Daniel 3 — Comentário Teológico
Daniel 3
O livro de Daniel é essencialmente composto por seis histórias e quatro visões. As histórias ocupam os capítulos 1-6, e as visões os capítulos 7-12. Quanto a detalhes a respeito, ver a seção “Ao Leitor”, parágrafos quinto e sexto, antes do começo da exposição em Dan. 1.1. Agora chegamos à terceira história, a experiência dos três confessores na fornalha ardente. Este capítulo naturalmente se divide em três seções — vss. 1-7; vss. 8-23; e vss. 24-30. Essas seções contam com subseções. No começo de cada uma das seções ofereço um título que dá a essência do que se segue.Terceira História: Os Três Confessores na Fornalha de Fogo (3.1-30)
Temos aqui uma história que ilustra a convicção judaica de que o martírio é preferível à apostasia. A imagem colossal de Nabucodonosor teria de ser adorada por todos. Essa imagem de ouro (cap. 5) provavelmente representava o panteão do império, e talvez deificasse o próprio rei como seu deus-mensageiro. O sonho do segundo capítulo, em que Nabucodonosor figura como a cabeça de ouro da imensa e grotesca imagem, pode ter-lhe sugerido que seria apropriado construir uma imagem dele próprio, para efeitos de autoglorificação. Essa história ignora a humilhação do rei diante de Yahweh/Elohim (vs. 46). Não seria demais que um pagão esquecesse esse incidente. Além disso, era comum que os antigos potentados levantassem tais imagens.Daniel não aparece nessa história. Seus três amigos foram os perseguidos. Talvez devamos supor que o profeta, em sua glória (ver Dan. 2.48), estivesse fora do alcance do decreto e do desígnio do rei, mas seus amigos, em posições inferiores, foram assediados.
Prólogo (3.1-7)
A Septuaginta fornece-nos uma data para essa história, a saber, o décimo oitavo ano de governo real de Nabucodonosor. Também são sugeridas razões para a construção da imagem. Foi naquele ano que o rei efetuou a devastação final de Jerusalém, mas essa adição é, obviamente, secundária. Sabemos que o rei erigiu uma imagem a Bei Merodaque (Registros do Passado, V, pág. 113), e talvez seja isso o que está em vista aqui. Talvez alguma grande vitória tenha sido comemorada pelo levantamento da imagem. Os vss. 12 , 14, 18 e 20 talvez subentendam que alguma divindade estivesse sendo honrada pela imagem.3.1 O rei Nabucodonosor fez uma imagem de ouro. A imagem erigida foi imensa, tendo cerca de 30 m de altura, equivalente a oito andares de um edifício. Era feita de ouro. Talvez o sonho do rei, no qual ele aparecia como a cabeça de ouro, tenha influenciado a escolha do metal. A largura era de apenas 3m, e é provável que a imagem não tivesse o formato de um homem. Se tivesse, seria uma figura muito grotesca. Foi levantada na planície de Dura (ver a respeito no Dicionário, quanto a detalhes). O termo dura era comumente usado na Mesopotâmia para indicar qualquer lugar fechado por uma parede ou por montanhas. Provavelmente o lugar ficava perto da Babilônia. Quanto a detalhes, ver o artigo. Essa construção provavelmente era uma coluna com inscrições, talvez uma imagem esculpida que representasse o deus honrado. Continua em debate a quantidade de ouro que havia nessa coluna. Provavelmente ela era apenas recoberta de ouro.
3.2 Então o rei Nabucodonosor mandou ajuntar os sátrapas. A importância da imagem para Nabucodonosor é demonstrada pelo convite geral (ordem, decreto) aos oficiais babilônicos para a dedicação da imagem. Essas comemorações festivas eram comuns na Babilônia. A lista dos oficiais é similar a outras descobertas no antigo Oriente Próximo e Médio. Sargão, em suas inscrições, bem como Esar-Hadom, apresentou listas similares. Os titulos aqui usados eram quase todos persas, e isso tem provocado um problema histórico. Inscrições neobabilônicas não mostram nenhuma influência das palavras persas. Alguns críticos vêem nesta circunstância evidência de uma data posterior do livro.
Nomes:
1. Sátrapas. Cf. Esd. 8.36; 3.12; 8.9 e 9.3. Foi Dario I quem dividiu o império em satrapias e suas datas foram 521-495 A. C. Eram os principais representantes do rei, pois eram os cabeças do governo provincial.
2. Prefeitos. Cf. Dan. 2.48 e 6.7. Esdras e Neemias usaram o termo para certos oficiais secundários de Jerusalém. Mas alguns estudiosos acreditam tratar-se de comandantes militares.
