Estudo sobre Gálatas 2:19-20
Estudo sobre Gálatas 2:19-20
Para sua liberdade da lei Paulo encontra uma imagem forte. Porque eu (da minha parte)… morri para a lei. (Analisaremos no final do comentário a esses versículos o trecho que omitimos aqui por enquanto.) A ideia da morte em sentido espiritual já se encontra nas palavras de Jesus (Mc 8.34 e em numerosas variantes), além das ocorrências em Paulo, em diversos contextos (na presente carta ainda em Gl 5.24 e 6.14s). A utilização frequente depõe a favor de que essa figura fosse percebida naquele tempo como elucidativa, compreensível para todos. Hoje parece que se oferecem bem mais equívocos com essa ilustração. Quando se fala de morrer, pensamos involuntariamente no acontecimento biológico, p. ex., numa árvore morta, cuja seiva e força secaram. Então transferimos a ideia da seguinte maneira: Morremos para o pecado; em nós apagou-se qualquer desejo, qualquer apetite e receptividade para ela. Ato contínuo, porém, experimentamos, como antes, as “concupiscências da carne” de acordo com Gl 5.16,17. Parece demonstrada, assim, a ineficácia de Cristo e da nossa fé. Constatamos com resignação que o testemunho paulino acerca da morte em sentido espiritual pode caber no máximo numa elite cristã, na qual não ousamos nos incluir.
O erro reside no fato de que não perguntamos com a necessária exatidão pelo ponto de comparação da figura que estava na mente de Paulo. Há uma longa escala de possibilidades. Afinal, morrer não tem apenas o aspecto biológico, mas, p. ex., também um aspecto médico, psicológico, social e jurídico. Numa passagem em que Paulo ilustra extensamente esta imagem de morte torna-se claro de forma inequívoca que lhe interessa o aspecto citado por último, e somente esse. Pois em Rm 7.1-4 ele analisa como, de forma juridicamente incontestável, uma mulher poderia tornar-se livre do vínculo legal com o marido e casar com outro homem. Ele chega à resposta: somente pela morte. “Se morrer o marido, (a esposa) estará livre da lei” (v. 3). Em seguida Paulo transfere a figura para a esfera espiritual: “Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei… para pertencerdes a outro” (v. 4). Tomaremos um caminho errado se não ficarmos bem estreitamente apegados ao ponto de comparação que Paulo tem em vista, a saber, especificamente o efeito jurídico de um falecimento. A morte dissolve relações de direito. “Pois quem morre fica (legalmente) livre” de outras reivindicações de domínio (Rm 6.7 [blh]). Diante de um cadáver todos os compromissos perdem sua força. Os rabinos ensinavam que pessoas mortas também estão livres do dever de cumprir a lei (Michel, Römerbrief, pág 131). “A morte separa”, ela isenta dos deveres e desmembra de relacionamentos e processos. Ela desfaz nossa cidadania. Ela é a tesoura que corta inevitavelmente os laços. Em decorrência, “a lei (em outro texto: o pecado, Rm 6.2) tem autoridade sobre alguém apenas enquanto ele vive” (Rm 7.1 [NVI]).
Esta é, na verdade, apenas metade da questão. Depois da libertação da lei não se abre para nós um abismo sem laços, p. ex., o viver para si próprio de 2Co 5.15 (cf. Rm 14.7). Do contrário, a liberdade imediatamente ficaria estrangulada, degenerada em egoísmo (Gl 5.13). O lugar do velho de modo algum é ocupado pelo nada, mas por “algo novo” (2Co 5.17). Assim acontece também no presente versículo: Paulo diz que morreu para a lei, a fim de viver para Deus. Atrás do fim do domínio da lei surge, como sentido da questão, imediatamente um troca de senhorio. Cristo troca de lugar com a lei. Para o mesmo objetivo aponta o mencionado texto paralelo, detalhado, de Rm 7: “Morrestes relativamente à lei… para pertencerdes a outro (a Cristo)… a fim de que frutifiquemos para Deus… libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito” (v. 4-6). De forma análoga lemos em Rm 6.11: “Considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus”.
