Daniel 6 — Comentário Teológico
Daniel 6 — Comentário Teológico
Capítulo Seis
Capítulo Seis
O livro de Daniel compõe-se essencialmente de seis histórias e quatro visões. As histórias ocupam os capítulos 1-6, e as visões os capítulos 7-12. Quanto a detalhes sobre esse arranjo, ver a seção “Ao Leitor”, parágrafos quinto e sexto, apresentada imediatamente antes do começo da exposição sobre Dan. 1.1. Chegamos agora à mais bem conhecida das seis histórias, a sexta, Daniel na Cova dos Leões. Este capítulo divide-se naturalmente em três partes; vss. 1-3; vss. 4-24 e vss. 25-28. Há poucas subdivisões notórias. Ofereço títulos introdutórios que projetam a essência das seções.
O vs. 6.1 é uma espécie de
pós-escrito ao capítulo 5 e continua a falar em Dario, o medo. Mas não existe
nenhuma evidência histórica, fora da Bíblia, para o governo de um homem com esse nome.
Ver a discussão sobre esse Dario no vs.
5.31
A história deste capítulo é
similar à ideia do capítulo 3, que conta as aventuras dos três amigos hebreus
de Daniel na fornalha de fogo. Eles foram libertados de uma situação desesperadora
através de um milagre notável. Ver no Dicionário o artigo chamado Milagre.
Dessa forma Daniel, ao enfrentar
leões, foi capaz de sobreviver mediante intervenção
divina. Essa é uma visão teísta (ver no Dicionário o
artigo intitulado Teísmo), que
ensina que o Criador continua presente no mundo dos homens, punindo,
recompensando e orientando os eventos. Contrastar isso com o Deísmo
(ver o artigo no Dicionário),
que supõe que a força criadora (pessoal ou impessoal) abandonou
sua criação ao controle das leis naturais.
“A lição desta história é a lição
da lealdade aos mandamentos de Deus sobre a fé religiosa. Ele sempre honrará
os que observarem'fielmente esses preceitos. A religião consiste não somente
nas observâncias públicas, mas também nas devoções particulares. No
cativeiro, os judeus tinham poucas oportunidades de realizar a parte pública de suas
práticas cúlticas. Portanto, as devoções pessoais e particulares tiveram de ocupar o
lugar da devoção pública. Potentados poderosos, ou mesmo grupos de pessoas, que
manobravam o Estado ocasionalmente esforçaram-se por interferir na fé
particular... Antíoco Epifânio fez precisamente isso (ver I Macabeus 1.42; II
Macabeus 6.6). No entanto, Deus pode intervir e realmente intervém em favor dos
que permanecem fiéis. Ele pode humilhar e realmente humilha governantes
poderosos” (Arthur Jeffery, in
loc.).
Este relato bíblico também tem por finalidade
assegurar-nos que os judeus, embora oprimidos, foram ajudados
por Yahweh e exaltados a despeito dos ataques pagãos. Os deuses e a idolatria
pagã não podiam igualar tais feitos, pelo que o paganismo saiu derrotado,
enquanto o judaísmo foi exaltado, por meio das seis histórias do autor
sagrado (Dan. 1-6).
Daniel na Cova dos Leões (6.1-28)
Prólogo (6.1-3)
6.1
Pareceu bem a Dario constituir
sobre o reino. O autor sacro recupera aqui o fio de Dan. 5.31, e agora nos
diz como Dario, o medo, perpetrou um ato abominável contra o profeta
Daniel, instigado pelas classes governantes invejosas do “cativo de Judá” que tinha
subido tão alto no favor divino. Foi Dario I quem estabeleceu satrapias (isto é,
províncias), cada qual com seu governador. Mas Dario aqui é o medo referido em
5.31, onde apresento notas expositivas. Ver também o artigo no Dicionário,
onde comento sobre Dario
I (o primeiro da lista) e Dario, o medo (o quarto da
lista). Em Dan. 5.31 e no artigo mencionado, discuto os problemas históricos que
circundam o Dario deste
texto.
A divisão do país em satrapias foi
descrita por Heródoto (H/sr. III.89-94), que afirmou que Dario I dividiu o
reino em vinte divisões. Essa mesma informação figura em inscrições da época. As
tradições judaicas, no entanto, aumentam esse número para 127 divisões (ver Est.
