa] que veio a existir; em/ nele havia vida”, isto é, fazendo com que a cláusula “que veio a existir” feche João 1:3, e não inaugure João 1:4. Essa divisão alternativa aparece na Vulgata Clementina e, segundo Mehlmann, “De mente”, teria sido a divisão do próprio Jerônimo (com uma exceção); De la Potterie, “De interpretatione”, porém, sustenta que Jerônimo só mudou para essa divisão por volta de A.D. 401, com finalidade apologética. A maioria dos comentaristas modernos adota a divisão tradicional, que põe “o que veio a existir” no início de João 1:4. Tentando mostrar que a divisão tradicional é a mais antiga, Boismard, p. 14, reúne uma lista expressiva de patrísticos que a usaram e propõe que a alternativa só teria surgido no século IV como apologética antiariana: os arianos explorariam a leitura “o que veio a existir nele era vida” para sugerir que o Filho teria sofrido mudança e, portanto, não seria plenamente igual ao Pai; para neutralizar isso, os Pais “ortodoxos” prefeririam a pontuação alternativa, removendo o terreno do argumento. Essa reconstrução não é aceita por todos: Mehlmann, “A Note”, tenta mostrar que a alternativa é pré-ariana, e Haenchen sugere que a pontuação tradicional teria surgido em meio gnóstico. Ainda assim, o caráter poético do Prólogo favorece a divisão tradicional, porque o paralelismo tende a fazer o fim de uma linha encaixar no começo da seguinte; assim, o “veio a existir” no fim de João 1:3 combina com o “tinha vindo a existir” no início de João 1:4. Soma-se a isso um paralelo sugestivo em Qumran para João 1:3b (1QS 11.11): “E por seu conhecimento, tudo veio a existir, e por seu pensamento ele dirige tudo o que é, e sem ele não se faz [ou não se faz/produz] nem sequer uma [coisa]”. 

Quando se lê João 1:4a como “o que tinha vindo a existir nele era vida”, surgem dificuldades severas, e elas aparecem em cinco frentes. A primeira é a própria expressão “o que tinha vindo a existir”: o Prólogo sai do aoristo egeneto (“veio a existir”), usado duas vezes em João 1:3, e passa ao perfeito gegonen (“tinha vindo a existir”), e alguns entendem isso como tentativa de formular genericamente o ser criado, “tudo aquilo que veio a existir”; mas, em geral, a forma do verbo no perfeito carrega ênfase de duração e resultado, algo ocorrido no passado cujo efeito permanece no tempo da fala. A segunda dificuldade é se “nele” se deve entender como “nele” ou “nisso/ nele (isto é, ‘nela’, ‘na coisa’)”: Van Hoonacker (1901) e Loisy (1903) propuseram que a frase fosse “nela/ nisso”, como um caso de deslocamento, retomando “o que veio a existir”, resultando em “O que veio a existir, nisso havia vida”; a tradução, porém, cria problemas: se a intenção fosse realmente retomada demonstrativa, seria mais normal en toutō (“nisso”), e a palavra “vida” não tem artigo, de modo que deveria funcionar como predicativo, não como sujeito. O paralelismo em escada reforça que “vida”, em João 1:4a, tende a soar como predicativo, porque o predicativo em 4a se tornaria sujeito em 4b. 

A terceira dificuldade é onde associar “nele” quando se mantém a leitura “nele”: ou “o que tinha vindo a existir era vida nele”, ou “o que tinha vindo a existir nele era vida”. Muitos estudiosos modernos aceitam a primeira, “era vida nele”, alinhando-se com Eusébio, Cirilo de Alexandria, Agostinho e a maioria dos Padres latinos. Mas essa leitura costuma exigir que “o que tinha vindo a existir” seja tomado no mesmo sentido de “todas as coisas” de João 1:3, isto é, como a totalidade da criação; o problema é que João 1:4b, ao dizer que “esta vida era a luz dos homens”, sugere que não é a criação inteira, mas criaturas vivas ou, mais provavelmente, os seres humanos que estão em foco por “o que tinha vindo a existir” em 4a. Além disso, o verbo fica estranho, e muitos acabam recorrendo a paráfrases (“encontrou vida”, “estava vivo”); até mesmo o tempo verbal pareceria pedir um presente, “está vivo nele”. Por essas razões, Lacan e Vawter consideram a tradução demasiadamente áspera. Se o autor do Prólogo quisesse expressar o teor do hino em Colossenses 1:17 (“Nele todas as coisas subsistem”), teria escolhido um caminho obscuro demais. Já Orígenes, Hilário, Ambrósio e os Padres gregos mais antigos aceitaram a segunda: “o que tinha vindo a existir nele era vida”, que seria a leitura normalmente indicada pela posição de “nele” em grego. Nessa leitura, “o que tinha vindo a existir nele” não trata de mudança dentro do Logos nem da pré-existência de ideias divinas no Logos; antes, seguindo João 1:3, a cláusula estreita o foco: João 1:4 não vai falar de toda a criação, mas de uma criação “especial” no Logos.

A quarta dificuldade é se o verbo em João 1:4a deveria ser “era” ou “é”. Há evidência textual respeitável para um presente, mas ambos os papiros Bodmer apoiam o imperfeito; o mesmo tempo verbal é exigido nas duas linhas de João 1:4, e a evidência pelo imperfeito em 4b é esmagadora, embora Boismard, p. 12, preferisse corrigir e ler presente em ambas. A hipótese sugerida é que o imperfeito era original em 4a, mas alguns copistas o mudaram para presente porque se ajustava melhor à leitura “o que veio a existir é vida nele”. A quinta dificuldade é o sentido de “vida”: vida natural ou vida eterna? Se o sujeito de 4a é a criação inteira, “vida eterna” seria inadequada; se, porém, como se propõe, há um aspecto especial da criação em vista, isto é, criação no Logos, então “vida eterna” se torna apropriada. A palavra “vida” — zōē (“vida”; ver App. 1:6) — nunca significa vida natural em João ou nas Epístolas joaninas. A identificação dessa vida como “luz dos homens” em 4b reforça que se trata de vida eterna; no Prólogo de 1 João 1:2, “vida” é explicitada como “vida eterna”. Em João 1:4b, “esta vida era a luz”, e alguns inverteram sujeito e predicativo (“a luz dos homens era esta vida”), apelando a João 8:12 (“a luz da vida”); a discussão aparece em Boismard, pp. 18–19. Mais uma vez, o paralelismo “em escada” favorece “luz” como predicativo, pois ela se torna sujeito no versículo 5, e o simbolismo da luz se liga a Gênesis 1.

A expressão ho gegonen (“o que veio a existir”, “o que foi feito”) pode ser lida com o que precede ou com o que segue. A preferência por ligá-la ao que precede se apoia em razões específicas, como já observamos, e a maioria dos comentaristas, incluindo Morris 1995, p. 66; Carson 1991, p. 137; Haenchen 1984, pp. 113–14; Schnackenburg 1970, pp. 239–40; Barrett 1978, pp. 156–57. Entre as traduções que interpretam ho gegonen com o que precede estão a NASB, NIV, NKJV, ISV, NLT, HCSB, ESV e TNIV, preferem esta leitura. De resumo, podemos manter em mente três pontos para isso: (1) “sem ele nada foi feito do que foi feito” fecha o pensamento de João 1:3 por uma reafirmação enfática do inverso; a alternativa “O que foi feito nele era vida” beira a ininteligibilidade. (2) João frequentemente inicia uma sentença ou cláusula com en (“em”) mais um pronome demonstrativo (cf. João 13:35; João 15:8; João 16:26). (3) A teologia joanina em outros lugares favorece associar a frase ao que precede (João 5:26, 39; João 6:53; cf. 1 João 5:11).

O impulso do versículo aponta para criação, não para encarnação (Ridderbos 1997: p. 37; Carson 1991: p. 118). O autor do evangelho afirma com ênfase que “tudo deve sua existência ao Verbo” (Morris 1995: p. 71). Repetir uma cláusula negando o contrário é um procedimento recorrente em João (por exemplo, João 1:12–13; João 1:20; João 3:16–17; João 3:36; cf. Morris 1995: 71). O perfeito gegonen (“foi feito”, “veio a existir”, com efeito estabelecido) sublinha o efeito permanente do egeneto (“foi feito”, “vieram a existir”) usado antes no versículo, indicando “a existência continuada das coisas criadas” (Morris, ibid., 1995, p. 71; cf. Ridderbos 1997: 37 n. 62).

A palavra grega panta (“todas as coisas”, “tudo”), em sentido distributivo, em contraste com ta panta (“todas as coisas” coletivamente), pode se referir ao conjunto como “o universo” ou “o mundo” (o kosmos (“mundo”) de João 1:10, segunda ocorrência). Assim, o “tudo” que veio à existência por meio de Cristo abrange criação animada e inanimada, todos os âmbitos do criado, incluindo hostes angélicas, mas, evidentemente, excluindo Deus. Ainda assim, permanece possível que a cláusula aponte para a mediação do Logos em todas as ações externas de Deus — Criação, Revelação e Salvação —, como em “todas as coisas aconteceram por meio dele”; T. E. Pollard, Johannine Christology and the Early Church (Cambridge: Cambridge University Press, 1970) pp. 14–15. A preposição “por meio de” — dia (“por meio de”) — frequentemente exprime agência mediata (por exemplo, 1 Coríntios 8:6; Gálatas 3:19), mas pode também indicar não um intermediário entre Deus e a matéria, e sim agência, chegando a exprimir a causa principal. Romanos 11:36 descreve o Pai como fonte (ek [“de”]), causa (dia [“por meio de”]) e alvo (eis [“para”]) de toda a criação; Harris 70, 73. Por isso, como observa Zerwick (§113), quando o papel de Cristo como criador (por exemplo, João 1:3, 10) ou redentor (por exemplo, Romanos 5:9) é expresso por dia (“por meio de”), a ideia de mediação pode não ser proeminente; aqui, longe de retratar Cristo como intermediário entre um Deus infinito e santo e uma matéria finita e impura, João o apresenta como o Agente que fez com que todas as coisas existissem.

Em João 1:3b–4a, além de egeneto (“veio a existir”), aparece “à parte de” como chōris (“sem”, “à parte de”), uma das 42 “preposições impróprias” do Novo Testamento, das quais todas, exceto três (ἅμα, παραπλήσιον, ἐγγύς [duas vezes] + dativo), regem o genitivo; aqui, “dele” está em genitivo. A expressão “nem sequer uma [coisa]” pode ser lida como equivalente a “nada”, mas é mais enfática: “nem sequer uma coisa”, “nenhuma coisa sequer” (R 751), e o NEB captura isso com “no single thing”. O pronome relativo “o que” é ho (“o que”), nominativo singular neutro do relativo hos, hē, ho (“que”), e “tinha vindo a existir/ veio a existir” é gegonen (“veio a ser”), terceira pessoa do singular, perfeito, indicativo, voz ativa, do verbo ginomai (“vir a ser”, “tornar-se”); ele expressa o estado de “criaturalidade” (“entrou em existência”) que resulta do ato criador do Logos expresso por egeneto (“veio a existir”), embora alguns o trate como um “perfeito aorístico” (“veio a existir”) em narrativa (cf. Moulton pp. 145–46). Em João 1:3b, a afirmação positiva de 1:3a é repetida por negação, com “nem sequer uma [coisa]” em contraste com “todas as coisas”; esse tipo de repetição por negação é traço do estilo joanino (ver João 1:20; 1 João 1:5).

