Números 11 — Análise Bíblica
Análise Bíblica de Números 11
Números 11
Nm 11:1-35 Episódios de rebelião e julgamento
Esse capítulo relata uma mudança súbita e dramática
na atitude obediente de Israel. O Pentateuco descreve duas mudanças
drásticas semelhantes. A primeira se deu quando Adão e Eva abandonaram sua vida
feliz e tranquila de intimidade com Deus e desobedeceram ao seu Criador
(Gn 2; 3). A segunda ocorreu depois de Deus ter livrado os israelitas
e feito uma aliança com eles, separando-os de outras nações (Êx 19—24).
Moisés subiu ao monte para receber instruções acerca da construção do tabernáculo
(Êx 25—31). Em vez de esperar pacientemente pela sua volta, o povo se
inquietou e obrigou Arão a fazer um ídolo que pudessem adorar e que os
conduzisse na jornada. Assim, logo depois da revelação momentosa de Deus
no monte Sinai, Arão confecciona um bezerro de ouro em tomo do qual
o povo dança, clamando: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te
tiraram da terra do Egito” (Êx 32:4). Tanto em Gênesis quanto em Êxodo, Deus
responde a essas iniciativas com ira e castiga seu povo.
Os israelitas haviam aprendido com seu castigo no
Sinai (Êx 32:25-35) e cooperaram com Moisés e outros líderes
para purificar o acampamento e se aprontar para a marcha santa.
11:1-9 A murmuração do povo
No entanto, o início da marcha é imediatamente
sucedido de cenas tristes de rebelião e castigo. Os israelitas se tomaram
inimigos de Deus, e ele teve de castigá-los pelos pecados de
descontentamento e incredulidade.
Em 11:1a não se mencionam as dificuldades que levaram
o povo a se queixar. Sem dúvida, os israelitas depararam com complicações de
todo tipo no deserto. Mas, nesse momento, o narrador não está interessado num
problema específico. Sua ênfase recai sobre o fato de Deus ter respondido
às queixas tomando a situação dos israelitas ainda mais difícil. Enquanto em
Êxodo 15:22-25 e 17:1-7 as queixas do povo são consideradas genuínas, aqui
são vistas como um sinal de rebelião. Diante dessa diferença, o
autor introduz um dos temas centrais dos capítulos 11 a 20, a saber,
a falta de fé e confiança do povo em Deus.
Deus responde a essas queixas mandando um fogo que
consome parte do arraial (11:16). 0 povo clama a Moisés, e, agindo
como intercessor, este ora ao Senhor, e o fogo se apaga (11:2). Assim,
o lugar é chamado de Taberá, porque o fogo do Senhor se acendera entre
eles (11:3).
Então, novas queixas surgem no meio do grupo chamado
de populacho (11:4). Esse termo pode se referir aos
não-israelitas que acompanharam a multidão na saída do Egito ou que se juntaram
a Israel no deserto. Ou, talvez, designe o grupo de israelitas insatisfeitos
que iniciaram a rebelião. De qualquer modo, a reação de Deus sugere que o
povo todo participou dessa desobediência.
O motivo da murmuração aqui é o maná que Deus estava
provendo como alimento no deserto. Os israelitas recolhiam essa substância
que caía do céu com o orvalho da manhã; em seguida, eles a moíam em pilões
ou moinhos e depois a cozinhavam ou assavam. O maná era como semente de
coentro, e sua aparência, semelhante a bdélio, um tipo de
resina (11:7-9). Em Êxodo 16:14, é descrito como “coisa fina
e semelhante a escamas, fina como a geada”, e Êxodo 16:31 diz que era
“como semente de coentro, branco e de sabor como bolos de mel”. Era um
alimento singular, para o qual não há nenhuma explicação natural
satisfatória. Os israelitas comeram maná durante quarenta anos, até chegarem
à fronteira da terra prometida (Êx 16:35).
Os murmuradores alegaram que a dieta diária de maná
era monótona e lembraram o povo da variedade de alimentos disponíveis no Egito,
especialmente das frutas, legumes e peixes, comidas que não podiam ser
encontradas no deserto (11:4-5). Seu descontentamento se espalhou, e o
povo chorou e se queixou, dizendo que preferia ser escravo no Egito e
desfrutar sua comida saborosa (11:10). Ao se queixarem desse modo, os israelitas
não levaram em consideração que o maná não era apenas um alimento físico,
mas também uma dádiva de Deus a Israel. Ilustrava a realidade da
provisão de Deus para o seu povo durante a jornada pelo deserto até
chegarem a Canaã e poderem se alimentar dos frutos da terra prometida (Js
5:11-12).
Jesus empregou esse simbolismo teológico ao descrever
a si mesmo como “o pão da vida” e “o pão que desceu do céu” Jo 6:35,41),
referindo-se à sua vida que ele entregaria para a salvação do mundo. Sua
vida era uma dádiva que sustentaria o povo na jornada rumo à vida eterna.
Como Jesus explicou: “Vossos pais comeram o maná no deserto e
morreram [...] Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer,
viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne”
(Jo 6:49-51).
