Estudo sobre Apocalipse 21:22-23

Estudo sobre Apocalipse 21:22-23




Para o ponto alto da visão de Jerusalém que começa aqui é significativo que do presente versículo até Ap 22.5 não falta o fundo do AT para nenhum versículo. Palavras e expressões da mais venerável profecia avolumam-se nos lábios de João quando tenta descrever o que está vendo. Pontos culminantes similares encontramos em Ap 7.15-17 e 21.1-8 (cf. também as observações preliminares a Ap 5.12-14.)

Vista de lado, uma cidade da Antiguidade mostrava quase somente muros e portões, atrás dos quais a maior parte das moradas desaparecia. Em contraposição, era impossível não ver as edificações dos templos, que sobrepujavam o todo. p. ex., a torre de Etemenanki na Babilônia media 91 metros de altura e tinha uma largura imponente. Por isso não causa estranheza que João descreva a cidade pormenorizadamente sem citar bairros residenciais, porém era de se esperar uma palavra a respeito do templo. Ademais, também Ezequiel, a quem a visão recorre constantemente, havia depositado a maior ênfase no templo da nova Jerusalém. O judaísmo conferia enorme peso a essa profecia. Para ele a expectativa pela reconstrução de Jerusalém estava ligada de maneira decisiva com um templo insigne, cuja riqueza opulenta de ouro e prata e de decorações em púrpura e cujos utensílios e rituais são descritos com minúcias.1066

Por isso João ouve a pergunta impaciente do mundo ao seu redor: e o Templo? Afinal, quando é que vais falar do essencial? Como se tivesse a intenção de responder a isso, ele começa: Nela, não vi santuário (“E um templo – não o vi nela” [tradução do autor]). Essa frase representa um choque profundo para os ouvidos judaicos. Contudo, a segunda metade do versículo anuncia que a profecia de Ezequiel sobre o templo (ou também de Dn 8.14) de forma alguma está descartada, porque, na verdade, a cidade vista por ele possui um Templo:
 
Porque o seu santuário (“Templo”) é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. Aquela nota de ausência constitui uma deficiência apenas aparente. É somente por equívoco que a cidade poderia ser chamada, por essa razão, de cidade não santa. O v. 27 refutará de modo expresso esse equívoco. Na realidade, a profecia para o Templo se cumpre na nova Jerusalém de maneira tão impressionante que nem os próprios profetas do AT ousaram imaginar.
 
Santuários em forma de templo proclamam duas verdades. Primeiramente evidenciam que a área restante da cidade não é sagrada. As demais casas e a vida cotidiana não são mais lugar de encontro entre Deus e ser humano. Unicamente esse recinto separado, recortado,1067 é santo. Ao mesmo tempo, porém, o templo também está numa cidade como sinal da fidelidade de Deus. O santo Deus não voltou inteiramente as costas à terra profana, mas deixou um penhor de sua volta, um dedo indicador levantado. Deus quer retornar e quer santificar novamente a cidade toda, a terra toda e o mundo inteiro.
Por meio de uma grandiosa alteração na configuração, a criação inteira deve voltar a ser lugar da sua revelação. “Pois a terra se encherá do conhecimento da glória do Senhor, como as águas cobrem o (chão do) mar”; “todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus” (Hc 2.14; Is 11.9; 52.10). Como a água penetra em todos os cantos, em cada fenda, correndo para todos os declives e não deixando nada fora, assim Deus será tudo em todas as coisas (1Co 15.28). Ele penetra em tudo com densidade inimaginável e com consistência ininterrupta. Esse é o mistério da nova criação. Por isso ela é um mundo sem contradição, sem discórdia e aflição, mas também sem tédio e qualquer monotonia. Uma humanidade unificada louva a Deus sem esmorecer, ama-o sem se cansar e contempla-o sem fim.

Esse é o motivo mais profundo pelo qual os moradores da nova cidade não veem nenhum templo: veem a Deus! (Ap 22.4). Nessa situação não cabe nenhum templo como santuário à parte. Um templo é típico para o mundo velho, embora seja também testemunha de um novo mundo. Essa testemunha pode retirar-se quando aparece aquele que foi testemunhado, quando Deus está presente como “testemunha” de si próprio, ou seja, como “templo”. Em decorrência, o desaparecimento do templo constitui justamente o sinal do cumprimento do conceito do templo.

