Estudo sobre Apocalipse 21:9-14

Estudo sobre Apocalipse 21:9-14



Repetem-se agora quase literalmente palavras de Ap 17.1: Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias dos últimos sete flagelos (“pragas”) e falou comigo, dizendo. Naquela passagem naturalmente o tema era totalmente outro do atual, a saber: “o juízo sobre a grande meretriz”. Aqui, porém, o anjo anuncia: Vem, mostrar-te-ei a noiva, a esposa (“mulher”)1055 do Cordeiro. Cria-se, portanto, um paralelo proposital entre esses dois alvos da humanidade, conforme a respectiva decisão a favor da “besta” ou a favor do “Cordeiro”.
 
E me transportou, em espírito (“E ele me levou embora no Espírito”) (cf. Ap 1.10; 4.2; 17.3), até a uma grande e elevada montanha. Assim como Moisés viu a imagem original do tabernáculo e mais tarde a terra prometida do alto da montanha, e assim como Ezequiel viu a futura cidade de Deus de um “monte muito alto” (Ez 40.2), assim também João vê a glória prometida de um lugar elevado.1056 E me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus. A cidade santa, que em Ap 11.2 existia unicamente em seu cerne, surge agora plenamente edificada em todas as suas extensões, e obviamente não sobre a velha terra na Palestina, mas sobre a nova terra depois do desaparecimento da primeira. O acréscimo que descia do céu, da parte de Deus restabelece uma nítida conexão com Ap 21.2.1057

Desde logo João antecipa a impressão dominante dessa cidade, que requer ser mantida em toda a visão (cf. Ap 21.23). Ela tinha a glória de Deus. Está cheia até as bordas com a glória divina (cf. nota 131). O “ter” afirmado pelos elogios nas mensagens às igrejas a respeito da igreja no presente (nota 185) seguramente já faz parte dos derramamentos dessa glória. Contudo, a glória de Deus ainda se encontra em luta com a falta de glória das pessoas. No presente texto ela conquistou definitivamente a supremacia, preenchendo o espaço todo sem restrições. Ezequiel relata como ela entra no santuário.1058 Quando o presente texto diz desde já que a nova cidade a “tem”, fica declarado que por sua natureza essa cidade e a glória de Deus formam um conjunto.
 
Sem dúvida manifesta-se claramente a relação, já perceptível em Ap 21.3, entre a nova Jerusalém e o tabernáculo. No decurso posterior da descrição essa linha se impõe mais e mais.
 
Enquanto no AT a glória de Deus muitas vezes aparece na forma de uma nuvem radiante e, apesar disso, opaca, ela brilha aqui como luz não velada, mas descoberta. Seu fulgor1059 era semelhante (“igual”) a uma pedra preciosíssima, como pedra de jaspe cristalina. Até a última das pedras da cidade reluz com um branco intenso e com uma luminosidade prateada. Propõem-se a comparação com a “pedra real” jaspe (cf. o comentário a Ap 4.3). Nos versículos seguintes, todo o brilho e cintilação requerem ser explicados a partir dessa “glória de Deus”. É ela que com os seus raios atravessa todos os materiais, não deixando esconderijos para as sombras.
 
Agora a descrição da cidade passa da altitude para a profundidade dos muros, passando pelos portões, até os fundamentos. Tinha grande e alta muralha. Na Antiguidade, o viajante que se aproximava de uma grande cidade inicialmente não via nada além de muros, que muitas vezes sobrepujavam até as casas. Da grandeza deles podia depreender a força, a riqueza e a segurança da cidade. João destaca intensamente os muros da nova Jerusalém.1060 Contudo, simbolizam para ele sobretudo a separação realizada entre o puro e o impuro (v. 27), pois na nova terra descartou-se a tarefa de repelir ataques. “O mar já não existe” (Ap 21.1) e “já não haverá noite” (Ap 21.25; 22.5). O muro demarca a “santidade” da cidade (v. 10), isto é, sua separação do que não é sagrado, do que se encontra “lá fora”,1061 a saber, no charco de fogo. Conforme esse dado, não existe um céu no qual “naturalmente” todos entrarão um dia. A nova Jerusalém não é uma “ubiquidade que se dilui para todos os lados” (W. Stählin).

 
O pensamento continua a desenvolver-se. No muro há doze portas (“portões”), e, junto às portas (“sobre os portões”), doze anjos, ou seja, vigias dos portões. Em decorrência, os portões, que conforme o v. 25 estão abertos, não devem ser interpretados erroneamente. Não contradizem o que os muros altos anunciam. Os textos de Ap 21.27 e 22.14,19 sublinham que não existe acesso à cidade santa sem um controle. Quem tem permissão de entrar nela?
 