As duas partes de João 1:3–4 exigem leitura conjunta porque a pontuação pode ser feita de duas maneiras. Uma possibilidade é parar após gegonen (“tinha vindo a existir”), traduzindo: “sem ele nada foi feito do que foi feito” (NIV), “sem ele nenhuma coisa criada veio a existir” (REB), ou ainda: “O que tinha vindo a existir por meio dele era vida”; é o caminho de KJV, RV, RSV, NASB, e também de Barrett 156–157; Haenchen 113–114; Schnackenburg 1.239–240; WH vol 2, Appendix 73–74; e de Metzger em Metzger 167–168, ainda que em dissenso com a visão majoritária do comitê UBS. A outra possibilidade é parar após “nem sequer uma [coisa]”, traduzindo: “O que veio a existir nele era vida” (NJB, NRSV), “Tudo o que veio a existir estava vivo com a vida dele” (NEB); é o caminho de JB, NAB1,2; e de Beasley-Murray 1, 2 note a; Brown 3, 6–7; WH; UBS1–5; Metzger 167; Turner, Insights 139, que formula: “Quanto ao que foi feito [‘nominativo pendente’], ele era sua vida”; e E. L. Miller, Salvation-History in the Prologue of John. The Significance of John 1:3/4 (Leiden: Brill, 1989): pp. 17–44. Mesmo assim, pode-se expressar preferência por associar ho gegonen (“o que veio a existir”) ao que precede por motivos cumulativos: João aprecia repetição (egeneto… ho gegonen; cf. João 1:1–2), e a redundância aparente se desfaz se ho gegonen (“o que veio a existir”) for vertido como “(nem sequer uma coisa) que existe” ou “em toda a criação” (GNB) ou “das coisas criadas” (BDF §342[1]); João também inicia com frequência um enunciado com en (“em”) + pronome (por exemplo, João 13:35; João 15:8; 1 João 2:3–5); além disso, a ideia de Jesus como fonte de “vida” é central em João (João 5:26, 39; João 6:53; João 14:6; João 20:31); e, na pontuação que coloca ho gegonen (“o que veio a existir”) no início de João 1:4, após o perfeito gegonen (“tinha vindo a existir”), esperar-se-ia zōē estin (“vida é”), e não ēn (“era”); o presente, de fato, é lido por א D. Ainda assim, o peso da erudição a favor da segunda pontuação mostra que o problema não está fechado. É pouco natural, porém, tomar ho gegonen (“o que veio a existir”) como sujeito de egeneto (“veio a existir”) e ler “nada” como acusativo de respeito: “O que foi feito não foi, em nenhum aspecto, feito sem ele.”

1. Contexto Histórico-Literário

O Logos de João — aproximado de Sabedoria/Torá — é descrito como agente criador, e esse papel pode também prefigurar sua obra na nova criação. Antes de comparar paralelos entre o Logos joanino e a tradição judaica de Sabedoria/Torá, é preciso percorrer alguns dos “fundos” propostos para o Logos criador de João 1:3. Quem lê João como antignóstico pode encontrar em João 1:3 material abundante: contra crenças gnósticas, Cristo sozinho é mediador da criação. No gnosticismo, emanações do Aeon primordial formariam o mundo material mau;[105] o criador seria geralmente o Demiurgo, distante da divindade original.[106] Se a literatura mandaica não fosse tão tardia, alguém poderia até ler a passagem de forma anti-mandaica, lembrando a posterior polêmica rabínica contra a ideia de Adão como agente divino na criação, tese do mandaismo tardio.[107] Mas a criação por mediação não é exclusiva de fontes gnósticas; em textos gregos, uma divindade suprema poderia criar outras divindades para auxiliar na criação.[108] Além disso, círculos judaicos conheciam a mediação na criação, como em Fílon;[109] a polêmica contra isso aparece em fontes rabínicas[110] e outras[111] sobre o envolvimento de anjos na criação. 

E a linguagem de João não sugere polêmica contra essa visão da mesma forma que Colossenses 1:16 sugere; percebe-se a falta de polêmica explícita contra uma visão “gnóstica” de criação no fato de que João não concorda com o gnosticismo de que a matéria é má112 nem enfatiza, em contrapartida, a posição judaica sobre a bondade da criação (1 Timóteo 4:4), embora a aceite (cf. João 1:14).[113] Ainda assim, para João, Jesus é o único mediador da criação, com ou sem polêmica contra outras pretensões; e o mundo grego compreendia bem a função instrumental divina de dia (“por meio de”) para a criação.[114] Outros veem ecos da doutrina estoica do Logos spermatikos (“gerador”, cf. MacGregor, John, 5 (accepting also the repeated “God said” of Gen 1 as background). Veja também Diogenes Laertius 7.1.147; Seneca Dial. 12.8.3) ou de outras concepções gregas da fonte do ser.[116] É possível comparar a linguagem de João com a linguagem anticriacionista de Demócrito (“Nada pode vir a existir a partir do que não é”, cf. Diogenes Laertius 9.7.44) e com Diogenes of Apollonius (Diogenes Laertius 9.9.57) — embora outros textos gregos[119] e especialmente os Manuscritos do Mar Morto ofereçam paralelos verbais não menos marcantes para João 1:3 (“à parte de seu conselho nada se realiza”; (1QS 11.11) “todas as coisas vêm a existir por tua vontade que são”; (1QS 11.18) “à parte de tua vontade nada se realiza”;(1QS 11.17) e assim por diante. Em João, porém, a finalidade é afirmar a identidade do Logos, não elaborar uma física do universo; por isso, mesmo quando a cosmologia joanina entra em choque com ideias gregas de um universo não criado, o ponto central permanece a atribuição da criação ao Logos.

Em Platão, o criador ordena o universo material conforme um modelo ideal, e o cosmos é moldado segundo um paradigma inteligível; Plutarco resume esse tipo de leitura com três princípios (matéria, paradigma e causa eficiente), e Plotino, mais tarde, enfatiza a emanação no modo de relação entre o Uno e o múltiplo. Esse pano de fundo pode contribuir indiretamente, sobretudo via Fílon, porque ajuda a imaginar Deus criando segundo um “mundo do intelecto” como padrão. Ainda assim, o problema de João não é provar que existe um criador — algo que se poderia extrair de uma discussão como Romanos 1:19–20 —, mas identificar o criador com Jesus. O debate grego sobre se a matéria sempre existiu ou não aparece em muitas frentes; escritores judeus, orientados por Gênesis 1, afirmam a criação do mundo, inclusive da matéria, embora variem entre falar em criação “a partir do nada” e falar em um caos primordial; em qualquer caso, Deus é a fonte do ser. Tradições samaritanas celebravam a criação, e alguns mestres judeus falavam de percepções místicas sobre ela; memórias rabínicas posteriores preservam ecos dessa valorização.

Fílon, por sua vez, fala de Deus formando o universo por meio do Logos e também sustentando a realidade por meio dele: o Logos pode ser razão divina, padrão inteligível, selo arquetípico; pode ser descrito como imagem, e a humanidade como cópia dessa imagem. Ao mesmo tempo, o Logos se aproxima do “Logos escrito”, isto é, da Torá: obedecer à Lei pode ser descrito como obedecer à razão e, por extensão, à ordem da natureza, num horizonte de judaísmo helenizado. Isso não significa que Fílon e João sejam idênticos; significa que circulavam, em um mesmo ambiente, formas de linguagem sobre mediação e criação. Mas Fílon não foi o primeiro judeu a sugerir um “padrão” na criação: já no século II a.C., autores judeus falavam de um desígnio prévio de Deus ancorado em conhecimento ou sabedoria. O Manual of Discipline de Qumran declara que “Todas as coisas vêm a existir por seu conhecimento e ele as sustenta [ou estabelece] por seu plano” (1QS 11.11; 4Q402 frg. 3–4, linhas 12–13), e isso aproxima o leitor de como uma mente judaica podia articular criação, conhecimento e vontade. Rabinos posteriores aplicaram a imagem platônica à Torá: Deus, como construtor, usou a Torah como arquiteto, consultando “planos” e “diagramas” nela. Alguns Tannaim sustentavam que Deus marcou cada pessoa com o selo de Adão (m. Sanh. 4:5). E, sobretudo, a tradição judaica explorou passagens do Antigo Testamento que já ensinavam a criação pela palavra (Gênesis 1; Salmos 33) ou pela Sabedoria (Provérbios 8).

A criação por Palavra, Sabedoria e Torá, portanto, não é um acréscimo tardio ao judaísmo, mas um desenvolvimento de seus próprios fios. Deus “falou” o mundo à existência em Gênesis 1, e os contemporâneos de João celebravam esse padrão: tanto autores não rabínicos[158] quanto Tannaim[159] diziam que Deus criou o mundo “somente por um ato de fala”; um título tannaitico para Deus era “Aquele que falou e convocou o universo à existência”.[160] Ainda que “essa fala” não tenha recebido automaticamente a conotação de “Logos” no sentido filônico e não tenha sido hipostatizada,[161] muitos veem no “princípio” de João 1:1 uma evocação do “começo” de Gênesis.[162] Textos também conectam criação pela palavra com criação pela sabedoria[163] ou pela Torah. Uma tradição antiga, exegeticamente engenhosa, relacionava os “dez ditos” pelos quais o mundo foi fundado (“E disse” ocorre dez vezes em uma porção do relato da criação)[164] aos Dez Mandamentos.[165] A partir de Provérbios 8, tornou-se natural atribuir a criação à Sabedoria divina, por exemplo, em Sabedoria 7:22 (Sabedoria como a technitis (“artífice”) de todas as coisas; cf. Hebreus 11:10).[166] E, se à Sabedoria, então também à Torah, sobretudo entre seus mais influentes intérpretes.[167] Não apenas o mundo foi criado por Palavra, Sabedoria e Torá, como foi sustentado por Palavra,[168] Sabedoria,[169] e Torah.[170] Rabinos posteriores interpretaram isso de modo prático: o mundo seria sustentado pela prática da Torah,[171] e, nesse sentido, pela justiça dos justos.[172] Assim, como sábios declaravam que o mundo foi criado por causa da Torá,[173] alguns também diziam que foi criado por causa dos justos,[174] ou de Israel[175] que praticaria a Torah; outros afirmavam que foi criado para a humanidade, e não o contrário.[176] 

O pensamento greco-romano também especulou sobre a finalidade da criação, se para deuses e mortais,[177] para a humanidade,[178] ou claramente não para esse fim.[179] Dentro desse panorama, João reafirma aquilo que os credos pré-paulinos mais antigos já afirmavam nas primeiras décadas da igreja: Jesus é o agente do Pai na criação (1 Cor 8:5–6; Col 1:15–17).[180] Como esses credos, João identifica Jesus com a Sabedoria encarnada; e, quando se recorda a discussão introdutória sobre antecedentes propostos para o Logos, torna-se claro por que “todas as coisas” — panta (“todas as coisas”) — em João 1:3 enfatiza a prioridade e, por consequência, a supremacia de Jesus sobre tudo o que é criado (João 3:35; João 13:3; cf. Apocalipse 4:11), portanto sobre toda a humanidade (João 17:2), quer essa humanidade reconheça ou não essa realidade (João 1:10–11).[181]

Tendo dito que o Verbo é Deus e proclamado sua essência divina, a sequência se volta a provar sua divindade por suas obras: “Having declared that the Word is God and proclaimed His divine essence, he goes on to prove His divinity from His works” (Calvin 1959: 9). A ideia de que “todas as coisas” foram feitas por meio da sabedoria ou mesmo por meio da palavra de Deus se ajustaria plenamente à crença judaica; o ponto específico aqui é que tudo — inclusive o kosmos (“mundo”) de João 1:10 (Bultmann 1971: 36) — veio a existir por meio dele, isto é, por meio de Jesus, Deus-feito-carne. Nessa formulação, o termo “por meio de” — dia (“por meio de”) — carrega agência secundária do Filho aqui e em João 1:10; João 1:17; João 3:17; João 14:6; 1 João 4:9 (Pollard 1977, pp. 366; Wallace 1996, pp. 434).

