Dragão, Bestas e Mar — Enciclopédia da Bíblia Online
DRAGÃO, BESTAS E MAR
No Apocalipse (veja Apocalipse, livro de), o dragão, as bestas e o mar compõem um complexo de poderes malignos que guerreiam contra Deus e Cristo e incitam o conflito entre os seres humanos. Desde as primeiras linhas, o livro inteiro é atravessado por um clima de enfrentamento, sobretudo o embate entre os que seguem Cristo e os que se erguem contra Cristo e seu povo. A própria gênese da obra nasce desse atrito: o Vidente escreve a partir do exílio em Patmos, pena imposta pelas autoridades romanas por ele proclamar a Palavra de Deus — uma circunstância atestada explicitamente em Apocalipse 1:9 e que imprime ao documento um tom de testemunho resistente, forjado sob pressão política e religiosa. O Apocalipse, portanto, não é apenas uma reflexão sobre o conflito; ele é produto direto dele, emergindo do choque entre a fidelidade ao testemunho e a repressão imperial. Essa origem histórica molda sua retórica: a linguagem simbólica, os contrastes agudos entre tronos e abismos, a alternância de juízos e consolação — tudo nasce do cenário de antagonismo que enquadra a visão do Vidente.I. Conflito entre Humanos
O conflito também aparece no plano das relações humanas, tanto internas quanto externas à comunidade cristã. Em Esmirna, os cristãos enfrentam opositores que “dizem ser judeus, e não são” (Apocalipse 2:9): ainda que o texto não descreva derramamento de sangue nessa passagem, ele registra atrito real, identidade contestada e hostilidade religiosa. Em outra frente, a deflagração da violência aberta é associada ao segundo cavaleiro: o que monta o cavalo vermelho recebe poder “para tirar a paz da terra”, de modo que “os homens se matassem uns aos outros” (Apocalipse 6:3-4). Mesmo quando o termo “conflito” não é usado, o resultado é inequívoco: desordem social, derramamento de sangue e a corrosão de vínculos que deveriam sustentar a vida coletiva. O Apocalipse, assim, enxerga no tecido humano uma arena onde forças que reivindicam lealdade disputam corações e práticas, gerando choques que não se limitam à esfera espiritual, mas irrompem na história como guerra, perseguição e exclusão.II. Conflito entre Cristo e Deslealdade Cristã
O horizonte do embate se estreita quando Cristo dirige advertências às igrejas: se o vocábulo “conflito” não aparece, a iminência do confronto é patente quando a infidelidade se insinua dentro da própria comunidade. Em Pérgamo, por exemplo, alguns “sustentam a doutrina de Balaão” e a dos nicolaítas; a palavra do Senhor vem como chamado urgente ao arrependimento, sob ameaça de intervenção direta — “pelejarei contra eles com a espada da minha boca” (Apocalipse 2:14–16). O conflito aqui não é obra de inimigos externos, mas tensão entre a santidade exigida por Cristo e as concessões internas que distorcem o evangelho. A espada da boca indica o caráter judicial e veraz do próprio Cristo, cujas palavras se tornam o critério que separa fidelidade de deslealdade. O Apocalipse, portanto, situa a crise também no interior da igreja, onde as falsas doutrinas e práticas idólatras provocam uma colisão inevitável com o Senhor da igreja.III. Conflito com o Dragão e as Bestas