1.1; 8.9). Josefo então aumentou o número das satrapias para 120! (Antiq.
X.11.4). É provável que os judeus usassem o termo
“satrapias” em um sentido mais amplo do que faziam os persas. Note o leitor que o vs. 1 deste capítulo dá o número judaico de 120 satrapias.
6.2,3
E sobre eles três presidentes. “Uma das primeiras responsabilidades de Dario foi reorganizar o reino da Babilônia recentemente conquistado. Ele nomeou 120 sátrapas (cf. Dan. 3.2) para governar o reino e colocou-os sob as ordens de três administradores, um dos quais era Daniel. Os sátrapas eram responsáveis diante dos três presidentes ou administradores, talvez 40 sátrapas para cada presidente. Daniel foi um administrador extraordinário, em parte por causa de
sua experiência de 39 anos sob Nabucodonosor (ver Dan. 2.48). Assim sendo, Dario planejava torná-lo responsável pela administração do reino inteiro. Isso,
naturalmente, criou atrito entre Daniel e os outros administradores e os 120
sátrapas” (J. Dwight Pentecost, in loc.).
Daniel tinha um “espírito excelente”, provável alusão a como o espírito dos deuses (segundo a terminologia pagã) estava com ele (ver Dan. 4.8,9,18). Cf. Dan. 5.12, que nos transmite a mesma mensagem. Daniel era “preferido acima de outros administradores, ou, literalmente, brilhava mais do que eles”.
O Teste do Homem de Deus (6.4-24)
6.4
Então os presidentes e os sátrapas. Daniel voava alto demais; as coisas corriam bem demais; o homem precisava ser submetido a teste. Ele era um administrador bom demais para que seus rivais encontrassem falhas nele.
Portanto, a solução foi levantar o antigo espírito de perseguição religiosa.
O homem sustentava sua fé judaica em meio à idolatria pagã; seus inimigos manipulariam isso para vantagem própria, e fá-lo-iam ser executado oficialmente pelo Estado, por meio de Dario, o medo, naturalmente. Dario tinha reputação de ser fraco e vacilante, pelo que a tarefa deles seria fácil. Era preciso, porém, encontrar motivos
para acusar Daniel com uma ‘illah, ou seja, uma acusação legal. Eles
não queriam apenas diminuir o ritmo de Daniel. Queriam vê-lo morto. E buscaram encontrar alguma talha (no hebraico, shehithah, “ação incorreta”)
ou erro (no hebraico, shalu, algum “deslize” ou “remissão”), mas Daniel e seu
trabalho mostravam-se imaculados. Cf. Esd. 4.22 e 6.9, onde temos as idéias de negligência ou relaxamento na execução das ordens oficiais. Daniel, porém,
estava acima dessas pequenas falhas humanas.
6.5
Disseram, pois, estes homens. O judaísmo nada era sem a prática da lei mosaica, que exigia, antes de mais nada, lealdade a Yahweh, protesto contra
qualquer forma de idolatria e observância de uma longa série de leis e
regulamentos que governavam toda a vida. Ver sobre a distinção de israel, em Deu. 4.4-8.
O termo “lei” usado neste versículo é o vocábulo iraniano dath, que indica a torah
dos hebreus, a lei como código ou conjunto de preceitos e práticas religiosos (cf.
Dan. 7.25). Ver também Esd. 7.12,14. Daniel era conhecido pelos frutos que produzia tanto em sua vida profissional como em sua vida pessoal. Seus oponentes
haveriam de distorcer as coisas, colocando-o em uma situação perigosa. Tentariam
desacreditá-lo e livrar-se dele, o que é o abc da política. Eles diriam a “grande mentira',
o instrumento mais usado pelos políticos. Por outra parte, “a vida correta é mais importante que o rótulo correto. O público, entretanto, por muitas vezes anela
escolher o rótulo acima da realidade” (Gerald Kennedy, in loc.).
6.6
Então estes presidentes e sátrapas foram juntos ao rei. Aqueles réprobos formaram uma conspiração. Todos estavam na mesma equipe (pelo momento) porque tinham um inimigo comum, ao qual queriam derrubar. E apresentaram ao rei Dario, o medo, a questão que tinham planejado. Aproximaram-se do rei com o louvor usual, incluindo a costumeira saudação “Vive para sempre!” (ver Dan.