 
Seguramente essa é uma interpretação muito ousada das profecias de Ezequiel acerca do templo, e o judaísmo provavelmente a rejeitou, ofendido. No entanto, ela constitui uma explicação do próprio Deus a João, e converge com todo o NT.1068

Enquanto Deus aqui é mencionado, com solenes pormenores, como o Senhor, o Deus Todo-Poderoso,1069 consta apenas, como breve apêndice, e o Cordeiro. No presente livro basta essa breve lembrança. É óbvio que em nenhum instante Deus pode ser imaginado sem o Cordeiro. Em todos os casos, mesmo que o Cordeiro não fosse mencionado, ele é o Deus que se revela em Jesus Cristo. Essa verdade vale precisamente para o cumprimento da linha do templo. Pois o fato de Deus acampar na nova humanidade e ser contemplado por ela (Ap 22.3,4) tem seu ponto de irrupção no início da era cristã. Já na Palestina Deus acampou entre a sua propriedade e foi notado em sua glória (Jo 1.14). Aquele evento já foi o começo da nova Jerusalém. A consumação em Ap 21,22 não pode ser separada desse começo, ou seja, do Natal, da Sexta-Feira da Paixão e da Páscoa. Foi lá que aconteceu o verdadeiro nascimento do sol, ainda que permanecesse envolto por nuvens de neblina e lutasse contra fumaça e sombras. O presente capítulo traz a concretização total. Somente com esse entendimento é que a igreja cristã fala da nova Jerusalém, a saber, ela fala cristologicamente.
 
A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade. O texto sobre a consumação em Ap 7.15-17 já anunciou o fim da radiação solar. Isso acontece no exato sentido de Is 60.19,20; cf. 24.23, em que o brilho do sol e da lua é entendido como algo supliciante, pois o trecho termina anunciando: “os dias do teu luto findarão”. Contudo o Ap não se prende a uma única maneira de utilizar as ilustrações. Aqui o sol e a lua aparecem numa frase construída de forma totalmente paralela ao v. 22, demandando por isso uma interpretação paralela. Trata-se novamente da ideia de que algo que fazia parte da constituição básica e não eliminável do mundo velho foi agora cumprido e abolido. Sol e lua são entendidos aqui no sentido de Gn 1.16, como “governantes” do dia e da noite. Toda a vida da primeira criação vivia debaixo do sol e da lua, sob seu domínio sobre dia e noite, vazante e maré, verão e inverno, plantio e safra, dia de trabalho e lazer, morte e vida. Nessa função esses governantes sem dúvida representavam o senhorio de Deus, que os “fizera” e “colocara” (Gn 1.16,17). Tratava-se, porém, de um senhorio de Deus por meio de intermediários. Esse tempo dos intermediários e da soberania mediada de Deus passou. Deus ingressa diretamente em sua criação e governa e apascenta tudo que tem vida. A nova humanidade não está mais submetida a tutores, mas tornou-se livre para a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21 [blh]). Pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada.1070



Notas:
1066 Cf. Michel, Ki-ThW, vol. iv, pág. 894, cf. Bill iii, pág. 852: “A Jerusalém futura sem templo – uma idéia inconcebível para a sinagoga antiga”.
 
1067 “Templo” origina-se do latim templum e está ligado ao conceito “cortar”.

1068 Essa compreensão já foi preparada por passagens do AT como Jr 3.16,17 (no tempo da salvação não haverá mais arca da aliança).
 
1069 Também em Ap 1.8; 4.8; 11.17; 15.3; 16.7,14; 19.6,15.

1070 Não se deve imaginar duas fontes de luz, assim como no v. 22 não se pensa em dois templos nem em Ap 22.3 em dois tronos. Pelo contrário, a ideia é de um entrelaçamento de Deus e do Cordeiro, cf. o comentário ao v. 22.