3. Governadores. Ver Esd. 5.14. Esses eram “senhores de distritos”, os bei pahati dos babilónios. Oficiais importantes e subalternos eram assim chamados, o que significa que essa palavra pode apontar para ambas as coisas.
Eram administradores civis de várias categorias.
4. Conselheiros. Conforme os nomes persas subentendem, eram conselheiros do povo (handarza, conselheiro + kara, povo). Essa palavra pode significar qualquer pessoa que tinha a autoridade do governo por ela representada.
5. Tesoureiros. Cf. Esd. 7.21, onde a palavra existe com uma variante de diferente soletração. Eles eram administradores dos fundos públicos.
6. Juízes. Essa palavra vem do hebraico, data bara (sustentador da lei). Eram os especialistas na administração das leis.
7. Magistrados. Ao que parece, a palavra deriva-se de um termo persa, pat, “chefe”. Oficiais militares e palacianos eram assim chamados, mas alguns estudiosos vinculam esse ofício com o de número seis, supondo que eles fossem executores da lei.
8. Todos os oficiais. O autor sagrado usou essa expressão para evitar deixar de lado qualquer oficial que tivesse autoridade. Ninguém que tivesse um minimo de importância foi ignorado no convite (ordem, decreto). Todas as autoridades da terra se puseram de pé diante da imagem, dando a ela sua sanção e aprovação, confirmando o decreto de que todos os habitantes do reino deveriam adorar àquela monstruosidade. Toda idolatria é abominação.
Nabucodonosor teve sua abominação forçada, e não permitiria uma única voz discordante. Os desobedientes seriam brutalmente executados, conforme o restante da história demonstra claramente.
3.3 Então se ajuntaram os sátrapas... O decreto real foi autenticado pela liderança coletiva da nação. Este versículo repete os nomes dos oficiais do versículo anterior, para compreendermos que todos aqueles oficiais concordaram com o decreto. Não houve absolutamente voto democrático. Nem havia permissão para que alguém desobedecesse às ordens reais. Desobedecer seria considerado uma traição ao estado. Foi assim que o rei pensou em um absurdo, e a liderança secundária inteira promoveu a causa com entusiasmo. Os oficiais do governo vieram de todos os lugares. Nenhum oficial seria capaz de ocultar-se e escapar dessa prática idólatra. Aqueles homens ridículos ficaram de pé enquanto a imagem era dedicada, pois seria considerado um sacrilégio alguém sentar-se. Eles respeitaram o que não deveria ser respeitado. Ninguém proferiu um comentário crítico contra a imagem, e certamente ninguém lhe deu pontapés. A lealdade foi jurada àquele culto, a qual seria a “religião do estado” em todos os lugares do império.
3.4 Nisto o arauto apregoava em alta voz. Um arauto foi comissionado para exprimir a convicção da liderança babilônica. Visto que fora o rei quem ordenara aquele culto, todos eram cem por cento favoráveis. Todos os povos dentro dos limites do império babilônico foram obrigados a adorar a imagem. Isso significa que praticamente todo o mundo então conhecido foi forçado a adorar o monstro da planície. Quanto a “povos, nações e línguas”, cf. os vss. 7 e 29; 4.1; 5.19; 6.25 e 7.14. Isso fala em universalidade. Judite 3.8 pinta Nabucodonosor decidido a eliminar todas as religiões não-babilônicas. Isso se tornou um ato de patriotismo.
Talvez exista um paralelo aqui a Antíoco (ver Dan. 11.36). A ordem era “ou obedece, ou é queimado”.
3.5 No momento em que ouvirdes o som da trombeta. “A música daria o sinal para o ponto alto do culto de dedicação. Isso ocorreria não somente porque todos os reunidos deviam saber o momento preciso em que deveriam obedecer ao decreto real, mas também porque, na antiguidade, era costume que instrumentos musicais acompanhassem as cerimônias públicas” (Arthur Jeffery, in loc.).
Os nomes dos instrumentos foram dados em grego, talvez outra indicação da data tardia do livre de Daniel, Cf. as palavras empregadas para os oficiais, no vs. 2. Pode-se argumentar que as edições posteriores do livro mudaram os nomes desses instrumentos para que se tornassem inteligíveis aos leitores da época — mas esse é um argumento fraco. Além disso, era cedo demais para os criticos afirmarem que palavras gregas influenciaram uma lista inteira de instrumentos da época de Nabucodonosor. Logo, que o problema fique como está, e que aqueles que quiserem incomodar-se com ele, que se incomodem.
