Estudo sobre Atos 1:15-19

Estudo sobre Atos 1:15-19

Agora vemos que “aqueles dias” de fato não estavam preenchidos apenas com a oração como tal. Oração verdadeira sempre nos insere também nas nossas tarefas. Os discípulos falam com Deus sobre o envio do Espírito e sobre a imensa obra que se abre diante deles, pessoas humildes da Galileia. Em vista disso, eles se deparam com a enigmática e dolorosa situação de que há uma lacuna em seu grupo. Foram doze os apóstolos que o Senhor convocara para as doze tribos de Israel; e agora perfazem apenas onze. Não precisam se tornar completos antes de começar a trabalhar em Israel?

Pedro assume a tarefa que Jesus lhe deu em Cesareia de Filipe (Mt 16.18s) e que lhe transferiu novamente após a Páscoa no mar de Tiberíades (Jo 21.15-17). Ele reúne um círculo grande de discípulos de Jesus, de sorte que cerca de cento e vinte “nomes” estavam reunidos “no mesmo lugar”.28 A expressão “nome” representa o que nós designamos com a palavra “pessoa”.29 O local da reunião dificilmente seria o cenáculo, que não ofereceria espaço para cento e vinte pessoas, mas outra sala, talvez também o pátio da casa. No Oriente, a vida transcorre muito mais ao ar livre do que entre nós.

Pedro “levanta-se no meio dos irmãos” e toma a palavra. Aqui algo muito grandioso se torna visível: a realidade plena do perdão! Quem está se levantando no meio dos irmãos é aquele homem que traiu o Senhor. Todos os reunidos têm conhecimento disso. Será ele ainda “digno” de ser o dirigente em seu meio? Acaso não havia perdido toda a autoridade? Não se manifesta desprezo e rejeição contra ele? Nem aqui nem mais tarde palavra alguma é dita a respeito disso! Milagrosamente, a primeira igreja foi capaz de ambas as coisas: não dissimular a queda de Pedro, mas relatá-la com toda a clareza no próprio evangelho, e ao mesmo tempo reconhecer sem restrições em Pedro o cabeça do grupo dos discípulos. O perdão que Jesus concedeu a Pedro, como a todos eles, havia apagado integralmente a culpa dele, como a deles também. Consequentemente, o próprio Pedro também não está diante deles inseguro, com sentimentos de inferioridade. Também ele acolhe o perdão com toda a sua glória, assumindo seu lugar com uma obediência objetiva.

Em sua atitude Pedro traz no coração a palavra de Jesus que exclui do grupo dos discípulos qualquer dominação mundana (Mt 20.25-28). Por isso Pedro não ordena as coisas de forma determinante a partir de si mesmo (“episcopalmente”), e tampouco delibera sobre elas no círculo de seus colegas apóstolos, mas dirige-se conscientemente à “igreja”, ainda que agora ela seja formada apenas por esse grupo variável de discípulos.

De acordo com o costume da Antiguidade e também do judaísmo, ele interpela somente os “homens e irmãos”. É assim que está registrado também nas cartas apostólicas. Nosso costumeiro “Amados irmãos e irmãs!” é desconhecido no NT. Ocorre, porém, que são precisamente as cartas que mostram – basta lembrar a “lista de saudações” em Rm 16! – com que intensidade as mulheres também estavam envolvidas na construção da igreja. Por isso, conforme diz o v. 14, com certeza elas estavam presentes nessa primeira “assembleia da igreja” e de fato incluídas na interpelação.


Para o discurso subsequente vale o que afirmou G. Stählin (op. cit., p. 23): “É a forma artística do assim chamado discurso breve. Consiste somente de frases que de fato poderiam ter sido ditas num discurso verbal, mas em termos de conteúdo representa tão somente um resumo sucinto do verdadeiro discurso.” Ademais, o v. 19 não deve pertencer diretamente ao discurso do próprio Pedro, mas ser uma “anotação” de Lucas. Isso porque Pedro falava a seus companheiros na língua aramaica que o povo de Jerusalém usava, e para eles não haveria necessidade de traduzir a palavra “Aceldama”. Para Teófilo, porém, e os leitores gregos de Atos dos Apóstolos essa referência que Lucas intercala nas considerações de Pedro era necessária.30

Os informes sobre os quais Lucas alicerça seu relato divergem daquilo que Mateus nos conta sobre o fim de Judas e sobre o “Campo de Sangue” (Mt 27.3-10). Isso não é surpreendente. Nós mesmos já presenciamos diversas vezes como pessoas, que haviam sido testemunhas oculares de determinado acontecimento, mais tarde dão descrições bastante diferentes do mesmo entre si. E até quando compartilhamos lembranças de experiências que tivemos em conjunto, como é diferente a maneira como cada um guardou as imagens em sua memória. Isso não deve levar à conclusão tola de que o respectivo acontecimento nem teria acontecido e que os informantes teriam apenas imaginado tudo. Pelo contrário, as variações comprovam a autenticidade das declarações das testemunhas: nada foi combinado e ajeitado. E tudo aquilo que é essencial é apresentado de forma concordante nos diversos relatos. É o que também acontece aqui. Não visamos harmonizar artificialmente a tradição de Mateus com a de Lucas. Mas queremos prestar atenção nas linhas essenciais que são iguais em ambos: o traidor chegou a um fim terrível pouco tempo depois de seu ato; seu dinheiro tornou-se funesto para ele. Isso não ficou oculto, mas tornou-se de domínio público em Jerusalém. A memória disso – como costuma acontecer entre o povo – fixou-se ao nome de um terreno que se relaciona com o dinheiro do sangue do traidor e por isso é chamado de “Campo de Sangue”. É isso que precisamos saber. Nisso mostra-se a seriedade do juízo divino.

