Estudo sobre 1 Coríntios 15:23-24

Estudo sobre 1 Coríntios 15:23-24


Entretanto uma verdade que precisa ser bem observada tanto por nós quanto pelos coríntios é: nem na “obra” do Cristo nem na do Adão estão em jogo almas individuais, que como tais recebem a vida por meio de Jesus de forma desconexa. Pelo contrário, trata-se da revelação do grande plano de Deus até o último alvo que abarca o universo. Está em jogo o “vivificar” de grandes dimensões, que liberta a própria criação dos poderes da morte, trazendo-a à gloriosa liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8.21). Esse plano de Deus, porém, é concretizado em etapas. Dessa forma surgem “divisões” [batalhões], dentro das quais os indivíduos obtêm participação na nova vida trazida por Cristo: “Cada um, porém, em sua própria divisão: Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua parusia” [tradução do autor].

A primeira “divisão”389 dessa vivificação e nova criação já entrou em campo. Ela é o próprio Cristo que, como “primícias”, é o iniciador e garantidor de tudo o que vem depois. Ele é seguido pelos “que são do Cristo (literalmente: “os do Cristo”, a “gente do Cristo”) na sua parusia”. Paulo pode se limitar a essa breve constatação, porque já apresentou tudo isso detalhadamente aos coríntios, assim como aos tessalonicenses (cf. 2Ts 2.5; 1Ts 4.13-18; 5.1-11), por ocasião de sua proclamação oral. Para nós, porém, se confirma por meio dessa breve frase também nessa carta “clássica” de Paulo que a “parusia” de Jesus a princípio vale apenas para a sua igreja e leva seus mortos a ressuscitar, arrebatando e aperfeiçoando a igreja como um todo.


Somente depois disso acontecem os impactantes eventos do “fim”, nos quais a igreja unificada para sempre com seu cabeça tem plena e direta participação. Portanto, segundo a clara proclamação do apóstolo existe uma ressurreição e vivificação dos que creem antes dos acontecimentos finais, ou seja, também antes do juízo final. “Então o fim” [tradução do autor]. A fim de manter rigorosamente a metáfora das divisões, houve quem tentasse traduzir a palavra “to telos” com “o resto”. Essa tradução, porém, não é possível de acordo com nosso conhecimento do idioma grego daquele tempo. Também em termos de conteúdo levaria a consequências impossíveis. Será que depois da ressurreição do “pequeno rebanho” Paulo designaria toda a humanidade remanescente de “resto”? Acima de tudo, será que ele, que falou com tamanha seriedade da perdição e da necessária salvação através de Cristo, repentinamente também atribuiria com uma única frase, sem mais nem menos, “o ser vivificado no Cristo” a esse “resto”, i. é, a toda a humanidade remanescente? Isso é impossível. O próprio Paulo não usa a metáfora das “divisões” com tanto rigor, mas visa apenas caracterizar a execução do plano de salvação por etapas. Porque já as “primícias”, o próprio Cristo, não são propriamente um “batalhão”.

O “fim” novamente se refere ao “alvo final”, ao último desfecho que coroa toda a obra de Jesus, como a frase imediatamente subsequente, que já antecipa o versículo final (v. 28): “Quando ele entregar o reino ao Deus e Pai.” A concretização desse alvo, porém, é necessariamente antecedida por feitos soberanos de Jesus ou também do próprio Deus, somente agora arrolados por Paulo: “Quando tiver aniquilado todo principado, bem como toda potestade e poder” [tradução do autor]. Para qualquer um dos mais simples cristãos, que ora o Pai Nosso com sinceridade, é muito evidente que agora no mundo não se santifica o nome de Deus, não se faz a boa e santa vontade de Deus e por isso o reino de Deus não vem. Qual é a razão disso? Em sua explicação do Pai Nosso Lutero fala de “todo mau desígnio e vontade que não santificam o nome de Deus nem querem permitir que venha seu reino, como, por exemplo, a vontade do diabo, do mundo e de nossa carne”. Na oração do Pai Nosso rogamos que Deus “quebre e impeça” todo esse mau desígnio e vontade. Desde já temos o privilégio de experimentar diversas respostas a essa prece. Porém nosso insistente anseio é para que tudo o que se opõe ao senhorio pleno de Deus seja completamente “aniquilado”. É exatamente isso que nos está sendo assegurado aqui.390 Para quem sofre com o curso deste mundo e vê toda a enxurrada de múltiplos temores, aflições e sofrimentos que onera e destrói a vida de incontáveis pessoas, a mensagem imprescindível e bem-aventurada será que em Cristo Deus há de “aniquilar todo principado bem como toda potestade e poder” de natureza hostil a Deus. Somente seu aniquilamento abre caminho para a nova plenitude de vida da criação na soberania de Deus. Por mais estranho que seja para nós a idéia de que atualmente nem mesmo Deus governa esse seu mundo, mas alguém completamente diferente é o “príncipe deste mundo” (Jo 12.31), sim “o deus deste mundo” (2Co 4.4), ela corresponde tanto à realidade que experimentamos quanto à característica básica do próprio evangelho. “O reino de Deus está próximo”, essa é a proclamação fundamental de João Batista e também do próprio Cristo. “Venha teu reino” constitui por isso a prece central na oração dos discípulos. Se Deus já fosse desde sempre e agora aquele que governa soberanamente no mundo, por que seria necessário anunciar e rogar isso?391


Notas:
389 Nesse caso trata-se de fato de um termo militar. Aqui Paulo consegue expressar melhor, como também em 1Ts 4.16s, o poderio e a execução planejada dos eventos escatológicos usando metáforas militares.

390 A. Schlatter propõe pensar também nos poderes angelicais que estão a serviço de Deus e que, não obstante, terão de ser aniquilados quando o próprio Deus governar diretamente e desejar ser tudo em todos. Contudo, será que Paulo teria empregado o termo “aniquilar” em relação a esses anjos, e será que podia simplesmente juntá-los numa mesma coisa com os poderes das trevas?

391 Em nosso diálogo com pessoas que perguntam ou rejeitam o evangelho é muito importante observar isso. A rejeição da fé em Deus quase sempre tem raízes últimas nas aflições e trevas do mundo que nos envolve, que parecem refutar ou a onipotência ou o amor de Deus. Como pode existir um Deus e Pai quando o mundo tem o aspecto que possui na prática? Nesse ponto as tentativas de acusação não ajudam. É preciso admitir o caráter de morte do mundo. Ele é delineado com toda a nitidez justamente pela mensagem bíblica. A Bíblia considera a situação atual do mundo como “noite” (Rm 13.12; 1Ts 5.1-11). O mundo não é mais a criação original e o espaço de soberania direta de Deus, fato esse ignorado por uma teologia equivocada do Primeiro Artigo do Credo. O cristianismo teria evitado muitos escândalos, para si mesmo e para outros, se tivesse testemunhado isso sempre com toda a clareza. Nesse ponto sofremos as consequências da perda da escatologia bíblica e de toda a visão de mundo bíblica.