“A orquestra incluiu instrumentos de sopro (a trombeta e o pífaro, cf. Dan. 3.10,15); um instrumento de palheta (a flauta); e instrumentos de corda (a harpa, a citara e o saltério)” (J. Dwight Pentecost, in loc.).
3.6 Qualquer que se não prostrar e não a adorar. Um modo temível de execução esperava os desobedientes ao decreto. O tipo de fornalha evidentemente recebia o combustível pelo alto, ao passo que era fechado por tijolos nos quatro lados. Execuções pelo fogo eram comuns entre os antigos, em altares munidos de fogueiras, grelhas em brasa, na fogueira ou em fornalhas. O código de Hamurabi (25,110,157) menciona as fornalhas, embora essa forma de execução parecesse reservada a criminosos especialmente perigosos. Heródoto (Hist. I.86; IV.69) diz nos que Ciro e os citas executavam dessa maneira bárbara. Ver Diodoro Sículo (1.58.1-4; 77.8). Os hebreus antigos também não devem ser isentados. Ver Gên. 38.24; Lev. 21.9; Jos. 7.15,25; Jer. 29.22; Jubileus 20.4; 30.7. E II Macabeus 7.3ss. e IV Macabeus 18.20 mostram-nos que essa forma de execução foi usada nos tempos dos monarcas selêucidas. No caso presente, a alegada impiedade religiosa era punida dessa maneira, e podemos supor que a desobediência era considerada um crime sério contra o Estado.
3.7 Portanto, quando todos os povos ouviram o som da trombeta. A Adoração da Imagem. Ao ouvir o som de todos os instrumentos listados no vs. 5 (com a exceção única da gaita de foles), todos os povos, de todas as classes, de todas as nações, prostraram-se e adoraram a grotesca imagem de Nabucodonosor.
Quem enfrentaria o horroroso castigo ameaçado contra os desobedientes à ordem real? Representantes de todo o povo adoravam, e em breve todos “lá fora" estavam fazendo a mesma coisa. A superstição e a idolatria ganharam o dia. Mas ainda raiaria outro dia quando a bondade e a justiça seriam as vitoriosas.
3.8 Ora, no mesmo instante, se chegaram alguns homens caldeus. O rei se fizera entender claramente. Ninguém poderia dizer-se ignorante da lei. Alguns oficiais provinciais observaram que havia três jovens judeus que não cumpriam seus “deveres religiosos”. Esses jovens estavam cometendo um claro ato de traição. Não temos aqui menção ao grupo de judeus no cativeiro, mas somente aos três jovens companheiros de Daniel, o que indica claramente que as massas dos judeus estavam obedecendo ao edito real. O três tinham sido colocados em posição de autoridade (ver Dan. 2.49 e 3.12), o que os tornara conspícuos.
E acusaram os judeus. Diz a Revised Standard Version: “acusaram maliciosamente”. Isso é justificado pelas palavras literais: “e comeram seus pedaços” (ver também Dan. 6.24). Esta é uma expressão idiomática no aramaico, que comumente significava “acusar”, o que demonstra uma atitude virulenta. O aramaico também usava a expressão “comeram a carne deles” (Quran, 49.12). Cf. as palavras akalo karsi, das cartas de Tel-el-Amarna (e ver Sal. 27.2). Pode ter havido inveja politica na questão, em que um partido tentava derrubar outro. A única coisa pior do que a perseguição politica é a perseguição religiosa.
3.9 Disseram ao rei Nabucodonosor. Aqueles pequenos oficiais locais, em sua tremenda inveja, certificaram-se de que o rei ouvisse sobre a clara infração que tinham descoberto. Dessa maneira, demonstraram quão competentes e patriotas eram revelando a questão assim que puderam. Demonstraram respeito pelo rei, desejando que ele “vivesse para sempre”, e não dando valor algum à vida dos três “criminosos”, “Um prefácio de lisonja foi seguido de perto pela crueldade. Assim também, em Atos 24.2,3, onde Tértulo, ao acusar Paulo diante de Félix, começou lisonjeando o governador romano” (Fausset, in loc.).
O restante dos judeus acompanhava o movimento de apostasia; Daniel era importante e favorecido demais para alguém tentar atingi-lo. Assim sendo, a ira recaiu sobre os três amigos de Daniel, que são mencionados por nome no vs. 12.
3.10 Tu, ó rei, baixas te um decreto. Aqueles réprobos lembraram a Nabucodonosor que fora ele próprio quem decretara, de modo “justo e sábio”, que, ao começarem a tocar os instrumentos musicais (já listados por duas vezes nos vss. 5 e 7), todos deveriam prostrar-se e adorar a imagem feita pelo monarca.
