Estudo sobre Hebreus 1:3

Hebreus 1:3

Por meio de palavras sempre diferentes é dada expressão à grandeza excelente de Jesus e descrito o caminho do Cristo de eternidade a eternidade como uma contínua e crescente manifestação. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão (“a marca”) exata do seu Ser. Sobre a pessoa de nosso Senhor paira um mistério, cuja manifestação em nossa vida constitui uma ação da graça soberana de Deus. Ao que crê, esse mistério se desvela. Em sua configuração terrena e humana, Jesus de Nazaré traz o ser de Deus. Ele pode dizer: “Eu e o Pai somos um” e “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 10.30; Jo 14.9). Quem o encontra – encontra a Deus. O apóstolo Paulo testemunha repetidamente em suas cartas que Cristo é a imagem do Deus invisível. Jamais o ser de Deus foi manifesto em forma mais pura que em Jesus Cristo. Por isso também o apóstolo João escreve no começo de seu evangelho: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18).

Resplendor da glória significa que Jesus Cristo recebe a luz a partir da glória de Deus, mas ele próprio a irradia, de forma límpida e sem diminuí-la, ao nosso mundo em trevas57. Assim como ele é portador da glória divina, também devem vir a sê-lo as pessoas que lhe confiam sua vida e lhe obedecem (cf. Mt 5.14; Fp 2.15). O mesmo processo que se desenrolou na vida de Jesus deve repetir-se na vida dos cristãos: “com o rosto descoberto, refletimos a glória que vem do Senhor” (2Co 3.18 [blh]). Por ser Jesus Cristo expressão (“a marca”) exata do seu Ser (de Deus)58, reconhecemos nele como Deus é na verdade. Por meio de uma ilustração podemos dizer: assim como uma moeda reproduz de forma independente e clara a efígie daquele que a emite, assim acontece com a realidade de Deus em Jesus Cristo59.

Sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder. Cristo não somente é o Criador e Consumador do mundo, ele é ao mesmo tempo o seu Mantenedor. Não apenas a existência desse mundo e o surgimento de toda a vida sobre ele é obra de Jesus Cristo. Também é ação dele manter incessantemente a criação. Tudo que existe nesse mundo, a vida de cada pessoa individualmente como também as constelações de poder sempre outras entre grandes nações, que mantêm em andamento o percurso da história mundial, devem sua existência unicamente por intermédio de Jesus Cristo. Por meio dessa afirmação da palavra de Deus torna-se visível que: na verdade, a criação toda encontra-se, desde a queda do pecado, num processo inegável de decadência. Sem a intervenção de Deus ocorreria uma desintegração total60. Já no livro de Jó, p. ex., consta: “Se Deus pensasse apenas em si mesmo e para si recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14,15). Unicamente o “sustento de Deus” preserva o universo. E esse “sustentar” realiza-se precisamente mediante a palavra divina, cujos efeitos não se estendem apenas ao nosso mundo visível, mas a todo o cosmos. “Ele sustenta o universo”! A palavra de Deus é a única coisa que pode preservar o mundo da dissolução. Na nossa época, diante do assédio de poderes demoníacos, percebemos com clareza cada vez maior: à medida que a palavra de Deus é rejeitada, o mundo se encaminha para as trevas.


As afirmações acerca de Cristo superam-se mais e mais. Ele criou os mundos por ordem de Deus e ele efetuou a purificação dos pecados. No grego, a palavra poiein significa, “fazer”, “agir” e possui no v. 2, no qual se fala da criação do mundo, o mesmo significado como no v. 3, onde o apóstolo aponta para a morte de Jesus na cruz, pela qual Cristo “fez a purificação dos pecados” (tradução literal). O termo grego poiein, que é usado aqui e em Hb 11.3 com significados idênticos, corresponde ao hebraico bará = “criar”, de Gn 1.1 e Is 43.1. Ou seja, o ato de reconciliação e redenção é um agir idêntico de Deus ao dos primórdios do mundo61. Encontram-se numa profunda relação entre si a manhã da criação do mundo e o romper do novo dia de Deus com a redenção, que Jesus Cristo conquistou por meio de sua morte no Gólgota e que se realiza na nova humanidade. É isso que Paulo quer dizer quando afirma: “Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo” (2Co 4.6). É o mesmo Deus que atua na criação e na redenção, é a palavra eterna que produz com a mesma força o mesmo efeito: nova vida se forma!