João 1:4

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. (Gr.: en autō zōē ēn, kai hē zōē ēn to phōs tōn anthrōpōn — Tradução literal: “Nele havia vida, e a vida era a luz dos seres humanos.”) João dá o passo seguinte e diz que “a vida estava nele” e que essa vida é “a luz dos homens”. Não é só que ele concede vida como um doador distante; a vida está nele como fonte e realidade presente, e por isso ela ilumina, isto é, torna Deus conhecido, revela o que é verdadeiro e também expõe o que é falso sem destruir o que precisa ser curado. Esse jeito de falar tem eco forte no Antigo Testamento, quando se confessa a Deus: “em ti está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz”, e também quando a promessa messiânica descreve um povo em trevas vendo “grande luz”. (Salmos 36:9) No próprio evangelho, Jesus se identifica como “a luz do mundo” e liga essa luz à vida de quem o segue, e, quando encara a morte de frente, ele se apresenta como “a ressurreição e a vida”, deixando claro que essa vida não é só melhora moral, mas uma realidade que atravessa a morte e vence a desesperança. (João 8:12) Uma aplicação pastoral (não uma afirmação histórica sobre cada caso individual) é que, para o cristão, caminhar com Cristo significa aprender a interpretar a própria história à luz dessa vida: não é negar dores, mas não deixar que elas ditem o sentido final; é buscar nele clareza para arrepender-se sem desespero, esperança sem ilusão e coragem para viver com honestidade diante de Deus e dos outros, porque a luz que ele dá não serve para humilhar, e sim para conduzir à vida.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

A frase começa com en autō (“nele”), em que en (“em”) rege dativo e delimita esfera/localização conceitual: a vida é afirmada “no interior” dele como âmbito próprio, não como algo apenas concedido externamente. O núcleo verbal é ēn (“era/estava”), verbo, imperfeito, indicativo, ativo, terceira pessoa do singular, que aqui não descreve um evento pontual, mas um estado contínuo no passado de referência do enunciado: vida como realidade já presente nele, não como algo que começou a existir nesse ponto. O sujeito explícito é zōē (“vida”), substantivo, feminino, singular, nominativo, termo que nos usos da prosa grega pode designar vida como princípio vital e também vida como modo de existência; e o predicado do segundo membro vem por equação: hē zōē (“a vida”) retoma com artigo (anaphórico) aquilo que já foi declarado, e to phōs (“a luz”), substantivo, neutro, singular, nominativo, com artigo, funciona como predicativo nominativo numa cópula com dois termos articulados, produzindo uma identificação forte (“a vida era a luz”), não mera qualidade vaga. 

O genitivo tōn anthrōpōn (“dos seres humanos”), genitivo, masculino, plural, lê-se com naturalidade como genitivo de relação/referência: a luz é definida em relação ao humano, isto é, luz “para” os humanos, luz que diz respeito à condição humana e a ilumina. Na comparação de versões, algumas tornam explícito o vínculo entre “vida” e “luz” com cadência mais interpretativa, mas quando preservam a estrutura equativa (“a vida era a luz”), deixam mais claro que o texto não está apenas descrevendo dois dons paralelos, e sim uma unidade: a vida que está nele manifesta-se como luz em relação aos humanos. Exegeticamente, o movimento do discurso é rigoroso: depois de declarar a mediação universal da existência criada, o texto afirma que a fonte da vida está nele e que essa vida tem forma reveladora para a humanidade — luz que torna visível, inteligível e habitável a existência; por isso o enunciado se encadeia organicamente com temas bíblicos em que vida e luz pertencem a Deus e ao seu agir salvador, como Salmos 36:9 (“na tua luz vemos a luz”) e João 8:12, sem transformar “vida” em abstração: trata-se da vida que, por estar nele, ilumina o humano e o reorienta para Deus. )

B. Versões Comparadas

João 1:4. Aqui o ponto sensível é que a vida não aparece apenas como algo “dado” por ele, mas como algo que “está nele”, e essa vida é apresentada como a luz dos seres humanos; por isso, traduções mais coladas ao enunciado tendem a manter a estrutura simples “In him was life” em vez de “ele foi a fonte”, ainda que as duas digam verdades compatíveis. ESV e KJV são bem lineares: “In him was life, and the life was the light of men” (tradução minha: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”). A NASB1995 fica na mesma linha (“In Him was life, and the life was the Light of men”), apenas com capitalização editorial de “Light” (tradução minha idêntica). A NIV mantém a forma “In him was life”, mas interpreta “men” como coletivo humano e verte “the light of all mankind” (tradução minha: “a luz de toda a humanidade”), o que tende a captar bem o alcance universal do plural sem ficar preso ao inglês antigo de “men”. A NRSVUE, coerente com sua política de linguagem inclusiva, explicita “all people”: “the light of all people” (tradução minha: “a luz de todas as pessoas”), que é uma atualização interpretativa do referente humano coletivo. 

A YLT mantém “men” e a mesma simplicidade (“In him was life...”), funcionando como um espelho mais rígido do inglês tradicional. Já GNT/GNB e CEV reformulam: “The Word was the source of life, and this life brought light to people” e “received its life from him, and his life gave light to everyone” (tradução minha: “foi a fonte... trouxe luz... recebeu vida...”), o que comunica bem, mas troca a forma “vida nele” por uma explicação de efeito (“fonte”, “receber”) que já é um passo além do enunciado curto. Em português, ARA e ACF preservam quase palavra por palavra a estrutura e o paralelismo: “A vida estava nele e a vida era a luz dos homens” (ARA) e “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (ACF). A NVI segue a mesma linha, só ajustando o demonstrativo (“e esta era a luz dos homens”), sem alterar o núcleo semântico. A NTLH e a NVT, por sua vez, fazem a explicitação típica: “A Palavra era a fonte da vida, e essa vida trouxe a luz para todas as pessoas” (NTLH) e “Aquele que é a Palavra possuía a vida, e sua vida trouxe luz a todos” (NVT), que ajudam a leitura devocional imediata, mas já interpretam “vida nele” como “fonte/possuir” e “luz dos homens” como “luz para todos”, em registro mais explicativo.

C. Interpretação Teológica

Do labor criador do Logos, João passa sem transição ao seu labor salvífico e o faz sem conectivo inicial, em quatro frases curtas, encadeadas do modo mais simples por três kai (“e”): nele havia vida; e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas; e as trevas não a venceram. As duas primeiras proposições caminham juntas porque repetem o mesmo verbo ēn (“era/estava”); a terceira segue com um presente, e a quarta se fecha com um aoristo, como quem imprime ao período um ritmo de afirmação, continuidade e choque.

João emprega o termo zōē (“vida”) cinquenta e quatro vezes, e ele se torna uma das palavras-chave do seu Evangelho. Aqui, na primeira afirmação, aparece sem artigo, o que reforça seu caráter qualitativo: no Logos havia “vida”, vida no sentido mais pleno e elevado, a vida eterna e bem-aventurada de Deus. O acento recai sobre a expressão que abre a frase: “nele” havia vida. Isso cria um contraste com todos os seres viventes que vieram à existência pelo ato criador do Logos: todos receberam vida, como dom que lhes chega de uma fonte superior; todos são, além disso, capazes de morte, e, embora alguns tenham escapado dela (os bons anjos), todo o restante caiu sob seu poder. No Logos, porém, “vida” não é presente recebido, mas atributo: uma vida correspondente ao seu próprio ser, inerente à essência, incapaz de dano, perda ou deterioração. Ainda assim, essa primeira proposição, referida ao Logos, não deve ser tratada como informação abstrata sobre um grande Ser; ela é preparação para o que vem depois e, por isso, tem relação direta conosco, porque os próprios termos “Logos” e “vida” olham para os que precisam dessa revelação, e tudo o que se diz nos versículos 4 e 5 — a primeira linha e as demais — é dito por nossa causa.

Como a afirmação de que a vida estava no Logos vem logo após a referência ao mundo criado, muitos acabam tomando zōē (“vida”) como simples “animação” de todas as criaturas vivas. Isso não se sustenta. Nos versículos 4 e 5 João não está predicando nada acerca das criaturas em geral; muitas delas não têm vida alguma, são inorgânicas e apenas existem sem viver. As que são animadas receberam sua animação quando foram chamadas à existência. Além disso, zōē (“vida”) em João nunca é usada para vida meramente criatural; seu perfil é sempre celeste e espiritual, não físico. Há maravilhas suficientes no Evangelho sem que se acrescente algo que o texto não pede, e convém lembrar que João escreveu não para filósofos especulativos e mentes teológicas “no alto”, mas para a igreja como um todo.

Muito se discutiu o verbo ēn (“era/estava”) e, em particular, o imperfeito. João escreve “nele estava vida”, e não, como alguém poderia esperar, “nele está vida”, isto é, sempre e para sempre, sem tempo, de eternidade a eternidade. Alguns tentam ler ēn (“era/estava”) como tempo histórico, amarrado a um período fixo do passado. Uma proposta diz que João se refere ao breve estado de inocência no Paraíso e constrói uma divisão entre o versículo 4 e o versículo 5, colocando a queda entre ambos. Mas o mero tempo verbal de ēn (“era/estava”) é base fina demais para sustentar essa arquitetura.

Outra proposta entende “era” historicamente como referência ao tempo da presença de Cristo na terra. Observa-se que o “era” vem depois dos dois aoristos “tornou-se/veio a existir” de egeneto (“veio a ser”) no versículo 3, e até depois do perfeito gegonen (“tinha vindo a existir”) com sua implicação de resultado presente. Argumenta-se também que o “era” da primeira sentença do versículo 4 recebe sua força do “era” da segunda sentença, e que este último diria respeito à manifestação de Cristo no mundo. Em apoio, citam-se João 9:5, “When I am in the world, I am the light of the world.”, e também João 12:46; João 12:35, 36; João 3:19. Concede-se então que luz e vida não se retiraram com a presença visível de Cristo e que, agora, é pelo Paráclito que chegam até nós. Apesar do raciocínio, ēn (“era/estava”) no versículo 4 não é um tempo histórico propriamente dito: as passagens invocadas se situam dentro do arco dos dois ēn (“era/estava”) do versículo 4, mas ninguém consegue demonstrar que elas esgotem a extensão temporal desses ēn (“era/estava”). Do mesmo modo, é impossível provar que esses dois imperfeitos devam ser posteriores aos dois egeneto (“veio a ser”) do versículo 3; e é claro que eles não podem ser posteriores ao perfeito gegonen (“tinha vindo a existir”).