Os instrumentos tinham sido tocados. O decreto entrara em efeito. Mas certos jovens preferiram desobedecer ao decreto real. Este versículo é uma repetição virtual do vs. 5, onde são oferecidas notas expositivas.
3.11 Qualquer que não se prostrasse e não adorasse. Este versículo repete essencialmente o vs. 6 — o resultado para quem não obedecesse ao decreto, ou seja, a fornalha ardente. Ver notas ali. Aqueles homens ímpios e desvairados agora “exigiam” que a execução ocorresse. Provavelmente eles seriam galardoados de alguma maneira, ainda que somente com a satisfação de ver a queda dolorosa de inimigos políticos que, além do mais, eram estrangeiros desprezados.
3.12 Há uns homens judeus. Os réprobos não demoraram a identificar os “traidores”: eram aqueles três estrangeiros, os desprezíveis cativos judeus, a saber, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, homens desobedientes e ímpios que ousavam desafiar o rei e o seu decreto, dignos da punição ameaçadora. Quanto aos nomes desses três homens, seus nomes hebraicos originais e seus novos nomes babilônicos, ver Dan. 1.6,7. O texto não menciona a razão pela qual Daniel (que também, sem dúvida, desobedecera ao decreto real) não estava entre os acusados. Por isso floresceram várias conjecturas: 1. Daniel era alto demais para ser tocado; 2. ele estaria viajando; 3. ele teria seu próprio julgamento severo (capítulo 6), pelo que pôde ter-se mostrado culpado no caso, mas fora deixado em paz propositadamente.
3.13 Então Nabucodonosor, irado e furioso. O rei, como se fosse um louco, reagiu como era previsto. Sua cólera desconheceu limites. Ele reagiu com “ira furiosa” (Revised Standard Version) e requereu que os “criminosos” fossem trazidos imediatamente à sua presença. Ele os julgaria “com justiça”. A alta estima que o rei lhes devotara (ver 1.20) agora não teria efeito algum sobre o louco rei.
Ele faria um caso exemplar daqueles três traidores, a fim de lançar o medo no coração do restante de seus súditos. Eles seriam executados publicamente. A grande fúria dos potentados orientais sempre faz parte de tais histórias. Grandes homens sempre estão envolvidos em casos de grandes iras. Cf. Est. 1.12; 7.7; Tobias 1.18; Juí. 5.2; II Macabeus 4.38; 7.3. Heródoto (Hist. VII.39) e Plutarco (Solon, 27) oferecem exemplos seculares do mesmo fenômeno.
3.14 Falou Nabucodonosor, e lhes disse. O rei queria certificar-se de que as acusações eram verazes, a fim de não perpetrar alguma injustiça. Por isso, perguntou aos acusados se eles tinham desobedecido à sua ordem de adorar a imagem. Eles tinham a obrigação de servir os deuses do rei, ou seriam considerados traidores do Estado. Sempre são más as notícias quando governos têm religiões oficiais, quando igreja e Estado se unificam. Até mesmo em países modernos, que se consideram democráticos, ainda mantêm, em suas atitudes e atos, “religiões do Estado”, que causam a perseguição dos dissidentes.
3.15 Agora, pois, estais dispostos...? O rei mandaria novamente tocar a música, dando aos pobres cativos outra chance de obedecer à lei. A lista dos instrumentos é repetida pela quarta vez (ver os vss. 5,7,10), O mundo vive sempre a tocar a música da tentação e da traição, e as massas vivem sempre se prostrando. Poucos são os heróis que se rebelam contra a corrente da opinião e da prática pública. Contudo, a maioria raramente tem razão. O rei fez-lhes então um desafio:
O Deus deles teria algum poder contra a sua fornalha superaquecida? Isso me faz lembrar das histórias de execução por afogamento. As vítimas eram amarradas a pesos e então lançadas dentro de lagos. Se fossem inocentes, Deus as salvaria, fazendo-as flutuar na superfície. Caso contrário, elas morreriam. A questão era retórica. O rei não estava pensando em termos de alguma intervenção divina. Sua atitude, referida em Dan. 2.47, há muito havia sido esquecida, conforme os ímpios esquecem a maior parte de seus sentimentos espirituais. Cf. este versículo às zombarias de Senaqueribe (II Reis 18.35). Ver também a atitude similar do Faraó (Êxo. 5.2).
3.16 Responderam Sadraque, Mesaque e Abede-Nego ao rei. O rei não precisou mandar tocar de novo a música, nem os três cativos vacilaram, debateram e ficaram jogando na tentativa de escapar do inevitável, por meio de argumentos espertos. O caso era fácil: eles precisavam ser fiéis a Yahweh e entregaram sua vida nas mãos Dele, incondicionalmente. Assim, os três judeus responderam que não tinham necessidade de defender-se. A defesa deles era Yahweh, ou então não tinham defesa alguma. Se ser alguém leal a Yahweh era um crime, então eles eram os piores criminosos, pois a lealdade deles era grande e sem hesitações.
