Estudo sobre Gálatas 2:15-19
Estudo sobre Gálatas 2:15-19
Começa a listagem dos pontos em que Paulo pode presumir concordância com todos os judaico-cristãos: Nós, judeus por natureza. Como demonstra a subsequente contraposição com os gentios, a autodesignação “judeus” está carregada de elevado sentimento de eleição. Paulo desenvolveu em numerosas passagens a primazia de Israel na história da salvação. No entanto, como eleitos, eles também eram santificados no sentido de “separados para Deus”. Em decorrência, temos aqui um conceito de santidade decididamente objetivo. No que se refere ao lado subjetivo, nenhum judeu deve ter-se considerado sem pecados. Contudo, por meio da lei, os judeus sabiam que estavam protegidos contra o pior, contra vícios extremos. Além disso, a lei lhes fornecia meios suficientes de purificação para eventuais transgressões.
Diferente é com os não-judeus: e não pecadores dentre os gentios. “Pecador” significa igualmente um estado objetivo, dado com a condição de gentio em qualquer caso. Os gentios não são eleitos, portanto não são santificados, não são preservados nem purificados pela lei, de modo que “gentio” e “pecador” se tornaram praticamente idênticos no sentido. Nessa avaliação do mundo gentílico não entrava em questão a subjetividade de cada gentio, talvez sua sinceridade ou intenção nobre. Paulo conhecia gentios “nobres” (Rm 2.14,15). Mas mesmo nessa hipótese eles permaneciam na ignorância da lei de Moisés e, com isso, desconhecedores, transgrediam permanentemente a lei. Judeus sempre partiam do pressuposto de que não-judeus, mesmo com as melhores intenções, vivem numa “poluição ambiental” geral, tanto moral quanto religiosa, ou seja, na ilegalidade. No livro Sabedoria de Salomão (literatura sapiencial judaica do século i a.C.) afirma-se de forma geral sobre os gentios: “Por toda parte, sem distinção, sangue e crime, roubo e fraude, corrupção, deslealdade, revolta, perjúrio perseguição dos bons, esquecimento da gratidão, impureza das almas, inversão sexual, desordens no casamento, adultério e despudor” (Sabedoria 14.25,26 [bj]). O judeu, portanto, tem consciência de sua inegável vantagem. Contudo, tanto Pedro quanto também Paulo são judaico-cristãos. Como o começo do versículo seguinte expressa, eles ainda possuem um saber diferente, segundo o qual eles não gozam de vantagem alguma. Comparemos essa afirmação com as respostas radicalmente opostas a essa pergunta pela vantagem dos judeus em Rm 3. Conforme os v. 1,2, ela é “muita, sob todos os aspectos”, conforme o v. 9 ela nem sequer existe: “não, de forma nenhuma”.
O versículo traz a decisão fundamental de Gl. Ela é praticamente incutida, oferecida numa versão tríplice: O v. 16a interrompe o estilo confessional do v. 15 e formula, na forma de uma frase participial, a tese dogmática. O v. 16b traz a mesma verdade em forma de testemunho, como experiência da história pessoal. O v. 16c alicerça a tese sobre uma referência da Escritura.
Obviamente um comentário tem a ver com conceitos. Porém, neste ponto os conceitos apenas nos confundirão e por fim cansarão, se não captarmos e conservarmos constantemente na memória que estão direcionados ao Senhor Jesus Cristo. Não é sem motivo que esse versículo contém três vezes o seu nome. Ele é o abalo que interveio na vida, no pensamento e na fé daqueles judeus, fazendo deles cristãos. De acordo com o v. 21, ele é “a graça de Deus” e o verdadeiro centro energético da doutrina paulina da justificação.
V 16a: A tese dogmática. Paulo formula o novo saber que irrompeu no pensamento desses judeus com a realidade de Cristo: sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim (somente) mediante a fé em Cristo Jesus.
