Daniel 1 — Comentário Teológico

Daniel 1 — Comentário Teológico
Daniel 1 — Comentário Teológico


Capítulo Um


EXPOSIÇÃO

Capítulo Um
As Histórias (1.1-6.28)

Todas as histórias de Daniel têm por pano de fundo a corte da Babilônia. Quatro delas ocorreram durante o reinado de Nabucodonosor (caps. 1-4). E uma história ocorreu nos dias de Belsazar, governador da Babilônia sob Nabonido, o último dos reis do império neobabilônico (cap. 5). A última das histórias sucedeu nos dias do conquistador persa da Babilônia (cap. 6). Todas essas histórias têm elevado conteúdo moral, enfatizando como o homem bom pode vencer qualquer obstáculo, se não comprometer sua espiritualidade e moralidade, a despeito das provações pelas quais tiver de passar. Alguns judeus fiéis, que foram perseguidos, elevaram-se a altas posições em meio ao mais crasso paganismo. As histórias narradas em Daniel são, ao mesmo tempo, contos de uma corte oriental, combinados com a tradição hagiográfica. Alguns eruditos supõem que tudo isso seja mero artifício literário, e também que não devemos preocupar-nos com a realidade histórica envolvida. Em outras palavras, para esses eruditos trata-se de histórias de exemplos morais e espirituais que não representam nem histórias nem profecias. Os eruditos conservadores, pelo contrário, encontram tanto valor histórico quando profético nesses relatos.

Primeira História: Introdução a Daniel e Seus Amigos na Corte (1.1-21)

Muitos eruditos creem que todo o livro de Daniel tenha sido originalmente escrito em aramaico. Mas a parte do livro que continha escrita original aramaica é formada pelos capítulos 2-6. O primeiro capitulo foi escrito em hebraico. ‘'Essa é uma história que ensina como a observância fiel da lei é recompensada” (Oxford Annotated Bibie, comentando sobre o vs. 1).

Prólogo (1.1-7)

“Os dois primeiros versículos do livro de Daniel afirmam quando e como o profeta foi levado para a Babilônia. Os eventos do livro começaram no terceiro ano do reino de Jeoaquim, rei de Judá. Isso parece estar em conflito com a declaração de Jeremias de que o primeiro ano de Nabucodonosor, rei da Babilônia, ocorreu no quarto no do reinado de Jeoaquim (Jer. 25.1)” (J. Dwight Pentecost, introdução à seção). Ele apresenta duas maneiras possíveis de solucionar a aparente contradi­ção: 1. O calendário judaico começava o ano no mês de tishri (setembro-outubro), enquanto o calendário babilônico começava o ano na primavera, no mês de nísã (março-abril). Se o cômputo babilônico for usado, obteremos o ano do cerco de Nabucodonosor de Jerusalém como o quarto ano de Jeoaquim, mas o cômputo judaico assinalava o terceiro ano. Daniel, sendo judeu, pode ter empregado o cômputo judaico. 2. Então temos de considerar como os babilônios contavam as datas dos reinados dos reis. A porção de um ano que antecedia o início de um novo ano, antes da subida ao trono, era chamada de primeiro ano, mesmo que tivesse curta duração. Se Jeremias seguiu esse modo de contar as datas, então ele contou o ano de subida ao trono de Jeoaquim (que foi apenas parte de certo ano) como o primeiro ano. Paralelamente, Daniel pode ter usado o modo de contar judaico, que não considerava aqueles meses como o primeiro ano de reinado de um monarca. Assim sendo, ele contou somente três anos inteiros do reinado de Jeoaquim. Seja como for, o ano foi 605 A. C. A tudo isso devemos adicionar a observação de que discrepâncias dessa espécie, se é que existem, de modo algum comprometem a inspiração e a exatidão da mensagem. Harmonia a qualquer preço é, com freqüência, a manipulação de informes ao preço da honestidade.


1.1

No ano terceiro do reinado de Jeoaquim. Quanto às três deportações de Judá que se seguiram aos diversos ataques de Nabucodonosor contra Jerusalém, ver as notas sobre Jer. 52.28. “O terceiro ano de Jeoaquim foi 606 A. C. Nabucodonosor é a forma judaica de Nabuchadrezar, que, em 597 A. C., levou os tesouros do templo e cativos para a Babilônia (II Reis 24.10-15). No vs. 2, a Babilônia é chamada por seu antigo nome, Sinear (ver Gên. 10.10; Isa, 11.11)” (Oxford Annotated Bible, sobre o Prólogo). Note o leitor a variação da data suposta. Cf. II Crô. 36.2 com II Crô. 36.5. O irmão mais novo de Jeoaquim, Jeoacaz, tinha sido posto no trono de Judá por Faraó Neco, que matara o rei Josias, em 609 A. C. Neco destronou Jeoacaz e pôs Jeoaquim no trono (II Crô. 36.3-4).


