Estudo sobre Filipenses 3:9

Estudo sobre Filipenses 3:9


Paulo, será que isso vale da mesma maneira para a área central de nossa vida, nossa posição perante Deus, nossa “justiça”? Paulo ouve essa pergunta em sua mente e interrompe o fluxo normal de seu testemunho, que depois prosseguirá na direção original. Com certeza, “já não estou de posse de minha justiça própria, a da lei, mas a por meio da fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé”!

A frase é da mais densa brevidade, trazendo a “doutrina da justificação” em sucinto testemunho pessoal. Por isso ela tampouco explica ou fundamenta algo. Sentimos como justamente a mensagem da justificação não é um jogo inteligente de terminologias, que possa ser manuseado com aptidão, ou um conhecimento meramente dogmático que possa ser explicado a toda pessoa sensata e “demonstrado” com tantos e tantos argumentos. Como “doutrina”, porém, ela é tão-somente a projeção racional de uma realidade vivenciada de forma bem diferente. A guinada na concepção da “justiça perante Deus” integra a guinada total que aconteceu com Paulo quando veio a conhecer o Cristo Jesus como seu Senhor. Por essa razão a “doutrina da justificação” tampouco pode ser entendida nem afirmada sem uma dessas guinadas totais fundamentais, sem um reconhecimento de Jesus desse tipo. Por maior que fosse a clareza com que se apresentasse a justificação ao fariseu Saulo de Tarso, ela jamais o teria convencido. Diante dela o ser humano moral e religioso sempre dará de ombros, perplexo, ou se irritará passionalmente com ela. Se minha luta para praticar a vontade de Deus, para praticar o bem, não for mais meu valor em vista da justiça eterna, ruirá o fundamento de toda moralidade, bem como o fundamento de minha própria vida! Novamente é apenas a partir do novo “lugar” da vida “em Cristo” que a inutilidade dessa “justiça a partir da lei” se torna visível . Não é preciso demonstrar suas carências, falhas e lacunas – nossa proclamação se dedica demasiadamente a tais demonstrações. Agora ela foi condenada simplesmente por ser “minha própria” justiça. Apesar de toda a dedicação, de toda a disciplina férrea na obediência aos mandamentos, é somente o eu que tenta se afirmar diante de Deus. O ser humano quer ser independente e autônomo justamente no centro de sua vida, na realização do bem, e contrapor-se a Deus, conquistando dele o beneplácito. Justamente o ser humano que fosse capaz da perfeita realização moral, que comparecesse diante de Deus impecavelmente puro e nobre seria o ser humano perfeitamente ateu no brilho de “sua própria justiça”. Era essa igualdade a Deus atéia que estava em jogo na queda do pecado, era esse saber autônomo e arbitrário do bem e do mal. Paulo, porém, foi cativado por Cristo, encontrou nele o amor de Deus com toda a sua glória. Agora já não deseja sua própria justiça, nem mesmo no momento em que de fato seria capaz de conquistá-la. Já não a deseja, não apenas por ter desmascarado que é furada e inatingível – por isso também, é claro, mas não é disso que fala a presente passagem –, mas por princípio não a deseja mais como sua “propriedade”! Ele não quer mais a auto-afirmação perante Deus que se expressa nela da forma mais sutil e perigosa. Reencontrou a posição “correta” perante Deus, na qual a criatura vive do amor de Deus e de suas dádivas. A conhecida tradução de Lutero, “a justiça que vigora perante Deus”, ou, na presente passagem, “a justiça que é creditada por Deus à fé”, ainda não abrange inteiramente o que Paulo escreveu. Poderia ser entendida equivocadamente no sentido de que o ser humano ainda continua se afirmando diante de Deus, agora evidentemente não mais com sua insuficiente justiça própria, mas com a justiça melhor adquirida na fé, uma justiça que Deus deixa prevalecer. Paulo, porém, realmente se referia à justiça própria de Deus, que nos é concedida por meio de Cristo em virtude da fé assim como também o Espírito próprio de Deus e a vida própria de Deus.

Em decorrência, clareia-se para nós também a relação desta passagem com Rm 7.14ss. A princípio as afirmações aqui e lá parecem se contradizer. Aqui a justiça parece ser atingível por meio da lei (v. 9), e até mesmo atingida de fato na vida de um fariseu sério (v. 6). A perspectiva de Paulo não é aquela que nós filhos da Reforma consideramos óbvia, a perspectiva que olha para trás com um gemido por causa da falta da justiça, mas a da constatação determinada da “justiça que há na lei, irrepreensível”. Em Rm 7, porém (e em outras passagens conhecidas), o cumprimento da lei é fundamental e essencialmente impossível. Lá ocorre o lamento sobre o querer vão e sobre a obrigatoriedade de fazer aquilo que se odeia, lá ouve-se o grito: “Desventurado homem que sou!”. Como Paulo consegue proferir afirmações tão distintas? Como ele pode se contradizer dessa forma? E qual é, afinal, o Paulo “genuíno” e verdadeiro? Qual é a verdade para nós? 

O dilema acaba quando levamos em conta que na presente passagem a lei é vista como realidade “carnal”, mas em Rm 7.14 como “espiritual”. Lá Paulo afirma o que antes não havíamos compreendido: “Sabemos que a lei é pneumática”. Assim como o ser humano natural considera, e unicamente é capaz de considerar, a lei como regra para sua própria justiça humana, como soma de instruções para o reto fazer e deixar de fazer, a lei é exequível. Enquanto a conhecermos somente dessa maneira, poderemos constatar de forma subjetivamente honesta: “Tudo isso tenho observado desde a minha juventude”, sou “irrepreensível”. Por isso também existem tantas pessoas gentis e corretas que não sabem nada sobre a aflição e o desespero de quem se sente oprimido pela lei e que simplesmente não conseguem entender as afirmações de outros a esse respeito. Contudo, como expressão da justiça de Deus, a lei é “espiritual”, i. é, ela é oriunda do Espírito de Deus e visa à vida divina gerada pelo Espírito e ao serviço para Deus no Espírito Santo. Não é essa ou aquela ação, mas unicamente a agápe, o amor divino, que constitui o “cumprimento” dela (Rm 13.10). Esse “amor”, porém, não é alcançado, por mais ferrenhamente que se cumpra a lei. Pelo contrário! Num paralelo exato com as frases acima (p. 235) constatamos: quanto mais integralmente uma pessoa “cumpre” a lei com dura disciplina, tanto mais plenamente falha em seu verdadeiro cumprimento! Por essa razão justamente o fariseu sério e subjetivamente correto passou a ser alguém que não entendia nada do agir amoroso de Deus em Jesus, e até alguém que o odiava e que com seu ardente zelo pela honra de Deus não obstante se tornou justamente inimigo de Deus e perseguidor de Jesus. Somente quando Saulo passa a ser Paulo, quando não busca mais a justiça própria no cumprimento da lei, então a justiça de Deus lhe pode ser atribuída, sendo “o amor de Deus derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rm 5.5). É assim que a lei chega a seu verdadeiro e essencial cumprimento. Doravante Paulo desejava ter unicamente essa “justiça”, a “justiça pela fé em Cristo, que provém de Deus em virtude da fé”. Somos extraordinariamente gratos por essa visão da doutrina da justificação a partir de um contexto completamente diferente. Vemos, assim, as velhas conhecidas linhas de pensamento de uma maneira nova e particularmente clara para nós não israelitas.