Depois da contraposição radical de judeus e gentios no v. 15, afirma-se agora de modo significativo: o homem (no final do versículo: “ninguém”, ou “nenhuma carne” [rc]). Sob o evangelho ressurge novamente a unidade da espécie humana. Fora de categorias temporais, constata-se: o ser humano não é justificado por Deus. Perdição conjunta no juízo os abraça a todos, judeus e gentios. Contudo, esta igualdade vale não somente para a perdição, mas também para a salvação. Diante do evangelho, a distinção não é mais entre judeus e gentios, mas entre fé e incredulidade.
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Em vista de que no presente ponto surge pela primeira vez na carta o termo “justificar” (ao todo ocorre oito vezes), cabe aqui uma introdução nesse importante conceito.
Como ponto de partida deve ser tomado o uso jurídico. Trata-se de uma sentença judicial de que alguém está com a razão diante de uma acusação, sendo por isso declarado livre. Os judeus, mas também os cristãos, esperam essa declaração judicial por Deus no juízo final: “aguardamos (o cumprimento da) esperança da justiça” (Gl 5.5). Ambos, no entanto, também conhecem uma declaração presente de liberdade, o judeu, p. ex., quando faz uso de um meio de propiciação prescrito na lei para uma transgressão14. Nova para o judeu, porém, é a experiência cristã de uma declaração fundamental de justo por Deus no passado pessoal. Então o “ser justificado” constitui uma das expressões para o tornar-se cristão, como fica muito claro em Rm 5.9; 6.7: “Fomos justificados” – Já deixamos o nosso “juízo final” atrás de nós.
No entanto, na Bíblia esse sentido jurídico é enriquecido significativamente. Não há como formular o conceito de “justo” com suficiente abertura e vitalidade. O “justo” não somente é congruente com normas objetivas, mas acima de tudo sua situação pessoal e suas relações sociais estão em ordem: com Deus, pais, irmãos, cônjuge, filhos, vizinhos e concidadãos. “Quando as condições de vida da pessoa estão em ordem, também a própria pessoa está”. Ela pode viver. Assim, ser declarado justo constitui a “questão central da vida humana”. Praticamente assegura a vida. Um juiz terreno muda pela declaração de inocência apenas a credibilidade do acusado, mas Deus também o seu ser. A libertação por Deus está carregada de poder recriador e gerador de salvação. Declarar justo sem tornar justo, i. é, sem perdoar o pecado, seria uma contradição em si. É por isso que Paulo coloca lado a lado em 1Co 6.11 as seguintes afirmações: “Haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados” (rc).
E mais: Quando um juiz terreno, com base num indulto, declara livre um acusado que corria o risco de receber a pena de morte, este é libertado da prisão e pode continuar vivendo. Mas mais do que isso não acontece. P. ex., não está ao alcance do juiz que essa vida também se torne uma vida nova. Talvez apenas recomece para o anistiado a velha vida, porque todos os problemas anteriores voltam a persegui-lo. Liberto do ponto de acusação, está novamente entregue a si próprio. Em contraposição, a declaração divina de liberdade é ao mesmo tempo declaração de amor eterno, abertura de um novo relacionamento com Deus. Biblicamente, as condições de estar livre da acusação e ser filho de Deus formam uma unidade. Paulo escreve em Rm 5.18 acerca da “justificação que dá vida” (literalmente: “justificação da vida”). Também aqui, nos versículos seguintes, v. 17-20, ele não tem dificuldades em transformar o tema da justiça no tema da vida: “procurando ser justificados em Cristo… viver para Deus… Cristo vive em mim… vivo pela fé”.
No entanto esta questão vem acompanhada aqui de uma polêmica aguda: justificados não… por obras da lei. Novamente temos diante de nós a primeira utilização, no contexto da carta, de uma palavra importante. De agora em diante Paulo falará em Gl 32 vezes acerca da lei. Em suas grandes explanações exegéticas, de Gl 3.10—4.7,21-31, ouviremos seu ensinamento sobre a natureza, incumbência, forma de atuação, alvo e fim da lei, assim como lançaremos olhares laterais sobre a contribuição da carta aos Romanos. Não queremos antecipar tudo isso aqui. Porém cabe lançar uma certa fundamentação.