“A hesitação ou a parlamentação com o pecado é fatal. Uma decisão sem hesitação é a única vereda segura quando a vereda do dever é clara (ver Mat. 10.19,28)” (Fausset, in loc.). “Há certa demonstração de orgulho aqui, como no caso da resposta de Daniel ao rei, em Dan. 5.17. Era um orgulho derivado da consciência de que, na qualidade de seivos de Deus, eles eram superiores a qualquer potentado, e, assim, não precisavam de sua clemência ou de seus dons"
(Arthur Jeffery, in loc.).
3.17 Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos... Elohim, o Poder (relativo a Elah, a palavra caldaica que aparece neste versículo), era capaz. Eles estavam dispostos a submeter o Senhor a teste. Esperavam livramento — ser tirados da fornalha, e não postos dentro dela. Esse seria um livramento da mão perversa do rei idólatra. A tarefa era impossível para a instrumentalidade humana.
Nesse caso, somente o Ser divino poderia fazê-lo. Ocasionalmente, todos os homens enfrentam situações em que “somente Deus é capaz” e então são obrigados a entregar a vida nas mãos Dele.
Por todo o caminho meu Salvador me guia,
Que devo eu pedir além disso?
Posso duvidar de Suas ternas misericórdias,
/te quais, por toda a minha vida, têm sido meu guia?
Pois sei que, sem importar o que me aconteça,
Jesus faz bem todas as coisas.
(Fanny J. Crosby)
Oh, Senhor, concede-nos tal graça!
Ao serem submetidos a teste, eles também estavam submetendo Yahweh a teste.
3.18 Se não, fica sabendo, ó rei. Se eles seriam livrados ou não, não fazia nenhuma diferença. Eles sabiam que a idolatria estava errada, mesmo quando se tratasse da idolatria do governo, a lei da terra, mas eles não se envolveriam nisso, sem importar o que essa atitude lhes custaria. O tema principal da história, pois, emerge: O martírio é preferível à apostasia, uma lição que poucos judeus, na época do ataque babilônico e do cativeiro, tinham aprendido. Judá estava perdida em sua idolatria-adultério-apostasia. Este livro praticamente não usa o nome divino Yahweh, o qual, para os judeus piedosos, tinha-se tornado santo demais para que fosse proferido. Portanto, o nome Deus é usado aqui, e aquele título especial é evitado.
3.19 Então Nabucodonosor se encheu de fúria. Agora o rei estava realmente colérico, a tal ponto que seu rosto se contorceu. Cf. o vs. 13. Imediatamente ele baixou o temido decreto e quis uma fornalha superaquecida. Tanto combustível foi posto na fornalha que sua temperatura, segundo o rei esperava, seria sete vezes superior ao normal, o que a levaria quase ao calor atômico. Uma fornalha muito quente mataria os três jovens judeus prontamente, mas o autor estava pensando em termos de aumento de temperatura, e não no decréscimo do sofrimento. O rei não ordenou uma investigação científica para ver como seria possível aumentar a dor dos três jovens. Ele simplesmente pensou: “Quanto mais quente, melhor”. Na mitologia-demonologia dos babilônios, havia sete demônios chamados Maskim.
Eram os mais formidáveis poderes infernais. Talvez o número “sete”, que aparece no texto presente, aluda a isso. Em caso contrário, serve de ilustração de como o rei, com sua fisionomia distorcida, estava perpetrando um ato demoníaco.
3.20 Ordenou aos homens mais poderosos que estavam no seu exército. Aproximaram-se agora os executores temíveis, homens fortes contra os quais ninguém podia resistir. Sem dúvida eles faziam parte da guarda de elite do rei. Eles amarraram aqueles infelizes hebreus de modo que os jovens não pudessem mover um músculo. Seja como for, não houve resistência da parte dos jovens. A vida deles estava entregue nas mãos do Todo-poderoso. As coisas tinham fugido ao controle deles. Isso posto, eles fizeram o que podiam. Lançaram a situação inteira aos cuidados do Poder (Elohim), em quem confiaram que faria bem todas as coisas. Cf. este versículo com Dan. 2.14. Os gregos, ao enfrentar casos impossíveis, com frequência falavam “em lançar-se aos cuidados dos deuses e da oração”.