E nos portões estavam nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel, muito semelhante a Ez 48.30-35. O sentido é que não poderá ingressar na cidade ninguém que não fizer as pazes com Israel. Além de Israel não existe nenhuma outra base de salvação nem tampouco uma nova Jerusalém (cf. Ef 3.6; 2.19; Rm 11.13-15).
 
Nesse ponto fica clara também a mais singela explicação do número doze, sempre recorrente.1062 Ele não é deduzido de concepções cósmicas (excurso 20b), mas sim do at. Logo, essa visão não sonha de maneira genérica com o aperfeiçoamento do mundo, mas está profundamente comprometida com a história da revelação no at. O que o antigo nome “Jerusalém” já proclamava (Ap 21.2) é agora ressaltado por “Israel”: na última cidade o povo das doze tribos da antiga aliança é aperfeiçoado.

Rissi expõe que cada portão representa um convite do Deus fiel àquela tribo de Israel cujo nome ele traz. Os portões, portanto, seriam um indício para o grande retorno de Israel da “sinagoga de Satanás” (Ap 3.9) e do charco de fogo. Por princípio ele também coaduna o número doze com a nação de Israel, enquanto, segundo sua opinião, no contexto da igreja de Jesus deveria aparecer o número sete. A delimitação dos doze à nação de Israel, no entanto, será corrigida pelo v. 14, e o número sete é relacionado no Ap a tantas coisas que é impossível restringi-lo justamente à igreja. Na realidade parece improvável que os portões fossem denominados conforme um Israel que se encontra do lado de fora. Apoiando-se na profecia do AT, o texto projeta uma imagem inversa: não é Israel que vem, mas são os reis dos povos que vêm à cidade, a “Israel” (v. 24-26).
 
À semelhança de Ez 48, o v. 13 distribui os doze portões entre os quatro pontos cardeais. Do Leste três portões levam à cidade, e do Norte três portões, e do Sul três portões, e do Oeste três portões. A simetria, narrada solenemente, não apenas alegra o olhar, mas igualmente o coração. Anuncia ao observador que nenhuma parte da cidade está em condições mais precárias e fracas que a outra. Cada lado da cidade e cada parcela da população dessa cidade está equipada de forma homogênea. Nas cidades antigas os edifícios dos portões, com um pátio amplo, constituíam centros importantes, nos quais se desenrolava a vida. Desse modo assegura-se o resultado de que nenhum membro do povo de Deus sofre, mas que cada um deles é gloriosamente considerado (1Co 12.26). O olhar resignado lançado ao membro melhor situado (1Co 12.15,16) ou ao servo talentoso (Mt 25.16), um olhar que ainda hoje impossibilita tanto serviço e louvor a Deus, finalmente desaparecerá. Todos louvam a Deus “a uma boca” (Rm 15.6 [rc]).
 
Na menção e descrição das pedras das fundações,1063 para as quais o AT não fornece nenhum paralelo, salienta-se um interesse singular. A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. Esse dado impede enfaticamente que se refira a nova Jerusalém unilateralmente ou mesmo predominantemente à nação Israel (cf. o exposto sobre o v. 12), pois o fundamento da cidade é formado pelos apóstolos do Cordeiro, que pelo seu sangue comprou para si pessoas “que procedem de toda tribo, língua, povo e nação” (Ap 5.9). Quem separa os gentílico-cristãos dos apóstolos, não somente esvaziaria a nova Jerusalém, mas também a cruz de Cristo.
 
Pelo fato de que João vê tanto os nomes dos doze patriarcas quanto também os nomes dos doze apóstolos como emblema da nova Jerusalém, ele está vendo a unidade da história da salvação, do povo da salvação e da consumação da salvação. Um significado análogo já estava contido na passagem do cântico de Moisés e do Cordeiro (Ap 15.3). Tudo isso é confirmado também por Paulo, sobretudo na carta aos Efésios (nota 320). Contudo, em 1Co ele igualmente está lutando para que a plenitude do evangelho não seja diminuída, combatendo qualquer tentativa de usar Pedro contra Paulo ou vice-versa. Percebe uma divisão do grupo de apóstolos como divisão do próprio Cristo (1Co 1.13). A nova Jerusalém é o contrário dessas divisões, ou seja, nela congregam-se todos os santos dentre judeus e gentios, para a unidade do reconhecimento de fé no Filho de Deus (Ef 4.13).



