Abismo — Enciclopédia da Bíblia Online

ABISMO

O termo abismo designa, nas Escrituras, a região profunda, aquática ou subterrânea, que representa o limite inferior da criação e, ao mesmo tempo, a esfera do oculto e do incontrolável sob a soberania de Deus. No hebraico bíblico, a palavra correspondente é tĕhôm, cujo sentido literal é “profundeza” ou “grande massa de águas”, enquanto no grego da Septuaginta e do Novo Testamento aparece como ábyssos, “profundidade sem fundo”, “abismo insondável”. Em Gênesis 1:2, tĕhôm descreve as águas primevas cobertas de trevas sobre as quais o rûaḥ ʾĕlōhîm — o sopro ou vento de Deus — paira, não como poder rival, mas como elemento desordenado que aguarda a delimitação divina. A criação, nesse contexto, não surge de uma luta contra forças caóticas autônomas, mas do ato soberano de separar, nomear e pôr limites: “repreendidas as águas, fugiram; ao som do teu trovão, bateram em retirada” (Salmos 104:7).

Ao longo do Antigo Testamento, tĕhôm conserva esse duplo valor — físico e simbólico — das “profundezas” que sustentam, cercam e ameaçam o mundo habitado. O termo descreve tanto o reservatório subterrâneo das águas (Gênesis 7:11; Provérbios 8:27–29) quanto a imagem poética do perigo extremo (Jonas 2:6; Salmos 69:2). Os profetas e salmistas reinterpretam o tĕhôm como teatro da vitória de YHWH sobre o caos: “dividiste o mar pela tua força, esmagaste as cabeças do Leviatã nas águas” (Salmos 74:13–14). Assim, o abismo, que no imaginário do Antigo Oriente Próximo era associado ao caos pré-cósmico ou a divindades marinhas, é reconfigurado pela teologia israelita como parte da criação submetida à palavra e ao governo de Deus.

No Novo Testamento, o grego ábyssos herda esse campo semântico e o expande para o domínio espiritual e escatológico. Em Lucas 8:31, os espíritos impuros suplicam a Jesus que não os envie “para o abismo”, identificando-o como lugar de confinamento demoníaco; em Romanos 10:7, Paulo emprega o termo para designar o domínio dos mortos (“Quem descerá ao abismo?”); e, no Apocalipse, ábyssos torna-se topônimo técnico para a prisão de Satanás e de seus agentes (Apocalipse 9:1–2; 20:1–3). O “poço do abismo” é o eixo de acesso entre o mundo terreno e as profundezas espirituais, controlado por chave e selo que apenas o poder celestial pode abrir ou fechar. No clímax da narrativa apocalíptica, o “mar” — símbolo do caos e do mal potencial — desaparece por completo: “e o mar já não existia” (Apocalipse 21:1), marcando o triunfo definitivo da ordem criadora sobre toda possibilidade de desordem.

O abismo bíblico, portanto, não é o domínio de uma divindade rival nem o inferno em sentido moral, mas a metáfora abrangente das forças pré-formais, físicas ou espirituais, que permanecem sob controle divino. Ele delimita o horizonte inferior da criação e reaparece, do Gênesis ao Apocalipse, como cenário de fronteira entre a ordem e o caos, entre o mundo visível e o invisível, entre o provisório confinamento do mal e sua erradicação final. A teologia bíblica do abismo articula-se, assim, em três níveis: cosmológico, como as profundezas fundantes e limitadas do mundo; antropológico, como imagem da distância entre a criatura e o Criador; e escatológico, como espaço transitório de aprisionamento e de juízo, destinado a desaparecer na nova criação.

Significado de Abismo na Bíblia
Pintura conhecida como o Mapa do Inferno, ou O Abismo do Inferno, criada por Sandro Botticelli por volta de 1480. Essa obra é uma ilustração inspirada na “Divina Comédia” de Dante Alighieri, especificamente na primeira parte, “Inferno”.

I. Terminologia ampliada e escopo

O termo “abismo” na Bíblia, abyssos no original, designa, no grego do período helenístico e do Novo Testamento, uma profundidade sem fundo, insondável, associada ao domínio caótico das águas primordiais e, em sentido teológico, a um espaço de confinamento temporário de poderes hostis a Deus; a tradição latina verte abyssos por abyssus, e as traduções em português oscilam entre “abismo” e “poço do abismo”, ao passo que versões inglesas clássicas alternam “as profundezas” e “poço sem fundo/poço do abismo”, distinções que derivam da equivalência veterotestamentária entre abyssos (LXX) e o hebraico tĕhôm (as “profundezas” primordiais), sem confundir abyssos com Sheol/Hádēs (o domínio geral dos mortos) nem com o “lago de fogo” (destino final do mal). A literatura crítica destaca que a LXX traduz sistematicamente tĕhôm por abyssos em passagens-chave como Gênesis 1:2, orientando a leitura cosmológica de “profundeza primeva” que Deus limita e ordena, e não o “abismo” como lugar de punição última; nessa linha, estudos sobre Gênesis 1:2 mostram que tĕhôm denota o “oceano primevo” sujeito à soberania do Criador, e que o grego abyssos preserva esse campo semântico sem pressupor uma ontologia mítica de caos absoluto (OURO, The Earth of Genesis 1:2: Abiotic or Chaotic?, 1999, pp. 39-53).

No Antigo Testamento, a semântica de tĕhôm estrutura a cosmogonia bíblica ao lado de imagens de separação, limites e contenção: em Gênesis 1:2, as trevas recobrem a superfície das águas e o sopro divino paira sobre elas; no dilúvio, “as fontes do grande tĕhôm” são abertas e depois novamente contidas (Gênesis 7:11; Gênesis 8:2), e, no canto do êxodo, o “coração do mar” engole os opressores (Êxodo 15:5). Os Salmos e os Profetas exploram tanto o uso literal — o domínio aquoso profundo sujeito ao comando divino (Salmos 33; Salmos 104; Isaías 51:9–10) — quanto o metafórico — o “abismo” como experiência de angústia (Salmos 42; Salmos 130), sempre sob a gramática do Deus que estabelece limites ao caos e o submete a seu governo. Estudos intertextuais e histórico-religiosos observam que essa linguagem dialoga com o antigo Oriente Próximo (a “grande água” e o combate ao caos), mas ressaltam o traço distintivo da Bíblia: a tĕhôm não é uma deidade antagônica; é criatura delimitada pelo decreto do Criador.

