Estudo sobre Apocalipse 21:2

Estudo sobre Apocalipse 21:2



Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém. Portanto, a nova humanidade aparece como sociedade organizada, como cidade, não como um amontoado informe de pessoas. Diante desse termo (pólis) a pessoa grega imaginava primeiramente uma constituição e ordem jurídica cidadã e progressista, e não tanto um complexo fisicamente delimitado de prédios atrás de muros.1031 Totalmente diversa era a compreensão em Israel e no AT, onde o que interessava numa cidade era precisamente residir seguro atrás de muros protetores. No entanto, independentemente se o conceito de cidade se associava mais fortemente com a ideia de uma ordem libertária, condizente com a dignidade humana, ou com a concepção de abrigo e defesa, em todos os casos trata-se de um conceito máximo, de um alvo dos anseios humanos. A cidade é símbolo de uma plenitude de proteção e paz, de bens e cultura, de ânimo alegre e vida. Não há como negar que até hoje ela causa o êxodo rural. A cidade, ou seja, o cosmos arrebatado do caos. Tudo isso está próximo de pensamentos a que já fomos motivados por Ap 18.21-23 (cf. também o excurso 15e), onde eles se incendiaram na visão da contra-cidade, a saber, da Babilônia.

Nessa constatação evidencia-se mais uma vez que o alvo mais elevado da profecia bíblica não consiste de um encontro meramente pessoal do ser humano com seu Deus. Pelo contrário, o homem tem o encontro com Deus no âmbito de uma comunhão humana, na qual todos os problemas comunitários estão solucionados (v. 2), e ele o encontra no contexto de um meio-ambiente, no qual todas as carências do mundo estão resolvidas (v. 1). Deus não apenas salva em termos pessoais, mas também universais. A mera religiosidade eu-tu, que em seu discurso ignora a natureza e a política, não acertará o alvo eterno. Por isso nossa fé, enquanto resposta à palavra de Deus, também deveria tentar abranger relações com o ambiente e com questões objetivas, e não limitar a esperança, o amor e o testemunho a assuntos somente do coração.

Era justificável que primeiro abordássemos isoladamente o conceito “cidade”, que no presente capítulo ocorre nada menos do que nove vezes. Agora, porém, causa impacto que essa nova cidade traz um nome antiquíssimo: a nova Jerusalém. Uma linha que começou mil anos antes de Cristo sobrevive a todas as catástrofes políticas e religiosas, até mesmo ao desaparecimento do céu e da terra, e ressurge na consumação, para ali atingir sua plenitude.

Quando Davi já era rei de Israel e Judá, ele conquistou Jerusalém com sua própria milícia, ou seja, sem recorrer aos dois exércitos populares. Dessa maneira essa cidade tornou-se a “cidade de Davi”, como uma terceira grandeza entre as duas partes do país. Assim como o reinado de Davi, essa cidade estava acima da oposição entre Israel e Judá e mais tarde também acima da oposição entre judeus e gentios. Em decorrência, a aliança entre Deus e Davi celebrada nela desde o começo abrangia os espaços e tempos mais amplos, estando projetada para o reinado de Deus sobre uma humanidade inteira. A peça central dessa aliança era: “Eu estou presente!” Jerusalém e seu Templo eram a sede de descida de Deus, e de lá Deus queria trazer todas as nações de volta à sua presença e abençoá-las. Essa “Jerusalém”, essa sua morada na terra, a ela Deus em seguida conservou em uma estonteante história de fidelidade, passando precisamente por pecado e fracasso, por destruição, dispersão e separação. Finalmente sobrou apenas um resto de tudo: Jesus na cruz! Ele sozinho ainda era “Templo” (Jo 2.19). Contudo Deus, que não pode arrepender-se de suas dádivas e vocações, tornou verdadeira sua fidelidade e deixou sua glória fluir de maneira nova para dentro do corpo crucificado de Jesus. Assim “Jerusalém” foi ressuscitada da morte, o “Templo” foi reconstruído e reaberto como lugar da presença de Deus (Mt 28.20). Os povos têm acesso de todos os lados.


Na verdade a paciência de Deus ainda retarda a revelação plena dessa “Jerusalém”, sendo ela ainda uma grandeza oculta em Deus (Cl 3.3). Ela já se encontra em nosso mundo somente na forma de certos postos avançados, mas a “capital está no céu” (Fp 3.20 [tradução do autor]).1032 Nossa Jerusalém está “em cima” (Gl 4.26). Somente pelo Espírito Santo os cristãos têm acesso a ela desde já (Hb 12.22,23).1033 No entanto, se na parusia tudo é revelado, tanto o fim do velho mundo quanto também o novo mundo, então também será revelada a nova Jerusalém com glória perfeita.

