Daniel 10 — Comentário Teológico

Daniel 10 — Comentário Teológico
Daniel 10 — Comentário Teológico


Capítulo Dez


O livro de Daniel compõe-se essencialmente de seis histórias e quatro visões. As histórias ocupam os capítulos 1-6, e as visões os capítulos 7-12. Quanto a detalhes sobre esse arranjo, ver a seção “Ao Leitor', parágrafos quinto e sexto, apresentada imediatamente antes da exposição a Dan. 1.1. Os capítulos 10-12, na realidade, são apenas uma visão, a saber, a quarta. E o capítulo 10 atua como prólogo dessa quarta visão. O capítulo 11 apresenta a visão propriamente dita, juntamente com a interpretação. E o capitulo 12 é o epílogo.

A Visão dos Últimos Dias (10.1-12.13)

O capítulo 10 é o prólogo das visões, e, naturalmente, divide-se em três partes: vss. 1; vss. 2-9; vss. 10-21. Apresento um título para cada uma dessas partes, que projetam a essência do que se segue.

A visão (capítulo 11) é apresentada em linguagem franca e direta, sem a imagem (capítulo 2) e sem os animais (capítulos 7 e 8). Outro tanto ocorre no capítulo 9. O capítulo 10 é a preparação para a revelação vindoura, e é similar, quanto ao intento, à oração do capítulo 9, vss. 4 a 19.

O Engaste Cronológico (10.1)


10.1
No terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia.
A data provida é o terceiro ano de Ciro, ou seja, o terceiro ano depois que ele capturou a Babilônia, 536/535 A. C, Se Daniel tinha cerca de 16 anos de idade quando foi levado cativo para a Babilônia, e isso ocorreu em 605 A C., então ele já teria 86 anos quando lhe foi
conferida esta visão final.

Quanto às três deportações, ver as notas sobre Jer. 52.28. Cf. as notas sobre Jer. 52.28. Cf. essa nota cronológica com Dan. 1.21, que diz que Daniel continuou até o primeiro ano do rei Ciro. Não há realmente nenhuma forma de reconciliar isso com a nota deste versículo, nem a questão tem grande importância. Talvez Daniel se tenha aposentado de seu serviço civil no primeiro ano de Ciro, mas seu
ministério profético continuou mesmo depois que ele abandonou suas atividades.

O presente versículo mostra-nos que Daniel não retornou a Jerusalém depois que os judeus voltaram para reconstruir a cidade santa. Sua missão era passar seus últimos dias naquele país estrangeiro. A última porção deste versículo é obscura, e tem-se prestado a várias interpretações. A visão é veraz e, de algum modo, envolvia um grande conflito. A NCV diz que a visão “era sobre uma grande guerra”. Mas alguns preferem pensar que o conflito envolvia as próprias condições psicológicas de Daniel. Nesse caso, a questão tem paralelos em Dan. 7.28 e 8.27. A NIV, em nota de rodapé, diz “veraz e pesada”, fazendo a visão referir-se a questões sérias e densas. Ou então o grande conflito caracterizará os últimos dias de que a visão fala.

Preparação para a Revelação (10.2-9)


10.2
Naqueles dias eu, Daniel, pranteei durante três semanas.
Devemos entender que Daniel tinha recebido a visão e sido negativamente afetado por ela. Ele passou por agonia e lamentação durante alguns dias. A questão que lhe fora revelada era pesada, e seu espírito sentia-se premido por isso. Não encontramos aqui uma lamentação pelo pecado, conforme se vê no prólogo da visão do capítulo 9. Antes, a alma do profeta era pressionada pela natureza pesada das coisas vindouras. Afinal, ele já era homem idoso na época, e aquelas experiências místicas negativas estavam fazendo sua cobrança.

Ele ainda não tinha entendido plenamente a visão, mas receberia entendimento, e não seria uma questão fácil. “No vs. 12 aprendemos que ele resolveu receber uma revelação interpretativa, preparando-se para tanto por meio de práticas ascéticas, como as mencionadas em Dan. 9.3” (Arthur Jeffery, in loc.). “A revelação desta visão, dada a Daniel naquela ocasião, esmigalhou qualquer esperança que ele possa ter tido de que Israel desfrutaria de nova liberdade e paz por longo tempo. Deus revelou que sua nação estaria envolvida em muito conflitos” (J. Dwight Pentecost, in loc.).