Daniel foi levado à Babilônia por ocasião da primeira deportação. Ver sobre Daniel, o homem, na introdução ao livro, seção II, primeiro parágrafo.

1.2

O Senhor lhe entregou nas mãos a Jeoaquim. Quanto à história completa dos ataques babilônicos e dos cativeiros subsequentes, ver no Dicionário o artigo chamado Cativeiro Babilônico. O cativeiro ocorreu por meio de ondas. Jeoaquim foi primeiro submetido ao pagamento de tributo e ao acordo de que não se rebelaria. Quando ele ignorou esses acordos, Nabucodonosor retornou a Judá pela segunda vez, em 597 A. C. Nesse tempo, dez mil cativos judeus foram levados para a Babilônia. O profeta Ezequiel estava entre eles. Ver Eze. 1.1-3; II Reis 24.8-24 e II Crô. 36.6-10. Foi a incansável tríade idolatria-adultério-apostasia que causou a calamidade iniciada com Jeoaquim, mas não terminada com ele. Ver Jer. 7.30 ss.; 34.12-22 e Hab. 1.6.

Alguns dos utensílios da casa de Deus. A primeira deportação incluiu um saque parcial do templo. Ver essa história em II Reis 24.12-16. Haveria um segundo ataque contra Zedequias, o último rei de Judá. Quanto a isso, ver II Reis 25.13-17 e cf. II Crô. 36.18 e Jer. 27.19,20.


Sinear. Este era o antigo nome da Babilônia, usado pelos hebreus. Ver Gên. 10.10-11.2; 14.9; Isa. 11.11; Zac. 5.11.

A casa do seu deus. O nome comum, nos livros de Reis, é “casa de Yahweh”. Escritores posteriores, como aqui, usaram a expressão “casa de Elohim”. O termo se repete em Dan. 5.3. O uso das palavras “de Elohim” reflete o uso mais antigo. Ver Juí. 17.5 e 18.31. O santuário de Silo chamava-se “casa de Elohim”, com o sentido de '‘casa de poder”. Ver no Dicionário o artigo chamado Deus, Nomes Bíblicos de. O livro de Daniel tende a evitar o nome sagrado, Yahweh, provavelmente por motivo de respeito ao mais augusto dos nomes hebraicos de Deus.

A deportação dos judeus foi uma grande perda financeira, e não meramente em termos de vidas. Algumas vezes, os templos antigos eram essencialmente tesouros. Ver I Crô. 28.11. Ezequias tolamente mostrou os tesouros do templo aos babilônios, o que acabou custando-lhe uma severa repreensão de Isaías. Ver II Reis 20.12 ss.

Seu deus. Dan. 4.8 informa-nos que o deus de Nabucodonosor era Bei, ou seja, Marduque, o deus cidade da Babilônia, cabeça do panteão babilônico da época. Cf. Isa. 46.1; Jer. 50.2; 51.44. Ver no Dicionário o verbete chamado Nabucodonosor. 1.3

Disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos. Aspenaz figura por nome somente aqui, e não aparece em nenhum outro trecho do Antigo Testamento. Ele é chamado de outros modos por seis vezes, por “o eunuco" ou “o chefe dos eunucos”, em Dan. 1.7-11,18. A derivação desse nome é incerta, mas sua versão hebraica parece significar “narina de cavalo”, por razões desconhecidas. Ele era o chefe dos eunucos do rei Nabucodonosor. Daniel e seus companheiros foram entregues aos seus cuidados, e ele lhes trocou os nomes (ver Dan. 1.3,7). O tempo foi ceroa de 604 A. C. A petição de Daniel, no sentido de que não fosse compelido a comer as provisões enviadas à mesa real, foi aceita favoravelmente, bondade que o profeta, agradecido, registrou em Dan. 1.16. Os eruditos subentendem do fato que o homem era o chefe dos eunucos, e Daniel e seus companheiros hebreus também foram feitos eunucos. Mas esse ponto é disputado. Além disso, o chefe dos eunucos nem sempre era castrado. Aspenaz tinha o dever de preparar jovens promissores para o serviço especial ao rei, e Daniel estava entre aqueles que foram escolhidos para esse mister.


Assim da linhagem real como dos nobres. Quase incidentalmente, aprendemos algo do nascimento real ou nobre de Daniel. Mas não é dada nenhuma genealogia, o que seria comum, sabendo-se da importância atribuída à questão pelos hebreus. Quanto a comentários sobre o pano de fundo de Daniel, ver a seção II da Introdução. Josefo (Antlq. X.10.1) diz-nos que Daniel e seus companheiros pertenciam à família de Zedequias, mas não sabemos se essa informação é correta, ou se ele supôs que tal informação fosse correta devido à declaração deste versículo.