Embora criaturas como os gafanhotos (Apocalipse 9:1–11) e os cavalos da visão (Apocalipse 9:17–19) caibam no alcance do termo grego traduzido por “besta” (FOERSTER, TDNT 3:135), o coração dramático da obra se concentra na tríade infernal — o dragão e as duas bestas — e na sua oposição coordenada contra Deus e contra o povo de Deus (Apocalipse 12-13). Nesse teatro de guerra simbólica, surgem também as duas testemunhas de Deus, cujos traços lembram Moisés e Elias (Apocalipse 11:16), representando a Lei e os Profetas como voz profética em meio ao cerco. Enquanto sua missão não se cumpre, permanecem intocáveis (Apocalipse 11:5); ao completarem o testemunho, são abatidas pela “besta que sobe do abismo” (Apocalipse 11:7). A derrota, porém, não encerra sua história: Deus as vindica, ressuscitando-as e elevando-as ao céu (Apocalipse 11:11–12), sinal de que a veracidade do testemunho prevalece apesar da violência exercida pelo poder bestial.O “grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas” (Apocalipse 12:3) — identificado como “a antiga serpente, chamada Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro” (Apocalipse 12:9) — irrompe primeiro como o perseguidor da mulher, à espreita do filho que ela dará à luz. A tentativa fracassa: a mulher é acolhida no deserto, e o filho é posto em segurança, junto de Deus (Apocalipse 12:5–6). As imagens convergem com um motivo mítico conhecido na Antiguidade, em que o dragão (Python) persegue Leto no parto de Apolo, para depois sucumbir sob a mão do próprio Apolo. No símbolo joanino, o filho aponta inequivocamente para Cristo; já a mulher é melhor entendida como a comunidade do povo de Deus, não uma figura individual como Maria. A libertação do filho remete à ressurreição e ascensão de Cristo; a preservação da mulher pode aludir à fuga da comunidade cristã através do Jordão em direção a Pella (veja Pella, Fuga para), pouco antes do cerco romano contra Jerusalém.
Derrotado por Miguel e seus anjos, o dragão é lançado do céu à terra e volta sua fúria contra “o resto da descendência [da mulher], os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Apocalipse 12:17): é a comunidade cristã que se torna alvo prolongado dessa guerra. Em seguida, Apocalipse 13 descreve o desdobramento desse combate por meio do surgimento de uma besta que sobe do mar, a quem o dragão confere poder e autoridade. Em simetria com o próprio dragão, a besta tem sete cabeças e dez chifres; e, como ele, ostenta diademas — mas agora os diademas assentam sobre os dez chifres, e não sobre as sete cabeças (Apocalipse 13:1). Ao situar a origem da besta no mar, o Vidente convoca um imaginário cananeu também refletido no Antigo Testamento: o mar é o domínio de Leviatã (ou Lōtān), a serpente que se opõe a Deus; e o ato criador implica a vitória divina sobre o mar, a serpente e as forças caóticas (Gênesis 1:9–10; Jó 41:1–11; Salmos 74:13–14; veja Antigo Testamento em Apocalipse). A própria descrição da besta ecoa as quatro bestas de Daniel 7:2–7, de modo que o monstro marinho de Apocalipse 13 se constrói como um compósito que herda a ferocidade dos impérios simbolizados naquela visão.
Em termos teológicos, a primeira besta se oferece como paródia do Cordeiro: o Cordeiro com chifres aparece como morto e, contudo, de pé (Apocalipse 5:6); a besta, por sua vez, recebe um golpe aparentemente mortal numa de suas cabeças, mas “cura-se” e continua ativa. A aclamação que seus adoradores lhe rendem — “Quem é semelhante à besta? e quem poderá pelejar contra ela?” (Apocalipse 13:4) — é um contracanto blasfemo a confissões que atribuem incomparabilidade a Deus (cf. Êxodo 15:11). Muitos intérpretes veem nesse retrato um referente histórico nos imperadores romanos, que reivindicavam honras divinas e exigiam culto, com atenção especial ao caso de Nero, cuja morte e suposta expectativa de retorno à frente de um exército parto alimentaram a imagética de uma “morte e ressurreição” perversa.