10.3
Manjar desejável não comi. Daniel não comeu manjares, mas passou vida comendo o mínimo, em uma espécie de meio jejum; ele não bebia vinho, nem se ungia com azeite, embora suponhamos que tomasse banho. Tudo isso era sinal de espírito pesado e de lamentação. Cf. Dan. 1.8 e 16, a simples dieta vegetariana, acompanhada por água, que assinalara o começo da carreira de Daniel na Babilônia. Cf. Dan, 10.12. Ver também II Sam. 12.20 e Amós 6.6, Essas coisas eram sinais externos de um espírito pesado, inclinado para o que o profeta tinha visto.

10.4
No dia vinte e quatro do primeiro mês. A precisão de dados assinala a visão como veraz e histórica, e essa é uma das características das profecias apocalípticas. O primeiro mês era abib (ver Deu. 16.1) e nisã (ver Nee. 2.1; Est. 3,7). O dia vinte e quatro assinalou o fim do meio jejum do profeta. Isso pode significar que o fato de ele ter passado com o mínimo de alimentos fazia parte da celebração da festa da páscoa, no décimo quarto dia, bem como dos pães asmos, do décimo quarto ao vigésimo primeiro dia. Ver Deu. 16.3: “pão de aflição”. O profeta estava à beira do rio Tigre (Dan. 12.5). Chegou até ele um mensageiro celestial, provavelmente Gabriel, que estava ativo naquele tempo e, ao que tudo indica, tinha contatos freqüentes com o profeta. Ver Dan. 8.16. 0 original hebraico diz Hidequel para o rio Tigre, sendo esse o nome acádico do rio. Era um grande rio, um título usualmente dado ao rio Nilo. Mas também pode estar em foco o rio Eufrates, conforme se vê em Gên. 15.18.

10.5
Levantei os olhos, e olhei, e eis um homem. O anjo apareceu gloriosamente vestido de luz (vs. 6), com uma veste de linho tão branco quanto neve recém-caída. Em sua cintura havia um cinto bordado com excelente ouro de Ufaz. As descrições que aqui figura nos fazem lembrar do primeiro capítulo do livro de Ezequiel, e também seus capítulos 9 e 10. As vestes do anjos se pareciam um tanto com as vestes do sumo sacerdote (ver Lev. 6.10; Êxo. 28.29), porém eram mais gloriosas e mais divinas. Profundas experiências místicas são assinaladas por imagens e cores vívidas que são difíceis de descrever, pelo que as descrições tentam detalhar o que realmente desafia qualquer descrição.

Quanto ao ouro puro de Ufaz, ver Jer. 10.9. Talvez esteja em foco o lugar algures chamado Ofir, famoso por seu excelente ouro. Ver Jó 28.16; Sal. 45.9 e Isa. 13.12.

Encontramos descrições similares sobre Cristo em Apo. 1.13-16, mas isso não justifica a interpretação como visão do Cristo pré-encarnado. Não se poderia dizer que Cristo estava impedido por um príncipe da Pérsia (ver Dan. 10.13) ou por alguma entidade angelical ou demoníaca.

10.6
O seu corpo era como o berilo.
Cf. a descrição do berilo com a descrição do anjo de Eze. 1.11,23. A palavra hebraica fala de uma variedade de topázio azul, cor do céu, embora, de acordo com outros, fosse verde-mar. A face do homem era como o relâmpago, e seus olhos eram como brasas de fogo; seus braços e suas pernas eram como o bronze polido, e sua voz parecia formada por muitas águas. Cf. tais imagens com Eze. 1.13 e Apo. 1.16. Quanto aos olhos flamejantes, cf. Eze. 1.13; II Enoque 1.5; 42.1; Apo. 1.14 e 19.12. Ver também Eze. 20.18. Quanto à voz como de muitas águas, cf. Isa. 13.4; 33.3; Eze. 1.24. Tais descrições são apenas débeis tentativas para dizer algo sobre o Ser divino. As grandes experiências místicas geralmente são inefáveis ou têm elementos que o são. Ver no Dicionário o artigo chamado Misticismo.