No Novo Testamento, abyssos ocorre nove vezes e consolida dois eixos semânticos complementares. Primeiro, o abyssos como “prisão” ou “lugar de detenção provisória” de espíritos malignos: em Lucas 8:31 os demônios suplicam para não serem enviados ao abyssos, o que supõe tanto o reconhecimento da autoridade messiânica quanto a expectativa de confinamento antes do juízo. Pesquisas recentes sobre o episódio dos gerasenos discutem como a escolha de abyssos em Lucas, em contraste com termos afins em relatos paralelos, acentua a dimensão apocalíptica do domínio que Cristo subjuga (ELDER, Of Porcine and Polluted Spirits, 2016, pp. 430–46)

Segundo, o abyssos como “profundeza” contraposta aos céus na retórica soteriológica paulina: em Romanos 10:7, Paulo adapta Deuteronômio 30 ao proclamar que não há necessidade de “descer ao abismo” para “trazer Cristo dentre os mortos”, porque a justiça da fé se oferece pela palavra próxima; estudos exegéticos mostram que a substituição paulina de “mar” por “abismo” reconfigura o par acima/abaixo para referir-se, cristologicamente, à morte e ressurreição de Cristo, reforçando a acessibilidade do evangelho (HEIL, Christ, the Termination of the Law (Romans 9:30-10:8), 2001, pp. 484–498)

Em Apocalipse, abyssos designa o local de onde emergem agentes de juízo e para onde são recolhidos poderes demoníacos, sempre sob controle divino e em chave provisória. No toque da quinta trombeta, abre-se o “poço do abismo” (phrear tēs abyssou) e dele saem seres descritos como “gafanhotos” com rei chamado Abaddōn/Apollyōn (“Destruidor”), imagem que a tradição interpreta como desvelamento do caráter demoníaco do poder opressor (Apocalipse 9:1–11). Em Apocalipse 11:7 e Apocalipse 17:8, a “besta” “sobe do abismo”, sinalizando que sua ação histórica procede daquele domínio que Deus permite e limita; em Apocalipse 20:1–3, 7, o próprio Satanás é preso no abismo por “mil anos” e, findo o período, liberado por breve tempo antes do juízo final. A pesquisa histórica e literária tem correlacionado essas cenas aos motivos veterotestamentários do mar/abismo e aos arquétipos simbólicos de monstros do caos, sem com isso diluir a particularidade joanina: o abismo é instância de contenção, não de consumação; o destino final é o “lago de fogo” (WALLACE, Leviathan and the Beast in Revelation, 1948, pp. 61–68).

Esses desenvolvimentos do Novo Testamento não rompem com a tradição hebraica, mas a levam a uma configuração escatológica cristã: o abyssos continua a não ser o Sheol/Hádēs (domínio geral dos mortos), nem o destino final do mal; é o “entre-lugar” de detenção sob chave divina, do qual agentes são liberados e ao qual são reencarcerados conforme o drama do juízo avança (Lucas 8:31; Apocalipse 9; 11; 17; 20). Abordagens canônicas recuperam o fio que vai do tĕhôm de Gênesis — “profundeza” ordenada e limitada — ao abyssos de Apocalipse — “poço” que se abre e fecha ao comando de Deus —, e muitos autores, articulando estudos de Gênesis 1 com a simbologia apocalíptica, assinalam a continuidade de tema e a teleologia do “mal contido até o fim”.

A documentação acadêmica enfatiza, por fim, que o abyssos apocalíptico herda da cosmologia bíblica o estatuto de profundidade sujeita, e não de antideus: a relação entre tĕhôm, monstros do caos e abyssos é funcionalmente subordinada à soberania do Criador, motivo que reaparece na iconografia da “besta que sobe do abismo” e na leitura histórica de sua derrota. Estudos clássicos e recentes — do debate sobre chaoskampf à recepção apocalíptica — costuram essa continuidade entre “profundezas” e “abismo”, ao mesmo tempo em que distinguem o “poço do abismo” (prisão provisória) do “lago de fogo” (juízo final), distinções decisivas para a exegese de Romanos 10 e de Apocalipse 9; 11; 17; 20.

II. Terminologia e escopo

A designação bíblica do “abismo” se desdobra em campos semânticos distintos no hebraico, no grego e no latim, mas com um eixo comum: a ideia de uma profundeza intransponível, associada ora às águas primordiais e subterrâneas da cosmovisão antiga, ora a um espaço de contenção para forças espirituais hostis. No hebraico bíblico, o termo nuclear é tĕhôm, “a profundeza” ou “o abismo”, palavra que em Gênesis descreve a massa aquosa primordial sobre a qual paira o sopro divino e que permanece como reservatório cósmico nas “águas debaixo da terra” (BIETENHARD, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2013, v. 1, pp. 1021–1022). Em traduções gregas antigas essa noção é vertida pelo grego abyssos, e a tradição latina estabiliza a forma abyssus, com a expressão técnica puteus abyssi, “poço do abismo”, em contextos apocalípticos. A literatura patrística e medieval manteve a distinção entre o abismo como depósito das águas e o abismo como cárcere das potências demoníacas, distinção já nítida nas Escrituras canônicas.

No hebraico, tĕhôm nomeia as águas abismais do início e sua continuidade nos lençóis que circundam e sustentam o mundo criado. A cosmovisão subjacente supõe uma grande massa hídrica sob a terra firme e “as águas debaixo da terra”, imagem que estrutura mandamentos e metáforas, como a proibição de imagens “do que está nas águas embaixo da terra” dos Decálogos em Êxodo e Deuteronômio, e as bênçãos “das profundezas que jazem abaixo” prometidas aos patriarcas. A tradução grega antiga, a Septuaginta, verte tĕhôm quase invariavelmente por abyssos, e de modo coerente não emprega abyssos para “Sheol”, o mundo dos mortos, preservando campos semânticos distintos. As bênçãos “do abismo” que alimentam a terra, bem como a fundação do mundo “sobre os mares” e “sobre os rios”, emergem do mesmo imaginário de águas confinadas por decreto divino.

Outros vocábulos hebraicos dialogam com tĕhôm sem o substituírem. O termo meṣûlâ descreve a profundeza aquática concreta, como na oração de Jonas, “lançaste-me nas profundezas, no coração dos mares” (Jonas 2:3), e maʿămāqîm exprime a profundeza existencial de onde o fiel clama, como no Cântico das Subidas (“Das profundezas clamo a ti, Senhor” [Salmos 130:1]), campo semântico que, na Septuaginta, pode ser traduzido por termos do universo de abyssos sem perder a nuance metafórica de aflição profunda. A tradição exegética judaica e cristã percebeu nesse vocabulário um leque que vai do espaço físico das águas ao símbolo de angústia e morte, como quando se fala em ser trazido “outra vez das profundezas da terra” após “muitas e duras tribulações”.

No grego bíblico, abyssos funciona primeiramente como equivalente de tĕhôm na Septuaginta, ocorrendo algumas dezenas de vezes, inclusive em Gênesis 1:2, e nunca como tradução de Sheol, o que reforça a separação entre a “profundeza” aquática/cósmica e o “lugar dos mortos”. Esse valor cosmológico convive, no Novo Testamento, com um uso específico: abyssos é o “abismo” como lugar de confinamento dos demônios, uma prisão provisória distinta do destino final de punição. Em Lucas 8:31, os demônios suplicam para não serem enviados “ao abismo”, definição que alinha o termo com a esfera de detenção das potências malignas. Em Apocalipse 9:1–2, aparece a expressão técnica to phrear tēs abyssou, “o poço do abismo”, com chave que o abre e fecha; o grego explicita a imagem do “poço” (phrear) ligado ao “abismo”, marcando um acesso controlado ao cárcere subterrâneo. Essa nuance se mantém nas passagens sobre a “besta” que “sobe do abismo” e no aprisionamento de Satanás “no abismo” por mil anos, em contraste com o “lago de fogo”, que representa a punição última.