2.4).
O vs. 21 deste capítulo mostra Daniel a dizer a mesma coisa. Essa saudação fazia parte da “etiqueta da corte”.
6.7
Todos os presidentes do reino. A Ridícula Conspiração. O fraco e
vacilante monarca tornar-se-ia o único deus pelo espaço de 30 dias. Nem
mesmo Bei (Marduque) receberia atenção durante esse tempo, assim como Yahweh, o Deus dos judeus. Haveria uma maravilhosa lei de 30 dias, reforçada por um
decreto real. Podemos entender que os reis medo-persas já estavam levando-se
demasiadamente a sério, pensando em si mesmos como se fossem deuses, pelo que
ser o único deus por um curto tempo parecia ser algo lógico e elogioso.
Ademais, isso apelava para a vaidade e o orgulho ridículo de Dario, fraquezas típicas dos
políticos. O conluio era ridículo, e seria necessário um homem absurdo para
cair diante dele. Mas o que o rei fez foi cair. Qualquer pessoa que desobedecesse seria entregue aos leões famintos, os quais, inocentemente, cumpririam os desejos dos
conspiradores.
Seja lançado na cova dos leões. Um surpreendente número de antigos monarcas (incluindo Salomão) tinha jardins zoológicos particulares para os
quais traziam toda a espécie de criaturas exóticas a fim de admirá-las. Note o leitor
a imagem do profeta, em Eze, 19.1-9, onde um leão é posto em uma gaiola e levado para a Babilônia. Dario tinha alguns leões de estimação. O termo aqui traduzido por “cova” corresponde à palavra hebraica traduzida por “cisterna”,
pelo que devemos pensar em uma espécie de buraco que formava a cova dos
leões.
Nenhuma pessoa que caísse naquela cova poderia esperar voltar dali. Desde os tempos mais remotos, na Mesopotâmia, os reis vinham sendo apodados de divinos e eram adorados. Ver o ato de adoração de
Nabucodonosor por Daniel, em Dan. 2.46. Isso é muito revelador quanto ao tipo de atitudes que
as pessoas tinham naqueles dias, acerca dos indivíduos potencialmente divinos.
6.8
Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito. O rei, em sua vaidade e
agindo de acordo com os costumes, recebeu bem a sugestão e imediatamente a implementou. O decreto saiu: durante 30 dias, o único deus seria Dario, o medo. Para
a população em geral, não faria diferença qual dos deuses receberia atenção especial durante um mês. Havia tantas divindades e os cultos eram tão variegados que uma variação a mais não perturbaria a paz de ninguém, exceto, naturalmente, uma pessoa como Daniel, que rejeitava toda a falta de bom senso dos pagãos.
Temos aqui uma lei escrita e, conforme todos sabemos, a lei dos medos e persas não se alterava. Essa parle do versículo tornou-se famosa e muito
repetida, como um provérbio que indica coisas imutáveis. Ver os vss. 12
e 15, onde a afirmação é reiterada. Isso deve ser contrastado com o Brasil, a terra das novas leis. Em Est. 1.19 e 8.8 também encontramos a lei imutável daquele povo. O
rei Dario foi intangível por 30 dias. O mito da infalibilidade humana é outra
mentira que até pessoas bem-intencionadas gostam de promover,
6.9
Por esta causa o rei Dario assinou a escritura e o interdito. Dario assinou a lei que os governadores tinham traçado, pelo que ali estava ela, escrita e fixa. Diodoro Sículo (XVII.30) diz-nos que Dario III chegou a reconhecer a lei
como perigosa e errada, mas até mesmo um rei não tinha poder para alterar uma lei decretada. E então Heródoto (Hist. V.25) informa-nos que um certo Sisamnes,
juiz real, aceitou suborno para manifestar-se contra a lei e favorecer um cliente.
Mas foi apanhado e esfolado vivo. Sua pele foi então usada para forrar um assento
do tribunal, onde se assentariam outros juizes. E esses, podemos estar certos, não seguiriam o mau exemplo deixado por aquele juiz!