10.7
Só eu, Daniel, tive aquela visão. Embora Daniel estivesse acompanhado, só ele teve a visão. Mas grande agitação a acompanhou, e os companheiros de Daniel sentiram isso. Isso insuflou neles grande medo, levando-os a ocultar-se. Talvez a agitação tivesse sido sentida somente por eles. Eles se assustaram diante da presença do anjo, embora não pudessem vê-lo com os olhos. Há algo de similar na história da conversão de Paulo na estrada para Damasco: 

Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos,
ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém.
(Atos 9.7)

“... eles ficaram altamente assustados. Tiveram tanto medo que correram e se esconderam” (NCV). Cf. também Atos 22.9. “Houve uma influência divina que todos eles sentiram, mas somente Daniel viu a aparição corpórea” (Adam Clarke, in loc.). Isso acontece nas experiências místicas. Elas podem ser experimentadas por uma pessoa, enquanto outras pessoas, embora próximas, nada vejam nem ouçam. A alma é dotada de uma visão que não usa o nervo óptico, conforme demonstram as experiências perto da morte. Ver sobre esse título na Enciclopé­dia de Bíblia, Teologia e Filosofia.

10.8
Fiquei, pois, eu só, e contemplei esta grande visão.
Os companheiros de Daniel se esconderam. Ele viu sozinho a grande visão, e isso concorda com a experiência freqüente dos gigantes espirituais, os quais estão muito acima de seus colegas e, assim sendo, muito mais próximos do Ser divino.

Penso continuamente naqueles que foram realmente grandes.
Que, desde o ventre, relembraram a história da alma.
Nascidos do sol, viajaram por um pouco em direção ao sol,
E deixaram o ar vívido, assinado com sua honra.
(Stephen Spender)

Os efeitos da visão foram grandes e transformaram o aspecto de Daniel em algo temível. “Perdi minhas forças. Meu rosto embranqueceu como se eu fosse um morto, e fiquei impotente" (NCV). "Ele ficou pálido de terror diante do que viu, e desmaiou” (Ellicott, in loc.).
“Seu sangue fluiu de volta ao coração, e seus nervos afrouxaram; suas mãos se debilitaram e ficaram dependuradas; seus joelhos tornaram-se débeis e cederam sob o seu peso; sua fisionomia ficou engilhada; sua testa ficou vincada; seus olhos se afundaram nas órbitas; seus lábios estremeciam; suas juntas tremiam; seu vigor se debilitou; todo o seu corpo entrou em convulsão; ele se tornou sem vida, como um homem morto" (John Gill, in loc., com uma descrição colorida por vívida imaginação).

10.9
Contudo, ouvi a voz das suas palavras. Daniel jazia caído em estado de desmaio, o rosto no chão. Contudo, continuou ouvindo a voz de trovão que batia nele como um malho. Ele estava perplexo e estupeficado, mas a revelação continuava. Cf. Dan. 8.18, onde temos algo similar. Ver também Apo. 1.17; Atos 9.4; Eze. 1.28 e Enoque 14.24, quanto a descrições similares. Daniel não foi ninado para dormir, apesar da voz melodiosa do anjo. Antes, foi nocauteado pelo poder da voz do anjo e pela natureza espantosa da experiência.

A Conversa com o Anjo (10.10-21)


10.10
Eis que certa mão me tocou.
De sua posição prostrada, Daniel caiu de joelhos, sobre as duas mãos. O toque do anjo efetuou essa mudança de posição, e assim o profeta agora estava de “quatro”, tremendo. Sua consciência foi recobrada, pelo que ele pôde conversar com o anjo. Ele foi restaurado e encorajado pelo toque do anjo, para cumprir sua missão de profeta, que agora chegava ao fim. Agora ele estava apenas meio de pé, mas outro toque terminaria o trabalho.

No vs. 11 vemos Daniel de pé, ainda trêmulo, mas já recuperado.

10.11
Daniel, homem muito amado.
Daniel é novamente chamado de muito amado por Yahweh, um homem que tinha recebido favor especial de Deus e um bom destino. Cf. Dan. 9.23. Agora nós o vemos de pé. Cf. II Esd. 2.1; Enoque 14.25 e Eze. 2.1. Daniel, embora idoso, foi novamente enviado com uma mensagem. Ainda lhe restava receber o toque final para completar sua missão. Restava-lhe
mais uma volta, e então sua missão estaria terminada. Ele completaria sua tarefa, sem nada deixar por favor, conforme diz certa canção popular:

Fiz o que tinha para fazer, e tudo terminei
Sem exceção.