O Ofício de Aspenaz. Aspenaz é chamado de chefe dos eunucos, que pode ter sido o significado da palavra nos tempos de Daniel. Mas alguns sugerem a tradução “oficial” para o termo hebraico sarís, e isso deixa a questão ambígua. Esse homem, mesmo que fosse supervisor do harém real, provavelmente tinha outros deveres também.


1.4

Jovens sem nenhum defeito, de boa aparência. Daniel e seus amigos nobres (ou reais) eram espécies físicos perfeitos. Ademais, embora jovens, eram conhecidos por sua sabedoria e erudição, pelo que também se distinguiam intelectualmente. Conforme a narrativa se desdobra, descobrimos que eles eram homens espirituais especiais, que levavam a sério sua fé religiosa. Portanto, foi apenas natural que tivessem sido escolhidos pelo rei da Babilônia para receber um treinamento especial, a fim de que fossem empregados em algum serviço que lhes fosse planejado, em benefício do império. Essa história me faz lembrar do “dreno de cérebros” em que os Estados Unidos da América está envolvido. Intelectuais de muitos países, que ali vão para receber treinamento, terminam ficando no país e servindo a América do Norte, e não seus próprios países. Notemos que aqueles jovens também eram “simpáticos”, pelo que os homens bonitos sempre têm alguma vantagem, e tanto mais quando possuem outras qualidades que acompanham a beleza física.


Para assistirem no palácio do rei. Literalmente, diz o hebraico: “para se porem de pé perante o rei”. O texto fala em “serviço da corte” (ver I Sam. 16.21; I Reis 12.6), mesma expressão usada para indicar os atendentes angelicais que estão de pé na presença de Deus, em Dan. 7.10. Esses homens extraordinários seriam usados em toda a espécie de serviço divino.

E lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus. Note o leitor a ênfase sobre a educação e a cultura. Esses homens bons tornar-se-iam ainda melhores por uma boa educação que incluiria sério estudo da linguagem. Como eles deveriam servir na Babilônia, teriam de falar o idioma do lugar. “O programa educacional provavelmente incluiu o estudo da agricultura, da arquitetura, da astrologia, da astronomia, das leis, da matemática e da difícil língua acádica” (J. Dwight Pentecost, in loc.). Nenhum prêmio é oferecido à ignorância. Um pai cuidará para que seus filhos obtenham uma boa educação. Não basta fazê-los ler a Bíblia.

O acádico, conforme aprendemos em Jer. 5.15, era o neobabilônico. Embora fosse um idioma semítico, não era entendido pelos judeus. Abraão, naturalmente, veio de Ur, antiga cidade babilônica. Ver o artigo sobre Babilônia, no Dicionário. Até mesmo um judeu esperto teria pouco conhecimento em comparação com os homens bem-educados da Babilônia. Os judeus eram especialistas nos campos da religião e da literatura, mas pouco sabiam sobre as ciências e seus muitos ramos.

1.5
Determinou-lhes o rei a ração diária. Àqueles jovens seletos e promissores foi dado um tratamento em estilo real; eles recebiam aulas de primeiro nível em boa mesa, e comiam diretamente das provisões reais, ou seja, metaforicamente, comiam “da mesa do rei”. Tinham os ricos alimentos e o vinho de que o próprio rei desfrutava, mas terminaram rejeitando essa alimentação em favor da comum dieta judaica, conforme se vê no vs. 16. Sem dúvida, por motivo de saúde, isso era melhor para eles, mas a preocupação principal era obedecer à dieta judaica ideal. Além disso, a rejeição dos alimentos reais era uma maneira de eles dizerem: “Também rejeitamos o luxo e a idolatria deste lugar, como algo contrário à boa moral”. Os hebreus escolhidos para esse programa especial continuariam sendo treinados por três anos e então teriam de apresentar-se ao rei para que fosse verificado o quanto da educação babilônica tinham absorvido. Se fossem considerados qualificados, entrariam no serviço do rei. Os três anos de educação e treinamento prático significariam a formação universitária no sentido babilônico.

Nabucodonosor não tinha uso para homens ignorantes. Esses acabariam varrendo soalhos e cavando valetas. Daniel e seus amigos tinham de especializar-se nas tradições dos sábios caldeus, aperfeiçoando-se na sabedoria e erudição babilônica, tal como Moisés precisou tornar-se sábio na erudição egípcia (ver Atos 7.22). “Os pagens reais viviam da abundância real. Eles tinham rações diárias determinadas, o alimento e a bebida da mesa real. Ateneu (Deifosofistas, IV.26) mencionou que os atendentes do rei persa tinham recebido provisão da mesa real, e a porção diária para os cativos da realeza, na Babilônia, é mencionada em Jer. 52.34.

