Estudo sobre Hebreus 10:28-31

Estudo sobre Hebreus 10:28-31


Em Hb 3.1-6 o apóstolo havia comparado Moisés e Cristo em relação a sua incumbência e sua glória. Agora ele os contrapõe no tocante à seriedade de sua ordem legal e seu tribunal. As ordens de Deus para Israel eram irremovíveis. Quem quebrava a antiga aliança por pecado proposital tinha de morrer, sem direito a apelo365. Nenhuma comiseração injustificada podia deter o juízo de Deus. Como a glória da nova aliança excede em muito a da antiga (2Co 3.7-9), assim o castigo da nova aliança deixará para trás o castigo da antiga aliança. No v. 29 fica claro a que no fundo se refere o “pecado proposital”. Trata-se do fiel que se afasta totalmente da salvação, da oposição última e radical, da rebeldia contra o Senhor. Uma pessoa que experimentou em seu viver as maiores dádivas de Deus, seu Filho, a força do sangue de Jesus e o poder renovador do Espírito Santo em sua vida, e larga novamente tudo, desprende-se do discipulado e torna-se blasfemo e inimigo de Deus. Ao redigir suas palavras, o autor apostólico talvez tenha pensado na advertência de Jesus: “Quando, porém, o espírito imundo saiu da pessoa, vagueia por lugares áridos, procurando um lugar de sossego, mas não o encontra. Então diz: Voltarei para minha casa donde saí. E, tendo voltado, a encontra vazia, varrida e ornamentada. Então vai e leva consigo outros sete espíritos, que são piores que ele e, entrando, habita ali. E o estado posterior desse homem é pior que antes” (Mt 12.43-45)366. Calcar aos pés o Filho de Deus significa praticar algo que nem mesmo os mais ferrenhos adversários de Jesus fizeram com ele quando estava vivo367. Somos lembrados diretamente das palavras do apóstolo em Hb 6.6, em que ele adverte contra “expor o Filho de Deus à vergonha pública”. Foi isto que os sumos sacerdotes e escribas fizeram quando zombaram de Jesus, cuspiram nele, deram-lhe socos na face e mandaram açoitá-lo e executá-lo publicamente como criminoso. Apostatar de Cristo também se caracteriza pelo fato de que uma pessoa “profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado”. Quem despreza a Cristo, desdenha também do valor de seu sangue368, que é para o fiel o fundamento de sua salvação e a essência de toda a energia purificadora e renovadora que Deus conferiu à sua vida. O sangue de Cristo torna-se para o decaído um objeto de rejeição zombeteira, de desprezo sarcástico. Também este aspecto evidencia que, como em Hb 6.4-8, trata-se de uma admoestação aos que creem. Porque unicamente uma pessoa que já experimentou em sua vida a força santificadora do sangue de Cristo pode praticar este pecado. A apostasia de Cristo é ao mesmo tempo rebelião contra o Espírito Santo, que abriu nosso entendimento para a obra redentora de Jesus na cruz (cf. Zc 12.10). Desta maneira é ultrajado o Espírito da graça. A palavra grega que o apóstolo está utilizando é enhybrizo e significa “zombar”. Sua raiz é o termo grego hýbris, que caracteriza o orgulho blasfemo, a arrogância desmedida do ser humano natural, mediante a qual se rebela contra Deus.


O apóstolo deixa claro um ponto, de modo irrefutável: para o cristão não existe mais volta ao “estado pré-cristão”. Quando ele decai, torna-se opositor radical de Deus, bandeia-se decididamente para o lado do antagonista eterno do Senhor. Uma pessoa assim encaminha-se inevitavelmente para o juízo eterno de Deus. Ora, nós conhecemos aquele que disse: A mim pertence a vingança; eu retribuirei. O apóstolo experimentou em sua vida pessoal a santidade e o amor de Deus369. Contudo, conhece também a palavra de juízo de Deus a partir do AT e sabe que não perdeu sua autoridade e validade na nova aliança. Deus continua sendo o juiz, ele se reserva a última palavra. O Senhor julgará o seu povo. A declaração de que Deus julgará o seu povo, sim, justamente o seu povo (1Pe 4.17), sublinha mais uma vez que a exortação precedente é dirigida a pessoas que creem, devendo mostrar-lhes o perigo iminente. Também para a igreja de Jesus Deus continua sendo um Deus santo. Contra o julgamento de Deus não existe segurança e consolo humanos (cf. Ez 9.3-11). Horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo. Contudo, a seriedade máxima desta palavra de fato vale somente para aqueles que sucumbiram ao perigo que o apóstolo apontou. Sobre a trajetória da igreja, que através de todas as tribulações e aflições segue o seu Senhor com fidelidade e dedicação, permanece constando a palavra consoladora de Deus: “Nisto é em nós aperfeiçoado o amor, para que, no Dia do Juízo, mantenhamos confiança” (1Jo 4.17). Precisamente os próximos versículos tornam evidente para nós que nosso pensamento não deve ser dominado pelas sombras do perigo ameaçador e pela advertência contra a nossa decaída. Pelo contrário, o apóstolo mostra que o povo de Deus peregrino, a igreja que crê e aguarda, pode ir ao encontro de Jesus com alegre confiança.


Notas:
365 Isto acontecia especialmente através da blasfêmia (Lv 24.13-16), da idolatria (Dt 17.2-7), do falso profetismo (Dt 18.20) e da profanação do santuário (Ez 22.26-31), cf. O. Michel, pág 235.

366 Quanto à declaração de Mt 12.43-50, cf. F. Rienecker, Mateus, CE, Curitiba, 1999, pág 212; igualmente Adolf Schlatter, Der Evangelist Matthäus, 1959, pág 419ss: “Da magnitude do que foi recebido resulta para o receptor a responsabilidade. Porque abusar do recebido gera a culpa. – Com isto, porém, não apenas continua a velha ladainha, mas forma-se uma desgraça maior.”

367 “Calcar aos pés” constitui uma expressão de desprezo extremo; cf., em sentido literal, Is 26.6; 28.3; Mq 7.10; Ml 4.3; em sentido figurado, metafórico, Dn 8.10; Lc 21.24.

368 A expressão “considerar sem valor o sangue da aliança” não é uma repetição ocasional do pensamento da frase anterior, “calcar aos pés o Filho de Deus”. Pelo contrário, “Filho de Deus” e “sangue da aliança” estão lado a lado como duas realidades do mesmo valor. Cf O. Michel, pág 235: de acordo com a lei de Moisés um transgressor tinha de morrer com base no depoimento de duas ou três testemunhas. “Talvez isto já aponte para o v. 29, de maneira que o Filho de Deus, o sangue da aliança e o Espírito da graça se tornam acusadores e testemunhas contra o renegado.”

369 O termo grego oídamen, “conhecemos, sabemos” ocorre também em 1Jo 3.2,14; 5.15,18,19,20 como expressão de experiência pessoal da salvação.