A palavra encorajadora fez Daniel levantar-se e pôr-se de pé. Ele não estava sozinho em seu empreendimento. Correria sua última volta vigorosamente, e não em fraqueza.

Oh, Senhor, deixa-me caminhar Contigo
Em veredas humildes de serviço gratuito;
Ensina-me o Teu segredo, ajuda-me a suportar
A tensão da prova, a preocupação dos cuidados.
(Washington Gladden)

10.12
Então me disse: Não temas, Daniel.
A oração e a determinação do homem bom tinham garantido, desde o começo, que ele seria divinamente ajudado naquilo que deveria fazer, pelo que alcançaria sucesso retumbante. Cf. Luc. 1.11ss., onde encontramos algo similar envolvendo o ministério angelical. “Enquanto nossa paixão dominante não for conhecer a Deus e à Sua verdade, não poderemos saber muito sobre Ele. Que propósito maior poderia existir para um homem aprender sobre Deus? Firmamos nossa mente para conseguir, mas poucos firmam sua mente para compreender. Mas se alguém faz disso o seu alvo, poderá confiar na promessa de Jesus: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á” (Mat. 7.7)
(Gerald Kennedy, in loc.). Se assim são as coisas, não temos por que temer, pois se podemos conhecer o futuro então conhecemos Aquele nas mãos de quem repousa nosso futuro. Poderá haver empecilhos (conforme mostra o vs. 13), mas a vitória final está assegurada, porque um homem bom não está sozinho naquilo que procura fazer. Cf. este versículo com Dan. 9.23, onde encontramos algo similar.

10.13
Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu. O anjo que estava transmitindo a mensagem resolveu ensinar Daniel o que ele precisava saber, para que ele pudesse transmitir essa mensagem a outros homens. Mas um grande poder havia detido o anjo, a saber, o príncipe espiritual da Pérsia. Se o anjo em questão é Gabriel, então temos um arcanjo ajudando a outro, porquanto Miguel chegara para auxiliar, libertando Gabriel para chegar a Daniel. A doutrina dos anjos guardiães de indivíduos amplia-se para anjos guardiães e orientadores de nações e reinos.

Apesar de não ser dito que o poder que se opusera a Gabriel e a Miguel era mau, podemos supor isso, visto ter ele se oposto aos anjos e resistido ao plano divino que operava por meio de Daniel. Notemos, igualmente, que meros homens podem ser envolvidos no drama e na luta celestial. Este texto soa como se fosse Efé, 6.12: 

Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e, sim,
contra os principados e potestades, contra os dominadores
deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais nas
regiões celestes.
Outro ponto de vista, que elimina os demônios, é que a economia divina, operando como um gigantesco império, precisava de muitos poderes subordinados, que tinham domínio sobre várias localidades. Era inevitável algum conflito, tal como acontece quando poderes subordinados entram em choque, embora representem o mesmo governo. Esse tipo de visão é evidente em Eclesiástico 17.171, Jubileus 15.31,32 e Enoque 89.59. Nesse caso, em vez de poderes malignos se oporem a podres bons, simplesmente temos um deslize na administração. A angelologia dos judeus entra em cena para mostrar as setenta nações (da tabela das nações, no cap. 10), cada uma delas tendo um guia que representava seus interesses no tribunal celestial. Orígenes, em seu Comentário sobre João, XIII.58, estranhamente comenta que alguns desses anjos patronos se converteram diante de Jesus, e isso ajudou o evangelho a espalhar-se rapidamente a algumas na­ções, em contraste com outros países.

Na angelologia posterior, esse anjo da Pérsia recebeu o nome de Dubiel. Não sabemos dizer por qual razão ele se opôs à missão de Daniel nesse ponto da carreira do profeta. Talvez ele apenas tenha querido manter o status quo em favor da Pérsia, nação que era de sua responsabilidade. O vs. 21 e Dan. 12.1 indicam que Miguel era o anjo patrono de Israel. Em Enoque 9.1 e 71.9, Miguel aparece como um dos sete arcanjos. Em Jud. 9, ele é o anjo que contende com Satanás, e em Apo. 12.7 ele guia as forças boas contra o dragão. Ver no Dicionário os artigos chamados Gabriel e Miguel (Arcanjo).

A lição prática do texto é que as orações de um homem podem não ser respondidas por algum tempo porquanto há forças de oposição que impedem a resposta. Portanto, somente orações intensas e prevalentes podem vencer em casos difíceis. Que o leitor não desista porque suas orações não estão sendo respondidas. A vitória está ali para aqueles que buscam resposta com diligência.

