Estudo sobre Hebreus 10:5-7

Estudo sobre Hebreus 10:5-7

Por que os sacrifícios não redimem? O apóstolo responde com uma frase lapidar: é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados. Este é o argumento final para as reiteradas restrições à lei sacrificial e sacerdotal do AT, e, em decorrência, para toda a ordem de salvação da antiga aliança. O eixo da atuação salvadora de Deus é a remoção da culpa. Afinal, o perdão dos pecados e a consequente restauração do relacionamento original entre Deus e ser humano não é possível através do sangue de animais, mas exclusivamente por intermédio da morte do Filho de Deus, pelo sangue de Jesus.

A provisoriedade da ordem sacrificial do AT, bem como a limitação de sua vigência para o tempo da antiga aliança, não são vistas pelo apóstolo como reveladas apenas depois da vinda de Jesus a este mundo. Ele constata que o próprio AT já alude à limitação da sua própria ordem de salvação. Na palavra do salmo do AT ele vê uma indicação que proclama a entrada de Cristo no presente mundo e em nossa existência humana. É o próprio Senhor Jesus Cristo que está falando pela boca de seu servo Davi. Por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste. A ordem de salvação do AT não trouxe a perfeição, mas somente profetizou a redenção. Por isto, Cristo teve de vir, a fim de cumprir as promessas do at. O “corpo” de Cristo, sua existência terrena, que Deus lhe conferiu, torna-se a oferta sacrificial do NT, por meio da qual Deus é apaziguado346. Por meio da palavra profética do AT Deus mesmo substituiu a ordem sacrificial da antiga aliança. Por não trazerem consigo uma renovação do coração, e também por não serem oferecidos por Israel com a atitude correta do coração os sacrifícios não recebiam o agrado divino. Somente o surgimento do Messias foi capaz de trazer o verdadeiro cumprimento da vontade de Deus. Foi por isto que Cristo se tornou um humano, porque seu corpo, sua vida, haveria de tornar-se a verdadeira oferenda.


Ao que parece, o autor cita livremente a palavra do salmo, apoiando-se no texto da LXX (assim se pode explicar a inversão de algumas palavras no texto grego): “Um corpo, porém, preparaste para mim”. Os manuscritos hebraicos trazem aqui: “… contudo ouvidos cavaste para mim”. Também podemos traduzir com: “Orelhas perfuraste para mim”. Com isto, o texto talvez esteja apontando para o costume judaico, no qual se furava a orelha de um escravizado por dívida que voluntariamente permanecia no serviço de seu senhor em definitivo (Êx 21.5,6; Dt 15.16,17). O tradutor para o grego já podia perceber nisso uma alusão de que o Messias vindouro se entregaria integralmente a Deus com seu corpo e sua vida347. Outra possibilidade de explicação nos é dada no fato de que conforme entendimento hebreu “cavar” ou “perfurar” a orelha (também “tornar oco”) era considerado como uma parte da formação do corpo humano. Assim, o tradutor teria entendido o texto hebraico como pars pro toto [a parte representando o todo], como ilustração do todo por meio de uma parte do processo vital, traduzindo: “Um corpo preparaste para mim”. Este corpo, preparado por Deus, é devolvido a Deus como “sacrifício vivo”, no intuito de se render a Deus em serviço obediente348.

Cristo concretizou em sua vida aquilo que já era a vontade de Deus em relação às pessoas no AT, uma vida em plena consonância com Deus, em obediência integral à sua palavra. A existência de Jesus na terra é o cumprimento literal dessa palavra do salmo. O “livro”, literalmente o rolo do livro, que fala da vinda de Cristo, não é apenas, conforme a compreensão do NT, a lei de Moisés (Êx 24.4) ou os salmos, mas todo o AT (cf. Lc 24.27,44). No Sl 40.9 Cristo é o único que faz a vontade de Deus. Esta vontade de Deus, porém, é a redenção eterna de pessoas perdidas (Lc 19.10), o sacrifício do Sumo Sacerdote eterno para a remissão de todos os pecados (cf. 1Tm 2.4)349.


Notas:
346 L. Bender, pág 209-210: “No v. 5 encontramos o ensino da divindade de Cristo, ainda que um pouco encoberta. Na verdade temos outros textos que falam com maior clareza deste assunto, mas também aqui queremos apontar para o fato de que ele veio ao mundo e não passou a existir apenas com seu nascimento carnal. Ele estava com o Pai, e o Pai jamais existiu sem o Filho. Ele é a expressão, o reflexo, a imagem do Pai. Contudo, veio ao mundo na plenitude do tempo, e veio voluntariamente. Esta verdade também já está expressa no v. 5. Nos v. 7,9, porém, ela é mais elaborada, sendo enfatizado que esta vinda voluntária acontece para cumprir a vontade do Pai. Aquele que vem é também ao mesmo tempo o Enviado do Pai. Ele vem espontaneamente, mas com a concordância integral do Pai e incumbido por ele.”

347 Cf F. Zissler, Das Hohepriestertum Christi, pág 79: “O Espírito Santo aplica isto ao Salvador que, como aquele servo cativo, se colocou livremente no serviço de Deus, e revestido com o corpo da carne, humilhou-se em figura de escravo, a fim de tornar-se obediente ao Pai até a morte na cruz (Fp 2.7)”.

348 Assim opina também F. F. Bruce, pág 232.

349 K. F. Harttmann, pág 61: “Os sacrifícios, portanto, já naquele tempo estavam como que abolidos por este escrito sobre Cristo, e somente por causa deste escrito sobre o Filho o Pai permitiu que eles ainda perdurassem. Tudo isto, porém, torna o sacrifício de Jesus Cristo grandioso para nós. Porque já no AT o Pai viu e esperou pelo seu sacrifício, e por sua causa aceitou os outros sacrifícios. Por todos os tempos, porém, não valeu nenhum outro senão o sacrifício de Cristo. Por isto ele é chamado de Cordeiro que foi reconhecido anteriormente desde a fundação do mudo.”