O termo grego báthos (“profundidade”) pertence a outro campo semântico e não deve ser confundido com abyssos. Em Romanos 11:33, báthos qualifica a “profundidade das riquezas, da sabedoria e do conhecimento de Deus”, um uso doxológico e metafórico que difere do abismo enquanto locus cósmico ou penitenciário. A distinção lexical e teológica entre abyssos e báthos é clara nos léxicos e no contexto paulino.

Na tradição latina, a Vulgata fixou abyssus para o hebraico tĕhôm e o grego abyssos, e cristalizou fórmulas que o latim cristão perpetuou, como puteus abyssi em Apocalipse 9. Em Lucas 8:31, a Vulgata registra abyssum, e em Romanos 10:7 pergunta “Quis descendet in abyssum?”, correspondendo às opções gregas e preservando a distinção entre “abismo” e outros termos do além.

A comparação entre versões modernas evidencia escolhas terminológicas que confirmam e, por vezes, explicam essas distinções. Em Lucas 8:31, NVI, NASB e KJV: a NIV e NASB vertem “Abismo”, enquanto a KJV usa “as profundezas”, solução que associa o pedido dos demônios à profundeza-prisão, mas com a linguagem tradicional da “profundeza”. Em Romanos 10:7, NIV alterna para “the deep”, NASB mantém “o abismo”, e a KJV novamente prefere “as profundezas”, enquanto a CEV clarifica parafrasticamente a ideia de domínio dos mortos. Em Apocalipse 9:1–2, a KJV consagrou “the bottomless pit” (vertido em português por “poço do abismo”, porém literalmente significa “poço sem fundo” também aceita pela tradução de Cambridge, e usada para contrastar melhor com as demais traduções) enquanto NIV e NASB optam por “shaft of the Abyss” (lit.: “poço do abismo”), refletindo o grego phrear (“poço/shafta”) + abyssos.

As versões portuguesas acompanham a especialização. Em Lucas 8:31, ACF registra “abismo”, assim como a ARA, a NVI e a NVT; a BJ verte com o mesmo termo, e a antiga NTLH preserva “abismo”, explicando por vezes com equivalentes dinâmicos conforme o contexto. Em Apocalipse 9:1–2, ACF estabiliza “poço do abismo”, a NVI e a ARA igualmente usam “poço do abismo”, e a tradição católica em português (Ave-Maria/Jerusalém) também assim traz. Em Romanos 10:7, ACF, NVI, NVT e Bíblia de Jerusalém registram “abismo”, mantendo a intertextualidade com Deuteronômio 30 e a leitura paulina da descida “ao abismo” como metáfora do domínio da morte.

A comparação sinótica reforça o retrato. Marcos 5:10 registra o pedido para não serem expulsos “para fora da região”, sem empregar o termo “abismo”, enquanto Lucas 8:31 explicita “abismo”, sugerindo que a tradição lucana interpretou a súplica dos espíritos à luz da categoria do cárcere espiritual. A convergência entre “não nos tires desta região” e “não nos envies ao abismo” articula a territorialidade dos poderes impuros com o medo do confinamento.

O léxico grego confirma os contornos. Abyssos na LXX cobre o domínio de tĕhôm e seus correlatos, contando ocorrências desde Gênesis 1:2; no Apocalipse, a expressão técnica “o poço do abismo” é textual e constante nas principais edições gregas, sustentando a tradução “poço do Abismo” nas versões modernas. Já báthos aparece em contextos de “profundidade” literal ou metafórica que nada têm a ver com a categoria penitenciária do abyssos.

A terminologia bíblica, tĕhôm é o “abismo” primordial e cósmico; abyssos herda essa função na LXX e, no Novo Testamento, nomeia principalmente o cárcere dos demônios; báthos designa “profundidade” em chave metafórica; e abyssus, na Vulgata, estabiliza a tradição latina e teológica posterior. As principais versões inglesas e portuguesas mantêm essa rede, variando entre “as profundezas”, “Abismo” e “poço do abismo” em inglês e entre “abismo” e “poço do abismo” em português, escolhas que correspondem de perto às formas e contextos originais.

Para aprofundamento filológico e histórico, estudos acadêmicos recentes sobre tĕhôm exploram sua circulação do Antigo Oriente Próximo à Bíblia hebraica e sua recepção na literatura judaica e cristã, confirmando a centralidade desse termo para a semântica bíblica do “abismo” e para a leitura teológica de Gênesis 1:2 e de Apocalipse 9 (RODIS, The Depths of Tehom, 2020).

III. Estrutura fraseológica e sintaxe

A locução hebraica ʿal penê em Gênesis 1:2 designa posição “sobre a superfície de”, com pənê (“face/superfície”) no estado construto e a preposição ʿal indicando contacto ou extensão acima de uma área. O próprio versículo exibe a construção duplicada: ḥōšek ʿal pənê tĕhôm (“trevas sobre a superfície do abismo”) e rûaḥ ʾĕlōhîm meraḥefet ʿal pənê hammāyim (“o sopro/vento de Deus pairava sobre a superfície das águas”). O texto hebraico padrão confirma ambas as ocorrências: weḥōšek ʿal pənê tĕhôm ... ʿal pənê hammāyim (Gênesis 1:2), bem visíveis em edições interlineares e de análise morfológica. A compreensão da sintaxe encontra sustentação exegética detalhada, que analisa ḥōšek e a locução ʿal pənê antes de tratar de tĕhôm, defendendo o valor espacial (“sobre a superfície”) e não mitológico da construção. A tradição grega (LXX) verteu ʿal pənê por epanō, conservando o valor locativo: “skotos epanō tēs abyssou ... pneuma Theou epephereto epanō tou hydatos”, o que confirma a leitura espacial e a associação direta de abyssos ao hebraico tĕhôm. (As grandes versões em português convergem nessa direção: a Bíblia de Jerusalém verte “as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas”, preservando a noção de “cobrir” e “pairar” como ações sobre a superfície.)