Ver no Dicionário o artigo chamado Oração.

Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.
(Tiago 5.16)

Mais coisas são operadas pela oração
Do que este mundo sonha.
(Alfred, Lord Tennyson)

10.14
Agora vim para fazer-te entender. A visão revelou o que aconteceria a Israel-Judá. Tudo quanto foi revelado passaria nos últimos dias, e Daniel deveria entender a questão para que pudesse transmitir com sucesso a mensagem ao povo. Cf. Dan. 8.16 e 9.22,23. “A mensagem tinha que ver com os eventos que levavam ao fim, tal como sucedera à mensagem a Nabucodonosor, em Dan. 2.28... A referência real era aos dias de Antíoco Epifânio IV, mas, na visão do escritor, esses seriam os últimos dias” (Arthur Jeffery, in loc.). Mas os dispensacionalistas transferem as profecias dos dias de Antíoco para os dias que precederão a inauguração do reino do Messias, que ainda jaz no futuro."... uma revelação da guerra (10.1) entre Israel e seus vizinhos, até que a Israel será dada a paz pela chegada do Príncipe da Paz. Essa visão contém a mais detalhada revelação profética do livro de Daniel” (J. Dwight Pentecost, in loc.).

10.15
Ao falar ele comigo estas palavras, dirigi o olhar para a terra. Novamente, o poder da voz e da presença do anjo fizeram Daniel desmaiar. Daniel voltou o rosto para o chão, mas não perdeu inteiramente os sentidos. Daniel já havia enfraquecido antes por essa espécie de esperança (Dan. 7.15; 8.27). Agora ele ficou silente. Ver Dan. 8.27 e Enoque 14.25. Provavelmente devemos entender a angústia do profeta, quando ele viu o que aconteceria e ficou mudo.

10.16
E eis que uma como semelhança dos filhos dos homens me tocou os lábios. A dor de ver o que aconteceria ao povo fez Daniel emudecer, e foi preciso o toque de um dos filhos dos homens para restaurar sua capacidade de faiar. O que ele quis dizer é que o anjo ou a restauração tinha forma humana, e não que era um ser humano, ou que qualquer ser humano poderia fazer o que é dito aqui.
A Septuaginta diz “como a semelhança da mão de um homem”. Se uma mão fantasmagórica pôde escrever uma mensagem importante em uma parede (Dan. 5). então o mesmo tipo de fenômeno poderia acontecer de novo com um propósito diferente. A nova visão causou ao profeta dores comparáveis às de uma mulher na hora do parto (cf. I Sam. 4.19; Isa, 13.8), pois sua tristeza era severa. Talvez esteja em vista um novo anjo, ou então Gabriel continuava a ser o poder em ação.

Mas a tradução de algumas versões, “Filho do Homem”, é totalmente errada, especialmente se lhe dermos sentido messiânico, ou se supormos que o Cristo preexistente está em mira.

10.17
Como, pois, pode o servo do meu senhor falar com o meu senhor? 
Senhor, sou Daniel, teu servo. Como posso falar contigo? Minhas forças desapareceram e é-me difícil respirar” (NCV), O profeta estava quase sufocado de tristeza. Cf. Isso com o temor que se apoderou de Isaías, quando ele teve uma elevada visão (ver Isa. 6,5).

10.18
Então me tornou a tocar aquele semelhante a um homem. Este versículo repete o vs. 16 exceto pelo fato de que o toque angelical, em vez de restaurar somente a fala ao profeta, restaurou-lhe as forças. Ver as notas sobre o vs. 16. A expressão me fortaleceu é usada para indicar tanto forças morais quanto físicas. Cf. Sal. 147.13; Eze. 30.24; 34.4 e Osé. 7.15 (forças físicas); e Deu. 1.38; 3.28; II Sam. 11.25; Isa. 41.7 (forças morais). “Apenas gradualmente Daniel recuperou suas for­ ças. Portanto, houve necessidade desse segundo toque” (Fausset, in loc.).

