Estudo sobre 1 Coríntios 15:10-11

Estudo sobre 1 Coríntios 15:10-11


Uma vez que apesar de tudo ele é apóstolo, precisamos reconhecer nisso a graça soberana de Deus com todo o seu poder. “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou.” Que Deus convoque para ser apóstolo justamente esse “aborto”, esse perseguidor, essa pessoa impossível, é “graça de Deus” com toda a sua soberania e glória. Talvez Paulo se lembre do que Deus falou acerca da eleição de Israel em Êx 16.4-6. A graça constantemente se revela como “graça” justamente pelo fato de ter compaixão com o mais miserável e com o pior. Paulo mostrou isso à igreja de Corinto em 1Co 1.26ss com base em sua própria composição. De forma peculiar, porém, tem a ver consigo mesmo. A “graça” do Deus vivo, no entanto, é ao mesmo tempo a coisa mais eficaz que existe, e também “não se tornou vã” no caso de Paulo. E por que não? Em sua resposta Paulo não menciona sua felicidade interior, não as suas revelações e dons do Espírito, nem mesmo os sucessos de sua atuação. Cita apenas uma coisa: “Trabalhei muito mais do que todos eles.” A graça ativa, a graça dá poder e capacita para o engajamento, a dedicação, o trabalho e o sofrimento. Para Paulo seu “serviço” não era um adendo amargo à doce graça, ambos os quais desejasse usufruir, porém representava justamente o auge da própria graça e a profundeza máxima da misericórdia experimentada (cf. 2Co 4.1; 1Tm 1.12-14). Por isso ele considera como unidade total o que nós com tanta facilidade separamos e lançamos uma contra a outra: “graça” e “trabalho”, límpida humildade e autoconsciência objetiva. Com toda a convicção ele se considera o menor dos apóstolos, e não obstante não diminui em nada o fato de que seu empenho como apóstolo supera o trabalho de todos os demais. Porque também esse fato é pura “graça”. Novamente somos remetidos à circunstância de que a magnitude e a glória de Deus consistem justamente em que sua atuação não descarta a atuação do próprio ser humano, mas o cria e fortalece (cf. acima, p. 83). A humildade autêntica não se rebaixa artificialmente a si mesma, porque com isso também rebaixaria a graça de Deus. Pelo contrário, ela confessa, nessa peculiar ligação de humildade e olhar verdadeiro para a própria obra de vida: “Pela graça de Deus sou o que sou.” Involuntariamente Paulo já deve estar respondendo aos que em Corinto lançam suspeitas sobre seu apostolado, colocando-o muito abaixo dos demais, os autênticos e verdadeiros apóstolos. No capítulo 11 da segunda carta aos Coríntios ele aborda essa questão exaustivamente. O trecho de 2Co 11.21-33 é a poderosa ilustração da sucinta frase do presente texto: “Trabalhei muito mais do que todos eles.” Ele concorda plenamente com seus adversários em Corinto: ele viu a Jesus “depois de todos”; apenas um “aborto de apóstolo”, o menor de todos, inútil para ser chamado de apóstolo. Têm razão os que nem sequer o querem reconhecer como apóstolo e elevam alguém como Pedro muito acima dele. Paulo fez todas as afirmações no tempo verbal do presente, não falando de sua incapacidade para ser apóstolo como de um passado superado. Agora, porém, os coríntios precisam se cuidar para não lutar contra a graça de Deus, que apesar de tudo o convocou para apóstolo. Se compararem o engajamento, o trabalho, o sofrimento de sua vida apostólica com os dos outros, não poderão negar a predominância disso em Paulo.


Será que Paulo visa gloriar-se a si mesmo? Não, ele imediatamente acrescenta: “Todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo.” Paulo sublinha mais uma vez a relação da eficácia de Deus com a atuação do ser humano, que não pode ser captada pela lógica humana usual. Logicamente poderiam ter trabalhado tanto apenas Paulo ou a graça de Deus. Paulo está reproduzindo a realidade viva e misteriosa: ele mesmo trabalhou, realizou, sofreu, e sem seu empenho total não teria acontecido toda a obra apostólica que agora se descortina perante os coríntios. Ainda assim, ao mesmo tempo tudo foi graça. Paulo não pode atribuir nada a si mesmo e não tem nenhuma participação percentual na obra da graça que pudesse reclamar para si.

Paulo encerra toda essa fundamentação para seu diálogo com os coríntios a respeito da ressurreição com a constatação: “Portanto, seja eu ou sejam eles, assim estamos anunciando e assim o aceitastes com fé” [tradução do autor]. Ainda que haja importantes diferenças entre ele e os apóstolos de Jerusalém no entendimento do evangelho, ele tem certeza de estar unido com todos eles na proclamação do evangelho como tal. Não apresenta um evangelho “paulino” próprio, nem deseja fazê-lo. Ele é o “arauto”379 que proclama a mensagem do Rei com severa fidelidade. Por isso é que no fundo está dizendo a mesma coisa que Pedro, João e Tiago. Os coríntios não podem se esquivar da mensagem dele recorrendo a outros apóstolos. Também para nós é importante saber que existe o evangelho uno e inequívoco, diante do qual todas as diferenças entre os mensageiros perdem importância. A igreja de Jesus fica em grave perigo quando seus pregadores não conseguem mais dizer unânimes: “Seja eu ou sejam eles, assim estamos anunciando e assim o aceitastes com fé!”


Notas:
379 Para “anunciar” consta aqui a palavra “proclamar como arauto”, que salienta mais intensamente do que a palavra “evangelizar” o compromisso incondicional com a tarefa recebida.