11:10-15 A queixa de Moisés
Moisés sabia que as queixas do povo provocavam a ira
de Deus e se exasperou com o fardo que ele próprio tinha de Carregar (11:10).
Cansado de ser responsável por toda a comunidade, Moisés expressou
seus sentimentos a Deus i? maneira intensa, perguntando o que havia
feito para merecer esse fardo (11:11). E também indagou: Concebi,
eu, porventura, todo este povo? Dei-o à luz, para que me
digas: Leva-o ao teu colo, como a ama leva a criança que mama à ter-m que,
sob juramento, prometeste a seus pais? (11:12), lemrrando a Deus
que Israel pertencia a ele, e não a Moisés, e. -Portanto, Deus teria de
conduzi-lo à terra da promessa. Moisés reconheceu abertamente sua
incapacidade de suprir as necessidades do povo: Donde teria eu carne para
dar r rodo este povo? Pois chora diante de mim, dizendo:
Dá-nos cone que possamos comer (11:13). Apesar de ser grato
pela 5m da de Deus, Moisés também reconheceu: Eu sozinho não passo
levar todo este povo, pois me é pesado demais (11:14). Sie
precisava de mais ajuda divina e também humana. E sobrecarregado com o peso
de suas responsabilidades, o nõer de Israel orou: Se assim me tratas,
mata-me de uma vez, peço, se tenho achado favor aos teus olhos; e não
me dei. ver a minha miséria [ 11:15).
Esse tipo de lamento reaparece em outras passagens ás
AT. O livro de Salmos é repleto de orações feitas em Ermentos de agonia,
suplicando por socorro para a comunidade e para indivíduos (cf., p. ex., Sl 3;
4; 6; 13; 44; 69; 74; 80; 102). Ana lastima sua esterilidade em ISamuel 1:9-11,
e os livros de Lamentações e Jó são constituídos, em sua maior parte, de
lamentos. Em Jeremias 15:18, o profeta se queixa a Deus: “Por que dura a
minha dor continuamente, e a minha ferida me dói e não admite cura? Serias
tu para mim como ilusório ribeiro, como águas que enganam?”. Essas
súplicas vêm do coração de pessoas que estão experimentando sofrimento
intenso. São orações sinceras dirigidas a Deus, o único que pode
oferecer esperança de alívio da dor. A queixa de Moisés pode
ser considerada uma oração por socorro. Deus concorda que Moisés está
verdadeiramente exausto e desgastado pelas dificuldades de liderar um povo
murmurador. Ao contrário dos israelitas, o líder de Israel não se atém a
lamentar ou reclamar; ele pede a ajuda de que precisa para conduzir o
povo.
A murmuração e choradeira dos israelitas no deserto,
por outro lado, não fazem parte de uma oração dirigida a Deus; são apenas
queixas contra Deus e seus líderes. Quando o povo se viu, de fato, numa
situação desesperadora, como nas ocasiões em que precisou de água e
alimento, Deus ouviu suas súplicas (Êx 17:1-7). Mas, em Números,
os israelitas rejeitam o alimento provido por Deus. Apesar
do suprimento abundante de maná, eles se queixam: “Seca-se e a nossa
alma e nenhuma coisa vemos senão este maná” (11:6). 0 desdém pela dádiva
de Deus é acompanhado de um desejo de rejeitar as dádivas ainda maiores de
liberdade e da terra prometida e de voltar para o Egito, a terra
da escravidão! Em resumo, há um contraste gritante entre as orações
de lamento e as murmurações.
A oração de Moisés é fonte de ânimo para os líderes
que estão sobrecarregados com os fardos da liderança. Mostra claramente
que a liderança é um esforço conjunto, empreendido tanto pelos indivíduos
aos quais foi confiada a responsabilidade de liderar quanto pelo próprio
Deus que pode aliviar os fardos da liderança.
11:16-35 A resposta de Deus
A primeira coisa que Deus fez em resposta à queixa de
Moisés foi concordar que o líder de Israel precisa de ajudantes humanos. Diante
disso, Deus instruiu Moisés a escolher setenta anciãos das doze tribos
para dividir com ele o fardo de liderar o povo (11:16-17). Essa solução
ressalta a importância de dividir o trabalho e envolver outros na
liderança. Os líderes de hoje também precisam reconhecer que não podem
fazer tudo sozinhos; precisam buscar a ajuda de outros membros da
comunidade.
Em Êxodo 18:13-23, Moisés recebeu de seu sogro,
Jetro, um conselho parecido: nomear anciãos para julgar as causas do povo
e, desse modo, dividir o peso da liderança com outros membros da
comunidade. Moisés seguiu o conselho de Jetro, mas, como fica evidente
aqui, continuou sobrecarregado.
Na segunda parte de sua resposta, Deus promete prover
carne (11:18). Mas, primeiro, o povo deve estar preparado para
recebê-la. Deve se consagrar, pois se rebelou contra Deus rejeitando o
maná recebido por ele. A carne seria, ao mesmo tempo, uma dádiva e um
castigo. Deus daria aos israelitas aquilo que desejavam — até não suportarem
mais! (11:19-20). Ao contrário do maná, que Deus continuaria
a prover durante a jornada pelo deserto, a carne seria provida durante
apenas um mês.