Essa seriedade determina a atitude de Pedro. Ressalta mais uma vez o lado terrível do ato de Judas.31 Aquele homem que “era contado entre nós e obteve parte neste ministério” tornou-se “o guia daqueles que prenderam Jesus”. Não se ensaia nenhuma palavra para explicar profundamente esse processo. Aqui, como em todo verdadeiro “pecado”, não há o que “explicar”. Qualquer “explicação” seria um passo para anular a culpa.32 Contudo, tampouco se diz alguma palavra ofensiva sobre Judas. O que Pedro afirma está completamente isento do odioso prazer com que nós facilmente nos levantamos, cheios de indignação, contra um culpado. Deus já julgou de forma suficientemente grave, toda Jerusalém o sabe. Nessa questão o veredicto humano pode e deve calar-se.

Ainda se ouvem resquícios da consternação: “Era contado entre nós!” Contudo, essa consternação foi superada por meio do refúgio na palavra da Escritura. Foi isso que a igreja de Deus experimentou em todos os tempos, até hoje: justamente na hora dos eventos enigmáticos, difíceis de suportar, abre-se subitamente para nós uma palavra da Escritura. Ela adquire um sentido completamente novo para nós e lança sua luz sobre a escuridão dos fatos. Percebemos com gratidão: o que era incompreensível para nós, o que nos causou tamanhas preocupações e aflições, foi previsto por Deus e incluído em Seu plano. Há muito tempo Deus já deu Sua palavra a esse respeito. Então não existe objeção a que a respectiva palavra bíblica “objetiva” ou “historicamente” fale de algo bem diferente. Obviamente os Sl 69.25 e 109.8 inicialmente eram orações gerais de fiéis contra inimigos cruéis. Esses salmos já haviam sido orados várias vezes desse modo por pessoas aflitas. Mas quando Pedro refletiu com os demais apóstolos sobre o episódio com Judas, essas antigas palavras o atingiram de forma nova. Não foi a ação de Judas como tal que havia sido “predestinada”! Na Bíblia não se buscam teorias sobre a relação entre determinações divinas e culpa humana. Ambas as realidades vigoram assim como as experimentamos pessoalmente: o governo divino que a tudo abrange, e a liberdade e responsabilidade próprias do ser humano (sobre isso, cf. sobretudo Rm 9 e a explicação desse capítulo na série Comentário Esperança). Por isso Pedro não soluciona o terrível mistério em torno da traição de Judas e não afirma: essa traição precisava acontecer, porque a Escritura a predisse. Mas de qualquer forma ela foi vista e classificada por Deus. Isso se torna claro no fim do traidor, que corresponde à profecia no salmo de Davi.


Notas:
28 Certamente Lucas está citando esse número também pelo fato de que ele corresponde ao número mínimo de homens que tinham autoridade para fundar uma igreja judaica independente. “Por isso o dado provavelmente visa expressar que essa comunidade de discípulos formava um colégio eleitoral estatutariamente legítimo” (Stählin, op. cit., p. 23).

29 Por isso o “nome” tem tanta importância na Bíblia! Nele identifica-se a própria pessoa. Cf. Êx 3.13-15. Também em Atos dos Apóstolos nos depararemos mais vezes com a validade do “nome”.

30 A. Schlatter escreve a respeito de toda a questão dos “discursos” em Atos dos Apóstolos no vol. 4 de suas “Erläuterungen” (Atos dos Apóstolos), p. 13: “Isso constitui uma instrutiva diferença entre o primeiro e o segundo livro redigidos por Lucas. O evangelho não contém discursos de Jesus de cunho similar; somente nos explicita a palavra de Jesus através de ditos, que obviamente foram reunidos por conteúdo em ‘discursos’ mais breves ou mais longos. Lucas não relata ditos semelhantes nem de Pedro nem de Paulo, mas descreve as convicções decisivas para a atuação deles ao usar o formato de discursos de formulação sucinta. Dessa maneira manifesta-se a posição distinta de Lucas perante a palavra de Jesus e a dos apóstolos. A palavra de Jesus era preservada na igreja da forma como ele a proferiu. Essa era uma parcela substancial do ministério apostólico: transmitir à igreja a palavra de Jesus. Os apóstolos, porém, possuem autoridade unicamente pelo fato de serem mensageiros de Jesus. No caso deles, a ênfase recai sobre o conteúdo de sua pregação, não sobre sua forma. Por isso, Lucas trabalha com liberdade maior em At, não alinhando ditos isolados numa forma fixada pela tradição, mas repetindo os pensamentos fundamentais da pregação apostólica numa formulação pedagógica.”

31 Por essa razão também nós precisamos evitar rigorosamente fazer o que o próprio NT não fez: “explicar” a trajetória de Judas psicologicamente ou de outra forma qualquer. O aspecto terrível e abissal na ação de Judas é devido precisamente à sua “inexplicabilidade” e, por isso, à sua indesculpabilidade.

32 Expressa-se aqui de forma clara e firme em que consistiu a “traição” de Judas. O NT utiliza o mesmo termo “entregar, render” tanto para a ação de Judas com seu Senhor quanto para a ação de Deus com seu Filho (Rm 4.25; 8.32; Mt 10.4; 26.31; etc.). Por isso talvez também se deva traduzir com mais precisão no relato da santa ceia em 1Co 11.23: “na noite em que foi entregue”, a saber, pelo Pai. Não foi o abandono por seus discípulos, mas a entrega por Deus que constituiu o acontecimento decisivo, que inclui a “traição”.