No Apocalipse, dois encadeamentos fraseológicos do grego neotestamentário são decisivos para a semântica de abyssos. O primeiro é ek tēs abyssou com anabainein, explicitando origem e movimento de emergência. Em Apocalipse 11:7, hē thērion anabainon ek tēs abyssou marca a “besta que sobe do abismo” como agente que emerge daquele domínio. Em Apocalipse 17:8, a fórmula reaparece com valor futurizado, mellei anabainein ek tēs abyssou, reforçando a procedência abissal da entidade. O segundo encadeamento é phrear tēs abyssou (Apocalipse 9), que figura o “poço/poço-eixo do abismo” como acesso e egressão: ēneōixen to phrear tēs abyssou; kai anebē kapnos ek tou phreatos (“abriu o poço do abismo; e subiu fumaça do poço”). O valor técnico de phrear como “poço/shaft” sustenta a imagem de um conduto que liga a região de baixo ao mundo habitado, uma espécie de “boca” por onde forças aprisionadas saem mediante concessão de chave e abertura. Estudos recentes detalham a leitura de Apocalipse 9 como uma abertura controlada do “eixo do Abismo”, com a fumaça e os “gafanhotos” como efeitos e agentes de juízo que emergem precisamente “de dentro” (ek) desse domínio (ROZEK, The Eschatological Enemies of the Church, 2020, pp. 8-20).

A comparação ipsis litteris entre versões confirma a estabilidade desses dois nós sintáticos. Em Apocalipse 9:1, a NIV traz “a chave para o poço do Abismo”; a NASB e a KJV preferem “a chave para o poço sem fundo”, enquanto a CEV verte “a chave para o túnel que leva ao poço profundo”, explicitando o valor de phrear como passagem/conduto. Em português, a ACF lê “foi-lhe dada a chave do poço do abismo”, a NVI registra “a chave do poço do Abismo”, a NTLH fala em “a chave do abismo”, e a tradução Matos Soares conserva “o poço do abismo”; a equivalência semântica entre “poço do abismo/shaft of the Abyss” reforça a imagem do acesso vertical. Ainda no campo das versões, Apocalipse 11:7 verte ek tēs abyssou com perfeita congruência: NVI, “a besta que vem do Abismo”; NVT, “a besta que vem do abismo”; e, em inglês, NIV, “a besta que surge do Abismo”, mantendo o valor dinâmico de anabainein.

A topografia mítica e a “geografia espiritual” do Apocalipse articulam-se, assim, por imagens de “fontes/reservatórios” e “poço do Abismo”. A abertura do phrear ek tēs abyssou (Apocalipse 9:1–2) é acompanhada pela ascensão de kapnos “como fumaça de uma grande fornalha”, obscurecendo sol e ar, um quadro que pressupõe um depósito inferior de forças e matéria “abissal” cuja liberação, ao tempo devido, atinge a esfera humana. Pesquisas acadêmicas em língua portuguesa tratam essa imagética como parte de uma cosmografia apocalíptica coerente, na qual “poço” e “chave” indicam soberania do céu sobre o acesso ao domínio subterráneo, e na qual as “saídas” (anabainein ek) realizam o juízo divino no tempo estabelecido.

No horizonte paulino, a semântica de bathos em Romanos 11:33 funciona como paralelo teológico à “insondabilidade” do abismo: bathos, atestado nos léxicos clássicos com o sentido básico de “profundidade” e, por extensão, de grandeza inacessível, sustenta a exclamação doxológica “Ō bathos ploutou kai sophias kai gnōseōs Theou” (“Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus”). Em português NVI, lê-se: “Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos!”, enquanto a ACF registra “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!”. O texto grego confirma o emprego de bathos como núcleo metafórico da “inacessibilidade” dos caminhos divinos, em paralelismo expressivo com a linguagem abissal do Apocalipse, sem confusão semântica entre os campos, mas com clara convergência imagética na ideia de “profundidade não-sondável”. A documentação léxica corrobora o valor de bathos como “profundidade/abismo” em sentido literal e metafórico, reforçando a propriedade do paralelismo teológico.

A tradição exegética atualiza o mapeamento dessa “geografia espiritual”: abyssos nomeia o domínio de aprisionamento e procedência de agentes demoníacos (Lucas 8:31; Apocalipse 9; 20:1–3), e o Apocalipse recorre sistematicamente aos marcadores de origem (ek) e de movimento de egressão (anabainein) para encenar o trânsito controlado entre os “reservatórios” inferiores e a esfera humana — sempre mediante chave concedida, abertura do phrear e liberação temporária sob a soberania divina.

IV. Abismo na cosmogonia bíblica

O relato inaugural de Gênesis apresenta o tĕhôm como o “profundo” aquoso sobre cuja superfície havia trevas, enquanto o rûaḥ ʾĕlōhîm “pairava” em movimento vital sobre as águas. A estrutura de Gênesis 1:2 consiste em três orações circunstanciais que descrevem o estado inicial do mundo antes do primeiro fiat criador: “a terra era tōhû wābōhû”, “trevas sobre a face do tĕhôm” e “a rûaḥ ʾĕlōhîm pairava sobre as águas”; a ordem sujeito-verbo e a sintaxe excluem a leitura “tornou-se”, reforçando que se trata de descrição, não de relato de ruína anterior. A antiga versão grega verte tōhû wābōhû por “invisível e inacabado” e traduz tĕhôm por abyssos, preservando a ideia de profundidade aquosa. Essa leitura, consolidada por análise linguística e textual, evita projetar no versículo um cenário de combate caótico (OURO, The Earth of Genesis 1:2: Abiotic or Chaotic?, 1998, pp. 259-276).

O sentido de tĕhôm em Gênesis 1:2 não deriva de personificação mítica. Estudos de filologia hebraica e comparação semítica mostram que tĕhôm é substantivo comum para “profundezas” aquosas, cognato de termos semíticos do Noroeste e do acadiano, sem status de deidade. Em vez de eco direto de Tiamat, a palavra designa a massa líquida primordial sobre a qual o Deus criador impõe ordem; a ligação direta com a deusa babilônica é rejeitada por análises que revisam a hipótese do chaoskampf em Gênesis 1. Referências

REFERÊNCIAS

Há enorme respaldo sólido, e crescente, para ler tĕhôm (“o abismo”) em Gênesis 1 como a massa aquosa primordial, impessoal, sobre a qual Deus impõe ordem, sem eco obrigatório da deusa babilônica Tiamat. A linha mais influente é a de David T. Tsumura: linguisticamente, tĕhôm é cognata do semítico comum (ugarítico thm etc.), não um empréstimo teofórico; e, literariamente, Gênesis 1 não encena combate divino, mas organização soberana das águas. Veja a defesa programática em seu livro e artigos, que reavaliam a hipótese do chaoskampf e concluem pela ausência do motivo combativo no relato sacerdotal. (TSUMURA, Creation and Destruction, 2005; idem, “The Chaoskampf Myth in the Biblical Tradition”, JAOS 140.4, 2020).

O argumento filológico contra a derivação direta de tĕhômTiamat é antigo e bem específico: a forma hebraica não comporta o feminino teofórico esperado, e o acádio tiʾāmtum/tāmtum é, nas ocorrências ordinárias, simplesmente “mar/oceano”. Alexander Heidel já notara a inviabilidade morfológica dessa etimologia; análises posteriores repetem o ponto e mostram que, se houvesse empréstimo, esperar-se-ia algo como teʾam(a), não tĕhôm. (HEIDEL, The Babylonian Genesis, 1951; OURO, “The Earth of Genesis 1:2: Abiotic or Chaotic? Part II”, 1999; TSUMURA, The Earth and the Waters in Genesis 1 and 2, 1989).