Moisés duvidou de que Deus seria capaz de prover
carne para tamanha multidão durante um mês inteiro (11:21-22) e, pensando
em termos humanos, perguntou: Matar-se-ão para eles rebanhos de ovelhas
e de gado que lhes bastem? Ou se ajunta-rãopara eles todos os peixes do mar que
lhes bastem? (11:22).
Deus respondeu lembrando Moisés de seu poder
ilimitado: Ter-se-ia encurtado a mão do Senhor? (11:23). Esta
resposta faz lembrar as palavras proferidas pelo Senhor séculos depois aos
exilados na Babilônia que talvez tenham duvidado de sua mensagem de
consolo: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os
vossos caminhos, os meus caminhos” (Is 55:8-9).
Moisés transmitiu a mensagem de Deus ao povo e, em
seguida, obedeceu à ordem dada pelo Senhor em 11:16, reunindo setenta
anciãos na tenda da congregação (11:24). Então, Deus cumpriu a
promessa feita em 11:17. Desceu na nuvem, falou a Moisés e tirou um pouco
do Espírito que estava sobre ele, distribuindo-o sobre os setenta
anciãos (11:25). Trata-se do mesmo Espírito que Deus
concedeu aos juizes de Israel para livrar o povo de seus inimigos,
aos verdadeiros profetas e a alguns dos reis de Israel.
Quando o Espírito repousou sobre eles, os anciãos
começaram a profetizar, ou seja, provavelmente começaram a falar em línguas ou
de maneira diferente do habitual (11:25). Como o texto informa, foi uma
ocorrência singular.
Por algum motivo, Eldade e Medade, dois dos setenta
anciãos escolhidos por Moisés, não compareceram à tenda da congregação,
mas permaneceram no arraial. No entanto, o Espírito de Deus repousou sobre eles
também e, como os outros anciãos, eles profetizaram (11:26). Este
comportamento incomum consternou aqueles que o observaram, e Josué pediu a
Moisés que detivesse os dois anciãos (11:27-28). Mas Moisés
repreendeu Josué e expressou o desejo de que todo o povo recebesse o
Espírito de Deus (11:29). Alegrou-se pelo fato de outros terem
recebido o Espírito e não se apegou a ele como uma prerrogativa
da liderança. Não se mostrou possessivo com algo que lhe havia sido
concedido; antes, desejou compartilhar a experiência espiritual com o restante
do povo de Deus, mesmo que isso representasse uma ameaça à sua liderança.
Devemos aprender com a lição que Moisés nos ensina ao
mostrar que o Espírito de Deus não se restringe a um âmbito institucional.
Vemos a cobiça por poder tanto na política quanto nas igrejas africanas.
Aqueles que conquistam cargos de liderança se recusam a dividir o poder,
apegando-se a seus cargos e a todos os elementos associados a ele. Moisés,
no entanto, reconheceu humildemente que o mesmo
Deus que lhe havia concedido o Espírito de liderança
podia concedê-lo a qualquer outra pessoa. Deus não é limitado pelas nossas
estruturas institucionais e nem sempre opera de acordo com os padrões com
os quais estamos acostumados. Ele age conforme lhe apraz, pois seu poder e
Espírito são ilimitados.
Esse episódio envolvendo os anciãos nos traz à
memória o dia de Pentecostes, quando Deus cumpriu a profecia de Joel
2:28-29 e derramou seu Espírito sobre pessoas de todo tipo: judeus e
gentios, homens e mulheres, jovens e velhos (Atos 2:1-21).
Em seguida, Deus cumpriu a segunda promessa que havia
feito a Moisés (11:18-20). Proveu carne em grande quantidade usando um
vento para soprar um bando de co-domizes migrantes que estavam voando sobre o
mar, provavelmente sobre o golfo de Ácaba. Exaustas de tanto voar. as aves
caíram por todo o arraial, e o povo as recolheu dia e noite (11:31-32).
Apesar de ter atendido ao desejo dos israelitas, Deus
ainda estava irado com eles e, quando começaram a comer, ele os feriu com
uma praga, e muitos morreram (11:33). Não é possível dizer com
precisão onde esse episódio ocorreu, mas o lugar é chamado de Quibrote-Hataavá,
um nome hebraico que pode ser traduzido literalmente por “sepulcros da
concupiscência” ou “túmulos do desejo” (11:34). Sem dúvida, o povo
se alegrou quando partiu de lá para Hazerote (11:35).
O termo hebraico usado para o vento que soprou é ruah, a mesma palavra usada para o Espírito de Deus,
o agente por meio do qual Deus opera. Assim, em Nm 11:24-30, o Senhor dá
seu ruah, ou Espírito, aos setenta anciãos e, em 11:31-35,
envia um forte ruah ou vento para levar bandos de codornizes
do mar para o arraial. Jesus também associa o Espírito ao vento em seu
diálogo com Nicodemos: “Não te admires de eu te dizer:
importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz. mas
não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do
Espírito” (Jo 3:7-8).
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