Por três anos. Nos escritos babilônicos, desconhece-se qualquer período de três anos de educação, mas isso nos faz lembrar dos três períodos nos quais os escritores gregos diziam estar dividida a educação de um jovem persa (Platão, Alcebíades 1.121; Xenofonte, Cyropaedia I.2)” (Arthur Jeffery, in loc.).

1.6,7
Entre eles se achavam, dos filhos de Judá. Estes dois versículos nomeiam os amigos de Daniel: Hananias, Misael e Azarias. Ver no Dicionário os artigos sobre cada um deles. Todos pertenciam à tribo de Judá, presumivelmente (mas não necessariamente) de Jerusalém. No Dicionário há catorze homens que atendiam pelo nome de Hananias, no Antigo Testamento, e o do nosso texto é o de número oito. Há também três homens com o nome de Misael, no Antigo Testamento, e o do texto presente é o de número três no Dicionário. Finalmente, há vinte e cinco homens, no Antigo Testamento, que atendem pelo nome de Azarias! E este é o último Azarias da lista, no Dicionário. O chefe dos eunucos (chamado Aspenaz no vs. 3) mudou os nomes desses três homens para Sadraque, Mesaque e AbedeNego. Ver o artigo sobre esses três, juntamente, sob esse título, onde apresento notas mais detalhadas. O nome de Daniel, finalmente, foi mudado para Beltessazar.

O nome alternativo de Daniel aparece oito ou dez vezes na seção aramaica do livro (ver Dan. 2.26; 4.8,9,18,19 (quatro vezes) e 5.12). E também se acha em Dan. 1.7 e 10.1. Esses novos nomes provavelmente significam que, doravante, eles seriam súditos babilônicos (sua história anterior terminou juntamente com os antigos nomes) e serviriam a deuses babilônicos, e não a Yahweh. Em outras palavras, a esperança é que eles seriam totalmente paganizados para melhor servir à Babilônia. Dessa forma, estava armado o palco para que eles mostrassem como lutaram a fim de salvar e fomentar sua piedosa identificação judaica, permanecendo fiéis a Yahweh e à lei mosaica.

Notemos como os nomes anteriores ligavam essas figuras ao yahwismo: Hananias significa “Yah tem sido gracioso"; Misael significa “Quem é o que El é?”; Azarias significa “Yah tem ajudado”. E Daniel significa “El tem julgado”. Cada um desses nome incorpora um nome hebraico para Deus. Em sentido contrário, há esforços para fazer com que os nomes novos correspondam à divindade babilônica. Os massoretas sugeriam que Bei podia ser visto no nome Beltessazar. Abede-Nego parece significar o mesmo que Abdi-nabu, “servo de Nebo”. Mesaque pode significar “estou desprezado (humilhado) (na presença do meu deus)”. Nada semelhante tem sido demonstrado no caso do nome Sadraque. Mas talvez a última sílaba, aque, esteja associada ao nome Sadraque, ou a Merodaque. No entanto, outros vêem aqui uma alusão a rak, que no acádico significa rei, e pelo qual devemos entender “sol” ou “deus-sol”. Mas outros preferem sugerir saduraku, que significa “temo (o deus)”.

O Teste dos Fiéis (1.8-16)

1.8
Resolveu Daniel firmemente não contaminar-se. Bem no começo de ter sido tão altamente favorecido, Daniel resolveu permitir que sua fé religiosa interferisse e lhe causasse dificuldades. Não são muitas as pessoas que permitem que sua fé intervenha em alvos e ambições mundanas, para nada dizermos sobre os prazeres, que usualmente formam a base de sua filosofia de vida. Daniel e seus amigos resolveram arriscar-se a enfrentar a ira do rei (que lhes seria fatal), a fim de permanecerem fiéis. Eles se revoltaram contra o alimento não-kosher que lhes era servido. Os alimentos consumidos pelos pagãos continham coisas consideradas cerimonialmente imundas para os judeus. Ver no Dicionário o artigo chamado Limpo e Imundo. Daniel fez um propósito “em seu coração” (segundo a King James Version e nossa versão portuguesa). Ele tinha profundas convicções sobre essas questões. Ver sobre coração, em Pro. 4.23. Quanto a outras instâncias nas quais os judeus tentaram efetivar seus regulamentos dietéticos em ambientes pagãos, ver Juí. 12.1-4; Tobias 1.10,11; IV Macabeus 5.3,14,27; Josefo (Vidas, 3); Jubileus 22.16. O texto de I Macabeus 1.62,63 mostra que, para alguns judeus, comer alimentos ilegítimos significava praticar pecados graves.