Do ponto de vista literário-teológico, leituras que comparam Gênesis ao Enūma eliš reconhecem afinidades de imagética aquática, mas sublinham a “desmitologização” do quadro: não há duelo com um monstro-mar; há separações, nomeações e colocações de limites — sinais de governo, não de guerra. John Walton resume a revisão recente (a partir justamente de Tsumura): o texto “não contém qualquer indício de luta” com tĕhôm; a ênfase é na ordenação funcional da realidade. (WALTON, Creation in Genesis 1:1–2:3 and the Ancient Near East, pp. 48–63).

Mark S. Smith sistematiza isso no âmbito sacerdotal: Gênesis 1 conhece (e até reverte) modelos de conflito divino presentes noutros textos bíblicos, mas “opta decididamente por outra direção”; tĕhôm pertence ao léxico oeste-semítico comum (cf. ugarítico) e funciona aqui como “oceano/abismo” não personificado, parte do cosmos que o Criador delimita. (SMITH, The Priestly Vision of Genesis 1, 2010).

Mesmo estudos clássicos sobre o chaoskampf — como a monografia de John Day, que demonstra a presença do motivo em salmos e profetas — reconhecem que o combate está ausente do prólogo de Gênesis. Em outras palavras: há dragões e mar insurgente na poesia teofânica; há apenas águas a serem organizadas no relato sacerdotal. (DAY, God’s Conflict with the Dragon and the Sea, 1985/2020).

Entre as leituras que consolidaram essa direção, vale lembrar ainda Cassuto, pioneiro em rejeitar o vínculo direto Tiamattĕhôm e em ler o “abismo” como termo comum e impessoal sob a soberania criadora. Estudo amplo sobre “caos não criado” chega a conclusões convergentes: o caos aquático bíblico não é deidade derrotada, mas matéria sob comando. (CASSUTO, A Commentary on the Book of Genesis, Part 1, 1961; WATSON, Chaos Uncreated, 2005).

A ação criadora subsequente é descrita como imposição de limites e separações: o firmamento separa “águas de cima” e “águas de baixo”, os mares são reunidos e nomeados, e a terra seca emerge, compondo um cosmos habitável. Essa organização por fronteiras torna-se tema sapiente e poético: a Sabedoria “fixa limite ao mar para que as águas não ultrapassem seu mandato” e o discurso divino em Jó fala do mar encerrado por “portas” com o decreto “até aqui virás”. Salmos celebram que as águas foram contidas e não cobrirão novamente a terra. A literatura bíblica interpreta, assim, o tĕhôm como realidade física e simbólica cuja potência é domada por decreto divino, não como rival do Criador.

A distinção entre tĕhôm e o mundo dos mortos é nítida. No Antigo Testamento grego, abyssos traduz quase sempre tĕhôm, ao passo que Sheol é vertido por Hades; a tradição da Septuaginta não confunde “as profundezas” aquosas com a morada dos mortos. Estudos lexicais confirmam que abyssos é usado primariamente do mar profundo, e só figuradamente pode se aproximar de regiões inferiores; mesmo nesses casos, não substitui Sheol. A cosmogonia bíblica, portanto, não identifica tĕhôm com o além, mas com o domínio líquido sujeito à voz criadora.

A frase “o rûaḥ ʾĕlōhîm pairava” (Gênesis 1:2c) descreve movimento intencional e vivificante. O particípio mĕraḥefet ocorre de modo análogo em Deuteronômio 32:11, onde a imagem é a da águia a vibrar sobre os filhotes, metáfora que sustenta o valor de “pairar” ou “vibrar”, e não de repouso estático. A discussão sobre rûaḥ (“vento”, “sopro”, “espírito”) reconhece a polissemia do termo, mas, no contexto, a tradição exegética majoritária entende presença ativa de Deus iniciando a ordem do cosmos. A própria recepção grega antiga (pneûma theoû) e latina (spiritus Dei) consagrou essa leitura, em harmonia com o paralelismo veterotestamentário entre o sopro divino e o poder criador (OURO, The Earth of Genesis 1:2: Abiotic or Chaotic?, 2000, pp. 59-67).

O vocabulário bíblico correlato expande o campo semântico do tĕhôm para além de Gênesis 1. As “fontes do grande tĕhôm” se abrem no dilúvio (Gênesis 7:11; 8:2), enfatizando que os reservatórios do abismo estão sob mando divino; Provérbios 3:20 associa a sabedoria do Senhor ao romper das “profundezas”, ecoando a teologia da criação como contenção e distribuição ordenada das águas. A mesma teologia aparece quando os textos celebram que Deus cavou leitos, fixou limites costeiros e “repreendeu” as águas, mantendo-as dentro de barreiras cósmicas. (BOUMA, A Scientific Commentary on Genesis 7:11, 2013)

O diálogo da Bíblia Hebraica com o Antigo Oriente Próximo se dá por apropriação crítica, não por reprodução de uma batalha cosmogônica. Poemas ugaríticos e mesopotâmicos falam de divindades ligadas ao mar e a monstros aquáticos, mas, na teologia de Israel, o Deus único cria sem oposição; imagens de combate aparecem em textos poéticos e proféticos para exaltar o senhorio de YHWH sobre mar e monstros, não para descrever um duelo primordial no início de Gênesis. Avaliações de fôlego sobre o tema mostram, de um lado, a força de tradições comparativas sobre o “combate com o mar” e, de outro, correlações filológicas que defendem que Gênesis 1 não pressupõe chaoskampf, e sim um quadro de ordenação soberana das águas (DAY, Gods conflit with the dragon and the sea, 1985).

A tradição textual e tradutória confirma esse entendimento. Versões como NIV, NASB e KJV trazem “as profundezas” para tĕhôm e “estava pairando” para mĕraḥefet, registrando “sem forma e vazia” para tōhû wābōhû; a CEV verte a cena com linguagem dinâmica e acessível. Em português, ACF, NVI, NAA e a Bíblia de Jerusalém trazem “trevas cobriam a face do abismo” e “o Espírito de Deus pairava”, enquanto a NVT preferiu “as águas profundas”, opção semântica que explicita a referência aquosa do termo; a tradução católica de Matos Soares também conserva “abismo”. Essas escolhas, convergentes entre si, espelham a leitura segundo a qual o tĕhôm é o domínio líquido primordial sob comando do Criador e não o mundo dos mortos.