Impossibilidade de parcelar a lei. Recordamos que naquela ocasião em Antioquia estava em discussão apenas uma parcela da lei de Moisés, a saber, especificamente a pureza da alimentação. Paulo, porém, nem entra no mérito dessa questão. Segundo o v. 14, ele apenas confronta Pedro com seu comportamento hipócrita e de imediato desloca o assunto para outro nível, aprofundando o conflito numa pergunta de princípio: a lei como tal. Isso é típico para ele. Sempre pressiona e leva do mandamento isolado para o conjunto da lei como unidade indivisível (Dt 12.32). Os judaístas, por seu lado, em sua agitação parecem não ter tomado a questão com essa profundidade, fisgando seus ouvintes de maneira mais sugestiva no ato isolado exterior de obediência. Em Cl 2.21 Paulo os imita: “não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro” Poderíamos acrescentar no mesmo sentido: “Circuncida-te, cumpre o sábado!” Paulo descarta essas injunções como que por um simples gesto. As igrejas não se devem deixar fixar por elas. Esses mandamentos não são grandezas em si, mas permanecem e caem com a lei de Moisés propriamente dita.
A aliança como premissa da lei. Quando esse enquadramento dos mandamentos na lei está claro, resulta daí outra conclusão para o teólogo da Escritura. Segundo a Escritura, não se pode imaginar uma lei sem uma aliança que a fundamente (Weinfeld, ThWAT i, pág 802). Leis não se lançam simplesmente ao ar. A lei de Moisés, p. ex., é uma regulamentação para a vida baseada na aliança do Sinai. Fora dessa aliança ela ficaria sem referência e sem significado. Conforme a Escritura, houve diversas alianças de Deus, com suas respectivas regulamentações. Existe, p. ex., o pacto com Noé para a humanidade toda. Mas até com seu povo eleito Deus firmou outras alianças além da do Sinai: a aliança com Abraão, a aliança com Davi, a nova aliança. Retomaremos detalhes dessa questão no comentário da próxima seção da carta. Aqui cabia deixar exposto que, ao enquadrar os mandamentos sobre a comida na lei de Moisés e ao inserir essa lei na aliança do Sinai, Paulo recupera o horizonte da história da salvação, o qual a igreja cristã corria o perigo de perder diante as provocações legais. Ela deve manter a cabeça livre para os alvos e planos eternos de Deus, para seus preceitos de prazo fixo, para as suas horas, sobretudo para o envio de seu Filho na plenitude do tempo (Gl 4.4-7). Somente assim é que se evidenciam os critérios apropriados.
A compreensão da lei no judaísmo incipiente. Até o momento recorremos somente ao AT para definir o entendimento da lei. Contudo, a história de Israel com a lei do Sinai teve uma continuação. Cabe notar que Paulo se defrontou com o último estágio, quando a função da lei havia passado por uma profunda transformação. Sobretudo no tempo intertestamentário ocorreram mudanças que apresentavam evidentes marcas de contexto, a saber, misturas com filosofias gregas (sobretudo o estoicismo). Antecipando o estágio final: a moldura histórica em que a lei de Moisés estava enquadrada na Bíblia desprendeu-se em boa parte no judaísmo. Tornou-se uma grandeza independente de templo, sacerdote, terra, Estado e história. Supostamente teria existido muito antes de Moisés, sim, antes da criação como primeira de todas as obras de Deus e teria cooperado com Deus já por ocasião da criação do mundo, como co-criadora. Por isso a lei não é somente luz e vida de Israel, mas do mundo, é lei mundial. Finalmente, “permanecerá eternamente”. Tampouco o Messias trará algo como uma nova lei, mas permanecerá sentado estudando com afinco essa lei perene do Sinai, a fim de poder cumpri-la minuciosamente. Assim a expressão da vontade de Deus possui uma vigência não-histórica, ela é sua primeira e última palavra, seu tudo (Gutbrod, ThWNT iv, pág 1040-1050; Bill i, pág 245.732; ii, pág 353-354; iv, pág 435). É por isso que no judaísmo também ocorrem afirmações de glorificação da lei, as quais recordam praticamente afirmações do NT sobre Cristo. Sob essa premissa, é naturalmente inaceitável falar de um “fim da lei” (Bill iii, pág 129-131: “A lei como fonte de salvação e vida”).