6.10
Daniel, pois, quando soube que a escritura estava assinada. Entrega o Teu Fardo ao Senhor. Daniel tinha por costume orar três vezes ao dia, e
parte de seu ritual era recolher-se em seu pequeno quarto especial de oração, abrir as janelas na direção de Jerusalém, sua terra natal e sede de Yahweh, ajoelhar-se
e orar. Parte de suas orações consistia em ações de graças. Assim, estando agora ameaçado, ele continuou suas práticas, que eram bem conhecidas. Agora, porém, o homem era vigiado, com o objetivo de constatar se ele interromperia seus costumes de fé religiosa durante aquele período crítico de 30 dias. Mas Daniel não interrompeu sua prática, pelo que foi facilmente descoberto e acusado. Cf.
isso com o quarto construído para Eliseu pela mulher sunamita (ver II Reis
4.10).
Essas câmaras eram edificadas no eirado plano das casas, provendo um lugar fresco e recluso para que ali o proprietário se ocupasse da adoração, oração e meditação. Cf. Isa. 2.1; Sal. 102.7; I Reis 17.19; II Reis 1.2; Juí. 8.5; Atos
1.13; 9.36,39. Daniel gostava de orar diante da janela aberta, enviando suas orações
na direção de onde estivera o templo de Jerusalém. Da mesma forma Sara, em Tobias 3.11, orava defronte da janela aberta de sua casa, Berakhoth 4.1
menciona os três períodos de oração, e o costume se generalizou no
judaísmo posterior. Ver I Reis 8.35,44,48; Sal, 5.7; 138.2; I Esd. 4,58.0 trecho de Eze. 8.16
menciona o costume de orar na direção do Oriente, a câmara do sol nascente, mediante o qual toda vida terrena é sustentada.
...se punha de joelhos. Esta é uma das posturas comuns na oração,
embora orar de pé parecesse ser a mais comum. Quando alguém ora de pé, tem mais energia para orar e não dorme. Mas ajoelhar em oração indica humildade e súplica intensa. Cf. I Reis 8.54; II Crô. 6.13; Esd. 9.5; Luc. 22.41; Atos
9.40; 20.36; 21.5. Quanto à posição de pé na oração, ver Mat. 6.5 e Mar. 11.25.
Diante do seu Deus. É precisamente neste ponto que encontramos o “crime” de Daniel. Ele tinha desobedecido à ímpia regra dos 30 dias, e logo estaria à mercê
dos leões sem misericórdia. O verbete chamado Oração, no Dicionário, apresenta notas que podem ilustrar e embelezar o texto presente.
Vemos pois o idoso homem Daniel, agora com mais de 80 anos, perseverando até o
fim em suas práticas piedosas, a despeito das perseguições que lhe ameaçavam a vida.
Só disto eu sei;
Conto a Ele todas as minhas dúvidas,
Minhas tristezas e meus temores.
Com quanta paciência Ele me ouve,
Animando minha alma encolhida.
No segredo de sua presença
Como minha alma deleita-se em esconder-se.
(Ellen Lakshmi Goreh)
6.11
Então aqueles homens foram juntos. Como leões, aqueles homens estavam de
emboscada, prontos a golpear o idoso homem assim que ele mostrasse que não desistiria de suas práticas religiosas, nem mesmo por 30 dias. Eles continuaram a observá-lo — e realmente ali estava ele, oferecendo suas abomináveis orações. Os leões o atacaram, contando com várias testemunhas do “crime”.
Os pecados geralmente são cometidos em segredo, e por isso os culpados não são detectados. Mas Daniel praticara seu “pecado” abertamente e logo foi
apanhado com a mão na massa.
6.12
O traiçoeiros governantes tinham o homem nas mãos. Conseguiram provas de suas acusações. Triunfantes, eles correram para contar ao rei a ousada infração de Daniel contra a lei real que não podia ser mudada nem retirada (vs. 8).
O rei precisou concordar que o decreto se tornara oficial e não podia ser
alterado, uma repetição do vs. 15. O rei foi apanhado (contra a própria vontade) por seu decreto, tal como a filha de Herodias conseguiu apanhar Herodes (ver Mat.
14.3).
Essa foi uma maneira crua mas eficaz de negociar. “Nabucodonosor estava acima da lei, mas Dario, o medo, tinha de obedecer às leis dos medos e persas. Isso ficou subentendido no contraste entre o ouro e a prata, na imagem do sonho de Nabucodonosor (ver Dan. 2.32,39)” (J. Dwight Pentecost, In loc.).