A. O abismo e o dilúvio (Gênesis 7-8)

No relato do dilúvio, o tĕhôm comparece como agente de juízo tornado manifesto na fórmula “romperam-se todas as fontes do grande abismo” e “abriram-se as comportas dos céus”, cuja simetria literária reaparece quando se diz que essas mesmas fontes foram fechadas e as comportas contidas, enquanto um vento divino fez as águas retrocederem (Gênesis 7:11; Gênesis 8:1–2). A versão grega antiga verte “fontes do abismo” (pêgai tês abyssou) e “cataratas/cachoeiras do céu”, sinalizando, de um lado, o reservatório inferior e, de outro, o superior, isto é, a conjunção das “águas de baixo” com as “águas de cima” no auge do cataclismo e a subsequente reversão dessa conjunção no processo de restauração, o que reforça a leitura cosmológica do evento como “des-criação” e “re-criação” sob decreto soberano (Gênesis 7:11 LXX). O corte narrativo em Gênesis 8:1 (“Deus se lembrou de Noé... e Deus fez passar um vento sobre a terra”) funciona como eixo estrutural do conjunto e retoma a associação veterotestamentária entre rûaḥ e o governo de Deus sobre as águas, conexão já proposta para a relação entre Gênesis 1:2 e Gênesis 8:1 na tradição exegética moderna e sublinhada em estudos clássicos sobre “águas muitas” e tĕhôm; a leitura destaca que o mesmo sopro que paira no prólogo da criação é o que faz refluir as águas no prólogo da nova ordem pós-diluviana (Gênesis 8:1; MAY, Some Cosmic Connotations of Mayim Rabbîm, ‘Many Waters.’ 1955, pp. 9–21). Na análise histórico-literária de Gênesis 1–11, a abertura das “fontes do grande abismo” e das “janelas do céu” configura a suspensão temporária das fronteiras que, no princípio, contiveram e separaram as águas, de modo que o dilúvio dramatiza a reversão da ordenação primordial e, em seguida, sua restauração; esse movimento, longamente estudado na crítica, ilumina o papel do tĕhôm como reserva de potência aquosa jamais autônoma, sempre submetida ao comando divino (Gênesis 7:11; 8:2; CLINES, Theme in Genesis 1-11, 1976, pp. 483–507).

Na memória cultual do êxodo, o “coração do mar” é o teatro simbólico dessa mesma soberania. O Cântico do Mar atribui a vitória a um gesto respiratório divino: “ao sopro das tuas narinas as águas se ajuntaram; as torrentes se ergueram como um montão; as profundezas se coalharam no coração do mar”, linguagem de compressão e solidificação que troca a física ordinária pela retórica da realeza de YHWH sobre as massas líquidas (Êxodo 15:8). A poética do hino explora imagens superpostas — sopro, paredões de água, tĕhōmôt coalhadas — para delinear uma teofania bélica em que o mar não é antagonista divino, mas arena e instrumento de juízo; leituras que confrontam o hebraico do cântico com a prosa de Êxodo 14 enfatizam essa estilização e rejeitam harmonizações fisicalistas do milagre, mantendo o foco na intenção teológica do poema (WOLTERS, Not Rescue but Destruction: Rereading Exodus 15:8, 1990, pp. 223–40). Estudos de métrica e composição do cântico detalham como a menção às “profundezas” no “coração do mar” concentra o clímax da derrota egípcia numa imagem de colapso aquático invertido — as águas, antes barreira estável para Israel, tornam-se tumba fluida para o exército do faraó — reforçando a pertença do mar à obediência da palavra divina (JOHN, The Song of the Sea: Ex. XV, 1957, pp. 371–80).

A lírica de Israel amplia essa gramática ao dispersar o tĕhôm pelo saltério, ora literal, ora figurado, mas sempre sob o signo do domínio divino. Quando se canta que o Senhor “ajunta as águas do mar como num montão” e “põe os abismos em depósitos”, mantém-se viva a memória da contenção primordial, e as imagens de “depósitos” e “reservas” transportam ao culto a cosmologia da separação e do limite (Salmos 33:7). “Profundeza chama a profundeza ao fragor das tuas cachoeiras” condensa, em lamento, o vocabulário do abismo: a experiência de aflição do suplicante é mapeada com o léxico das águas profundas, enquanto ressoa, ao fundo, a tradição da ação divina por meio do sopro e do comando sobre as águas; a literatura exegética nota, nesse ponto, tanto a intertextualidade com Gênesis quanto o valor metafórico do tĕhôm como imagem da angústia (Salmos 42:7; MAY, ibid., 1955, pp. 9–21). Em “Trarás outra vez da profundeza da terra”, a “profundeza” torna-se metáfora de abatimento extremo, de descida até os confins da existência, e a esperança salvífica é descrita como subida desde esse “abismo” existencial, movimento que dialoga com a semântica de mĕṣûlâ e com a imagética de resgate de um quase sepultamento (Salmos 71:20).

No grande salmo de rememoração do êxodo, “as águas te viram... a profundeza tremeu”, e o caminho de Deus “foi pelo mar”, com pegadas não visíveis; o mar personificado entra em pânico diante da presença do Soberano, numa montagem que reencena, como louvor, a travessia como triunfo cósmico e histórico de YHWH (Salmos 77:16–20; TAMFÚ, The Water Imagery in the Psalms: An Inner-Biblical Interpretation, 2014, pp. 107-112). Análises literárias recentes sublinham o emprego deliberado de metáforas hidráulicas e meteorológicas — águas, nuvens, trovões, setas relampejantes — para produzir uma teofania que desarma o orgulho imperial e reconduz o povo, “como rebanho”, pelo corredor líquido aberto e fechado ao comando divino, mantendo a tensão entre memória do evento e sua estetização poética (BARMASH, Through The Kaleidoscope of Literary Imagery in Êxodo 15, 2017, pp. 145–72). Quando se volta ao início do saltério cósmico, “cobriste a terra com o abismo como com um manto” e “ao teu brado fugiram as águas”, fica claro que o poeta lê a história do mundo com lentes de criação: o tĕhôm como vestimenta inicial, a ordem que fixa limites, a garantia de que as águas não tornarão a cobrir a terra, tudo em linguagem que aproxima o cântico sacerdotal de Gênesis (Salmos 104:6–9; ANDESON, Creation and Ecology, 1983, pp. 14–30). A mesma teologia aparece quando “repreendeu o Mar Vermelho, e este secou” e “os fez passar pelos abismos como por um deserto”, de modo que o plural tĕhōmôt designa as calhas por onde a comitiva passa, enquanto os inimigos, ao contrário, são tragados; a memória litúrgica funde, assim, cosmogonia e história de salvação (Salmos 106:9). Os que “descem ao mar em navios” experienciam a oscilação que sobe “aos céus” e desce “aos abismos”, figuração existencial do poder do mar sob a providência divina; nessa geografia espiritual, o tĕhôm é a medida da vulnerabilidade humana e do socorro invocado (Salmos 107:23–26). O refrão cosmológico reaparece quando se afirma que o Senhor “faz tudo o que quer nos céus e na terra, nos mares e em todas as profundezas”, e quando se convoca: “Louvai o Senhor... todos os abismos”, convocação que inclui o tĕhôm no coro da criação (Salmos 135:6; Salmos 148:7).