10.19
Não temas, homem muito amado. Daniel torna a ser chamado de muito amado. Cf. Dan. 9.23 e 10.12. O amor de Deus estava envolvido no ministério do profeta, pois, na verdade, o amor de Deus é a maior força que há no mundo. Ver no Dicionário o verbete intitulado Amor. Nós amamos porque Ele nos amou primeiro (ver I João 4.19), e é o amor humano-divino que tenta grandes coisas e cobre uma multidão de pecados (ver I Ped. 4.8). O amor de Deus transmitiu paz a Daniel, de tal maneira que seus temores se dissolveram. Em seguida, Daniel tornou-se forte como um touro, enquanto o anjo falava. Assim sendo, falou com o anjo para que lhe apresentasse a mensagem, pois ele estava pronto para ouvi-la. Encontramos aqui a antiga história de que precisamos de forças para realizar nossas missões, e que essa força é a força divina. De outro modo, até o homem bom desmaiaria, antes que tivesse a oportunidade de cumprir sua missão. Dentro da tradição mística, há a doutrina que podemos obter forças “do ar”, por assim dizer, e ser tomados por um poder para o qual não temos explicação. Isso nos torna parte da doutrina do teísmo, que ensina que o Criador intervém na história humana. O homem não foi abandonado pela força criadora, conforme o deísmo ensina. Ver sobre ambos os termos no Dicionário. Cf. este versículo com Luc. 22.43.

10.20
Sabes por que eu vim a ti?
Embora o anjo devesse retornar em breve para continuar sua luta contra o anjo-guardião-líder da Pérsia, primeiramente ele transmitiria a mensagem a Daniel. Aquela era uma espécie de missão lateral. O anjo estava muito ocupado e tinha muitas coisas das quais cuidar. No meio (ou depois) do conflito contra o anjo da Pérsia, o anjo-guardião-líder da Grécia haveria de aparecer para perturbá-lo. Somente Miguel seria seu aliado naquelas lutas celestiais (conforme o vs. 21 passa a dizer). Quanto ao tema dos anjos e das nações guardadas, ver as notas bastante detalhadas no vs. 13, material que não repito aqui. Alguns estudiosos pensam que o anjo da Grécia, neste caso, é Alexandre, o Grande, mas é melhor supormos que o anjo guardião da Grécia seria a força e a inspiração de Alexandre, e isso explicaria como esse conquistador conseguiu fazer o que fez, incluindo a derrubada do império persa. Alexandre e seus sucessores também teriam muito para perturbar a Israel, nação à qual Gabriel e Miguel defenderiam.

10.21
Mas eu te declararei o que está expresso na escritura da verdade. O anjo Gabriel revelaria a Daniel o que estava contido no livro da verdade. Em outras palavras, “o registro da verdade de Deus em geral, ou aquilo de que a Bíblia é uma das expressões” (John F. Walvoord, Daniel, the Key to Prophetic Revelation, pág. 250), O mensageiro celeste haveria de revelar a Daniel o “futuro profético” de Israel, os planos de Deus quanto ao povo israelita sob a Pérsia e a Grécia, e olhando, igualmente, para os verdadeiros últimos dias, antes do estabelecimento do reino de Deus. O Livro da Verdade poderia ser o livro dos decretos, que inclui orientações divinas mediante profecias. Esses livros seriam os dupsunati, ou seja, os tabletes da sorte, que aparecem desde cedo no pensamento mesopotâmico.

No Talmude (fíosh ha-Shanah 16) lemos como, no Dia do Ano Novo, os livros eram abertos e registrados, governando os eventos vindouros. Esses tabletes são mencionados com bastante frequência nos livros dos Jubileus e nos Testamentos dos Doze Patriarcas. Orígenes, em sua obra Philocalia, tem uma oração de José, precisamente em 23.15 daquele livro. Lemos ali: “Li nos tabletes do céu tudo quanto acontecerá contigo e com teus filhos”. Tudo isso é uma maneira poética de falar da Soberania de Deus (ver a respeito no Dicionário) e de como ela opera entre os homens, como indivíduos ou como nações.

Somente Miguel estava ao lado de Gabriel nas muitas lutas celestiais que têm reflexos sobre a face da terra. Esses dois príncipes angelicais eram os anjos-guardiães-líderes de Israel. A implicação desse fato é que todas as potências do mundo estavam contra Israel e eram inspiradas e ajudadas por seus líderes angelicais.


Índice: Daniel 1 Daniel 2 Daniel 3  Daniel 4 Daniel 5 Daniel 6 Daniel 7 Daniel 8 Daniel 9 Daniel 10 Daniel 11 Daniel 12