Estudo sobre 1 Coríntios 15:3-4

Estudo sobre 1 Coríntios 15:3-4


Agora, porém, ele apresenta mais uma vez o próprio evangelho aos coríntios, sendo que toda a ênfase recai cada vez mais sobre a “ressurreição”. “Antes de tudo, vos transmiti o que também recebi.” O evangelho é uma rica mensagem, porém existe nele um “acima de tudo”, um centro que a tudo domina.364 E esse “acima de tudo” não é um centrum Paulinum! Paulo, que na carta aos Gálatas é capaz de enfatizar (Gl 1.12) que ele “não o recebeu [o evangelho], nem o aprendeu de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo”, emprega aqui propositadamente os termos técnicos dos rabinos sobre o aprender de outros que lhe são familiares desde a juventude: “receber – transmitir”. Os coríntios não devem ter nenhuma possibilidade de esquivar-se de suas colocações com a desculpa de que se trata apenas de uma opinião particular de Paulo. Não, o apóstolo se encontra de maneira plena e integral no fluxo da tradição geral e não está reproduzindo seus próprios pensamentos. Isso não é uma contradição com Gl 1.12. A palavra do Senhor ressuscitado a Saulo de Tarso às portas de Damasco é tão sucinta quanto possível: “Eu sou Jesus a quem persegues.” A revelação direta de Jesus tornou certeza para quem até então o perseguia, somente esse único fato, de que aquele Jesus pregado à cruz está verdadeiramente vivo e é o kyrios. Todo o resto, todos os detalhes, todas as correlações históricas de Jesus tiveram de ser aprendidas daqueles que estiveram desde o início com Jesus.365

Em seu encontro com Paulo Jesus nem mesmo havia falado do sentido e da finalidade de seu sofrimento e morte. Com certeza foi por meio do próprio Espírito Santo que resplandeceu para o convertido Paulo a solução básica do enigma escandaloso, isto é, por que o Messias Jesus, expulso por Israel, teve de morrer como maldito (Gl 3.13) no madeiro: “que Cristo morreu pelos nossos pecados”. Porque ele de imediato anunciou a Jesus e somente três anos mais tarde visitou Pedro em Jerusalém. Ao mesmo tempo, porém, foi da maior importância para ele que ele ouvisse de Pedro e da primeira igreja a mesma coisa: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras.”


Estamos tão acostumados com essa frase curta que podemos ouvi-la sem ficarmos singularmente abalados. Contudo, quanto ela diz! Como devem ser terríveis os nossos pecados se tornaram essa terrível morte maldita do Messias necessária para a nossa salvação.366 Como é certa, porém, nossa redenção, nossa posição limpa perante Deus, se Deus realizou esse ato extremo em favor de nós! Nesse ponto Paulo é completamente unânime com a tradição do primeiro cristianismo. Não obstante toda a riqueza de palavras e feitos de Jesus relatados, os evangelhos são acima de tudo “história da paixão” e correm em direção da cruz.367 O que Jesus realizou curando enfermidades, libertando pessoas endemoninhadas, consertando vidas humanas, tudo está de antemão alicerçado em sua morte por nossos pecados e selado por essa morte. Com toda a razão e com plena convicção Paulo por isso estava decidido a “nada saber senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Co 2.2). Também nisso tinha certeza da concordância com “as Escrituras”. Agora não precisava fornecer aos coríntios diversas provas da Escritura. De suas cartas depreendemos que Paulo constantemente aponta para o que está escrito ao fazer suas exposições. Seu interesse não reside num sistema teológico do Antigo Testamento, mas sempre em palavras isoladas decisivas que representam para ele a voz convincente das “Escrituras”.368

Paulo acrescenta expressamente: “e que foi sepultado”. Esse “sepultar” contém a realidade plena e a seriedade total da morte. As mulheres, os discípulos, os amigos têm de passar pelo terror da morte quando esse “Vivo”, que foi tão poderosamente atuante entre eles, agora jaz diante deles com olhar apagado e o corpo inerte. Isso, porém, para Paulo também se revestia de importância com vistas à morte igualmente real do velho ser humano com seus pecados. “Fomos sepultados com ele na morte pelo batismo” (Rm 6.4). “Fostes sepultados, juntamente com ele, no batismo” (Cl 2.12). Ao mesmo tempo, esse tópico da proclamação era importante para cortar de antemão todos os boatos que tentavam enfraquecer a mensagem da ressurreição com ilações a uma eventual morte aparente. Jesus esteve realmente morto e foi deitado numa sepultura definida e conhecida.369 Contudo sua sepultura também ficou realmente vazia.