3.21 Então estes homens foram atados com os seus mantos. “Era costume desnudar os criminosos antes de sua execução, pois suas vestes tornavam-se propriedade dos executores (Mat. 27.35; Sal. 22.18). Lançá-los na fornalha vestidos pode ter sugerido que aquela era uma maneira peculiarmente eficaz de impedi-los de escapar. Mais provável, porém, é que esse detalhe tinha por intuito fomentar o caráter milagroso de seu livramento, visto que as vestes são altamente inflamáveis. Na arte cristã antiga, os três confessores comumente são representados nus no meio das chamas” (Arthur Jeffery, in loc.). Aqueles homens estavam usando uma espécie de turbante. Há uma curiosidade vinculada a este texto.
Certa denominação evangélica no Brasil, durante muitos anos, usou esse texto para mostrar que os homens crentes devem usar chapéus! Mas a ideia, finalmente, desgastou-se, e os homens daquela denominação deixaram de usar chapéus.
A fornalha, sem dúvida, era aberta no topo, pelo que o propósito era fazer pontaria e lançar os três homens pelo gargalo abaixo, sem chegar muito perto.
3.22 Porque a palavra do rei era urgente. Os soldados do rei aqueceram de tal modo a fornalha que foram mortos no processo, ao lançar dentro dela os hebreus, um caso de divina Lex Talionis (ou seja, castigo segundo a gravidade do crime cometido; ver no Dicionário). Esse tipo de coisa se repete em Dan. 6.24. Os acusadores de Daniel foram quem os leões eventualmente devoraram.
É uma característica das histórias dos mártires que os executores e perseguidores recebam uma dose de sua própria medicina. Hamã foi enforcado na própria forca que havia preparado para Mordecai (ver Est. 7.10). Usualmente, as coisas não terminam como nas histórias, mas continuamos confiando que Deus fará o que é certo, e continuamos confiando na Lei Moral da Colheita Segundo a Semeadura (ver a respeito no Dicionário). Também continuamos confiando na imortalidade, em que os erros são corrigidos, os sofrimentos são anulados e a glória brilha. Uma emenda apócrifa diz-nos que as chamas saltaram 24,5 m para fora da fornalha e devoraram aqueles homens, mas isso é um tremendo exagero.
3.23 Estes três homens, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. Os três jovens hebreus foram lançados dentro da fornalha. A pontaria foi certeira, e eles caíram exatamente dentro da fornalha. Eles estavam amarrados, mas de que adiantaria isso? Eles não seriam mesmo capazes de saltar para fora do fogo. Foi um ato precipitado, perpetrado por uma mente doentia. Somente Deus poderia ajudar aqueles jovens contra poderes tão malignos. Por outro lado, só existe um Poder, e esse Poder está ao lado da bondade.
Neste ponto, a Septuaginta, a Vulgata, o siríaco e o árabe adicionam o Cântico de Azarias, com seus 67 versículos, dele e de seus companheiros na fornalha. Essa adição obviamente foi feita por algum editor, sendo provável que tenha começado na Septuaginta. Azarias era o nome hebraico que foi mudado para Abede-Nego. Ver sobre Dan. 1.6,7.
3.24, 25 Então o rei Nabucodonosor se espantou. Ali estavam eles, o rei e outros, olhando para dentro da fornalha, esperando que as chamas consumissem aqueles homens infelizes. Mas, para espanto do monarca, ele viu quatro, e não três homens. Provavelmente algum tempo já se havia passado, e o rei pensou que veria três corpos quase inteiramente consumidos pelo fogo. Mas, em vez de três, ele viu quatro homens soltos, andando entre as chamas (vs. 25). Foi um fenômeno notável, e o rei pediu confirmação se não tinham sido somente três homens os que tinham sido lançados na fornalha. O quarto homem (vs. 25) tinha um aspecto de poder e era como um “filho dos deuses”. Algumas traduções dizem aqui “o Filho de Deus”, cristianizando o texto, e os intérpretes apontam uma manifestação do Logos no Antigo Testamento. É provável que estivesse em vista um anjo, um ser celestial, alguma pessoa divina. Nos textos ugaríticos encontramos as palavras “filhos de Deus”. “Era inevitável que a exegese cristã visse na quarta personagem uma aparição anterior à reencarnação do Redentor. O escritor, entretanto, não tencionava sugerir outra coisa senão que se tratava de um anjo de Deus” (Arthur Jeffery, in loc.).
“Vs. 25... 'o Filho de Deus...' é uma tradução eminentemente imprópria. Que noção poderia ter aquele rei idólatra do Senhor Jesus Cristo, que é a compreensão de milhares de pessoas? Baralahim significa “filho dos deuses”, uma pessoa divina, um anjo, que foi como o rei o chamou, no vs. 28" (Adam Clarke, in loc.). Os anjos, naturalmente, eram chamados de “filhos de Deus”, e não devemos compreender neste texto mais do que isso. Ler além disso seria uma eisegese, e não uma exegese, pois a eisegese significa “ler em um texto aquilo que queremos que ele diga”, em vez de derivar do texto somente o que ele diz.