Tudo isso se assemelha às convicções que os evangélicos costumavam ter, as quais, em nossos dias, foram essencialmente abandonadas devido à atmosfera mundana de nossas igrejas. Notemos que Daniel também rejeitou o vinho do rei. Os judeus bebiam vinho e, se fossem piedosos, eram usuários moderados de vinho. Talvez Daniel estivesse apenas certificando-se de que não se contaminaria por imitar os comedores e bebedores da Babilônia, em nenhum sentido. Portanto, cortemos o vinho da lista. Nabucodonosor dava a seus futuros oficiais uma prova da boa vida, parte da qual consistia em alimentos e bebidas superabundantes. Os babilônios não diluíam o vinho, mas os hebreus o faziam; e, assim sendo, os babilônios tendiam mais para o alcoolismo do que os judeus. Alguns israelitas misturavam uma parte de vinho com três partes de água, e alguns chegavam a diluir uma em seis partes. Ver em Pro. 20.1 e Isa. 5.11 advertências contra as bebidas alcoólicas. Ver no Dicionário o verbete chamado Bebedice. Os gregos e os romanos também misturavam vinho com água. Um dia, meu professor de latim, diante de uma passagem que mostrava esse fato, declarou não entender como
alguém podia fazer algo assim. E essa era, talvez, a única coisa, acerca dos gregos e romanos, que ele não compreendia. Alguns estudiosos sugerem que os alimentos babilônios eram dedicados a seus deuses por meios rituais, algo parecido com as bênçãos que, em nossos dias, muitos pedem antes das refeições. Isso pode ter feito parte da objeção de Daniel.

Humildemente, Daniel requereu que fosse isentado dos alimentos oferecidos aos jovens hebreus, e Aspenaz, o porta-voz de Daniel, foi capaz de dar-lhe essa licença, conforme vemos no vs. 16. Daniel, entretanto, não demonstrou intolerância ou animosidade, como fazem alguns separatistas hoje em dia. Ele não iniciava inimizades desnecessariamente.

1.9
Ora Deus concedeu a Daniel misericórdia e compreensão. A primeira coisa que sucedeu foi que Elohim (o Poder) influenciou Aspenaz para simpatizar com a causa de Daniel. O homem teve compaixão de Daniel, sabendo que até poderia ser executado, caso o pedido de Daniel desagradasse o rei. Portanto, ele fez o melhor ao seu alcance para tratar do caso. “Deus fez Aspenaz querer ser bondoso e misericordioso com Daniel” (NCV). A história ensina, em última instância, que um homem pode defender suas convicções de maneira civil, e que Deus pode mostrar e realmente mostra Seu favor em prol de quem quer ser-Lhe obediente. Cf. os casos de José no Egito; de Ester na corte de Assuero; e de Esdras diante de Artaxerxes. Não nos lembremos, entretanto, do momento em que Moisés se encontrou com o Faraó! “A graça de Deus capacita cada indivíduo a vencer as tentações para as quais as circunstâncias o conduzem” (Ellicott, in loc.). Por causa da ação de Elohim Daniel recebeu o favor real, e por causa Dele Daniel, visto ter uma missão a realizar na Babilônia, seria invencível até cumprir essa missão. “Um déspota oriental ordinário teria, em uma explosão de ira, ordenado que o ofensor fosse decapitado imediatamente” (Fausset, in loc.).

1.10
Disse o chefe dos eunucos a Daniel. O chefe dos eunucos não era especialista em nutrição, mas tinha certeza de que os jovens não-judeus, que se alimentavam de carne, seriam muito mais saudáveis, fortes e bonitos do que os judeus que se alimentavam de vegetais. Ele seria responsabilizado por esse resultado e poderia ser demovido de seu cargo, ou mesmo executado por não ter cumprido o seu dever, cedendo diante das demandas tolas de um povo que não tinha direitos. O rosto deles era “parecido com a tristeza” (hebraico literai), por causa da dieta fraca. O chefe dos eunucos não seria capaz de ocultar a verdade. A cabeça do chefe dos eunucos corria perigo. 1. Ele poderia ser executado por decapitação, de acordo com alguns intérpretes; ou 2. ele seria considerado responsável e punido de qualquer maneira que o rei escolhesse. O termo cabeça representa a pessoa (ver I Crô. 10.9).