João vê a nova Jerusalém que descia do céu, da parte de Deus. Por meio de uma expressão tríplice frisa-se com ênfase marcante que não se trata de modo algum de uma reconstrução geográfica da Jerusalém da velha terra, sobre a qual o judaísmo se debruçava com tanta vitalidade. Aquela velha Jerusalém na Palestina não é submetida à transfiguração, assim como não o foi a antiga terra. Em primeiro lugar, portanto, João vê a Jerusalém prometida descer.1034 Não se constrói de baixo para cima. Toda construção que partia da terra para cima levou à Babilônia, nunca à cidade de Deus e ao Estado de Deus, e nada que não seja do alto é realmente novo (Jo 3.3). Por isso essa cidade desce do céu, do maravilhoso mundo incompreensível. Por fim ainda se diz: da parte de Deus. Deus mesmo é seu “Arquiteto e Construtor” (Hb 11.10 [teb]).

Revela-se como fato importante que a nova Jerusalém imediatamente se manifeste como concluída. Embora do ponto de vista de João ainda tenha conotação de promessa,1035 ela não obstante já é uma grandeza atual, que no fundo já está pronta desde a obra redentora de nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 14.2).

Há paralelos no judaísmo para o discurso a respeito de uma Jerusalém celestial esperada no tempo da salvação. Tanto maior deve ser nossa atenção para com o material exclusivo de João.

Agora João vê a figura da noiva, que já foi preparada em Ap 19.7,8 (cf. o comentário ao texto), associada à cidade: ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Para o leitor antigo fazia sentido combinar uma cidade com a figura de um personagem feminino. Muitas vezes as cidades aparecem, p. ex., sob um símbolo materno. Recordamo-nos da possibilidade de trocar os termos mulher e cidade no caso da Babilônia (cap. 17,18). Contudo, o judaísmo não realizou essa conexão com vistas à nova Jerusalém.

João vê a cidade descer, formosa como uma noiva. Apreciemos o testemunho contido nessa expressão! Se a glória dessa cidade celestial, que ainda será muito enaltecida no apêndice próprio de Ap 21.9–22.5, em última análise é a glória da noiva do Cordeiro, então o mistério dessa glória consiste no amor íntegro, não fingido e irrestrito ao Cordeiro (cf. o comentário a Ap 12.11; 14.4). Obviamente essa natureza amorosa está fundada sobre uma mais profunda, a do amor de Deus e do Cordeiro pelos redimidos (Ap 1.5; 3.19), que a despertou para responder com amor.

Além disso, cumpre considerar ainda que essa nova Jerusalém será simultaneamente o coração vivo das nações sobre a nova terra (cf. o comentário ao v. 3), de modo que com a natureza dessa cidade também já se abordou a natureza das pessoas novas e restauradas como tais. Como, pois, foi restaurado o ser humano, que pela avidez de poder e riquezas, por imoralidade e mentira, por medo e indiferença, tornou-se uma caricatura sombria de si próprio? O Cordeiro que ama e que desperta para respondermos com amor é seu centro de restauração. Ingressar nesse amor é o fim e a plenificação da humanidade, tal como Deus a tem diante dos olhos, desde que criou a Adão, e tal como ele a concretizará finalmente do alto, quando Cristo aparecer.



Notas:
1031 Os gregos às vezes designavam de “cidade” até mesmo regiões abertas com algumas aldeias, quando elas viviam sob uma constituição comum, cf. Strathmann, Ki-ThW, vol. vi, pág. 517.

1032 A tradução com “capital” ou “cidade natal” é demandada nesse texto por Stauffer, Theologie des NT, 1948, 5ª ed., pág. 278. Essa cidade traz no rol de cidadãos os distantes colonos.

1033 De acordo com Ap 14.1 eles estão parados sobre o “monte Sião”. A expressão não deve ser confundida com a Jerusalém futura (cf. o comentário àquele texto).

1034 Esse descer do alto é afirmado a respeito de Jesus: Jo 3.31; 6.33,38,41,50,51; 8.23. Ele é a pedra fundamental da nova Jerusalém. Contudo, todas as “pedras” edificadas sobre ele também precisam ser originárias do alto: Jo 1.13; 3.3; 1Jo 2.29; 3.9; 4.7; 5.18.

1035 Com essa observação não estamos sugerindo que a nova Jerusalém se revela a cada fiel individualmente na hora de sua morte, como muitos dos nossos hinos o retratam consistentemente. P. ex., J. Meyfart em seu conhecido hino “Jerusalem, du hochgebaute Stadt” [Jerusalém, cidade construída no alto] ou os hinos fúnebres “Alle Menschen müssen sterben” [Todas as pessoas têm de morrer] (verso 6) e “Es ist noch eine Ruh vorhanden” [Há ainda um repouso] (verso 5). Essa modificação unânime e bastante grosseira de Ap 21 é significativa para como durante séculos até os círculos da mais profunda devoção cristã ficaram distantes do texto bíblico.