Esse conjunto bíblico ancora escolhas tradutórias estáveis nas principais versões. Em português, “fontes/fontes do grande abismo” e “comportas/janelas dos céus” em Gênesis 7:11, assim como “as profundezas foram congeladas no coração do mar” em Êxodo 15:8, refletem a metáfora hidráulica do texto hebraico, enquanto em português “fontes do grande abismo” e “comportas/janelas dos céus” em Gênesis 7:11, e “as profundezas se coalharam no coração do mar” em Êxodo 15:8, preservam a mesma poética de contenção e reversão das águas no ato salvífico.

A partir desse conjunto, “o abismo e o dilúvio” e “o abismo no êxodo e nos salmos” convergem numa afirmação teológica única: não há divindade abissal em disputa com o Criador; há o tĕhôm como profundeza criada e limitada, ora aberta por decreto para juízo, ora comprimida e reordenada pelo mesmo decreto, ora cantada como metáfora das agruras e dos livramentos do povo, e sempre recolocada, por fim, no coro da criação que louva Aquele que fixa limites e traça caminhos “no coração do mar” (Gênesis 7:11; Êxodo 15:8; Salmos 33:7; Salmos 77:16–20; Salmos 104:6–9; Salmos 148:7).

B. Profetas e sabedoria: imagens do abismo

No contexto profético-poético, o tĕhôm emerge como cenário da soberania divina e como instrumento de juízos históricos, ao mesmo tempo em que, na literatura sapiencial, figura o fundo cosmogônico sobre o qual a ordem e o saber divinos se inscrevem. Em Isaías, o apelo “Desperta, desperta, braço do Senhor” convoca a memória de feitos primevos: “Não foste tu que secaste o mar, as águas do grande abismo; que transformaste as profundezas do mar em caminho para que passassem os remidos?” (Isaías 51:9–10). A justaposição de rāhāb e tannîn com a secagem do mar condensa a poética antiga do domínio sobre as águas em chave monoteísta e exodal, sem teogonia: o abismo não é rival, é matéria subjugada; análises literárias e histórico-religiosas observam que essa retórica tanto pode evocar um conflito mítico tradicional quanto o subverte em louvor ao único Deus criador e salvador, inclusive quando a versão grega antiga de Isaías 51:9–11 atenua alusões mitopoéticas explícitas em favor do tema do êxodo (Isaías 51:9–10; FRIESEN, Extirpating the Dragon: Divine Combat and the Minus of LXX Isaiah 51:9b, 2013, pp. 334-351).

A releitura exodal reaparece na lamentação de Isaías: “Quem os conduziu pelos abismos, como cavalo pelo deserto, sem tropeçar?” (Isaías 63:13). A travessia torna-se argumento teológico de que o mesmo Deus que, no princípio, mediu e conteve as águas guia o seu povo pelo “fundo” marinho como por planície; estudos de Deutero-Isaías notam a recorrência do motivo do dilúvio e da travessia como moldura de renovação, em que o tĕhôm é lembrado como domínio em que a providência opera sem oposição (GUNN, Deutero-Isaiah and the Flood, 1975, pp. 493–508)

Em Ezequiel, o tĕhôm ganha relevo no oráculo contra Tiro: “Trarei contra ti o abismo, e as grandes águas te cobrirão” (Ezequiel 26:19). A imagem conjuga o léxico do mar profundo e o destino de queda para o mundo dos mortos, compondo um quadro em que o “erguer do abismo” encena o reverso da criação: a cidade, símbolo de orgulho marítimo, é tragada e some sob as águas. A crítica tem observado, aqui, conotações de linguagem mítica aplicadas à política internacional, sem que se abandone o horizonte monoteísta da punição histórica (CROUCH, Ezekiel’s Oracles against the Nations in Light of a Royal Ideology of Warfare, 2011, pp. 473–92).

O mesmo profeta usa o tĕhôm como matriz de prosperidade e de luto na alegoria do grande cedro (Assíria/Egito): “As águas o fizeram crescer; o abismo o exaltou, com seus rios ao redor de seus renques” (Ezequiel 31:4), até que, derrubado, “no dia em que desceu ao Sheol, cobri o abismo sobre ele, contive os seus rios, e as muitas águas foram retidas” (Ezequiel 31:15). A narrativa interpreta o tĕhôm como reservatório que alimenta impérios e, por decreto, se fecha e lamenta; pesquisas recentes sobre a evolução semântica de tĕhôm exploram precisamente esse duplo valor de fonte de bênção e agente de juízo, destacando Ezequiel 31 como caso exemplar (LU, The Deification and Demonization of Tĕhôm: From Deity to Deep, 2018, pp. 97-105).

Amós apresenta a visão do “juízo por fogo” que “devorou o grande abismo” (Amós 7:4), saturando a cena com a imagética cananeia do relâmpago/storm-fire como arma divina e, ao mesmo tempo, nacionalizando-a como ameaça a Israel. Leitura histórico-religiosa clássica interpreta a imagem como julgamento cósmico que seca até os reservatórios subterrâneos; análises poéticas do livro registram a função dessa visão na sequência de intercessões e recuos do castigo (MILLER, Fire in the Mythology of Canaan and Israel, 1965, pp. 256–61; MOO, The Sea That Is No More Rev 21:1 and the Function of Sea Imagery in the Apocalypse of John, 2009, pp. 148–67)

O cântico-teofania de Habacuque descreve a natureza em convulsão diante da marcha divina: “Os montes te viram e tremeram... o abismo fez ouvir a sua voz, levantou as suas mãos ao alto” (Habacuque 3:10; cf. Habacuque 3:8, 15). A personificação do tĕhôm integra um quadro de teofania guerreira em que rios, mar e profundezas obedecem ao guerreiro divino, e a tradição comparada tem explorado aqui memórias e transposições do conflito contra o mar e o monstro no Antigo Oriente Próximo, agora postos a serviço da salvação do povo. Estudos de forma, métrica e intertextualidade confirmam a unidade do hino e sua tessitura de motivos aquáticos, sem reduzir o poema a mito; a perícope é geralmente demarcada em oração, teofania, hino e confiança, com o tĕhôm articulando o clímax teofânico (IRWIN, The Psalm of Habakkuk, 1942, pp. 10–40; PRINSLOO, Gert T.M. Reading Habakkuk 3 in the light of ancient unit delimiters, 2013, pp. 1-11)

A literatura sapiencial toma o tĕhôm como fundamento cosmogônico para exaltar a sabedoria criadora. Em Provérbios, “pela sua ciência foram rompidas as profundezas” (Provérbios 3:20) e “quando firmou as nuvens acima, quando reforçou as fontes do abismo... quando traçou um círculo sobre a superfície do abismo, eu estava lá” (Provérbios 8:24–29). O poema de Provérbios 8 põe a ḥokmāh ao lado de Deus no ato de traçar limites, firmar o firmamento e domesticar as fontes do tĕhôm, num paralelismo transparente com Gênesis; exegeses filológicas discutem a tradução de termos e imagens (“traçar um círculo sobre a superfície do abismo”, “fortalecer as fontes do abismo”) e confirmam a leitura cosmogônica desse léxico (DAHOOD, Proverbs 8,22-31: Translation and Commentary, 1968, pp. 512–521).