1.11,12

Então disse Daniel ao cozinheiro-chefe. Daniel foi o porta-voz dos outros três jovens hebreus e reconheceu que todos os quatro estavam debaixo da autoridade de Aspenaz. Se o homem insistisse, acabaria fazendo o que bem quisesse, e Daniel e seus amigos teriam de obedecer-lhe, ou então sofreriam as conseqüências da desobediência. Mas Daniel pediu que a questão fosse submetida a teste por “dez dias”. Eles comeriam apenas legumes e tomariam água. A dieta de vegetais evitaria completamente a carne, incluindo aqueles tipos não permitidos pelas leis judaicos do Limpo e do Imundo (ver a respeito no Dicionário). Beber somente água evitaria que os jovens se embriagassem com o vinho sem mistura dos babilônios, que seria forte demais para os hebreus, acostumados a misturar vinho com água. Ver as notas sobre os vss. 5 e 8. Os antigos sabiam quais alimentos eram necessários à boa saúde. A carne é essencial, a menos que seja substituída por leite e derivados, que contêm proteínas, ou pelos tipos de feijão que também contêm proteínas. O complexo de vitaminas B é difícil de conseguir, a menos que se consuma carne. Portanto, ficamos perplexo diante da esperança
de sucesso com uma dieta vegetariana, que não era a forma típica de alimenta­ção dos hebreus. Só podemos supor que Yahweh tenha intervindo. Naturalmente, dez dias não é o suficiente para produzir deterioração visível no estado físico de uma pessoa que se alimenta sem consumir proteínas e o complexo de vitaminas B. Seja como for, uma quantidade suficiente de trigo poderia salvar o dia.

1.13
Então se veja diante de ti a nossa aparência. Passados os dez dias haveria uma cuidadosa inspeção da condição física dos hebreus; eles seriam comparados com os não-hebreus que tinham comido carne e bebido vinho e também estavam no programa de treinamento de Nabucodonosor. Aspenaz seria o juiz e tomaria uma nova decisão sobre os alimentos e as bebidas, se assim julgasse melhor. John Gill (in loc.) supunha que Yahweh fizera a Daniel uma revelação garantindo o sucesso do teste, mas isso parece desnecessário. Daniel, podemos ter certeza, confiava no Ser divino quanto ao bom resultado da experiência, pois estava servindo ao Ser divino. 

1.14-16
Ele atendeu, e os experimentou dez dias. Aspenaz concordou com o teste de dez dias. Os não-hebreus banqueteavam-se com toda a carne e o vinho sem mistura, enquanto os pobres hebreus comiam apenas feijão e arroz, e bebiam água. Essa dieta não era nada inspiradora, mas fazia bem. Dez dias geralmente figuram como um período de provas, mais ou menos como os quarenta dias, semanas ou anos. Ver Apo. 2.10.

Portanto, os jovens hebreus estavam submetendo-se a um teste de fé e nutrição. No fim do período do teste, a fé deles foi justificada. Eles não somente pareciam mais saudáveis e fortes, mas também estavam mais bonitos. Quando foram comparados com os outros jovens não-hebreus, ficou definitivamente demonstrado que os legumes eram uma dieta melhor do que o regime de carnes, e que a água era melhor do que o vinho. Do ponto de vista natural, temos de supor aqui: 1. Os hebreus comiam bons alimentos de trigo, cereal rico em proteínas e no complexo B; 2. os não-hebreus ficaram debochados por todo o seu rico alimento, acompanhado de muita bebida alcoólica. Ou então Yahweh interviera diretamente, garantindo os bons resultados. O Criador também acompanhou Sua cria­ção, recompensando e punindo, de acordo com os ditames das leis morais. A isso chamamos de teísmo, em contraste com o deísmo, que supõe que a força criativa (pessoal ou impessoal) abandonou sua criação aos cuidados das leis naturais. Ver sobre ambos os termos no Dicionário. A história foi escrita para judeus piedosos como uma lição objetiva, e podemos estar certos de que a intervenção divina era mais importante para eles do que uma nutrição saudável.

Há um paralelo a essa história, no Testamento de José (3.4), quando José, embora estivesse jejuando, manteve-se em um estado físico superior ao dos egípcios, que se banqueteavam com uma dieta gorda. Assim sendo, aprendemos que aqueles que jejuam para o Senhor são recompensados com a beleza física.

John Gill (in loc.) admite que aquilo que Daniel e seus amigos comeram não podia resultar no bem, pelo que certamente deve ter havido uma intervenção divina.