“Os caldeus acreditavam em famílias de deuses: Bei, o deus supremo, geralmente era acompanhado por Milita, a deusa. Portanto, a declaração deste versículo pode significar derivado e enviado pelos deuses” (Fausset, in loc.j.)
Basta-nos entender que existem poderes superiores, agentes divinos que podem intervir e, algumas vezes, realmente intervém em situações que ultrapassam nosso controle, e operam milagres notáveis em nosso favor. Isso faz parte da doutrina do Teísmo (ver a respeito no Dicionário), que ensina que o Criador não abandonou Sua criação, antes intervém nos eventos humanos, recompensando e punindo. Note também o leitor que alguma luz é lançada sobre o Problema do Mal: Por que os homens sofrem, e por que sofrem como sofrem? Ver sobre esse título no Dicionário, quanto a uma discussão detalhada.
3.26 Então se chegou Nabucodonosor à porta da fornalha. O Livramento. O rei chegou tão perto da fornalha quanto o calor lhe permitiu, e chamou por aqueles servos do Deus Altíssimo. Ver no Dicionário o verbete chamado Altíssimo, quanto a plenas informações sobre esse título. Note o leitor que aqui o nome divino caldaico Elah toma o lugar do termo hebraico Elohim, quanto ao Poder dos céus. O equivalente hebraico desse título é El Elyon. O equivalente grego é Theos upsistos. Filo de Biblos diz-nos que os fenícios reverenciavam Elion, chamado Upsistos, e esse parece ser um dos mais antigos nomes semíticos do Ser Supremo. Esse título ocorre por treze vezes no livro de Daniel, mais do que em qualquer outro livro do Antigo Testamento, excetuando os Salmos. Ver Dan. 3.26; 4.2, 17, 24, 25, 32, 34; 5.18, 21; 7.18, 22, 25,27. Nabucodonosor volta aqui a seus discernimentos de Dan. 2.46,47.
Um Teste Moderno por meio do Fogo. Meu irmão, que por muitos anos foi missionário no Congo e, mais tarde, no Suriname, passou por uma prova de fogo. Neste último país, os médicos-feiticeiros desenvolveram o poder de andar sobre carvões em brasa e de quebrar garrafas de vidro com os pés descalços. Certa ocasião, meu irmão foi convidado a assistir a uma demonstração. Em meio à demonstração, ele soube por quê. Ele foi desafiado a fazer a mesma coisa. Enviando uma rápida oração, ele tirou os sapatos e marchou por cima das brasas vivas. Em seguida, pisou em cima de garrafas de cerveja quebradas. E disse que, quando viu que os vidros quebrados não lhe estavam cortando os pés, pisou com mais força e quebrou as garrafas em pequenos pedaços. A demonstração terminou em muita discussão, e então o povo voltou para casa. Naquela noite ele se ajoelhou em oração e disse: “Oh, Senhor, se amanhã eu tiver queimaduras e cortes em meus pés, Tu terás sofrido uma grande derrota”. No dia seguinte, as pessoas vieram da aldeia e disseram: “Missionário, mostre-nos os seus pés”. E ele mostrou. Não havia nem golpes nem queimaduras. E o povo disse: “Oh, Deus
é poderoso!”.
Há uma antiga e admirável referência a andar sobre o fogo, em Virg. Aen. xi.785. Febo foi honrado por esse feito, que era realizado por seus devotos.
Enquanto o pinho santificado estalava,
Aqueles homens caminharam por meio do fogo
Em honra ao teu nome,
Sem ferimentos, sem manchas pelo fogo sagrado.
3.27 Ajuntaram-se os sátrapas. Testemunhas. Não havia nem esperança nem hipnose em massa. Aqueles que se tinham reunidos para assistir ao espetáculo (os maiores e menores oficiais babilônicos) viram o que acontecia. Eles compartilharam do espanto do rei, diante de um episódio sem igual. O milagre foi tão completo que nem ao menos o cheiro do fogo se tinha apegado a eles, nem suas roupas estavam chamuscadas. O fogo simplesmente não exerceu poder algum sobre eles. Foi, como é claro, um poderoso milagre. O vs. 2 enumera oito classes de homens, mas aqui são mencionadas somente quatro. A lista é abreviada e simboliza a todos os oficiais. Os que apoiaram o decreto real viram que tinham perseguido homens inocentes e espiritualmente poderosos. Havia um Deus maior do que os seus deuses. Ele intervém na história humana e não se afasta dos homens. Somente uma peça de roupa é aqui mencionada, o sarbal, manto que teria sido a primeira peça de tecido a ser consumida. Mas não era isso que tinha acontecido, e nenhuma outra peça de suas vestes se queimara. Devemos compreender que aqueles homens estavam simplesmente imunes ao fogo. Ver Heb. 11.34, quanto a uma alusão a essa história, no Novo Testamento.