Na organização das partes da frase pode-se reconhecer que para o apóstolo a ação redentora de Deus é o centro de todos os acontecimentos, em torno do qual a sua reflexão gira constantemente. A morte de Jesus na cruz para o perdão de nossos pecados é o auge, o alvo de seu envio à terra (Mc 10.45) e a base de nosso relacionamento com Deus62. Ninguém poderia encontrar perdão e paz, ninguém poderia tornar-se justo diante de Deus e chegar a ele se Jesus não tivesse morrido por nós. Sua morte na cruz do Gólgota é para toda a eternidade o evento central da história universal. Nesse evento percebemos algo da dimensão do pecado humano, que Deus teve de castigar de forma tão terrível que seu único Filho morreu vicariamente abandonado por Deus. Mas igualmente vislumbramos a medida infinita do amor de Deus, que estava disposto a dar o melhor por nós. Por isso, o sofrimento e a morte de Jesus serão para os redimidos perpetuamente, no tempo e na eternidade, motivo de gratidão e adoração (Ap 1.5; 5.9,12).

Deus responde à morte sacrificial de seu Filho com a ressurreição e ascensão. Jesus Cristo é exaltado à direita de Deus e recebe todo o poder no céu e na terra. A mais profunda humilhação de Jesus vem a ser a base de sua soberania eterna. Ele assentou-se à direita da Majestade, nas alturas. A expressão “assentou-se à direita” remete-nos ao Sl 110.1: “Disse o Senhor ao meu senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés”. Essa palavra profética cumpriu-se no dia da ascensão (cf. Mc 16.19). A filiação divina de Jesus, que constituía uma determinação de Deus antes de todo o tempo, e que Jesus comprovou através de sua vida, paixão e morte, torna-se manifesta, na sua exaltação, a todos os poderes celestiais e, na volta de Jesus com glória, a todos os poderes terrenos. Depois que Cristo consumou o sacrifício para a redenção das pessoas, Deus o retirou da terra e o instalou na soberania mundial. Jesus Cristo tem participação no trono de Deus63. Como este conhecimento é consolador para a comunidade que crê: nosso mundo não está rendido ao arbítrio de pessoas maldosas e ambiciosas nem à influência destrutiva de poderes demoníacos, que executam sua estratégia por trás de todos os acontecimentos históricos visíveis. Cristo é o Senhor, ele segura todas as rédeas do acontecimento mundial em suas mãos misericordiosas, que foram perfuradas em nosso favor, e ele terá a última palavra no final da história. Nesse Senhor e Rei poderoso podemos confiar plenamente em todas as situações difíceis da vida.



Notas:
57 O termo grego dóxa (= glória) é tradução do hebraico kabod de Êx 24.16,17; 33.18-23; 40.34. A glória de Deus, que aparece repetidamente no at e que os israelitas viram como brilho de luz no Sinai, vem ao nosso encontro de modo perfeito na pessoa de Jesus Cristo, cf. 2Co 4.6.

58 O termo grego hypóstasis aparece na lxx de modo preponderante para “ser”, “existência”, mas pode assumir significados muito diversos na linguagem bíblica e profana. A forma mais segura de o traduzirmos é, em Hb 1.3, com “ser”, em Hb 3.14 com “condição” (i. é, estado da alma), “persistência” e em Hb 11.1 com “realidade” (realização).

59 J. A. Bengel, pág 604: “O Pai seria o original que é impresso em sua moeda. O Filho seria a sua figura mais completa gravada a partir da moeda na cera”.

60 O. Michel, pág 41: “A exegese mais antiga entende o sustentar como decidir e determinar, como elevar e governar. O sentido mais provável, porém, é a preservação diante da desintegração. É uma expressão da soberania mundial do Cristo, a qual impede a decadência do mundo por meio da ‘palavra poderosa’ apesar de aparente fraqueza exterior.”

61 Cf op. cit., pág 37, nota 2.

62 Também muitos textos do at, sobretudo o Sl 24.3,4, ensinam que purificar nossa vida dos pecados constitui a premissa para a nossa comunhão com Deus.

63 E. Riggenbach, pág 13: “Para o autor é algo evidente que sentar à direita de Deus não é um descanso ocioso, mas a transferência para uma posição de atuação irrestrita e perfeita. Contudo o presente texto ainda não elabora a forma da atuação.”