Estudo sobre Atos 1:1-3
Estudo sobre Atos 1:1-3
Atos dos Apóstolos não começa com um “prefácio” propriamente dito, como o evangelho de Lucas. Isso é digno de nota. No evangelho, Lucas pode argumentar que “muitos” já fizeram o que ele também está empreendendo com o seu escrito. Não era nada de novo e extraordinário. Agora, porém, ele apresenta um livro para o qual não havia modelo e que existe como grandeza solitária. Como teria sido plausível que o autor dissesse algo sobre como foi levado a essa nova e audaciosa ideia: retratar a época apostólica numa segunda obra histórica. Ele não diz nada, e de imediato passa ao objeto em si da obra. Distancia-se de qualquer atenção para si mesmo. Contudo aponta para seu primeiro livro. Esse gesto também não está interessado em ressaltar sua realização, nem mesmo em fazer uma correlação literária plausível, mas sim no conteúdo em comum. Desde já somos direcionados na direção correta: está em questão o Único, que ocupa o centro, mesmo quando os “atos dos apóstolos” são relatados. Nesse sentido mais profundo, Atos dos Apóstolos é uma “continuação” do evangelho, e não uma segunda obra independente do autor. Teófilo5 soube de “todas as coisas que Jesus começou a fazer e ensinar”6 por meio do evangelho de Lucas. Agora ele há de ouvir o que Jesus continuou a efetuar e anunciar.
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Porque Jesus “vive”! Afinal, o próprio evangelho não terminou, como qualquer biografia humana (até mesmo as dos grandes e poderosos), com a morte e o sepultamento, mas com a “acolhida nas alturas” do Senhor ressuscitado (Lc 24.36-53). É isso que Lucas evoca. Os apóstolos participam desse acontecimento desde já. Por essa razão, Lucas dispôs as palavras “por intermédio do Espírito Santo” de um modo peculiar, somente possível no idioma grego, de sorte que se referem tanto à eleição original dos apóstolos como também à sua incumbência atual. A tradução deveria deixar isso claro: “pelo qual também os escolhera”. O que Jesus faz, Ele faz “no Espírito Santo”, ou seja, não a partir de si mesmo, mas completamente sob condução divina, de maneira que em Seu fazer aconteça o agir de Deus. Isso já acontecera na primeira vocação dos discípulos, na qual raiou o alvo de seu “envio” (Mc 3.13ss; Lc 6.13).7 Naquela ocasião, esse alvo obviamente era limitado em termos cronológicos e de conteúdo (Lc 9.10; 10.17; Mt 10.5s). Agora ele se torna a nova “incumbência” universal (v. 8). Por meio dela o Ressuscitado, que como “Senhor” dá suas ordens, põe em movimento a História, que Lucas pretende descrever em seguida. A eleição dos apóstolos durante a atuação de Jesus na terra agora mostra seu verdadeiro sentido. É por isso que a história deles precisa suceder imediatamente ao evangelho.
Mais uma vez, Lucas salienta a realidade da ressureição. Diferentemente do final do evangelho,8 ele menciona aqui o prazo exato de quarenta dias,9 durante os quais Jesus se mostrou, fornecendo assim as “muitas provas” de que está “vivo”. Se nesse período “falou” com os apóstolos “das coisas concernentes ao reino de Deus”, então deve tê-lo feito do modo como Lucas descreveu em seu evangelho: Ele “lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras” (Lc 24.45). Não se tratava de revelações novas, que transcendessem as Escrituras e a história já passada. Em lugar algum da palavra apostólica encontramos qualquer referência a tais fontes misteriosas de conhecimento, sempre comuns nos movimentos entusiastas da História da igreja. Naturalmente, porém, agora o AT e a história que os próprios apóstolos vivenciaram se descortinava diante de seus olhos em luz nova e límpida! A boa nova de Jesus versava sobre o “reino” desde o início (Mc 1.14)! Do “reino dos céus” falam suas parábolas. Contudo, agora se destaca com todo o esplendor aquilo a que Jesus podia apenas aludir antes dos decisivos eventos redentores na cruz e na ressurreição (p. ex., Lc 11.20): de forma direta, “Jesus” e “o reino” formam uma unidade. A “soberania de Deus “ já irrompera na vinda, paixão, morte, ressurreição e senhorio de Jesus, mas naturalmente ainda há de ser consumada através do retorno de Jesus, em acontecimentos poderosos que envolverão toda a criação. Esse assunto deve ter predominado nos diálogos daqueles quarenta dias. É por isso que justamente esse assunto se torna o tema básico da proclamação apostólica (cf. At 8.12; 28.23; 28.31).
Índice:
Atos 1:1-3
Notas:
5 Chama atenção que agora Lucas não se dirige mais a Teófilo, como em Lc 1.3, com o solene tratamento “kratiste” = “excelentíssimo” (tratamento dado ao governador, em At 23.26; 24.2; 26.25!). Será que entrementes se tornou integralmente cristão, tinha amizade mais íntima com Lucas, ou mudou sua posição política? – Na Antiguidade, a dedicatória a um “patrono” incluía a expectativa de que esse favoreceria a distribuição – bastante onerosa – do livro a ele dedicado. Por meio de sua dedicatória Lucas conscientemente visou inserir seus escritos na “literatura” de sua época.
6 O “fazer” está antes do “ensinar”! Jesus não veio como “mestre”, mas como Redentor. De pouco nos adiantaria o mais belo ensinamento sobre Deus. Paulo teve a visão correta: o evangelho não é uma nova concepção acerca de Deus, mas “poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” [Rm 1.16]. Perdoar a culpa, curar os enfermos, libertar de amarras, renovar as pessoas, esse “fazer” de Jesus é o que depois se consuma no ato da cruz. As pessoas em Cafarnaum haviam percebido corretamente que “ensino” poderoso havia em Jesus: Mc 1.27! Nos “feitos dos apóstolos” – assim o título grego do presente livro – esse “fazer e ensinar” de Jesus se torna atual, de Jerusalém até Roma, até os confins da terra.
7 A “convocação” de determinados instrumentos sempre é um passo muito decisivo na execução dos grandes planos de Deus! Cf. Gn 12.1-3; Êx 3.1-12; Am 7.14s; Is 6.1-13; 40.1-11; At 9.15; no entanto, lembramos também de Lutero, Wesley, Zinzendorf e muitos outros.
8 Em Lc 24 a narrativa traz a conotação de que tudo, inclusive a ascensão, teria acontecido no mesmo dia, o dia da Páscoa. Será que entrementes Lucas obteve notícias mais atuais e exatas sobre a época pascal? Talvez estejamos realmente nos deparando apenas com uma característica de Lucas, que, ao relatar um episódio pela segunda vez, gosta de “recapitular” tacitamente o que não foi mencionado na primeira narrativa, embora fosse de seu conhecimento. De qualquer forma, a diferença acima revela que Lucas não planejara uma obra de dois volumes desde o início, mas que empreendeu a redação de At mais tarde.
9 Os “quarenta dias” exercem uma função significativa em muitos momentos na Bíblia, p. ex.: Gn 7.4; 7.17; Êx 24.18; 1Rs 19.8; Lc 4.2.