6.13
Então responderam, e disseram ao rei. A acusação assacada contra Daniel foi traição. Ele teria ignorado deliberadamente o ímpio decreto e
continuado com suas orações três vezes ao dia. Ele sabia que uma lei oficial e temporária
tinha sido assinada, mas desobedeceu abertamente. Além disso, ele era um daqueles
desprezíveis “estrangeiros” (um humilde cativo de Judá) em quem ninguém podia
confiar, conforme agora era comprovado. Cf. o preconceito contra os estrangeiros, em
Dan. 2.25 e 5.13. “Ali estava um estrangeiro que tinha recebido os maiores favores
por parte da corte, mostrando-se antagônico às leis do reino!” (Ellicott, in
loc.). “... um cativo judeu, dentre todos os povos o mais odioso...” (John Gill, in loc).
6.14
Tendo ouvido o rei estas cousas. O rei tinha sido iludido e agora ficara “penalizado” por ter-se permitido cair em tão ridícula situação. Ele era
esperto o bastante para reconhecer a razão real de ter sido tratado como um
deus por um mês. A exaltação ao rei não era sincera, mas objetivava a derrubada
de Daniel. Tinha sido apenas um daqueles jogos doentios que os políticos geralmente jogam.
O rei insensato não era mais que um animal que fora apanhado na rede por caçadores maliciosos. O rei saiu totalmente humilhado do episódio. Para
seu crédito, Dario tentou, até o pôr-do-sol, livrar-se da rede, livrando também
Daniel. “Ele resolveu salvar Daniel. Ficou trabalhando até o ocaso imaginando como poderia salvá-lo” (NCV). Mas todo esforço foi inútil por causa da teoria de que
a lei dos medos e persas nunca muda. Caros leitores, esse incidente se parece com os dogmas de algumas pessoas. De fato, há pessoas que passam a vida toda sem mudar de mentalidade sobre coisa alguma. Porém, a verdade é que não existe crescimento sem que haja mudanças.
6.15
Então aqueles homens foram juntos ao rei. Aqueles réprobos novamente foram lembrar ao rei a natureza imutável das leis dos medos e dos persas (o que já fora dito nos vss. 8 e 12). Isso pôs fim aos esforços do rei por livrar
tanto a si mesmo como a Daniel da maliciosa situação. Este versículo enfatiza a impotência do homem perante o mal, a menos que alguma intervenção divina o livre. O texto também ilustra que algumas leis são injustas, sendo também verdade que homens
injustos ditam leis visando seu próprio benefício. Portanto, quando
alguém diz “Assim determina a lei”, essa pessoa não está emitindo necessariamente um julgamento moral. Além disso, é melhor obedecer a Deus do que às leis dos homens, quando essas leis entram em conflito com a verdadeira avaliação
do que é justo (ver Atos 5.29).
A Provação e o Livramento de Daniel (6.16-23)
6.16
Então o rei ordenou que trouxessem a Daniel. O rei, impotente, e
confessando sua impotência, com relutância ordenou que Daniel fosse trazido e lançado na cova onde os leões viviam, tal como os três amigos do profeta tinham
sido lançados na fornalha ardente (ver Dan. 3.11,21). Quando Daniel estava sendo arriado na cova dos leões, o rei expressou o desejo de que Deus o protegesse, pois Daniel confiava nele. Isso duplica a situação dos três amigos (ver Dan.
3.17).
Ver também Dan. 6.20. A história, como é claro, exalta Judá e Yahweh, à custa
do paganismo e de seus inúmeros deuses de nada. E Daniel, profeta genuíno, também
é exaltado, às expensas dos profetas do paganismo. O livro de Daniel, em certo sentido, é uma apologia do judaísmo e de sua fé monoteísta
tradicional.