Mas outros estudiosos louvam o vegetarianismo. No fim dos dez dias, as suas aparências eram melhores. O resultado foi que o cozinheiro-chefe (o homem que cumpria as ordens de Aspenaz) levantou a rica dieta babilônica e deixou os pobres hebreus a comer seus legumes e a beber sua água. Lembremos que eles continuarem nesse regime por três anos. Grande deve ter sido a recompensa por esse sacrifício! E é precisamente com isso que o autor sacro procurava impressionar-nos. Yahweh está com aqueles que se sacrificam por amor à justiça. O incidente foi uma lição ao desobediente povo de Judá, por causa de sua idolatria-adultério-apostasia naquele momento do cativeiro babilônico. A total ausência de bom senso e disciplina os levara àquele ponto.

Não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede

da boca do Senhor...

(Deuteronômio 8.3)

Epílogo (1.17-21)
Agora o autor diz-nos diretamente que “Deus estava em tudo aquilo”. Deus deu o que eles precisavam; boa saúde, físico forte e mente aguda. Essas vantagens foram concedidas aos jovens hebreus como recompensa por sua fidelidade. Cf. Sal. 37 e Eze. 18-33. O rei foi muito exigente ao submeter os jovens hebreus a testes e inspeções. A ajuda divina garantiu que eles não fracassassem, mas antes tivessem ressonante sucesso. O autor sacro estava dizendo que “os bons são recompensados”, especialmente quando se opõem às corrupções dos pagãos.

1.17
Não foi a dieta vegetariana que tomou os hebreus mais sábios e inteligente. Essas vantagens eles obtiveram pelo trabalho árduo e pela ajuda divina. Algumas pessoas clamam pela assistência divina, mas negligenciam o trabalho árduo. Quando os estudantes fazem alguma prova de matemática, a classe toda apela para a oração. Isso é bom, mas tem pouca utilidade se os homens também não estudaram.

Alguns estudantes apelam para a “cola” e ganham boas notas desonestamente, mas em algum ponto a Lei da Colheita Segundo a Semeadura (ver a respeito no Dicionário) haverá de alcançá-los. Assim sucede em nossa vida espiritual. Daniel foi abençoado com os outros jovens hebreus, mas recebeu um dom especial que seria importante mais tarde; a capacidade de interpretar sonhos e visões. Em outras palavras, ele recebeu habilidades místicas. Ver no Dicionário verbete intitulado Misticismo. E em vez de o leitor criticar a palavra misticismo, sugiro que leia o artigo. Ver no Dicionário o artigo chamado Sonhos e Visões. Nos dias de Daniel, os profetas eram rejeitados. Mas Daniel cumpriria sua missão completa, por causa de seus dons proféticos.

Não esqueçamos que este versículo também ensina que Daniel e seus amigos obtiveram sucesso no cumprimento das expectações do rei ao dominar a erudição e a sabedoria dos babilônios (ver o vs. 4). Portanto, a vida compõe-se de várias realizações, incluindo a boa educação. O secular e o sagrado combinam-se na experiência de todos os homens preparados. É possível que alguém tenha uma mente tão celestial que acabe sem uso algum neste mundo  materialista. Cf. o caso de José. Ele foi favorecido como homem de muitas aptidões, entre as quais se destacava a capacidade de interpretar sonhos (ver Gên. 40.5; 41.1,8).

1.18
Vencido o tempo determinado pelo rei. Ao fim dos três anos (vs. 5), chegou o grande e assustador dia. Os estudantes tiveram de comparecer perante o Grande Chefe, o próprio rei Nabucodonosor, que seria o juiz final. Eles seriam ou não o que ele queria que eles fossem. Se correspondessem ao desejo real, seriam galardoados, recebendo algum serviço em favor do monarca. Caso contrário, seriam expulsos do palácio, como demonstração de desgosto. A vida é assim. Somos responsabilizados por aquilo que fazemos e por aquilo em que nos tornamos. E também existem juízes adequados que fazem essa avaliação.

1.19
Então o rei falou com eles. O fim da questão é o que esperamos saber, pois Yahweh estava com Seus servos, que se tinham sacrificado por causa Dele. Lembremo-nos, pois, de todo esse duro trabalho. Eles precisava que o coração estivesse disposto e a mente funcionasse no máximo de suas potencialidades. Algumas pessoas religiosas querem que tudo lhes seja dado, meramente porque são religiosas, mas isso viola a lei do trabalho árduo do universo, uma parte integral da Lei Moral da Colheita Segundo a Semeadura.


Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça, que

me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito
mais do que todos eles. Todavia, não eu, mas a graça de
Deus comigo.
(I Coríntios 15.10)

O rei submeteu a teste os jovens hebreus, fazendo perguntas e requerendo exercícios teóricos e práticos. Os testes comprovavam que os quatro melhores estudantes eram, exatamente, os jovens hebreus. O que torna as declarações deste versículo significativas é que eles eram os melhores, embora estivessem competindo com um grupo seleto de jovens. Eles eram os melhores entre os melhores. Foi algo semelhante a Paulo, que se levantou para ser um apóstolo maior do que Pedro! Não foi fácil conseguir isso!