Acontece, porém, que a notícia sobre Jesus não acaba no “morto, sepultado”. Do contrário não haveria “cristianismo”. Na sequência vem a mensagem de que ele “foi ressuscitado no terceiro dia, segundo as Escrituras” [tradução do autor]. Será que com isso as afirmações de 1Co 1.18 e 2.2 evidenciam-se como redução do evangelho? Será que o cristianismo não é muito mais “palavra da ressurreição” do que “palavra da cruz”? Será que Paulo não precisava estar determinado, justamente em Corinto, a conhecer e anunciar “unicamente Jesus Cristo, e esse como Ressuscitado”? No trecho subsequente Paulo ainda exporá que de fato a cruz perderia todo o seu significado para nós se Cristo não tivesse sido ressuscitado. Não obstante, a ressurreição de Jesus não acrescenta nada de novo e mais sublime à decisiva e redentora palavra da cruz “morreu pelos nossos pecados”, mas apenas torna essa palavra válida e eficaz.370 Também essa ressurreição do Messias foi testemunhada previamente pelas “Escrituras”. Igualmente nesse caso Paulo não cita referências específicas.371 Para ver esse testemunho prévio da ressurreição de Jesus nas Escrituras, era necessário ter o novo olhar aberto por Deus. “Pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos”, diz João a respeito dos discípulos (Jo 20.9). Para o israelita Paulo, porém, era decisivamente importante que ele podia saber que essa mensagem estava em consonância com as Escrituras.




Notas:
364 Um feito crucial da Reforma é que ela voltou a transformar esse “centro” no claro vértice de todo o entendimento da Escritura e de toda a proclamação. A Reforma falou com razão do articulus stantis et cadentis ecclesia, o “artigo com o qual a igreja fica de pé e cai”. Onde, porém, ficou ele atualmente nas incontidas enxurradas de “opiniões” na teologia e na igreja?

365 Cf. acima o exposto sobre 1Co 11.23, p. 179s.

366 O reconhecimento do pecado constitui o ponto nevrálgico da teologia. A Confissão de Augsburgo afirma, de forma certeira: “Toda essa doutrina deve ser relacionada àquele conflito da consciência atemorizada. E sem essa luta não se pode nem entendê-la” (Confissão de Augsburgo, art. xx, segundo a versão latina). Negar que Jesus é verdadeiramente Filho de Deus, ficar indiferente aos fatos da salvação somente será possível sempre que ainda não ou já não se reconhece todo o peso do pecado.

367 Nesse sentido tem razão o Credo Apostólico quando acrescenta ao “nasceu” imediatamente o “padeceu e foi crucificado”. Já notamos diversas vezes que para Paulo o “Jesus histórico” era muito bem conhecido e que tinha importância para ele como o “Senhor” com sua palavra. Contudo o feito essencial de Jesus é e continua sendo sua morte na cruz por nossos pecados. Toda a proclamação precisa ser medida pela clareza com que expressa essa verdade.

368 Podemos recordar sobretudo Is 53; Zc 13.7. O emprego do plural “as Escrituras” era plausível pelo fato de que naquele tempo de fato não existia um livro único, “a Bíblia”, mas uma coletânea de rolos de escritos.

369 Por isso, até hoje a sepultura de Jesus é importante para que tenhamos certeza de que ressuscitou. Visto que Jesus foi sepultado e seus amigos e familiares conheciam sua sepultura, teria sido muito fácil para o Sinédrio refutar a proclamação de sua ressurreição, bastando que mandassem todos olhar o Jesus morto em sua sepultura. Também entre os próprios discípulos todas as “experiências da Páscoa” não teriam conseguido o menor impacto se não pudessem se certificar diariamente de que o corpo de seu Mestre jazia visivelmente lá na sepultura. Cf. Künneth, “Theologie der Auferstehung” [Teologia da Ressurreção], 1951, vol. 4, e P. Althaus, “Die Wahrheit des kirchlichen Osterglaubens” [A verdade da fé cristã na Páscoa], 1941, vol. 2, p. 30ss.

370 Também na perfeição no centro do trono de Deus Jesus não pode ser visto de outro modo do que o “Cordeiro com a marca de que foi morto” (Ap 5.12).

371 Na proclamação de Paulo em Antioquia da Pisídia vemos, com mais clareza em relação à ressurreição de Jesus do que em relação à sua cruz, como ele apresentava a “prova da Escritura” sobre esse fato (At 13.33-37).