6.17
Foi trazida uma pedra e posta sobre a boca da cova. A cova dos leões era uma espécie de abismo, conforme a palavra usada dá a entender. Ao que tudo indica, só havia uma saída, pelo que uma pedra tampou a cova, impedindo que Daniel fugisse. Naturalmente, o idoso profeta não correria muito, mesmo que os leões viessem em sua perseguição! A pedra foi selada com argila, e o pobre rei “assinou” sobre ela com seu sinete, talvez fazendo uma impressão no barro com seu anel real. Isso dizia às pessoas que se mantivessem afastadas sob pena de morte. Ninguém ousaria tentar salvar Daniel, pois, se violasse a marca do
anel do rei, essa pessoa seria a próxima a descer à cova. Heródoto (Hist. 1.195) mencionou o costume babilónico de fechar covas e selar a tampa, e esse costume
continuou com os persas (Est. 3.12; 8.8,10). Dario afixou seu selo a documentos
oficiais, conforme informou Heródoto (ver Hist. 111.128). Cf. I Reis
21.8 e Mat. 27.66.
6.18
Então o rei se dirigiu para o seu palácio. O pobre rei Dario ficou extremamente desanimado. Ele perdeu o apetite e nada comeu. Talvez ele estivesse ocupado em um jejum religioso, mediante o qual esperava salvar Daniel “de alguma maneira”. Naquela noite ele não quis que houvesse a música, a dança e os entretenimentos que faziam parte regular das “noites do rei”. Ele não dormiu, e suponho que ele muito orou ao Deus dos judeus, a despeito do decreto restringidor. Sem dúvida o rei não estava confiando em si mesmo naquela noite. Este versículo combina admiravelmente com a experiência humana. Há tempos em que as coisas saem de nosso controle, e somente Deus pode fazer alguma diferença. Assim sendo, lançamos tudo sobre Ele, em oração. Cf. Dan. 2.1 quanto ao desassossego de Nabucodonosor, e ver algo similar em Est. 6.1. Mas existe uma profunda agitação “lá fora”, pois as pessoas são envolvidas por situações impossíveis e não têm fé
suficiente para livrar-se delas:
Esconder-me-ei na Rocha fendida,
Até passarem as tempestades da vida;
Segura nesse bendito refúgio,
Não dando atenção à explosão mais feroz.
(Mary D. James)
6.19
Pela m anhã, ao rom per do dia. O rei agitou-se e rolou em seu leito
real a noite inteira, em meio a uma ansiedade nada real. Assim que o sol surgiu no horizonte, ele foi com coração pesado dar uma olhada na miserável cova dos leões. Ele temia olhar para dentro da cova. Talvez só houvesse ossos e pedaços do profeta Daniel. Porém, em seu desespero, ele correu para a cova. Somos lembrados de como certas mulheres, e então um grupo de discípulos, correram para o túmulo de Jesus, pois se espalhara a notícia de que ele tinha escapado daquele lugar miserável por meio de um milagre (ver João 20.4).
“Elevados oficiais, nos países do Oriente, moviam-se com pomposa lentidão, como sinal de sua dignidade. Se alguém era uma grande figura, não precisava
andar com pressa. Portanto, a pressa, por parte do rei, foi um elemento do efeito dramático deste relato” (Arthur Jeffery, in loc.). “Dario
esperava... que o idoso estadista teria sido salvo por Deus, a quem servia (ver Dan. 3.17; 6.16)”. (J. Dwight Pentecost, in loc.).
6.20
Chegando-se ele à cova, cham ou por Daniel com voz triste. Chegando à cova, o rei era um destroço nervoso e, com voz chorosa, lamentável de
ser ouvida, ele gritou pelo buraco, na esperança de que um homem vivo ouvisse e respondesse. O rei estava todo entusiasmado com a ideia de que o Deus vivo e verdadeiro dos judeus, sobre o qual ele tinha ouvido, realmente teria algum poder, a ponto de reverter a miserável situação de Daniel. Daniel tinha servido bem esse Deus e estava disposto a ser um mártir, para evitar tornar-se um apostatado. Talvez por essa razão, Deus tivesse baixado Sua mão poderosa e fechado a boca dos leões. Por isso o rei perguntou: “Estás vivo, Daniel? Teu Deus iez algum grande feito em teu favor? Grita de volta se puderes!', “Teu Deus, a quem sempre tens adorado, te salvou dos leões?” (NCV), Quanto à frase, o Deus vivo (que é judaica, e não iraniana), ver Deu. 5.26; Jos.
3.10; Sal. 42.2; Mat. 26.63; Atos 14.15; I Tes, 1.9. Cf. este versículo com Dan, 3.17 e
6,16.