Vês a um homem perito na sua obra? Perante reis será posto;
e não entre a plebe.

(Provérbios 22.29)

1.20
Em toda matéria de sabedoria e de inteligência. Daniel e seus amigos dominaram realmente as matérias que haviam estudado. Eles tinham compreendido a matemática e as ciências; dominaram a astrologia, a astronomia e, ao que tudo indica, as artes psíquicas; ou por que o autor diz que eles ultrapassaram em conhecimento aos mágicos e encantadores? Aqueles hebreus, de fato, eram dez vezes mais espertos que os jovens não-hebreus e chegaram até a aprender a gramática babilônica, embora usualmente os estudantes tenham alergia à gramática.

Do que todos os magos. No hebraico, hartummim, palavra também usada nos capítulos 2, 4 e 5. Ver também Gên. 41 e Êxo. 7-9. O termo pode referir-se à classe dos sábios, mas devemos lembrar quão importantes eram para os babilônios as artes psíquicas. O que é psíquico é neutro em si mesmo e pode ser posto em bom ou mau uso. Ver o artigo detalhado sobre Parapsicologia, na Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Um homem, por ser um homem, tem poderes psíquicos, que são apenas inerentes à natureza humana. Existem abusos quando mentes estrangeiras e espíritos se misturam. Além disso a mente humana pode ser corrompida e, com freqüência, se corrompe. No entanto, o ser humano é uma psique, um espírito, e, naturalmente, possui qualidades e habilidades espirituais.

“A palavra geral mágicos (no hebraico, hartummim, Dan. 1.20 e 2.2) referia-se a homens que praticavam as artes ocultas. Essa palavra também é usada em Gên. 41.8; Êxo. 7.11,22; 8.7; 9.11” (J. Dwight Pentecost, in loc.).

Encantadores. No hebraico, ‘assapim, palavra usada somente por duas vezes no Antigo Testamento: Dan. 1.20 e 2.21. Provavelmente estão em vista aqueles que eram aptos em todas as formas de encantos mágicos e exorcismo. Eles eram espertos nas questões espirituais, conforme os babilônios as entendiam. Provavelmente por trás dessa palavra está o verbo babilônico kasapu, “encantar1,“lançar um encantamento", “exorcizar”. Ver o artigo do Dicionário denominado Adivinhação. Daniel e seus amigos ultrapassavam a esses homens. Porventura os derrotaram no próprio jogo deles? Não há razão para supormos que Daniel se reduziu a praticar as artes dos babilônios, mas a indicação clara do texto é que ele era homem dotado de consideráveis aptidões psíquicas e proféticas. Ele tinha uma excelente forma de misticismo. Não apenas lia a Bíblia e orava. Ver no Dicionário o artigo chamado Desenvolvimento Espiritual, Meios do.


1.21
Daniel continuou até ao primeiro ano do rei Ciro. Este versículo é uma pequena nota cronológica acerca do período de permanência de Daniel na Babilônia. Ele continuava lá quando Ciro derrotou os babilônios, cerca de 539/538 A. C. isso significa que a carreira de Daniel na Babilônia durou setenta anos. Talvez esta nota queira dizer-nos que Daniel morreu no ano em que Ciro subiu ao trono. Mas Dan. 10.1 diz que Daniel estava vivo no terceiro ano do governo de Ciro. Não há indicação de que Daniel tenha voltado a Jerusalém, embora existam tradições que dizem precisamente isso, ao passo que outras respondem com um ‘'não”. Dan. 9.25 menciona o retomo dos exilados, mas não confere a Daniel nenhuma participação nisso. O livro não demonstra grande interesse por essa parte da história. Ela tem escopo mundial. Lições da Primeira História. Deus honra àqueles que O honram (ver i Sam. 2.30), algumas vezes de maneira pública e gloriosa, mas sempre de maneira particular e adequada. A obediência leva a muitos triunfos. Portanto, existem muitas recompensas para os fiéis. Daniel teve uma missão longa e bem-sucedida, distante de sua terra, sob circunstâncias adversas.


Devemos entender que Daniel teve uma importante obra a fazer na chamada de Nabucodonosor, de quem se tornou valioso conselheiro. Ademais, durante o seu tempo na Babilônia, ele cumpriu a função de porta-voz de Deus em meio ao paganismo. Além disso, como é natural, teve uma missão profética, embora o seu livro não seja classificado como profético, de acordo com a tradição hebreia. Mas dentro da tradição cristã por certo ele é assim classificado.

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