A leitura mais popular é que os dois ēn (“era/estava”) recuam por todo o período do Antigo Testamento, e isso chega bem mais perto do centro do texto. Frequentemente, porém, essa ideia é ampliada para abarcar também o conhecimento natural de Deus deixado ao mundo pagão e os princípios morais ainda remanescentes entre povos gentios. É justamente aqui que se encaixa a advertência vigorosa preservada na citação: 

“Tem havido muita especulação insensata sobre como a Palavra de Deus, em sua divindade, poderia ser uma luz que naturalmente brilha e sempre iluminou as mentes dos homens, mesmo entre os pagãos. Portanto, a luz da razão foi enfatizada e fundamentada nesta passagem das Escrituras. Esses são todos pensamentos humanos, platônicos e filosóficos, que nos afastam de Cristo e nos levam para nós mesmos; mas o evangelista deseja nos conduzir para longe de nós mesmos e para Cristo… Ele não quer que dispersemos nossos pensamentos entre as criaturas que Ele criou, para persegui-Lo, procurá-Lo e especular sobre Ele como fazem os filósofos platônicos; mas Ele deseja nos afastar desses pensamentos vagos e abstratos e nos unir em Cristo… Portanto, a luz deve significar a verdadeira luz da graça em Cristo e não a luz natural, que também os pecadores, judeus, pagãos e demônios possuem, que são os maiores inimigos da luz… Estou bem ciente de que toda a luz da razão é acesa pela luz divina; E assim como eu disse sobre a vida natural, que ela tem sua origem na vida verdadeira e faz parte dela quando alcança o conhecimento correto, da mesma forma a luz da razão tem sua origem na luz verdadeira e faz parte dela quando reconhece e honra aquele que a acendeu.” (Luther, Lenker’s translation, Postil, 190, etc.) 

Uma vez percebido com clareza que o próprio nome “Logos”, portado pelo Filho antes que o mundo existisse, não tem propósito senão declarar que ele é a revelação de Deus a nós, que necessitamos desse Logos eterno, as dificuldades sobre o tempo dos dois ēn (“era/estava”) tendem a perder o peso. Não se deve, porém, identificar esses dois com os três ēn (“era/estava”) dos versículos 1 e 2: aqueles três recuam desde “o princípio” até a eternidade infinita, ao passo que os dois do versículo 4 recuam desde a encarnação, atravessam todo o Antigo Testamento e se perdem na eternidade. Para leitores cristãos, não era estranho que as obras da graça tivessem sua origem na eternidade e ali desaparecessem em mistério aos nossos olhos finitos. Justamente porque ēn (“era/estava”) recua indefinidamente, ele é o tempo apropriado; um aoristo soaria histórico demais e, por isso, inadequado. Assim como o Verbo eterno estava no princípio, assim também, no princípio e, além disso, desde a encarnação, esse Verbo era vida, e essa vida era a luz dos homens. João escreve “era” e não o “é” atemporal porque pretende fazer um corte no tempo da encarnação; esse evento e a história que se segue ele registra em ordem. Seria falso dizer que o Logos “se tornou” vida, ou que foi “feito” vida, seja no tempo, seja antes do tempo. Olhando para trás, não se define um limite; olhando para a frente, o próprio João define o limite no fim do Antigo Testamento ou na encarnação.

Como vida e luz são inseparáveis na ordem natural, assim também se unem no domínio do espírito e da graça: onde há vida divina e verdadeira, ali há luz divina e verdadeira; onde há luz, ali há vida. Ainda assim, “vida” vem primeiro e “luz” depois. O evangelista não diria que no Logos havia luz e que a luz era a vida dos homens, porque luz é aquilo que se manifesta e irradia; ela emana de vida, que é o fundamento, poder profundo, misterioso e oculto. A verdade divina é luz enquanto resplandece daquele que é a Verdade; mas essa verdade é a manifestação de uma vida que a sustenta, assim como Jesus também se chama a Vida.

Além disso, “luz” é termo figurado e evoca o sol que ilumina o universo físico; do mesmo modo, a vida que está no Logos visa iluminar o mundo e as almas humanas. “Luz” traz consigo o seu oposto, trevas, assim como “vida” sugere morte; e “vida”, “luz” e “Logos” são termos humanos, adequados ao nosso mundo, onde morte e escuridão dominam, e onde necessitamos da revelação do Verbo. No céu, essas palavras ou não se aplicariam, ou se aplicariam num sentido tão maravilhoso que a mente atual não poderia abarcar. “Luz” equivale a verdade, e verdade significa realidade: toda a realidade da vontade, do propósito e dos planos de Deus, centrados em amor e graça e incorporados no Logos, que é Jesus Cristo, nosso Senhor. Essa realidade divina e bem-aventurada se compõe de muitos fatos, cada qual uma realidade; quando essas realidades são devidamente expressas em linguagem humana, chamamo-las doutrinas. Assim, os interesses mais altos da alma ficam amarrados às doutrinas de Cristo, o Verbo. Toda irrealidade (mentira), ainda que enfeitada na linguagem mais sedutora, constitui falsa doutrina e, por sua própria natureza, opera morte e destruição para a alma.

Em todos os casos em que um genitivo é acrescentado para designar o domínio a ser iluminado, como “a luz dos homens” ou “a luz do mundo”, o termo “luz” não indica o brilho que se espalha, mas o próprio luminar de onde o brilho procede. Assim, o sol no céu é a “luz” do mundo físico: sem ele pereceríamos em trevas materiais. Sem o Logos e sua vida salvadora, do mesmo modo, pereceríamos em trevas espirituais. A finalidade e a tarefa da luz é iluminar, conceder aos homens o conhecimento da verdade: “Pois em ti está a fonte da vida; na tua luz veremos a luz.” (Salmos 36:9). E esse conhecimento jamais é apenas intelectual; ele alcança o ser inteiro e transforma os iluminados em filhos da luz, renascidos da luz.

João 1:5 

E a luz brilha na escuridão, e a escuridão não a dominou. (Gr.: kai to phōs en tē skotia phainei, kai hē skotia auto ou katelaben — Tradução literal: “E a luz brilha na escuridão, e a escuridão não a dominou.”). Em João 1:5, a cena é simples e forte: “a luz” continua brilhando, mesmo quando o ambiente ao redor é “trevas”, e o resultado é que as trevas não conseguem dar cabo dela — seja por não a acolherem, seja por não terem poder para sufocá-la. Isso coloca no centro do evangelho a ideia de que Deus não apenas fala de longe, mas entra na nossa noite com claridade real, como no primeiro “haja luz” de Gênesis 1:3, só que agora essa luz não é apenas uma ordem criadora; ela é a presença salvadora que revela quem Deus é e quem nós somos diante dele. Quando Isaías 9:2 descreve gente “andando em trevas” e, ainda assim, atingida por “grande luz”, ele já prepara o coração para entender que o problema humano não é falta de informação, mas falta de luz que alcance a consciência, desmascare o pecado e abra caminho para a vida. Por isso João 3:19 fala do julgamento como esse choque: a luz chega, mas muitos preferem a escuridão, e aqui dá para perceber que a resistência não é neutra; é moral e espiritual, e não se resolve só com argumento. O consolo prático, sem romantizar a dor, é que a fé cristã não pede que alguém finja que não há trevas; ela convida a encarar a realidade com a segurança de que a luz não depende da permissão das trevas para existir — aplicação pastoral: isso encoraja a abandonar a vida dupla, a trazer para a luz o que está escondido, e a buscar um caminho concreto de arrependimento e verdade, porque Deus “resplandeceu em nossos corações” para iluminar o conhecimento dele em Cristo, como afirma 2 Coríntios 4:6.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

No encadeamento formal, kai (“e”) atua como conjunção coordenativa, ligando a oração ao fluxo anterior e, depois, costurando duas orações paralelas; na primeira, o sintagma nominal to (“o”) + phōs (“luz”) forma o sujeito, em nominativo, neutro, singular, com o artigo marcando a substantivação definida do referente; esse sujeito governa o predicado verbal phainei (“brilha”), verbo no presente, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, cuja forma finita realiza o núcleo da predicação. A locução preposicional en (“em”) + (“a”) + skotia (“escuridão”) depende do verbo como adjunto adverbial, porque en (“em”) rege caso dativo e, no encaixe desta oração, delimita a esfera/local em que a ação verbal ocorre, com (“a”) em dativo, feminino, singular, determinando skotia (“escuridão”) em dativo, feminino, singular; a escolha do dativo, sob regência de en (“em”), sinaliza precisamente o domínio em que o “brilhar” se dá, em vez de apontar alvo direto da ação. 

Na segunda oração, novamente kai (“e”) coordena uma estrutura sintática paralela: (“a”) + skotia (“escuridão”) constitui o sujeito, em nominativo, feminino, singular, com artigo definido; auto (“a ela”) é pronome pessoal em acusativo, neutro, singular, dependente do verbo como objeto direto, retomando anaforicamente phōs (“luz”) pela concordância de gênero/número do pronome com o antecedente neutro; ou (“não”) é partícula de negação que incide imediatamente sobre o verbo finito; e katelaben (“dominou”) é verbo no aoristo, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, funcionando como núcleo predicativo que fecha a oração com uma ação concebida globalmente, como evento completo, tendo auto (“a ela”) por complemento direto.

João 1:5, ao fazer o phōs (“luz”) entrar em cena não como faísca episódica, mas como presença que insiste, deixa o presente de phainei (“brilha”) soar com valor durativo: não descreve apenas um instante, mas uma ação em curso, como se o brilho, já aceso, continuasse a cortar o ar. A escolha de en (“em”) com dativo, ligando o verbo à skotia (“escuridão”), não constrói um quadro de luz contemplada “à distância”, mas a localiza na esfera mesma do escuro: a luz brilha “dentro” do domínio em que a escuridão vigora, e justamente por isso o contraste não é só visual, é ontológico e cognitivo. Quando a frase se dobra na segunda coordenação e põe hē skotia (“a escuridão”) como sujeito diante de auto (“a ela”, isto é, “a luz”) como objeto direto, o aoristo katelaben (“apreendeu”, “capturou”) dá à tentativa um contorno global, como ação tomada no todo, e a tradição exegética lê aí uma polissemia deliberada: katalambanō (“apreender”) pode perfilar tanto o gesto de dominar/neutralizar quanto o ato de compreender/assimilar; por isso, propostas de tradução que buscam um termo-ponte (algo como “tornar-se mestre” da luz) não são capricho estilístico, mas tentativa de preservar o duplo alcance semântico que o encaixe do período suporta. A força do verso, então, não está em optar por “a escuridão não venceu” contra “a escuridão não entendeu”, mas em sugerir que o mesmo movimento que tenta sufocar o brilho também falha em assimilá-lo como verdade: a luz permanece inviolada e, ao mesmo tempo, não é possuída pela apreensão interior de quem habita o escuro.

B. Versões Comparadas

Aqui o ponto de tensão entre as versões é como traduzir a segunda oração: se o problema das “trevas” é que elas não entenderam a luz, ou que elas não conseguiram vencê-la/apagá-la. Em inglês, NASB e KJV puxam para a ideia de entendimento quando dizem, respectivamente, “the darkness did not comprehend it” e “the darkness comprehended it not” (glosa em português: “as trevas não a compreenderam”), enquanto a ASV troca o verbo por “apprehended it not” (glosa: “não a apreenderam/assimilaram”) e a YLT opta por “did not perceive it” (glosa: “não a perceberam”). Já ESV e NRSVCE interpretam o mesmo choque como combate e domínio ao verterem “the darkness has not overcome it” / “did not overcome it” (glosa: “as trevas não a venceram”), e CEV/GNT tornam isso ainda mais concreto, lendo o resultado como incapacidade de “apagar” a luz: “has never put it out” / “has never put it out” (glosa: “nunca conseguiram apagá-la”). No português, é possível enxergar o mesmo “leque” hermenêutico: a ARA e a ACF preservam a linha do conflito ao dizerem “as trevas não prevaleceram contra ela” e “as trevas não a compreenderam”, enquanto NVI usa linguagem de derrota (“as trevas não a derrotaram”) e NTLH/NVT fazem a leitura “apagadora” (“não a conseguiu apagá-la” / “nunca conseguiu apagá-la”). Em termos de aderência ao grego do NA28, nenhuma escolha “erra” por si mesma, porque o verbo central comporta tanto a noção de “captar/entender” quanto a de “apoderar-se/derrotar”; o que muda é o foco: ARA/NVI/ESV/NRSVCE deixam o texto soar como vitória da luz sobre hostilidade real; ACF/NASB/KJV/ASV/YLT deixam o texto soar como cegueira espiritual que falha em “alcançar” a luz; NTLH/NVT/CEV/GNT cristalizam a imagem de resistência — trevas tentando sufocar e fracassando.