Não por último, ao mesmo tempo em que os pressupostos histórico-salvíficos da lei perdiam sua coloração, imperceptivelmente também o cumprimento da lei ia recebendo um significado diferente. Não servia mais à permanência na aliança graciosamente presenteada por Deus, mas à elaboração intensiva da relação com Deus, ou até à construção dessa relação: Cumpro a lei para que Deus se torne clemente comigo. Depois de sua conversão, o rabino Paulo abandonou essa sobrecarga cosmológica da lei do Sinai. Para ele a lei não é mais a primeira e última palavra de Deus, e o envio de Cristo não é apenas uma medida emergencial, para dar um reforço em determinados pontos em que a lei era um pouco severa demais e o ser humano fraco demais. O inverso é que vale: Cristo é o essencial de Deus, e a lei cumpre apenas uma determinada finalidade transitória.
Agora voltamo-nos à tese na primeira linha do versículo sob apreciação: Deus não declara justo por obras da lei. Essa formulação completa ocorre unicamente em Paulo, não no restante do NT ou no AT, nem tampouco no judaísmo. Mesmo em Paulo ela se encontra somente em certos capítulos.
De acordo com os contextos, não se trata de obras que a lei realiza de sua parte no ser humano (genitivo subjetivo), mas que a pessoa realiza ela própria em vista da lei e de conformidade com a lei (genitivo objetivo). Ela dirige essa ação como um instrumento para Deus, para trabalhá-lo com esse instrumento. Por meio dessas obras correspondentes à lei ela tenciona ser “declarada justa diante dele (de Deus)” (Rm 3.20 [NVI]). Note-se bem: Paulo não fala do ser humano fraco e sua deficiência em obras. Pelo contrário, elas decididamente existem. Paulo critica as obras da lei como tais. Elas não aproximam da verdade da vida, não inserem na relação correta com Deus, porque para isso a lei de Moisés nunca havia sido outorgada.
A fórmula oposta diz: declarados justos mediante a fé em Cristo Jesus. Deus não declara justa uma pessoa na condição de praticante, ainda que ela pratique os mandamentos mais sagrados. O cumprimento impecável da lei sempre produz apenas a “sua própria (justiça)” de Rm 10.3, ou “justiça própria” de Fp 3.9, que Paulo pode definir ali em retrospecto como sendo “perda” (v. 8,9). Na busca da justiça própria, forma-se somente uma existência humana governada pelo lema da auto-realização, e que tenta atrelar a isso a santa lei de Deus, ou seja, abusar dela. Porém Deus deseja ser, desde a criação e também na redenção, um Deus totalmente diferente, a saber, o Pai provedor, que por sua iniciativa se empenha pelas pessoas – de forma inesperada e abrangente. Essa vontade original de Deus veio à luz plenamente em Jesus Cristo, de modo singular no Cristo da paixão. Em Gl 3.6-9,12 Paulo aprofundará o que significa essa fé.