6.21
Então Daniel falou ao rei: Ó rei, vive para sempre! Para profunda admiração
do rei, uma voz saudávei e forte, a voz do próprio Daniel, respondeu. Ficamos sempre surpresos quando Deus faz outro feito em nosso favor, que ultrapassa tudo quanto poderíamos fazer por nós mesmos. De fato, continuamos a
ser surpreendidos, sem importar quantas vezes isso volte a acontecer.
Portanto, Senhor, continua enviando surpresas. Um homem tem de crer em tudo quanto vem de Deus, pois é Dele que os milagres provêm. Sempre é melhor crer de mais do que crer de menos. Oh! Senhor, concede-nos tal graça! Ademais, tudo quanto temos a fazer é pedir. “... foi algo tão grande, que encheu o rei de admiração. A coisa foi realmente extraordinária e admirável” (John Gill, in loc.).
Daniel introduziu o que tinha a dizer acerca de sua libertação com uma típica saudação segundo a cortesia da corte: “Ó rei, vive para sempre”.
6.22
O meu Deus enviou o seu anjo. Deus, o Poder, a Deidade dos judeus, foi o libertador de Daniel, e o anjo foi o Seu instrumento. O anjo tinha o poder de manter os leões tranquilos e sem vontade de atacar o profeta, e foi isso o que ele fez, conforme se entende pelas palavras “fechou a boca aos leões”. Este versículo ensina a realidade do ministério do anjos. Ver as notas sobre Anjo,
no Dicionário, bem como em Heb. 1.14, no Novo Testamento interpretado: Não são todos eles espíritos ministradores enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?
O fato de Daniel ter sido livrado deveu-se à sua inocência diante de Deus e diante do rei. O rei é que tinha pecado, assinando o ridículo decreto e assumindo uma posição divina, o que não é certo ao homem fazer. Anjos já tinham estado ativos em circunstâncias nas quais os amigos de Daniel estiveram envolvidos (ver Dan. 3.28). A história de Daniel na cova dos leões ilustra um dos atos de fé, conforme registra Heb. 11. Ver o vs. 33. Daniel era inocente e leal a Deus, pelo que Deus usou Sua graça para conceder aquele grande milagre. É um exagero fazer aqui do anjo o Cristo pré-encarnado, como se fosse c mesmo anjo que esteve na fornalha ardente. Cf. o versículo com Sal. 34.7,10. O poder de Deus fecha a boca do “leão que ruge” (I Ped. 5.8).
6.23
Então o rei se alegrou sobrem aneira. Daniel nunca mais foi sujeitado a abusos. O rei ordenou que tirassem o profeta daquele buraco miserável. Ele não tinha sofrido nenhum dano físico, porquanto havia confiado em seu Deus, na hora de provação. Antes disso, porém, havia demonstrado extraordinário grau de lealdade, pelo que era o tipo de pessoa da qual se podia esperar um milagre. O paralelo, naturalmente, é a história dos três amigos de Daniel que foram libertados da fornalha ardente, e as mesmas qualidades morais governaram
os dois incidentes. Cf. Sal. 57.4-6 e 91.11,15.
Este versículo ilustra como o Criador intervém em Sua criação, recompensando e
punindo, e também guiando os acontecimentos individuais e nacionais (ver no Dicionário o verbete intitulado Teísmo). Cf. I Ped. 4.19.
Os Inimigos de Daniel São Punidos (6.24)
6.24
Ordenou o rei, e foram trazidos aqueles homens. Os rivais de Daniel obtiveram exatamente o haviam planejado para ele. Lançados na cova, foram despedaçados e consumidos pelos leões. A mesma punição alcançou suas esposas e seus filhos, pois esse era um modo comum de retribuição na
antiguidade. Foi aplicada a Lex Taiionis (retribuição segundo a
gravidade do crime), uma subcategoria da Lei Moral da Colheita Segundo a Semeadura. Ver sobre ambos os titulos no Dicionário.
Temos de considerar que todas aquelas pessoas foram separadas para serem refeições de leões por considerável tempo, e isso só aumenta o horror da história. A Septuaginta limita o “consumo” de carne humana a dois governadores,
presumivelmente os lideres da conspiração. A voracidade dos leões
ilustra que a Daniel foi concedido um milagre. Nada houve de errado com os leões.