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Agora torna-se candente uma pergunta: Como acontece esse morrer espiritual e essa troca de senhorio? Neste ponto a segunda frase do testemunho pessoal do apóstolo nos pode ajudar (v. 19b): Estou crucificado com Cristo. Oferecem-se dois auxílios para a compreensão. Primeiro, a própria preposição “com” é extraordinariamente importante. Ela arranca do isolamento toda a nossa existência espiritual com todas as suas circunstâncias, como podemos encontrar repetidamente em Paulo: sofrer com, morrer com, ser crucificado com, ser sepultado com, ser ressuscitado e tornar-se vivo com, ser glorificado com, ser co-herdeiros e reinar com. Assim, também o morrer espiritual encontra-se sob a marca da comunhão. Em segundo lugar nosso morrer ganha contornos mais nítidos segundo a sua peculiaridade. Por ser um morrer com Cristo, mas por ter ele morrido na cruz, também nosso morrer é ser crucificado. Isso significa que não aplicamos violência a nós próprios. Pois tecnicamente a autocrucificação seria uma figura totalmente impossível. Portanto, não somos nós que estrangulamos pessoalmente nossa velha vida sob o pecado, quer pela ascese, quer por contorções místicas, quer por autoflagelações na alma ou até por contorções, quer tampouco pela mudança de nossa postura corporal e do volume da voz durante a oração, ou pela duração de nosso choro. Pelo contrário, morte por crucificação é uma intervenção de fora.
Com essas observações chegamos ao caminho positivo, conforme ele nos é mostrado em Gl 3.1-5: Nós nos expomos à ação do evangelho. É assim que começa, e não há outra maneira para continuar. Cumpre andar esse caminho incessantemente, nele Deus vem ao nosso encontro e nos interpela por meio do Espírito Santo juntamente com Cristo, de maneira que seu destino – seu morrer, ser sepultado e ressuscitado – se torna nosso destino, segundo a palavra: “tudo o que é meu é teu” (Lc 15.31; cf. Jo 17.10).
Por fim resta ainda uma referência no v. 19a, o qual tínhamos deixado inicialmente de lado: O morrer espiritualmente com Cristo acontece mediante a própria lei. Cristo por sua vez foi posto “sob a lei” (Gl 4.4), inclusive na sua morte. Isso vale inicialmente no aspecto exterior. As histórias da paixão nos evangelhos acentuam a determinação das autoridades judaicas em demonstrar em todas as fases do seu agir a concordância com a lei. “Temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer” (Jo 19.7). Também Pilatos se portou nos padrões do estado de direito. Contudo, além desse aspecto exterior, foi também Deus mesmo que fez vigorar a sagrada lei em Jesus, sentenciando-o à pena de morte. Assim ele morreu, em termos espirituais, de maneira legal. Com essa morte, porém, passou a vigorar imediatamente também a sua liberdade da lei (cf. acima). A partir dessa hora ela perdeu qualquer direito duradouro sobre ele. É exatamente o mesmo que vale para os que morreram com ele. Também eles morreram por meio da lei para a lei, i. é, estão legitimamente livres. Em Gl 3.13,14 Paulo traz essa verdade em formato ampliado.
Requer uma explicação adicional o fato de que com esse “morri” Paulo aponta para um evento determinado e único de seu passado. A maioria dos comentários fixa esse episódio no momento de seu batismo. Se tivesse sido essa a ideia de Paulo, como é que ele podia deixar de expressá-la nessa passagem central, falando clara e articuladamente do seu batismo? Por que tampouco o menciona nas duas outras passagens sobre ser crucificado com Jesus, em Gl 5.24 e 6.14? E por que não fala nada desse morrer espiritual em Gl 3.27, onde de fato está falando do batismo? H. D. Betz observa com razão que “isto não pode ser acaso”. Pelo que se evidencia, temos de nos cuidar para não realizar uma tradicional introdução de ideias estranhas a Paulo. Na concatenação de seus pensamentos o “morri” aparece em paralelo com “temos crido em Cristo Jesus”, no v. 16. Quando Cristo lhe foi revelado e ele recebeu Cristo na fé, ele também tinha morrido com ele para a lei e o mundo.
O sentido desse versículo é evidente. Ele fornece a descrição mais detalhada da “vida para Deus”, conforme o v. 19, desenvolvendo largamente o vocábulo vida (quatro vezes “viver”). Inicialmente Paulo confirma mais uma vez a declaração do v. 19, segundo a qual ele morreu uma morte espiritual: logo, já não sou eu quem vive. É óbvio que ele ainda vive biologicamente. Um morto não escreve cartas. Na segunda metade do versículo também consta: “Eu ainda vivo”. O sentido de não-viver no caso dele é apontado pela palavrinha posposta e enfatizada eu: eu para mim, como um eu enquistado. Não sou mais o ser individual isolado. Acabou aquele solo fatal na escravidão sob a lei e o pecado. Segue-se a afirmação positiva. Para tanto, Paulo retoma mais uma vez a comunhão com Cristo recém-testemunhada no v. 19, aprofundando, porém, o “com” de lá por “em mim”: mas (pelo contrário) Cristo vive em mim. Paulo conhece Cristo como um poder que habita dentro da pessoa. Ele é seu Senhor até no próprio coração, de modo que Paulo lhe pertence de forma voluntária e sincera. Este versículo fala claramente do Cristo espiritual, um tema que irrompe com força logo a seguir em Gl 3.1-5.