Como no imaginário cananeu Leviatã costuma vir acompanhado do monstro terrestre Beemote, assim também o Apocalipse apresenta uma segunda besta — agora emergindo da terra (ou possivelmente “da terra” no sentido de Judá) — como consorte do poder marítimo. Essa segunda besta funciona como um análogo demoníaco ao Espírito Santo: é o “falso profeta” (Apocalipse 20:10) que redireciona a devoção dos “habitantes da terra” para o anticristo, à semelhança de como o Espírito verdadeiro glorifica a Cristo. Pela realização de sinais, essa besta persuade os moradores da terra a cultuarem a imagem da besta marinha e a receberem a sua marca — seu nome ou o número de seu nome — na mão direita ou na testa. Ao recusar o culto, a penalidade é a morte; ao rejeitar a marca, a sanção é a exclusão da vida comercial. A nomeação explícita do monstro não é fornecida, mas seu “número” é declarado “número de homem”: “seiscentos e sessenta e seis” (Apocalipse 13:18). A prática de fazer números significarem nomes por meio do valor numérico das letras (isopsefia/gematria) era comum, e muitos sustentam que “Nero” ou “Domiciano” podem, com a devida forma de escrita, somar 666 (ou, em variante manuscrita, 616). Outra leitura, contudo, vê na cifra uma assinatura de limitação humana: cada dígito fica aquém do sete, número de plenitude; em contraste, como assinala Sibylline Oracles 1.326–30, o nome Jesus totaliza 888, excedendo o sete em cada casa. Se a primeira besta representa o braço político do poder romano, a segunda figura o aparato religioso encarregado de conduzir os ritos exigidos pelo Estado (veja Religiões, Greco-Romano).
A trama prossegue quando a besta aparece como aliada da grande prostituta, Babilônia (Apocalipse 17:1–6), antes de voltar-se contra ela (Apocalipse 17:16). A visão oferece chaves adicionais: as sete cabeças indicam tanto as colinas sobre as quais a mulher se assenta quanto sete reis, um dos quais ainda vivia no tempo da visão (Apocalipse 17:9–10). Os dez chifres representam dez reis que ainda não receberam autoridade (Apocalipse 17:12–13). Da besta se diz que “era, e não é, e está para subir do Abismo e caminha para a perdição”, bem como que “era, e não é, e há de vir” (Apocalipse 17:8) — linguagem que, no livro, só cabe com propriedade a Deus ou a Cristo (Apocalipse 1:18; 2:8). Esses traços reforçam a leitura majoritária que identifica na besta o aspecto político do império romano, embora haja diversidade de tentativas ao mapear cabeças e chifres a governantes específicos.
IV. O destino das Forças do Mal
O Apocalipse não retrata a impunidade do mal. Ao contrário: o reino da besta é mergulhado em trevas (veja Luz), e seus súditos são acometidos por dores intensas; apesar disso, não se arrependem (veja Arrependimento), preferindo blasfemar contra Deus (Apocalipse 16:10–11). Em seguida, o dragão, a besta e o falso profeta articulam novo assalto, quando espíritos demoníacos, saindo de suas bocas, incitam os reis da terra a se reunirem para a guerra em “Armagedom” (provavelmente uma referência a Jerusalém; Apocalipse 16:12–16). Depois do “milênio”, sucede um paralelo: Satanás é solto e congrega as nações contra “o acampamento dos santos e a cidade amada”, em um último esforço de sublevação. O desfecho, porém, é definitivo e sem apelação: o dragão, a besta e o falso profeta são lançados vivos no lago de enxofre em fogo (Apocalipse 19:20; Apocalipse 20:10). E a própria esfera simbólica de onde o poder bestial emergiu — o mar — conhece seu fim: não apenas contido, mas abolido, “seco” (Apocalipse 21:1). O drama que começou como enfrentamento entre tronos e poderes fecha-se no ponto em que os agentes do caos são removidos e o próprio cenário de sua insurgência deixa de existir: o mar já não é (Apocalipse 21:1). Assim, a guerra que atravessa a narrativa — do dragão e suas bestas contra “os que guardam os mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus” — cessa com a eliminação dos contendores e do seu habitat simbólico (Apocalipse 12:17; 19:20; 20:10; 21:1).
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GALVÃO, Eduardo. Dragão, Besta e Mar. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].