Notas:
1055 Depois de várias preparações em trechos anteriores (cf. o exposto sobre Ap 19.7), a noiva aparece agora com uma descrição detalhada. Conforme o uso linguístico semita, “mulher” pode ser usado para designar uma noiva.

1056 Provavelmente o monte é apenas o lugar que torna viável que João veja. Não se diz que também a nova Jerusalém se situa sobre um monte.
 
1057 “Cidade santa” ainda ocorre em Ap 22.19 e já em Is 52.1. – Zahn entende essa visão como uma ilustração do milênio, de maneira que ela se refere ao tempo antes da nova criação. De forma análoga explica-a a “Bíblia de Jerusalém”. Essas interpretações, porém, ferem a conexão com Ap 21.2.

131 A palavra grega dóxa, que Lutero traduziu para o alemão com termos como honra, glória, claridade, louvor, exaltação, fama ou majestade, constitui a raiz de doxologia. Quando o AT foi traduzido para o grego, dóxa assumiu o lugar da palavra hebraica kabod: o impactante, impressionante, sobretudo o esplendor glorioso e anestesiante e a glória da luz de Deus, que um dia arrasará toda a resistência e voltará a ocupar toda a criação (Sl 72.19; 57.5,11; Is 40.5; também de acordo com Ap 21.24 dóxa tem a ver com uma manifestação de luz). No tocante ao livro em estudo, este constitui um tema principal. Ap fala 17 vezes da dóxa. – No mais, a doxologia de Ap 1.6 aparece literalmente em 1Pe 4.11, o que é um indício de que era de uso generalizado nos cultos. Talvez seja a resposta da fé a Is 53.2: “Ele não tinha dóxa” (LXX).
 
185 O “ter” da igreja, constatado por Cristo (p. ex., também em Ap 2.6,14,15,24,25; 3.11) igualmente pertence ao vocabulário joanino. O próprio Cristo “tem” (Ap 1.16,18; 2.12; 3.1,7). Passagens análogas sobre o ter espiritual encontram-se no evangelho e nas cartas de João.
 
1058 Ez 43.2-4; cf. Êx 40.34; 2Cr 5.13,14; 7.1-3; Ap 15.8.

1059 Em geral o termo grego phostér significa “corpo luminoso”, p. ex., descrevendo astros. Aqui dificilmente é essa a idéia sugerida. O v. 23 já depõe contra ela. É por isso que cabe melhor a outra acepção possível, “fulgor”.

1060 Ap 21.12,14,17-19. Em Ezequiel os muros de Jerusalém não têm importância alguma.
 
1061 Discordando de Rissi, o “lá fora” não faz lembrar a área imediatamente fora da cidade, onde, pelo contrário, se estende a nova terra e onde habitam povos abençoados. Afinal, seus reis também podem entrar pelos portões (v. 26), não estão “fora” no sentido de estarem nas trevas, mas encontram-se na luz plena (v. 24).
 
1062 Onze vezes em Ap 21.12,14,16,21; 22.3 e “cento e quarenta e quatro” no v. 17.

1063 Certamente fazem parte dos doze trechos de muros que se formam entre os doze portões.
 
320 Para evitar mal-entendidos, recomenda-se falar a respeito da igreja não como novo Israel, e sim como Israel renovado. Desta maneira elimina-se a ideia de um segundo povo de Deus. O povo de Deus único e singular havia passado por uma decadência, que o reduziu a um tronco básico, “como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda fica o toco” (Is 6.13). Este “toco” é, em última análise, Cristo (cf. o exposto sobre Ap 1.4,6). “Assim a santa semente é o seu toco.” Dá-se a transição da figura do toco para a da semeadura, da forma como o próprio Jesus a retomará (Jo 12.24). O crucificado traz muito fruto, o exaltado atrai para junto de si judeus e gentios (Jo 10.16; 12.32). Em Rm 11 Paulo fala do enxerto dos gentios no tronco básico de Israel. Por estarem em Cristo Jesus vivem em Israel como co-herdeiros, corpo unificado, concidadãos e membros da família (Ef 2.19; 3.6). Precisamente a carta aos Efésios constitui-se num único apelo de não separar o povo de Israel unificado pelo sangue de Jesus novamente entre judeus e gentios. A antiga rachadura repetidamente tenta manifestar-se, e Paulo fixa em capítulo após capítulo a marca de Cristo: uma só igreja!