C. Interpretação Teológica

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João 1:6

Surgiu um homem, enviado da parte de Deus; o nome dele: João. (Gr.: egeneto anthrōpos, apestalmenos para theou, onoma autō Iōannēs — Tradução literal: “Veio a ser um homem, enviado da parte de Deus; nome a ele: João.”).  Aqui texto muda o foco: aparece um homem com nome e história, e o que define a vida dele não é autopromoção, mas envio — ele é alguém “enviado por Deus”. Isso mostra um traço muito coerente do modo como Deus age: ele acende a luz e, ao mesmo tempo, levanta testemunhas para apontar para ela; não porque a luz precise de propaganda, mas porque Deus escolhe salvar e reunir pessoas por meio de anúncio, chamado e resposta. Essa figura de mensageiro já ecoa Malaquias 3:1, onde o próprio Deus fala de “enviar o meu mensageiro” para preparar caminho, e também Isaías 40:3, com a voz que clama no deserto para endireitar a estrada do Senhor. No Novo Testamento isso se concentra na vocação de João: Lucas 1:76 o descreve como alguém que iria “ante a face do Senhor” para preparar caminhos, e João 1:23 o faz se identificar como “a voz” que cumpre esse papel, de modo que a missão dele é orientar o olhar do povo para o Senhor, não para si mesmo. O valor devocional aqui é bem concreto: Deus costuma trabalhar com humildade e propósito — ele usa pessoas reais, com limites reais, para cumprir tarefas reais — e uma aplicação pastoral (não uma afirmação histórica sobre cada caso) é que isso corrige duas tentações comuns hoje: achar que a obra de Deus depende do carisma do mensageiro, ou achar que ninguém serve porque não é “grande o bastante”; João 1:6 lembra que o centro é o Enviador e a mensagem, e que o chamado mais seguro é ser fiel à missão recebida, com reverência e simplicidade.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

Aqui egeneto (“veio a ser”) é verbo finito no aoristo, indicativo, voz média (de funcionamento deponente no uso), terceira pessoa do singular, introduzindo a apresentação de um novo referente; anthrōpos (“homem”) está em nominativo, masculino, singular, dependendo de egeneto (“veio a ser”) como seu argumento sintático principal, sem artigo, o que favorece a leitura indefinida/apresentacional dentro do período. A sequência apestalmenos (“enviado”) é particípio perfeito, voz passiva, nominativo, masculino, singular, concordando formalmente com anthrōpos (“homem”) em caso/gênero/número e funcionando como predicação participial não-articulada: por não vir com artigo, não se ancora como oração adjetiva “definidora” com artigo, mas como qualificação predicativa/circunstancial em aposição ao referente recém-introduzido. 

Esse particípio traz consigo a locução para (“da parte de”) + theou (“Deus”): para (“da parte de”) rege aqui caso genitivo, e o genitivo de theou (“Deus”), masculino, singular, realiza o complemento exigido pela preposição, marcando o ponto de procedência/origem (fonte) a partir do qual o “envio” é concebido. Após a pausa, surge uma estrutura sem verbo finito: onoma (“nome”), em nominativo, neutro, singular, abre uma predicação nominal com elipse de cópula (“era/é” subentendida); autō (“a ele”) é pronome em dativo, masculino, singular, dependente de onoma (“nome”) como dativo de posse/dativo de referência (“nome para ele”, isto é, “seu nome”), e Iōannēs (“João”), em nominativo, masculino, singular, encaixa-se como nominativo em aposição/predicativo nominal, explicitando o conteúdo do “nome” na mesma moldura de concordância casual do nominativo, enquanto a cópula permanece implícita pela própria forma nominal da construção.

Quando o texto põe em cena phainei (“brilha”) no presente, e logo em seguida fecha a reação da noite com katelaben (“dominou”) no aoristo, a gramática cria um contraste de foco: o presente projeta a luz como ação em curso, insistente, contínua no tecido do enunciado, enquanto o aoristo retrata a tentativa da escuridão como ato inteiro, tomado de uma vez, como quem vê um golpe completo e constata seu limite. Nesse ponto, a polissemia do verbo por trás de katelaben (“dominou”) é decisiva para a leitura exegética: o campo pode abarcar a ideia de “apoderar-se/derrubar” e também a de “captar/compreender”, e a construção com objeto direto pronominal (auto — “a ela”) permite que o texto conserve a força de um embate real (a noite tentando “tomar” a luz) sem perder a sugestão de um fracasso cognitivo (a noite incapaz de “captar” o que a luz é); por isso, a frase suporta, no nível do sentido, a imagem de uma escuridão que não consegue “ser senhora” da luz, nem por força nem por entendimento, mantendo as duas margens do verbo abertas dentro da mesma estrutura sintática.

João 1:6 quebra a cadência cósmica e põe os pés no chão da história com egeneto (“surgiu”, “veio a existir”), aoristo que, aqui, funciona como ponto de entrada narrativo: não é o “ser” atemporal do Logos, mas o advento de um personagem no tempo. O núcleo anthrōpos (“homem”) resguarda a nota de humanidade comum, e o particípio perfeito passivo apestalmenos (“tendo sido enviado”) prende-se a esse substantivo como seu modificador, descrevendo não apenas um ato pretérito de envio, mas um estado resultante: ele está caracterizado, no presente do relato, como alguém que permanece “enviado”. A preposição para (“de junto de”, “da parte de”) regendo genitivo em theou (“Deus”) marca a origem/comissão: o envio não é meramente “em nome de”, mas “procedente de”, como se a missão carregasse consigo o selo da fonte. A expressão onoma (“nome”) com o dativo autō (“a ele”) funciona como identificação predicativa (“seu nome [era]…”), selando a entrada do personagem Iōannēs (“João”) não por genealogia, mas por função narrativamente útil. Exegeticamente, o verso instala “o contexto histórico imediato” do prólogo: ao lado do Logos e de Moisés, João aparece como figura explicitamente nomeada, e sua presença prepara o motivo do testemunho que os versos seguintes vão explicitar; assim, o prólogo não apenas canta a luz, mas introduz a voz humana que, enviada, aponta para ela.

B. Versões Comparadas

Aqui a variação principal é o “tom” do surgimento de João e a forma de descrever seu envio. Em inglês, NASB/ASV/YLT preservam mais de perto a ideia de aparecimento (“There came a man…”) e, no caso da YLT, explicitam a nuance de alguém que “já veio com a marca de ter sido enviado” (“having been sent from God”); ESV/KJV/NRSVCE preferem a formulação estável “There was a man sent from God”; CEV e GNT condensam e simplificam: “God sent a man named John” / “God sent his messenger, a man named John” (glosa em português: “Deus enviou um homem chamado João”). No português, ARA e ACF mantêm a estrutura clássica “Houve um homem enviado por Deus/de Deus, cujo nome era João”, a NTLH torna a frase mais direta (“Houve um homem chamado João, que foi enviado por Deus”), a NVI põe cor no verbo inicial (“Surgiu um homem enviado por Deus, chamado João”), e a NVT — quando apresentada em forma enxuta — fica muito próxima da simplificação de CEV (“Deus enviou um homem chamado João”). Quanto à fidelidade ao encadeamento do grego, as versões que preservam algum equivalente de “surgiu/veio” (NASB/ASV/YLT; NVI em português) deixam mais audível a entrada histórica de João na cena; já as que preferem “havia/houve” (KJV/ESV/NRSVCE; ARA/ACF) não negam isso, mas suavizam o “impacto de aparição”. E sobre “enviado”, praticamente todas acertam o núcleo: a ênfase não está em João “se oferecendo”, mas em João “designado”, vindo com missão recebida.

C. Interpretação Teológica

A entrada de “João” no mundo é apresentada como continuidade do desígnio de Deus que se manifesta desde a criação: assim como todas as coisas “vieram a existir” por meio do Verbo em João 1:3, assim também João 1:6 descreve a chegada de João como a de alguém “enviado por Deus”. Essa forma de dizer pode induzir, talvez de propósito, uma breve hesitação no leitor: se ele foi “enviado por Deus”, seria um mensageiro celeste, um anjo, uma figura de outra ordem? O próprio enunciado fecha essa porta ao chamá-lo de “homem”, anthrōpos (“homem”, “ser humano”), e, ao mesmo tempo, o modo como o Evangelho fala de Jesus pode reacender a pergunta por um instante, porque Jesus também é chamado de “homem” e é tratado como tal tanto por si mesmo em João 8:40 quanto por outras vozes da narrativa em João 1:30; João 4:29; João 9:11, 16; João 19:5. É por isso que a questão “foi enviado do mesmo modo?” se torna inevitável: o narrador escreve como quem sabe que alguns poderiam aproximar as duas missões. A própria distinção é enunciada com sobriedade quando se registra que, segundo BDAG (p. 756), João Batista não foi, como Jesus, enviado “da presença de Deus”, mas teve sua vinda “produzida por Deus”; e o prólogo já antecipa o limite do seu papel ao dizer que ele foi enviado “para testemunho, para testemunhar da luz” em João 1:7 e ao negar que ele mesmo “fosse a luz” em João 1:8. Mais adiante, quando discípulos começam a medi-lo por comparação com Jesus, ele insiste que “não sou o Cristo”, mas que “sou enviado adiante dele” em João 3:28, o que preserva a assimetria: João é “enviado por Deus” como delegado humano, numa missão humana, para dar testemunho de alguém maior do que ele. Nesse sentido, mesmo sendo descrito como “enviado” (apestalmenos — “enviado”), o desenho de sua comissão se aproxima mais, por analogia interna do próprio livro, da delegação que lhe foi enviada pelas autoridades judaicas em Jerusalém — João 1:19 e João 1:24, onde aparece também o particípio apestalmenoi (“enviados”) — do que da missão de Jesus como aquele que vem do alto; e essa diferença será explorada de modo mais amplo em João 3:31–36.

João 1:6, assim, inaugura a segunda seção do prólogo, que se estende até João 1:12. A primeira seção, ao partir da eternidade, esboça a atividade do Logos antes de sua vinda ao mundo; a segunda começa com o Batista e descreve o Logos como aquele que veio ao mundo e entrou no que lhe pertencia. João 1:6–12, portanto, já inclui o horizonte da encarnação, mas o evangelista evita nomeá-la diretamente porque reserva esse “milagre dos milagres” para a seção final do prólogo, como clímax dessa abertura poderosa ao corpo do Evangelho. É nesse enquadramento que a frase “veio um homem, comissionado por Deus, chamado João” funciona como um retrato mínimo e suficiente: poucos traços e a figura está posta. Isso não acontece porque o Batista fosse desconhecido aos leitores, mas porque o autor escreve sobre ele de modo análogo ao que faz com o Logos: parte do que o leitor já sabe e seleciona os traços vitais que deseja pôr em destaque. Por isso ele não oferece uma biografia do Batista, nem enfatiza desde logo seu trabalho distintivo de batizar — nem mesmo o chama de “Batista” aqui —, pois o interesse do prólogo é ordenar funções, não narrar episódios.