Até aqui a exposição sobre as duas teses opostas para a obtenção da justiça perante Deus, assim como Paulo as contrapõe em toda a sua extensão. Depois disso, ele ocasionalmente também as traz abreviadas: “não justificados por obras” (sem “da lei”, p. ex., em Rm 4.2,5), respectivamente “justificados por/pela/mediante a fé” (sem “em Jesus Cristo”). Em decorrência, “obras” e “fé” parecem agora ser um par de antônimos. Neste caso não deixa de ser importante que se reconheça essa forma abreviada como tal, a fim de não se cair no julgamento equivocado de que Paulo não estaria dando valor às obras, sim que se oporia a elas. Pelo contrário, é fácil de comprovar que ele tem alto apreço pelas obras (na nossa carta, em seguida, em Gl 5.6,14; cf. a opr sobre Gl 6.6-10). Igualmente não se deve permitir que nessa contraposição a “fé” decaia para uma mera credulidade, em algo como uma atitude de confiança esperançosa na vida e no futuro, sem uma relação pessoal com Cristo. Nós não circundamos, observamos e apalpamos incessantemente nossa condição de fé. Não cremos na nossa fé. Credulidade em si nem seria algo que fizesse diferença perante outra religiões, pois obviamente todas elas têm os seus crentes. A fé cristã precisa ser situada de maneira diferente: Ela não justifica, mas recebe a justiça. Ela própria não constitui base de salvação, mas somente é o ouvido aberto, a mão estendida. – Assim “obras” e “fé” muitas vezes representam apenas abreviaturas de dois caminhos antagônicos de salvação.
Resta ainda uma última pergunta sobre essa peça axial em Paulo. Na lei ele próprio havia se dado bem no passado. Para ele a lei funcionou muito bem, de maneira que ele a considerava como “lucro” (Fp 3.7) e ainda continuava falando da “glória” do serviço de Moisés (2Co 3.7-11). Como era possível que essa lei boa, justa e santa passasse para o lado negativo? A antítese “lei-evangelho” tinha de (e ainda tem de) soar como monstruosa aos ouvidos de judeus devotos. Para Paulo, a crise da devoção à lei tampouco foi provocada por algo no interior dela própria. A lei realmente era consistente em si mesma. Somente uma grandeza exterior tornava-a questionável e fazia com que o zelo não quebrantado de Paulo pela lei fosse de fato derrubado. É o fato avassalador fundamental de Gl 1.16: “Deus revelou seu Filho a mim”, que ecoa aqui nas três repetições de Cristo. Foi somente perante esse novo confronto que a lei perdeu o brilho para Paulo: “considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (Fp 3.8). Cumpre notar que a revelação de Cristo aconteceu por meio do mesmo Deus que outrora havia concedido a lei ao seu povo no Sinai. Isso significa que “Paulo tenciona afirmar o fato incrível de que o próprio doador da Torá dispensa a Torá” (Eichholz, pág 245). Paulo pessoalmente jamais teria ousado esse passo. Porém, na face de Jesus Cristo e conforme o testemunho da Escritura, o qual somente agora entendia corretamente, ficou claro para ele que da parte de Deus a lei não se destinava a ser o auge e o alvo da história da revelação, e que agora, na plenitude do tempo (Gl 4.4), Deus conduziu para além dela: Cristo é o fim da lei (Rm 10.4). Se, pois, apesar disso aparecia alguém que, com ares de importância, tentava convencer a igreja cristã da necessidade de quaisquer obras da lei arbitrariamente sacadas, isso para Paulo era simplesmente extemporâneo.
Paulo argumenta, portanto, contra a lei com nada menos que com a reivindicação de exclusividade de Jesus Cristo (Sanders, pág 465). Por ser Cristo toda a nossa justiça (1Co 1.30), as obras da lei não são o caminho para alcançarmos a nossa justiça. Por ser Cristo tudo, a lei nada é. Essa sentença aguçada sobre a lei, no entanto, vale somente no âmbito desta contraposição. Gl 3 revelará, então, o sentido positivo que a lei possui antes, até e fora de Cristo.
