Estudo sobre Hebreus 10:19-20

Estudo sobre Hebreus 10:19-20


Quando fazemos uma vez a leitura contínua de Hb, de imediato chama nossa atenção que as duas seções de Hb 1.1–5.10 sobre a pessoa de Jesus, o Filho de Deus, e Hb 7.1–10.18 sobre a obra de Jesus, seu serviço de Sumo Sacerdote celestial, apontam para as advertências e exortações que vêm logo após. É neste aspecto que percebemos da maneira mais nítida o que move o apóstolo ao escrever sua carta. Ele não visa projetar-se, numa auto-satisfação teológica, com novos conhecimentos de Cristo. Não se trata de que os fiéis sejam alçados a um degrau mais elevado de entendimento espiritual. O autor é movido pela ardente preocupação pela vida interior da comunidade, da qual se aproxima aflição e perseguição. Será que serão constantes em seu testemunho? Sua vida espiritual está tão consolidada que possam resistir a todas as tempestades? Será que no cotidiano de sua vida cristã existem fidelidade e persistência, como premissas de todo crescimento espiritual? Como está o seu relacionamento com Cristo na palavra da Escritura Sagrada, como se apresenta sua vida de oração, sua dedicação à comunhão dos fiéis? O apóstolo os introduziu nas correlações ocultas da palavra de Deus, mostrou-lhes as múltiplas ligações entre o AT e o NT. Contudo, ele também sabe que toda compreensão espiritual ampliada pode tornar-se catastrófica para a comunidade, sim, juízo para ela, quando não transforma a vida dos cristãos nem a configura segundo os padrões de Deus.


Com uma frase o apóstolo traça a conclusão final de tudo o que disse aos fiéis a partir de Hb 9.1 sobre o santuário terreno e o celestial: Tendo, pois, irmãos, intrepidez (“alegre confiança” [tradução do autor])352 para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus. A interpelação “irmãos” já deixa clara a amplitude e a delimitação do círculo de pessoas, às quais o autor dirige suas linhas e para as quais vale a promessa divina (cf. Hb 3.1,12). Somente pessoas que encontraram o rumo da comunhão com Jesus Cristo, que o próprio Senhor transformou em seus “irmãos”, têm direito à cidadania junto de Deus, possuem um acesso sempre aberto ao coração de Deus, ao santuário celestial. Depois que o Sumo Sacerdote celestial consumou sua obra pela auto-entrega de sua vida, tornou-se realidade completa para a igreja no NT aquilo ao que o serviço sacerdotal da antiga aliança apenas aludia como uma sombra, mas o que ele ainda não tornava possível (Hb 9.8): temos acesso direto a Deus353. Jesus Cristo inaugurou o acesso354, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne. As ordens de salvação do AT estavam formuladas em lei e preceitos que tinham a função de manter o ser humano dentro de restrições e lhe mostrar o rumo da vida com Deus. O caminho da salvação na nova aliança é novo355 e vivo porque suspende todas as ordens e prescrições de salvação anteriores, que não eram capazes de trazer restauração eterna ao ser humano, e porque as substitui pelo vínculo com uma pessoa viva. Pela via desse “novo caminho” a pessoa não somente alcança vida eterna, mas ela também o trilha numa constante ligação viva com o Senhor. Este caminho está conectado à pessoa de Jesus (Jo 14.6; At 9.2). Precisamente neste ponto torna-se mais uma vez explícita a natureza da fé no nt: crer significa viver na comunhão com o Senhor ressuscitado, sob a sua condução. Esta nova vida nos foi viabilizada por Jesus, ele inaugurou o caminho, ele o trilhou em primeiro lugar, proporcionando-nos acesso ao Santíssimo. Ele é “nosso precursor” (Hb 6.19,20). Desde já temos a possibilidade de nos aproximar de Deus pela fé, e um dia estaremos inteiramente em sua presença.

Quando o apóstolo declara que Jesus nos desobstruiu o caminho ao coração de Deus “além do véu”, então está evidenciando, como em Hb 6.19, que o relato em Mt 27.51 possui um significado maior que meramente de ilustração. A cortina do templo rasgou-se na hora da morte de Jesus – isto é a manifestação de um acontecimento espiritual invisível no mundo celestial. Contudo, a cortina no templo não constitui para o nosso autor apenas expressão simbólica para o “véu” que ainda hoje oculta aos nossos olhos humanos a indescritível glória de Deus, para a fronteira que separa o mundo visível do invisível. Esta cortina torna-se imagem de toda a vida terrena de Jesus. Aqui ele está indicando de forma simbólica a trajetória de Jesus que alcançou sua perfeição terrena na cruz356. Assim como o sumo sacerdote passa pela cortina, assim Cristo também passou por ela, porque esta cortina é a sua própria carne. Portanto, todo o caminho terreno do Cristo, desde a sua encarnação, está sendo entendido como preparação do trajeto da igreja para a glória.


Notas:
352 Quanto ao termo grego parresía, cf. a exposição sobre Hb 3.6, especialmente pág 67, nota 127.

353 O “santuário”, em grego ta hágia, abrange em Hb 8.2 o templo todo, mas aqui refere-se apenas ao “Santíssimo”, porém o Santíssimo do mundo celestial, a presença imediata de Deus. Para esta interpretação também nos dirige o termo do AT “cortina”, em grego to katapétasma no v. 20.

354 O termo grego enkainízein (cf. Hb 9.18) significa “inaugurar”, “promulgar”. O apóstolo está empregando nesse versículo a expressão ten eísodon enkainízein, “descerrar o acesso”.

355 A palavra grega prósphatos ocorre somente aqui no NT.

356 J. Calvino, pág 119: “O véu encobria os mistérios do Santíssimo e ao mesmo tempo servia como entrada para ele. Assim a figura escrava de Jesus encobriu na carne a glória de Deus e, não obstante, nos leva ao céu. Ninguém pode vir a Deus sem que o ser humano Cristo Jesus se tenha tornado para ele caminho e porta (1Tm 2.5).”