A própria abertura “houve/veio um homem” — egeneto anthrōpos (“houve/veio um homem”) — é colocada em contraste expressivo com “era o Verbo” — ēn ho logos (“era o Verbo”) — de João 1:1. O aoristo de egeneto (“veio a ser”, “tornou-se”, “surgiu”) é assumidamente histórico: João entrou em cena com sua atividade como qualquer outro homem; já no caso do Logos, tudo é de outra ordem. Ao mesmo tempo, a palavra “homem” reforça que não se trata de um anjo de outro mundo, mas de um ser humano; o que o distingue da massa de homens notáveis é que ele é descrito como “enviado por Deus”. E o particípio perfeito apestalmenos (“enviado”) carrega mais do que o ato inicial de comissionamento: abrange também sua condição durante todo o curso do encargo, como quem permanece, ao longo da obra, na qualidade de mensageiro e embaixador. O agente da forma passiva pode ser expresso, como aqui, por para (“da parte de”, “de junto de”), e a inserção do nome segue um idiomatismo grego: onoma autō Iōannēs (“nome para ele: João”), podendo-se entender “nome” como um nominativo absoluto e a informação onomástica como parentética. A dignidade do ofício aparece, ainda, no sentido atribuído ao nome “João”, entendido como “favor de Deus”, sem que isso retire a humildade do personagem: é um homem, mas um homem com missão.

Esse conjunto de marcas impede que João seja tratado apenas como profeta do Antigo Testamento postado na soleira do Novo; a descrição do evangelista, somada ao que os outros Evangelhos e as palavras de Cristo dizem dele, o coloca plenamente no campo do Novo Testamento, porque sua função não é apenas denunciar ou anunciar em termos genéricos, mas apontar diretamente para o cumprimento. Daí que o autor prossiga em mostrar que João não é o Messias e em definir a natureza verdadeira de seu ofício: muitos o supunham o Cristo, e essa suposição é corrigida, sem negar que ele foi “enviado por Deus”, isto é, divinamente comissionado. Alguns chegaram a imaginar que a finalidade central deste Evangelho seria provar que João Batista não era o Messias; isso não se sustenta como tese total, mas é plausível reconhecer que um dos propósitos era, sim, desfazer essa confusão, porque o objetivo maior é demonstrar que “Jesus era o Cristo”, como o próprio livro declara em João 20:31. Nesse cenário, fazia sentido começar distinguindo João de Jesus, já que João formou muitos discípulos em Mateus 3:5, muitos cogitavam se ele seria o Messias em Lucas 3:15 e a investigação oficial aparece em João 1:19; e é relevante lembrar que discípulos de João ainda aparecem em Éfeso em Atos 19:1–3, precisamente o lugar onde se costuma situar a redação do Evangelho, o que torna verossímil a presença de aderentes a João ou de pessoas inclinadas a elevá-lo indevidamente. Assim, a abertura do prólogo que afirmou a divindade do Verbo nos quatro primeiros versículos caminha agora para o primeiro eixo probatório na história: o testemunho de João, um profeta amplamente reconhecido, que funciona como “testemunha” para mostrar que Jesus de Nazaré é o Cristo, mantendo João no seu lugar próprio — real, alto e subordinado — dentro do plano de Deus.

João 1.7, 8

Não era ele [João Batista] a luz, mas veio para que testificasse da luz. A locução para que testificasse significa dar testemunho ou declarar. João usou o verbo testemunhar cerca de 39 vezes e o substantivo testemunho aproximadamente 14 vezes em seu Evangelho. Isso era muito importante para ele alcançar o seu propósito, ou seja, dar testemunho correto de Jesus como o Messias àqueles que creriam nele (Jo 20.30-31). Crer implica confiar. João usa o verbo crer quase 100 vezes para enfatizar o que uma pessoa precisa fazer para receber o dom da vida eterna. Não encontramos nesse Evangelho, porém, a palavra fé ou o verbo arrepender-se.

João 1.9

Ali [em Jesus] estava a luz verdadeira, que alumia a todo homem que vem ao mundo. Para trazer maior compreensão à encarnação do Verbo, esse versículo poderia ser assim traduzido: “Essa é a verdadeira luz [Jesus] que veio ao mundo para iluminar todos os homens”. Jesus se tornou homem para revelar a verdade a todas as pessoas. Ele revela a todo homem que vem ao mundo quem é o Criador, e a criação revela a todos na terra que há um Criador no céu (Rm 1.20).

A inclusão de todas as pessoas aqui contrasta com o exclusivismo por Israel no pacto antigo. Os profetas judeus ensinaram, e muitos judeus creram, que nos últimos dias as profecias em Zacarias 14 se cumpririam, e os gentios se converteriam. Isso também contrasta com a ótica das sociedades grega e romana. Os gregos jamais imaginariam que o conhecimento pudesse ser acessível a todos. Os romanos desprezavam os bárbaros, pois consideravam-nos uma raça inferior sem lei. Cristo encarnou para trazer luz a todos, embora nem todos recebessem a Sua luz, pois nem todos creram nele. A função de João Batista [como a voz profética, o arauto enviado à frente do Messias] era dar testemunho dessa luz. E nós, hoje, temos de aproveitar toda e qualquer oportunidade para refletir essa luz e dar testemunho dela. Dependendo do contexto, o termo mundo pode significar (1) o universo, (2) a terra, (3) a humanidade, ou (4) o sistema mundano contrário ao Reino de Deus. Neste texto de João, significa a terra, o local onde vive a humanidade.

João 1.10, 11

O verbo conhecer no versículo 10 significa não apenas ter o conhecimento, mas também receber [esse conhecimento, essa pessoa] de bom grado. Mas, em vez de receber a Jesus de braços abertos, o mundo virou as costas para Ele. A aceitação e a rejeição do Messias (v. 12) são os temas que começam nesse prólogo (Jo 1.1-18) e aparecem em todo o Evangelho de João.

João 1.12

A frase aos que creem no seu nome aparece três vezes no Evangelho de João (Jo 1.12; 2.23; 3.18). O termo nome nesse versículo não se refere à maneira como Jesus é chamado, mas ao que representa o Seu nome: o Senhor é a salvação (Jo 3.14,15). Nesse contexto, significa crer que Jesus é o Verbo, a vida e a luz, ou seja, que Ele é o Cristo, o Filho de Deus (Jo 20.31). A expressão deu-lhes o poder refere-se ao direito legal de assumir a posição de filhos de Deus. Nenhum de nós era filho de Deus, na verdade. Por natureza, éramos filhos da ira e estávamos condenados à morte e ao inferno. Imagine um miserável ser adotado como filho por um rei e receber o direito às suas riquezas e o status de realeza. Por meio da fé, crendo em Jesus, os pecadores, destituídos de todo e qualquer direito, tornam-se membros da família de Deus.

João 1.13

Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. Esse novo nascimento que experimentam aqueles que creem em Jesus é espiritual. Os nascidos do Espírito não nasceram do sangue, ou seja, não estão ligados por laços consanguíneos. Não são fruto da fecundação natural. Não foram gerados pela vontade do carne, isto é, pelas nossas próprias forças ou vontade. O novo nascimento é uma obra feita somente por Deus. È um dom que recebemos gratuitamente (Jo 4-10,14), e não uma recompensa pelo nosso esforço pessoal. O novo nascimento está baseado no relacionamento individual com Cristo, e não em nossa condição pessoal. Cristo é o único Mediador entre Deus e o homem. Cristo é a vida (Jo 1.4; 14-6). Aqueles que creem nele nasceram de Deus, pois receberam vida espiritual.

João 1.14

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós. O Verbo (gr. logos), Aquele que sempre existiu se fez (gr. ginomai, uma ação concreta) carne (gr. sarx) e habitou entre nós. O versículo 1 fala da natureza divina e eterna de Cristo e de Suas obras, que transcendem o tempo e o espaço. Aqui, no versículo 14, o Verbo entra na dimensão do tempo e do espaço, materializa-se, faz-se carne, e muda a história da humanidade. O Filho de Deus que existia desde a eternidade (Fp 2.5-9), por um tempo, abriu mão de Seu estado eterno e imortal e de Sua condição divina, e fez-se homem. Ele se tornou um ser humano, limitado pelo tempo e espaço, sujeito à dor e à morte. Jesus Cristo se identificou completamente conosco como homem. Mas Ele não tinha pecado, pois o pecado não fazia parte da natureza humana antes da Queda. Sendo assim, João usou a palavra carne neste versículo para aludir à natureza humana, e não sua propensão para o pecado (diferente do apóstolo Paulo, em Romanos 8.1-11). Deus habitou entre nós. O verbo traduzido como habitar é de origem grega e significa tabernacular, alude a ideia de armar uma tenda. No Antigo Testamento, o tabernáculo era uma tenda móvel, armada no meio do acampamento dos israelitas e que representava a presença de Deus no meio do Seu povo. [Isto aponta para o desejo do nosso Criador de ter comunhão conosco.] Deus não é um tirano arrogante que fica ditando ordens do Seu trono no céu. Apesar de ser Rei e Senhor, Ele quer viver entre nós. Para isso, chegou a fazer-se homem, para habitar conosco. E vimos a sua glória. No Antigo Testamento, a palavra glória estava ligada à presença divina (Éx 33.18). Assim como Deus manifestou a Sua glória no tabernáculo edificado por Moisés, em Cristo Ele revelou a Sua presença divina e o Seu caráter (Jo 18.6; 20.26,27). Como a glória do Unigênito do Pai. Jesus é o unigênito de Deus (Jo 3.16,18); o único Filho. O mesmo termo é usado para Isaque (Hb 11.17), embora este não fosse o único filho de Abraão, mas era o único filho da promessa. No evangelho de João, os que não nasceram do sangue, nem da vontade da came, nem da vontade do varão, mas de Deus (v. 13), pela fé em Cristo, foram chamados filhos de Deus (Jo 1.12,13). Mas Jesus Cristo é o unigênito de Deus, o único que sendo totalmente divino fez-se totalmente humano. Cheio de graça e de verdade. Jesus é cheio de graça e de verdade. Quando Deus se revelou a Moisés, Ele revelou a si mesmo como grande em beneficência e verdade (Êx 34.6). Quando aplicado a Jesus Cristo, esse atributo divino o identifica como o Autor da revelação e redenção perfeitas.

João 1.15

O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. Jesus nasceu depois de João Batista (Lc 1.36) e começou o Seu ministério depois do dele. Entretanto, João Batista disse que Jesus era antes dele, pois já existia desde a eternidade (v. 30). João Batista é um exemplo maravilhoso da humildade necessária para alguém cumprir seu ministério diante de Deus. Ele conhecia muito bem a mensagem específica que Deus havia designado para ele pregar, e não se desviou dela.

João 1.16

A maioria das pessoas atribui as palavras do versículo 15 a João Batista. As palavras dos versículos 16-18, porém, são de João, o escritor deste Evangelho, embora também possam ter sido ditas por João Batista. A expressão graça sobre graça significa várias manifestações da graça — termo também usado no versículo 17, que se encontra em Êxodo 32—34- Moisés e o povo de Israel receberam a graça de Deus, mas tinham uma grande necessidade de receber mais graça (Êx 33.13). [A plenitude da graça é a encarnação do Verbo.]