De acordo com o v. 19, a comunhão com Cristo já possui uma marca de autenticidade: Ela é comunhão na cruz. Não poderia ser diferente. Quem carrega no coração aquele que sofreu de múltiplas maneiras todos os dias de sua vida e que é proclamado como Crucificado (Gl 3.1), também levará uma cruz nas costas. Por isso Paulo também passa a combater uma ideia eufórica do que venha a ser cristão, quando continua: esse viver que, agora, tenho na carne. De acordo 2Co 10.3 ele distingue muito bem uma vida “segundo a carne”, ou seja, segundo padrões antidivinos, de uma vida “na carne”, i. é, na corporalidade terrena. É desse último aspecto que se trata agora: ainda não vivo no céu, mas decididamente em condições de criatura na terra. Como “terráqueo” fui feito da terra, tenho de retornar à terra e nesse ínterim estou sempre “ligado à terra”. Por meio desta breve expressão Paulo deixa claro que nada passa por ele sem marcá-lo. Para ele, ser cristão não é a arte de se elevar acima do cotidiano ou desviar-se de experiências terrenas para ser bem-aventurado nos espaços intermediários. Para ele, ser cristão é o seguinte: vivo pela fé! Ele leva essas experiências para dentro da fé. Entrega a sua realidade ao Senhor e o Senhor à realidade. Ele a confronta com Jesus. Para ele, viver na carne e viver na fé não gera conflitos.
Neste ponto somos surpreendidos por uma troca na designação de pessoas. Enquanto há pouco, no v. 16, estava em pauta três vezes a fé em “Cristo” e também na primeira metade do versículo se falava de “Cristo”, Paulo confessa subitamente sua fé no Filho de Deus. Talvez nesse ponto lhe venha aos lábios um hino conhecido na primeira igreja que trouxesse essas palavras. Por meio desta designação honrosa, os que creem relacionam de forma mais íntima o seu Senhor com Deus mesmo. Pois o Filho é o Amado (Mc 1.11; 9.7; 12.6), o Único (Jo 1.14,18; 3.16,18; 1Jo 4.9), o Primogênito (Rm 8.29; Cl 1.15,18; Hb 1.6; Ap 1.5). Por isso constata-se em Gl 4.4: “Deus enviou seu Filho” – é como se ele próprio tivesse ido. Jesus é o Deus-Mesmo, o Emanuel (Mt 1.23).
Contudo, esse amor que vibra entre o Pai e o Filho se expandiu, incluindo o mundo: que me amou. Ele desejava ardentemente a nós, e novamente a nós. Por isso não teve consideração consigo próprio. Não poupando nem o Pai nem o Filho, o amor divino se revelou transbordando até o sacrifício de si mesmo: e a si mesmo se entregou por mim. Nós fomos mais preciosos para Deus que aquilo que ele tinha de mais precioso.
Com essa explicação, porém, caímos no estilo do “nós”, contra o texto. Esse estilo, porém, é usual no NT nesse contexto, visto que em numerosas passagens lemos da morte sacrificial de Jesus: “por nós” (cf. o exposto sobre Gl 1.4). Somente nesta passagem Paulo faz a única exceção, fundindo o “por nós”, recorrente no cristianismo primevo, num “por mim”. Contudo, nos lábios desse homem, e no presente local, essa expressão fazia parte da questão. Diante do clássico perseguidor de Cristo e destruidor da igreja, o amor de Jesus assumiu de certo modo a sua forma clássica. Diante dele despedaçou-se seu antigo zelo pela lei. Era impossível que a lei de Moisés ainda fosse a prova decisiva do amor de Deus e o sol central de sua revelação. Paulo foi arrastado para uma nova órbita: Jesus Cristo, Filho de Deus!
Dessa maneira o apóstolo introduziu na situação em Antioquia, de vacilação geral, algo firme e incondicional.
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