Estudo sobre Hebreus 1:7-9

Estudo sobre Hebreus 1:7-9



A palavra de Deus na antiga aliança não somente aponta para o Cristo vindouro, mas ela também esclarece sua relação com os anjos. Acerca dos anjos ele na verdade também diz: Aquele que a seus anjos faz ventos, e a seus ministros, labareda de fogo. A citação do Sl 104.4 é novamente uma referência literal da LXX. O texto hebraico reza na presente passagem: “Que dos ventos faz seus mensageiros, e das labaredas de fogo os seus ministros” (cf. bj, rc, blh). Por meio da tradução, o sentido original do texto hebraico foi ampliado e aprofundado. Deus não é somente o Senhor das forças da natureza, que tem poder para colocar a seu serviço todos os poderes e manifestações físicas, que se manifesta na labareda de fogo (Êx 3.2) e comanda o vento e o mar (Mt 5.26,27). Ele também tem à disposição poderes de anjos. Ele lhes dá a incumbência, e a cada incumbência a sua configuração é adequada. Na sua onipotência Deus dispõe de possibilidades infinitamente numerosas. Ainda que também nesse aspecto nossa capacidade de imaginação humana fracasse, a Bíblia nos abre a visão para a realidade total: nosso mundo visível está perpassado, rodeado e sustentado pela realidade do mundo não objetivável da glória de Deus e seus anjos. A citação afirma sobre Deus: ele faz de seus anjos ventos. Aqui reencontramos novamente o termo grego poiein (fazer, efetuar) como expressão do agir soberano de Deus, com o qual a atuação onipotente de Deus na criação e redenção é descrita nos v. 2,3. O Deus que criou coisas tão portentosas tem sob o seu comando possibilidades inesgotáveis, com vistas a serviços e revelações através de anjos69.

A superioridade de Jesus sobre os anjos, no entanto, não se baseia somente na sua dignidade eminente como o Filho de Deus, mas ao mesmo tempo também no seu poder como Rei celestial. Com as palavras do Sl 45.7,8 o apóstolo explicita a afirmação que fez sobre Cristo no v. 3: “Ele se assentou à direita da Majestade nas alturas”.

O Sl 45 é um hino de casamento para o rei (cf. nota da bj). “Escrevo esta canção em homenagem ao rei” (Sl 45.1 [blh]). No v. 6 do salmo consta, pois: O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre (“de eternidade a eternidade”) (cf. Lm 5.19). No AT, porém, nunca (nem mesmo na coroação de um rei!) outras pessoas designam alguém como Deus. Justamente Israel conhece a grande distância que separa Deus e pessoas. É bem verdade que Deus pode acrescentar a determinadas pessoas algo de sua dignidade divina70, contudo jamais a distância até Deus é suprimida por essa medida71. No Sl 45 o rei terreno representa o Rei celestial. Aquilo que se afirma para o rei de Israel não condiz com ele em sentido pleno. Vale para o Rei celestial, alcançando sua consumação em Jesus Cristo.


Enquanto todos os reinos terrenos substituem a outros e desaparecem, somente a soberania de Jesus dura para toda a eternidade. Essa ideia que abrange todo o curso da história universal também ressoa nas palavras do Sl 102, que o apóstolo recita no v. 12: “Tu, porém, permaneces o mesmo!” (tradução do autor) e que culmina na confissão consoladora de Hb 13.8 “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre” (blh).

Jesus Cristo, o eterno Rei da glória, também é um Rei justo. Por causa de sua justiça absoluta, com a qual ele governa e profere a sentença, foi-lhe dado o cargo do Juiz universal72. O que Jesus Cristo concretizou em sua existência na terra, o amor ao pecador e o ódio ao pecado, o soerguimento do quebrantado e o desmascaramento do hipócrita – essa sua justiça insubornável será manifesta no fim dos dias, quando ele “vai julgar o mundo com justiça” (At 17.31 [blh])73. Repetidamente os apóstolos testemunham que o retorno de Jesus como Juiz dos mundos faz parte da sua soberania real. Então declarará justos a uns por terem crido nele, o Senhor e Salvador (Jo 5.24). A outros, que não creram nele, ele condenará (Mc 16.16). Precisamente na situação de aflição e perseguição, em que a igreja está à mercê de juízes humanos que não conhecem a palavra de Deus nem sua sentença, a certeza da vinda do Rei justo confere aos fiéis a consciência de aconchego e consolo. Não é com o sentimento servil do sarcasmo do inferiorizado, que espera pela derrota do seu opressor, mas sim com sagrada alegria prévia que a igreja espera, no tempo do sofrimento, pelo dia da vitória de Jesus Cristo, no qual se manifestará a justiça oculta de Deus.


Notas:
69 O. Michel, pág 57: “Faz parte da essência do anjo que sua figura é adaptada ao serviço. O próprio Deus determina a incumbência e a forma de sua execução. O anjo não tem poder sobre si, mas aponta de volta para aquele que está por trás dele. Satanás é capaz de modificar sua aparência, mas por trás dessa troca de figura não está Deus como mandante, mas uma certa força demoníaca, astúcia e engano” (Gn 3; 2Co 11.14,15).

70 Cf Êx 21.6; 22.27; Sl 82.6 e Jo 10.34.

71 Também no NT existe uma série de palavras que destacam a posição singular dos filhos de Deus, sem porém levar à conclusão que por parte do ser humano ocorra uma aproximação íntima a Deus ou uma transposição indevida dos limites: p. ex., Cristo designa os fiéis como seus irmãos (Mt 12.49,50; Hb 2.11), mas ele continua sendo para toda a eternidade o “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Nunca, porém, o nt designa Cristo como nosso “irmão”. Cf também Rm 8.14,17; Gl 4.6; 1Jo 3.2; e de forma similar Mt 23.8.

72 Em seu comentário sobre Hb, Lutero afirmou acerca do v. 8: “O cetro não é outra coisa senão o próprio evangelho ou a palavra de Deus, enquanto os outros reinos são governados pelo centro torto da injustiça” (J. Ficker vol. ii 10,19).

73 Hb 13.4 pensa igualmente no caráter insubornável do Juiz celestial, que não está sujeito a nenhum engano humano, diante do qual, no entanto, também será revelada mais uma vez toda a culpa escondida dos seres humanos.