Quando eles não comeram Daniel, isso resultou da ação de um anjo do
Senhor. Quanto aos familiares de pessoas culpadas que tiveram de sofrer juntamente com elas, ver Jos. 7.24,25; II Sam. 14.5 ss. e 21.5-9, Ver também o relato de como os filhos de Hamã sofreram juntamente com ele, segundo conta o livro de Est. 9.13,14. Heródoto narrou algo similar em sua História 111.119.
Quanto a alguém sofrer pelos pecados dos pais, ver Êxo. 20.5.
Epílogo (6.25-28)
6.25
Então o rei Dario escreveu aos povos. “Assim como Nabucodonosor, no terceiro capítulo, sentiu-se Impelido a assinar um decreto no qual reconhecia a grandeza do Deus dos judeus e convocava todos os seus súditos a respeitá-Lo, também Dario se sentiu impulsionado a fazer o mesmo, depois do milagre que ocorreu com Daniel. De fato, os detalhes desse decreto seguem de perto o padrão de Dan. 3 29ss., usando palavras e frases que já havíamos encontrado em Dan. 2.44; 4.1-3 e 5.19” (Arthur Jeffery, in loc.). Quanto aos decretos
reais, cf. Dan. 3.10,29 e 4.6. Quanto à universalidade do reino e do poder do rei, ver sobre “povos, nações e línguas”, em Dan, 3.4,29 e 4.1, A terra era o que
eles conheciam. O império persa era bastante amplo e abarcava a maior civilização da época. Foi irônico que o homem que tinha acabado de assinar um decreto, tornando a si mesmo um deus pelo espaço de 30 dias, tenha precisado admitir que existe um Deus verdadeiro, vivo e eterno (ver o vs. 20), que governa o tempo todo e para sempre e merece a adoração dos homens. A paz foi
multiplicada ao povo, quando foram libertados do primeiro decreto e sujeitados
ao segundo. A paz na terra resulta da paz espiritual, quando os homens endireitam os seus caminhos diante de Deus (Rom. 5.1).
6.26,27
Faço um decreto. O Deus dos judeus faz-se sempre presente com os homens em Sua criação, punindo e recompensando. Isso, no caso de Daniel, livrou-o de maneira miraculosa. O relato é uma apologia em favor do Deus dos judeus e contra os não-deuses dos pagãos. Cf. este versículo com Dan. 3.29. O Deus libertador, que opera milagres diante dos homens, é o Deus vivo
(ver o vs. 20), em contraste com os ídolos mortos que nada podem fazer. Ele encabeça um reino que é permanente e eterno o tempo todo. Embora a destruição seja a sorte dos reinos terrenos, ela não tem efeito sobre o reino de Deus. Deus domina até o fim, até onde o olho pode enxergar ao longo dos corredores do futuro, em contraste com os reis terrenos, que aparecem e desaparecem. O rei tentara libertar Daniel, mas fora impotente para isso (vs. 14). Deus é quem salva tanto o corpo como a alma (cf. com o vs. 16 e Dan. 3.28,29). Ele emprega sinais e maravilhas (ver Dan. 4.2). “Que excelente elogio ao grande Deus
e ao Seu servo fiel!” (Adam Clarke, in loc.).
6.28
Daniel, que por essa altura estava com mais de 80 anos de idade, recebeu certo número de anos a mais, a fim de terminar seu trabalho, prosperar e continuar a buscar e a servir o seu Deus. Oh, Senhor, concede-nos tal graça! Ele continuava vivo no começo do reinado de Ciro. Essa informação já fora dada em Dan. 1,21, cujas notas devem ser consultadas. Dan. 10.3 mostra-nos que Daniel continuava vivo no terceiro ano do reinado de Ciro. Daniel tinha prosperado e continuava a prosperar, porque o Espirito de Deus estava com ele.
Guia-me, Luz gentil, na melancolia circundante,
Continua a guiar-me!
A noite está escura e estou longe de casa;
Continua a guiar-me!
Guarda os meus pés.
Não te peço para ver a praia distante.
Um passo só é bastante para mim.
Por muito tempo Teu poder me tem abençoado,
E por certo ele continuará a guiar-me.