João 1.17

Em todo o Novo Testamento, graça é o favor de Deus concedido ao homem pecador, independente de suas obras e de seus méritos. A lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. João não está desmerecendo a Lei ou Moisés nesse versículo. A Lei e a graça não eram antagônicas no Antigo Testamento. Quem estava sob a Lei no Antigo Testamento também era salvo pela graça (veja Êx 34-6,7) - Em Êxodo 34.6,7a, Yahweh se revela como o Deus piedoso e misericordioso, embora na parte b do versículo 7 seja dito que Ele não tem o culpado por inocente [ou seja, Ele é justo e age com justiça]. Jesus reúne esses mesmos atributos divinos: a graça (que assegura o perdão) e a justiça (que garante o juízo previsto na Lei para aquele que comete pecado). Além disso, Jesus experimentou em Seu próprio corpo o castigo pelos pecados cometidos pelo homem e, desse modo, perdoou os transgressores. Sendo assim, João não disse que a Lei começou com Moisés, e Jesus trouxe a graça. Ele assinalou que, em Cristo graça e justiça (ou a verdade) se manifestam como uma coisa só. Embora a graça e a verdade manifestadas por Deus por meio da Lei dada a Moisés fossem abundantes, é na pessoa de Jesus Cristo que elas alcançaram plenitude da revelação.

João 1.18

Deus nunca foi visto por alguém. Deus é Espírito (Jo 4-24), é invisível (Cl 1.15; 1 Tm 1.17) e só pode ser visto quando se revela a alguém. Nenhum ser humano pode ver a face de Deus e viver (Êx 33.20). Abraão, o amigo de Deus, não o viu. Nem mesmo Moisés, aquele pelo qual a Lei foi dada a Israel, não pôde ver a face de Deus (Ex 33.22, 23). Mas o Filho tem um relacionamento íntimo com o Pai e o vê face a face (Jo 1.1; 6.46; 1 Jo 1.2). Deus se tomou compreensível aos olhos humanos por meio de Jesus. Nós podemos ver a face, o caráter de Deus, por meio de Seu Filho. È verdade que hoje não podemos ver Jesus, porém nós o conhecemos pela Sua Palavra [que é espírito e verdade]. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer. O seio é aqui usado aqui para expressar uma íntima comunhão (Jo 13.23; Lc 16.23). Aquele que é o Filho unigênito do Pai e que o conhece intimamente veio a esta terra e o fez conhecer. O termo unigênito significa único da espécie e expressa a ideia de intimidade, profunda comunhão que Jesus tem com o Pai. O verbo conhecer também pode ser traduzido por revelar. Portanto, Jesus Cristo, tendo a mesma natureza divina do Pai (Jo 1.1), tornou-se homem (Jo 1.14) para revelar Deus a nós (Jo 1.18) e também decidiu trazer-nos misericórdia e juízo (graça e verdade). Uma das muitas bênçãos da graça (Jo 1.17) é o conhecimento de Deus (Jo 1.18). E, quanto mais conhecemos a Sua glória, como nos é revelado nas Escrituras, mais somos transformados na mesma imagem (2 Co 3.18). Imagine só! Nós, que fomos criados conforme a imagem de Deus, mas que nos tornamos vis por causa do pecado, agora somos restaurados por conhecermos a Cristo, possuidores da mesma natureza de Deus. Poderia haver algo melhor para investirmos o nosso tempo do que conhecer a Cristo? Essa é a chave da vitória (Hb 12.2,3).

João 1.19—2.11

Esta passagem descreve o que aconteceu por uma semana no início do ministério do Senhor. No primeiro dia, João Batista deu testemunhou de Jesus aos líderes judeus (Jo 1.19- 28). No dia seguinte (Jo 1.29), João testemunhou novamente (Jo 1.29-34). No dia seguinte, João testemunhou a dois dos seus discípulos que passam a seguir a Cristo (Jo 1.35-42). No dia seguinte (Jo 1.43), Jesus chamou mais dois discípulos (Jo 1.43-51). Ao terceiro dia (Jo 2.1), ou seja, o terceiro dia após o último dia mencionado, Jesus foi para Canaã com Seus novos discípulos. A viagem de Betânia a Jericó, na Judeia (Jo 1.28), levava cerca de três dias de caminhada. Desse modo, em João 1.19—2.11, são relatados em detalhes os testemunhos da primeira semana.

João 1.19, 20

Os judeus aqui são os líderes judeus que compunham o Sinédrio e opuseram-se ao Senhor Jesus. O Sinédrio era responsável por avaliar todo aquele que fosse acusado de ser falso profeta ou blasfemo, bem como outros crimes de natureza religiosa. O Sinédrio era composto sobretudo por membros de dois grupos religiosos influentes na época: os saduceus e os fariseus. A delegação que foi investigar João Batista era de fariseus (Jo 1.24). A pergunta que eles fizeram a João Batista foi: Quem és tu? João afirmou que não era o Messias. No primeiro século, muitos esperavam a vinda do Messias anunciada pelos profetas do Antigo Testamento. E a preocupação principal dos líderes judeus era manter a paz sob os olhares de Roma; por isso estavam atentos a todos os supostos Messias. João foi rápido ao afirmar: eu não sou o Cristo.

João 1.21, 22

Es tu Elias? Era uma promessa do Antigo Testamento que Elias viria antes do dia grande e terrível do Senhor (Ml 4-5). Es tu o profeta? Moisés profetizou que o Senhor enviaria um profeta como ele (Dt 18.15). João Batista negou ser tanto um como o outro; ele não tinha nenhuma intenção de se passar pelo Messias. E, assim como João, não devemos ter de nós mesmos um conceito mais elevado do que realmente somos, mas ao contrário, devemos ter um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus nos concedeu (Rm 12.3 — NVI).

João 1.23

A voz- Cristo é o Verbo; João Batista, a voz. Quando foi pressionado a dizer quem era, João Batista afirmou ser o cumprimento de Isaías 40.3: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus. Nos dias de Isaías havia poucas estradas. Quando um rei viajava, estradas eram construídas para que a carruagem real passasse por elas e não ficasse atolada na lama. Isaías disse que antes de Deus aparecer para manifestar Sua glória, uma voz seria ouvida, convidando Israel a endireitar o caminho por onde o próprio Deus passaria. João identifica a si mesmo: Eu sou a voz do que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor.

João 1.24

Os fariseus constituíam uma seita muito influente com quase seis mil membros. Além de serem exímios intérpretes da Lei em Israel, eles também eram extremamente zelosos quanto aos costumes e às tradições. Nem todos os fariseus eram como os que foram descritos por João (Jo 5.20), porém, de maneira geral, esses líderes religiosos não aceitaram o Messias.

João 1.25

Realizar o ritual do batismo era o mesmo que assumir uma posição de autoridade. Os fariseus questionaram João Batista quanto à autoridade que ele possuía para realizar tal ato religioso: Por que batizas [...] se tu não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta? As autoridades judaicas achavam que eram os únicos detentores do direito de legitimar pregadores religiosos. A autoridade de João, contudo, havia sido dada por Deus. Ele conhecia muito bem Sua missão (Jo 1.26) e a realizou no espírito e na virtude de Elias (Lc 1.17).

João 1.26, 27

Este é aquele [...] do qual eu não sou digno de desatar as correias das sandálias. Desatar as correias das sandálias era trabalho de escravos. O Talmude judaico prescrevia: “Tudo que um servo faz para o seu senhor, o discípulo deve fazer para o seu mestre, menos a tarefa humilhante de desatar as correias das sandálias” . Com aquela declaração no versículo 26, João Batista estava dizendo: “Jesus Cristo é o Deus vivo, e eu sou a voz que clama no deserto, Seu servo e escravo”.

João 1.28

A localização de Betânia é incerta. Alguns acham que Betânia aqui não é a mesma que conhecemos, próxima a Jerusalém. Do outro lado do Jordão significa no lado oriental do rio Jordão. E este, com toda certeza, era o local onde João batizava.

João 1.29

Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! No Antigo Testamento, os israelitas sacrificavam cordeiros na Festa da Páscoa (Ex 12.21) como ofertas a Deus (Lv 14-10-25). Jesus Cristo é o Cordeiro de Deus que foi oferecido como sacrifício pelos pecados não apenas de Israel, mas de toda a humanidade (Is 52.13—53.12). Com essa magnífica frase, na introdução do seu Evangelho, João revela resumidamente todo o plano da redenção do Antigo Testamento.

João 1.30

Um homem que foi antes de mim. Jesus é superior em posição e honra. Porque já era primeiro do que eu. Jesus já existia antes de João Batista.

João 1.31

Eu não o conhecia. A princípio, João Batista não tinha certeza de que Jesus era o Messias. Ao que parece, embora Maria e Isabel fossem parentes (Lc 1.36), não há prova alguma de que Jesus e João tenham tido contato durante a infância. Tudo que João sabia é que devia batizar com água e que o Messias seria manifesto a Israel ao ser batizado. Deus deu um sinal a João para que este reconhecesse o Messias: o Espírito Santo desceu do céu como uma pomba e pousou sobre o Filho de Deus. Quando Jesus foi batizado, o Espírito Santo desceu sobre Ele (v. 32), revelando a João quem Ele era (v. 33). Mateus ainda fala de uma voz que veio do céu, dizendo: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo (Mt 3.17).

João 1.32-34

Esse é o que batiza com (gr. en) o Espírito Santo. O Novo Testamento menciona sete vezes esse ministério de Jesus. Cinco vezes em citações proféticas (Mt 3:11 ;M c l.8 ;Lc 3.1 6; Jo 1.33; At 1.5), uma em citação histórica (At 2.16-18), e outra em texto doutrinário (1 Co 12.13). Embora a tradução em português varie entre com e no, o grego usa de um modo consistente a preposição en, que fala da esfera em que Cristo batizava. Todavia, o Messias não fez isso enquanto estava nessa terra. O batismo com o Espírito Santo aconteceu pela primeira vez durante o Pentecostes que se seguiu à morte e à ressurreição de Jesus (At 1.5; 11.15,16), tomando-se uma realidade na vida de todos os cristãos por ocasião do novo nascimento (1 Co 12.13).

João 1.35

Estava João outra vez ali na companhia de dois dos seus discípulos. Um dos dois discípulos de João era André (v. 40). O outro não é citado aqui, mas provavelmente era o próprio João, autor desse Evangelho.

João 1.36, 37

Os dois discípulos [...] seguiram a Jesus. João Batista estava disposto a perder seus discípulos, caso eles fossem seguir a Jesus. Depois de apresentar Jesus, João sai de cena e só aparece novamente no final do capítulo 3 (v. 22-36). Seguiram a Jesus. Os discípulos a partir desse momento não somente passaram a seguir a Jesus, mas também tiveram a bênção de João Batista para que se unissem a ele.

João 1.38

E Jesus [...] disse-lhes: Que buscais? Essa foi uma das perguntas mais importantes que os seguidores de Jesus tiveram de responder. No entanto, a pergunta de Jesus a esses discípulos foi mais profunda do que a resposta obtida — onde estás hospedado? (NVI). Em Sua pergunta Jesus intencionava deixar claro Seu propósito para os novos discípulos. Será que eles estavam procurando um revolucionário? Ou talvez um modo de vida mais fácil? Se assim fosse, Jesus não seria a melhor escolha certamente. Então, Jesus começou a ensinar-lhes que tipo de compromisso Seu discipulado exigiria.