3.28 Falou Nabucodonosor, e disse: Bendito seja o Deus... A Exaltação de Deus. Os vss. 28-30 nos dão os resultados esperados do incidente. O rei Nabucodonosor cantou uma doxologia ao Deus dos judeus. Cf. as palavras da rainha de Sabá (II Reis 10.9), bem como as de Hurão, rei de Tiro, em II Crô. 2.12, que são um tanto análogas. Aqui, o filho de Deus, conforme o vs. 25, é chamado de anjo. Portanto, essa é a interpretação que o próprio rei deu às suas palavras anteriores. O Deus Altíssimo, o Deus dos judeus, foi louvado pelo rei Nabucodonosor, pois era digno de louvor. Ele mostrou Seu poder, enquanto os deuses da Babilônia ficavam inativos (ver Dan. 3.12). Ele fez algo tremendo em favor dos hebreus que Nele tinham confiado. E assim fez porque eles se mostraram leais a suas convicções de não se imiscuir com nenhum tipo de idolatria, mesmo que isso fosse exigido pelo rei de reis (Dan. 2.36), Nabucodonosor. Eles se dispuseram a tornar-se mártires de sua causa, o que é melhor do que a apostasia. “Que honra o Senhor deu àqueles que se mostraram constantes em sua fé!” (Adam Clarke, in loc.). O rei moveu-se na direção de um monoteísmo piedoso, mas é inútil falar aqui em algum tipo de conversão. Aqueles hebreus “apresentaram seu corpo” como sacrifício a Yahweh (ver Rom. 12.1). Ele ficou satisfeito e os devolveu sem ferimentos e sem sequer terem sido chamuscados pelo fogo. Eles se dispuseram a fazer o sacrifício final e a vida deles foi protegida e, em certo sentido, devolvida. Essas são as lições morais e espirituais que aprendemos da história. Aqueles jovens obedeceram a Deus, e não aos homens (ver Atos 5.29).
3.29 Portanto faço um decreto. Um novo e destruidor decreto, ordenado pelo rei, protegeu os judeus em geral. Qualquer homem que falasse contra o Deus dos judeus seria despedaçado (talvez servido como alimento aos leões), e sua casa seria demolida. Isso repete o que já tínhamos visto em Dan. 2.5 como uma ameaça contra os sábios, caso falhassem em dar a interpretação do sonho do rei sobre a imagem. Desse modo, o rei concedeu uma posição oficial ao judaísmo. A fé dos judeus podia ser praticada sem perseguição. O rei continuaria a reconhecer outros deuses e estava certo de que nenhum outro deus faria o que ele vira o Deus dos judeus fazer. A história secular da Babilônia não nos conta sobre tal decreto e nem sobre algum favor especial feito por Nabucodonosor aos judeus.
Mas não perdemos o valor da história pela falta de confirmação secular. Nesse ponto, parece que o decreto concernente à adoração da imagem passou para o esquecimento, embora o texto sagrado nada diga a respeito. “A decisão em favor de Deus finalmente obteve o respeito até de pessoas mundanas (Pro. 16.7)” (Fausset, in loc.).
3.30 Então o rei fez prosperar a Sadraque, Meseque e Abede-Nego. Os três hebreus já tinham recebido altos ofícios por influência de Daniel (2.4 9), mas agora foram promovidos. O autor não informa no que consistiu essa promoção, nem dá pistas quanto a seus novos deveres de estado. A Septuaginta, porém, estipula: “Ele os considerou dignos de presidir a todos os judeus que havia no reino”, mas não há que duvidar que temos nisso uma glosa. Alguns vêem uma profecia na história do anticristo em seu relacionamento com o remanescente judeu crente, no período da Grande Tribulação. Pelo menos, podemos aplicar a história dessa maneira. Não se trata de uma profecia sutil. Antes, devemos supor que esse incidente ajudou outros judeus do cativeiro a evitar a idolatria babilônica, mas quanto a isso coisa alguma nos é dita. A história foi escrita como um nota geral que mostra que a idolatria é um grande mal, e que morrer como mártir é mil vezes preferível a contaminar-se com a idolatria.
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