Na pesquisa analisa-se amplamente se com sua crítica à lei Paulo realmente acertou a autocompreensão do judaísmo de seu tempo. Mediante recurso a partes da literatura judaica comprova-se quanto estava distante dos escribas essa religião unilateral fixada nas obras, e quanto eles também sabiam concomitantemente da graça. Seria melhor parar com essas referências, porque elas são demasiado óbvias. Pois os julgamentos de Paulo não foram nem são possíveis de acompanhar a partir do terreno da lei. “Paulo jamais teria a ideia de afirmar que aquilo que ele descobriu também poderia ter sido descoberto por meio da lei. Sua avaliação da lei acontece com base na experiência de Cristo, que mudou tudo para ele. Em contrapartida, a sentença de que Paulo entendeu erroneamente a lei argumenta sempre no campo da lei” (Weder, pág 22).
A relativização cristológica da lei, proclamada lá em Antioquia, passa a definir a posição de Paulo também na carta aos Gálatas: Uma mudança radical do pensamento a partir do poder salutar de Cristo, que desarticula todos os poderes! Acresce que esse poder está sob um sinal irremovível: Jesus tornou-se esse Senhor poderoso sobre todas as coisas por meio de sua auto-entrega pelos nossos pecados (Gl 1.4, cf. Rm 14.9; 2Co 5.15). Desta maneira Paulo ressalta nesta carta sempre de novo a força, inerente justamente à cruz, de criticar a lei. Contudo, também em outras passagens, em que somente o nome Jesus Cristo é citado, sua morte na cruz está sempre presente, mesmo sem ser enunciada.
V 16b: Testemunho pessoal. Mais uma vez Paulo retoma o “nós” enfático do v. 15: Note-se bem que também nós, a saber, nós judaico-cristãos, temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei. O seu próprio caminho, no fundo, dizia tudo o que Pedro precisava para ser sentenciado. Sua vida com Deus baseia-se na sua vida com Cristo (cf. o exposto abaixo, sobre o v. 20). Agora Cristo é o fundamento do povo de Deus, não Moisés.
V 16c: Fundamento na Escritura. Uma alusão à escritura no Sl 143.2 dá acabamento ao versículo: pois, por obras da lei, ninguém (“nenhuma carne” [rc]) será justificado. O salmo de penitência do AT, na verdade, em lugar de “nenhuma carne”, diz “nenhum vivente”. Contudo, o significado é coincidente: nenhuma pessoa. De fato, a expressão “nenhuma carne” ressalta adicionalmente um contraste, pois alude-se à condição de criatura do ser humano e, assim, à sua fraqueza. Com isso, a distância até Deus é destacada de forma mais extrema. Deus não é carne, mas Espírito. Carne e Espírito não se harmonizam. Assim Paulo confere à palavra de lamento do salmo uma profundidade extraordinária. O devoto à lei se desespera, mesmo diante de todos os recursos de propiciação da aliança de Moisés. Surge ao nosso ouvido a carta aos Hebreus, p. ex., Hb 9.9,10: “se oferecem tanto dons como sacrifícios, embora estes, no tocante à consciência, sejam ineficazes para aperfeiçoar aquele que presta culto, os quais não passam de ordenanças da carne, baseadas somente em comidas, e bebidas, e diversas abluções, impostas até ao tempo oportuno de reforma”. Ou Hb 10.4: “É impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados”! “A carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus” (1Co 15.50).
Em Rm 3.20 Paulo repete essa referência ao Sl 143. Isto elucida que essa palavra bíblica constituiu uma descoberta para ele, a saber, uma passagem no AT que cala mais fundo que a aliança de Moisés e se insere naquilo que havia raiado para Paulo na revelação de Cristo. Para superar o abismo entre Deus e a carne, o envio de Moisés não podia ser suficiente, mas Deus veio ele próprio na carne. Jesus é o “Deus conosco” (Mt 1.23). Por meio da fé nele temos verdadeiramente Deus em nossa vida.
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