João 1.39

E era já quase a hora décima. Há seis referências a um período do dia no Evangelho de João (Jo 1.39; 4.6, 52; 18.28; 19.14; 20.10). Então, a questão é: que sistema João usava para contar o tempo? Os judeus começavam a contar um novo dia ao pôr-do-sol do anterior. O dia dos romanos começava à meia-noite, como o nosso hoje. João, que provavelmente escreveu seu Evangelho em Éfeso, ao que parece, usava o sistema romano. E se ele não estivesse usando esse sistema, então, João 19.14 estaria em conflito com Marcos 15.25. Pelo sistema judeu de contagem do tempo, a décima hora desse versículo seria quatro horas da tarde. Segundo o sistema romano, a décima hora era dez da manhã. Sendo assim, fica claro que João estava usando o sistema romano; a décima hora era mesmo dez da manhã. Jesus convidou os dois discípulos para passar quase praticamente o dia inteiro com Ele.

João 1.40-42

Um dos primeiros exemplos de evangelismo pessoal: André levou as boas-novas ao seu irmão, Pedro, dizendo que Jesus era o Messias. André ainda aparece mais duas vezes no Evangelho de João (Jo 6.4-9; 12.2-22) e, em ambas, ele está levando alguém até Jesus. Veja como Jesus vai ao encontro da necessidade pessoal de cada um deles. A André, Jesus revelou Sua humildade. A Pedro, Jesus revelou Sua habilidade de mudar o caráter humano. A Filipe, Ele revelou Sua autoridade. A Natanael, Ele revelou Sua onisciência. Tais demonstrações levaram cada um desses discípulos a testemunhar que Jesus é o Filho de Deus. Tu serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro). Cefas é uma palavra em aramaico que significa rocha (Mt 16.18). Jesus viu queocaráter de Pedro era como uma rocha, o que no futuro o levaria a tornar-se um líder e uma fiel testemunha.

João 1.43, 44

Jesus [...] achou a Filipe, e disse-lhe: Segue-me. Segundo esse versículo, parece que Filipe passou a seguir Jesus sem ter sido evangelizado por outro discípulo, mas há alguns fatores que indicam que André e Pedro estiveram com ele antes de ele se encontrar com Jesus. O versículo 44 diz que André e Pedro eram da mesma cidade de Filipe, o que sugere que eles tenham conversado. Além disso, quando Filipe disse a Natanael o que havia acontecido, ele disse: Havemos achado [...] Jesus de Nazaré (v. 45).

João 1.45

O nome Natanael não é mencionado nos Evangelhos Sinóticos. Mas em cada lista dos apóstolos registrada em Mateus, Marcos e Lucas o nome Bartolomeu é citado junto ao de Filipe. E bem provável que Natanael e Bartolomeu sejam a mesma pessoa. Filho de José. Até então, Filipe não sabia acerca do nascimento virginal de Jesus. Todavia, todos os discípulos logo vieram a reconhecer Jesus como Filho de Deus (v. 49).

João 1.46

Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? Natanael sabia que os profetas do Antigo Testamento haviam profetizado que o Messias nasceria em Belém; e Nazaré era um vilarejo inexpressivo. Por isso, Natanael não podia aceitar que alguém tão importante como o Messias viesse de um lugar tão insignificante como Nazaré. Vem e vê. Percebe-se que Filipe não foi com Natanael. A verdade não é transmitida com mais eficácia por meio de uma argumentação impositiva, mas por meio de um gentil convite: Vem e vê!

João 1.47

Eis aqui um verdadeiro israelita. Por um bom tempo, Jacó, um patriarca israelita, foi um homem astuto e cheio de dolo. Natanael era um israelita, um descendente de Jacó, porém, verdadeiro e sincero. Jesus viu o caráter de Natanael como um livro aberto (Jo 2.24)

João 1.48, 49

Te vi eu estando tu debaixo da figueira. No Antigo Testamento, esse termo sugere ideia de descanso e segurança (1 Rs 4-25; Mq 4-4; Zc 3.10). Natanael talvez estivesse meditando debaixo da figueira sobre o sonho de Jacó citado nos versículos 50 e 51. Te vi eu. Jesus aqui demonstra Seu conhecimento sobrenatural. Ao que parece, foi o que convenceu Natanael; sabedor de tal detalhe de sua vida, Jesus tinha de ser o Filho de Deus, o Rei de Israel (Jo 20.31). Esses dois títulos se referem ao Messias.

João 1.50

Coisas maiores do que estas verás. Jesus garantiu a Natanael que ele veria manifestações sobrenaturais ainda maiores no futuro. Jesus poderia estar referindo-se aos milagres dos capítulos 2 ao 11; Ele poderia estar se referindo também à futura glória de Cristo na vinda do Filho do homem (Jo 1.51; Dn 7.13).

João 1.51

Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem. Jacó teve uma visão de anjos subindo e descendo do céu por uma escada (Gn 28.12). E o sentido aqui é esse mesmo: uma ligação entre o céu e a terra. Filho do Homem, a mesma expressão usada em Daniel 7.13 para se referir a um ser celestial, era a maneira que Jesus mais gostava de referir-se a si próprio (Mt 8.20; Mc 2.10).

II. Hebraísmos e o Texto Grego

A abertura “en archē ēn ho logos” em João 1:1 transpõe para o grego o horizonte semita de bĕrēʾšît (“no princípio”), reencenando a cadência de criação de Gênesis 1:1-3 (“bĕrēʾšît bārāʾ ʾĕlōhîm... / “Disse Deus... e houve luz”: yĕhî ʾôr... wayhî ʾôr). A escolha de logos recobre o campo hebraico de dābār (“palavra” como agente eficaz), que no Antigo Testamento cria e cumpre o desígnio divino (“Pela palavra do SENHOR fizeram-se os céus”, Salmos 33:6; “assim será a minha palavra... não voltará para mim vazia”, Isaías 55:11). Até a repetição de egeneto (“veio a ser”) no prólogo ecoa o wayhî hebraico e a fórmula “genēthētō phōs... kai egeneto phōs” da própria tradução grega de Gênesis 1:3, sinal de calque semítico reconhecido em estudos de estilo do grego do Novo Testamento (Gênesis 1:1–3; Salmos 33:6; Isaías 55:11).

O retrato de João do “testemunho” nasce do universo jurídico da Torá. Quando o evangelista introduz o Baptista “eis martyrian” (João 1:7–8), ele trabalha com a semântica de ʿēd/ʿēdût (“testemunha/testemunho”) e com o princípio probatório de “duas ou três testemunhas” (Deuteronômio 19:15), uma coloração hebraica que a Septuaginta verte com o mesmo léxico jurídico que João assume em sua narrativa e teologia da prova. Essa presença de “semitismos de estilo” — sintaxe paratática com kai, giros herdados do grego bíblico e calques do hebraico — é precisamente o que a bibliografia descreve como “um estilo bíblico grego moldado pela LXX”, isto é, um grego intencionalmente permeado pela cadência semita de Escritura.

Quando João escreve que o Logos “eskēnōsen en hēmin” (João 1:14), ele aciona deliberadamente o verbo hebraico šākan (“habitar”) e o campo de miškān (“tabernáculo”), centro do Êxodo: “Façam-me um santuário para que eu habite no meio deles” (Êxodo 25:8; cf. Êxodo 40:34-35). O efeito é duplo: lexical, porque eskēnōsen alude ao “armar tenda” de Deus no deserto; e imagético, porque a “glória” (doxa) que os discípulos “contemplaram” (João 1:14) convoca o rastro espesso do kāvôd que enchia a Tenda do Encontro. É por isso que leituras acadêmicas veem em João 1:14 um aceno programático ao Êxodo e à teologia do Tabernáculo: o Deus que habitou entre Israel sob a nuvem agora “tabernacula” em carne.

Na mesma frase, “plērēs charitos kai alētheias” (João 1:14) mapeia de modo quase formulaico a coligação hebraica ḥesed weʾemet (“amor leal e fidelidade”) proclamada na teofania do nome em Êxodo 34:6-8. João mantém a semântica de aliança, mas verte ḥesed por charis (graça), preservando alētheia para ʾemet (verdade), e assim inscreve a identidade do Filho no autorretrato de YHWH revelado a Moisés. O par reaparece em João 1:17, como contraste-organicidade entre a dádiva por meio de Moisés e a plenitude encarnada no Messias.

A sequência “ek tou plērōmatos autou elabomen charin anti charitos” (João 1:16) também se lê à luz do Êxodo: “graça em lugar de graça” (ou “graça sobre graça”) despliega a ideia veterotestamentária de favor renovado — ḥēn — no pacto, que cerca a súplica e a resposta de Êxodo 33:12-19 antes da proclamação de Êxodo 34:6–7. Nessa moldura, a escolha lexical de João integra o léxico hebraico de favor e fidelidade à economia cristológica da plenitude.

O título “ho amnos tou theou” (João 1:29) condensa percursos lexicais e tipológicos hebraicos. Ele remete ao cordeiro pascal de Êxodo 12 (śehkebeś), cujo sangue preserva as casas, e à figura do Servo levado “como cordeiro ao matadouro” (kaśśeh laṭṭeḇaḥ yūbal, Isaías 53:7). Assim, o hebraísmo do título é tanto léxico quanto intertextual: João reconhece em Jesus a convergência das matrizes de sacrifício e libertação que estruturam a memória de Israel (Êxodo 12; Isaías 53:7).

O enunciado “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18) volta ao Sinai para orientar sua teologia da revelação: “homem nenhum verá a minha face e viverá” (lōʾ yirʾennî hāʾādām wāḥāyÊxodo 33:20; cf. 33:23). O hebraísta do quarto evangelho não dissolve a inacessibilidade da kābôd; antes, confessa que o “Filho unigênito” (ho monogenēs) a interpreta e a dá a conhecer, retomando em grego o itinerário da teofania mosaica agora mediada pessoalmente (Êxodo 33:18-23; João 1:18).

Mesmo detalhes narrativos do prólogo são moldados por hebraísmos. O período “egeneto anthrōpos apestalmenos para theou” (João 1:6) apresenta João como “enviado”, repercutindo o verbo hebraico šālaḥ (“enviar”) que a Septuaginta verte de modo estável por apostellein, linguagem de vocação profética que ressoa, por exemplo, na comissão de Isaías (“Quem enviarei?... envia-me”, Isaías 6:8). A sintaxe paratática com kai ao longo do capítulo — frequentemente vista como molde do waw consecutivo — e a locução kai egeneto como giro formulaico reforçam como a fraseologia grega de João guarda a marca do hebraico bíblico internalizado via Escrituras (Isaías 6:8).

Por fim, o léxico luz–trevas (to phōs / hē skotia) em João 1:4-5 retoma não só Gênesis 1:3-5 na criação da luz, mas o padrão profético de iluminação sobre o povo em sombras (Isaías 9:1-2). O evangelista redistribui esse vocabulário em modo semita: a “luz verdadeira” que “ilumina a todo ser humano” não é conceito abstrato, mas o próprio agir eficaz de Deus, como o dābār que cria, julga e salva.

Esses traços — calques como kai egeneto, parataxe “hebraizante”, escolhas lexicais motivadas por šākan/miškānkāvôdḥesed weʾemet e a matriz jurídico-profética de “testemunho” — mostram que João 1 foi pensado, frase a frase, como grego bíblico saturado de hebraico. Não é “colar de citações”, mas prosa koiné que deliberadamente respira a sintaxe, a morfologia e o léxico das Escrituras de Israel, tal como lidas na LXX, para narrar a chegada do Deus de Êxodo 33-34 em carne e entre nós.

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