Em Jó, o tĕhôm funciona como termo de comparação para a inatingibilidade da sabedoria e como prova retórica do governo divino sobre o caos aquático. “O abismo diz: Não está em mim” (Jó 28:14) cristaliza o contraste entre profundidade física e sabedoria verdadeira; nos discursos divinos, o Criador interroga o patriarca: “Entraste até as fontes do mar? Ou passeaste pelos recessos do abismo?” (Jó 38:16) e “Quem encerrou o mar com portas... e disse: até aqui virás?” (Jó 38:8–11), recolhendo o léxico de contenção e limite; na descrição do leviatã, “faz ferver o abismo como uma panela” (Jó 41:31 [MT 41:23]) e “deixa atrás de si um rastro luminoso; o abismo parece ter cabelo branco” (Jó 41:32 [MT 41:24]), imagens em que a profundeza não ameaça a divindade, mas exibe a diferença de escala entre o humano e o governo do mundo. Leituras literárias de Jó destacam, nesse conjunto, a pedagogia das perguntas divinas: o domínio sobre as águas e sobre as “profundezas” impõe a Jó a reverência diante de uma ordem que transcende sua queixa, sem resposta simplista (TSEVAT, MATITIAHU. The Meaning of the Book of Job, 1966, pp. 73–106; FOX, God’s Answer and Job’s Response, 2013, pp. 1–23).

A coerência interna dessas obras e a rede comparativa com a Antiguidade próxima permitem delinear um retrato consistente. Isaías convoca a memória da secagem do mar e da subjugação dos monstros para sustentar o novo êxodo; Ezequiel usa o tĕhôm como palco de ascensão e queda imperiais, ora nutrindo, ora tragando; Amós dramatiza um juízo que consome até as reservas subterrâneas; Habacuque canta a teofania em que o tĕhôm “levanta as mãos” ao guerreiro divino; Provérbios fixa a sabedoria na hora em que se traça o círculo sobre a face do abismo; Jó, por fim, abre as portas do abismo apenas para lembrar que a sabedoria não reside na profundidade material e que só o Criador conhece seus recessos. A literatura especializada, de estudos clássicos sobre “muitas águas” e teofanias a investigações recentes sobre a trajetória semântica de tĕhôm, converge em afirmar que o abismo, na Bíblia, é realidade criada e limitada, convertida em linguagem teológica de criação, juízo e salvação, sem autonomia divina.

C. Leviatã, Raabe e Tânnin

O imaginário bíblico recorre a três figuras que orbitam a temática do abismo primordial: liwyātān (Leviatã), rahab e tannîn. Em termos poéticos e teológicos, esses nomes condensam a ameaça do caos aquático e, ao mesmo tempo, afirmam a soberania criadora e histórica de YHWH sobre o “profundo” (tĕhôm) e seus poderes. Em paralelos do Antigo Oriente Próximo, a luta divina contra o mar ou contra um serpente-dragão multiprimevo estrutura mitos cosmogônicos; na Bíblia Hebraica, tal linguagem é reempregada de modo polissêmico: ora como memória de criação, ora como releitura histórica (êxodo, queda de impérios), ora como antecipação escatológica. A tradição exegética moderna cunhou para esse padrão a categoria “combate mítico”, que mostra continuidade e reelaboração do motivo desde os salmos e profetas até o apocalipticismo judaico e cristão, inclusive o Apocalipse. Essa continuidade e reelaboração foram estudadas de forma clássica por COLLINS (1985), que demonstra como o Apocalipse retoma e transforma o esquema antigo do deus que vence o monstro marinho para narrar a vitória final de Deus sobre o Dragão e seus agentes, no horizonte da esperança escatológica cristã.

No pano de fundo cananeu-ugarítico, Lôtan (Ugarítico ltn), o serpente de sete cabeças associado ao mar (Yamm), é derrotado por Baal em textos do Ciclo de Baal, com fórmulas que ecoam “serpente fujidia” e “serpente tortuosa” e a imagem da criatura “de sete cabeças”; essas fórmulas ajudam a perceber o intertexto de Isaías 27, que anuncia o juízo de YHWH sobre Leviatã, “serpente veloz” e “serpente tortuosa”, e o “dragão que está no mar”. A documentação crítica do Ciclo de Baal (KTU/CAT 1.3–1.6) e seus comentários por SMITH e PITARD (2009), são referências para a leitura comparativa, assim como estudos filológicos que discutem o conjunto ltn / tnn / Yamm / Nahar e seu trânsito literário.

Dentro do cânon, Leviatã estrutura passagens-chave. Jó 41 oferece o retrato mais extenso da criatura, com hiperboles de invulnerabilidade e soberania simbólica (“rei sobre todos os filhos de orgulho”), que funcionam para enaltecer a transcendência do Criador; Jó 26, por sua vez, liga o domínio divino sobre o mar à derrota de rahab e ao trespassar da “serpente fugidia”, alternando nomes do mesmo campo simbólico. Leituras literárias recentes exploram “violência de monstros” em Jó para mostrar como a poesia debate símbolos de poder e ordem, sem supor uma zoologia mítica literal, mas sem esvaziar o vigor do imaginário combatente (WOLFERS, The Lord’s Second Speech in the Book of Job, 1990, pp. 474–499).

Os salmos de realeza retomam o motivo cosmogônico como louvor: em Salmos 74, YHWH “esmaga as cabeças de Leviatã”, partilha-as “por alimento ao povo do deserto”, e em Salmos 89, “esmiúça rahab como cadáver”, subordinando o mar revolto à sua voz. Discussões recentes reavaliam a leitura “criacional” de Salmos 74,12–14 e ressaltam que, mesmo quando não se descreve “criação” em sentido técnico, a linguagem de combate afirma que a criação é um ato de ordenação do caos cuja eficácia persiste na história de Israel e nas suas crises (TSUMURA, The Creation Motif in Psalm 74:12–14? A Reappraisal of the Theory of the Dragon Myth, 2015, pp. 547–555)

Nos profetas, Isaías entrelaça a derrota de rahab e tannîn com memórias do êxodo e promessas de novo êxodo. Isaías 51 convoca o “Braço de YHWH” que “cortou rahab em pedaços” e “traspassou o dragão”, e Isaías 27 anuncia que, “naquele dia”, YHWH punirá Leviatã; a sobreposição entre monstro do caos e potências históricas é parte do jogo poético: rahab pode nomear o Egito (Isaías 30; Salmos 87) e tannîn pode simbolizar impérios ou seus reis, sem que se dissolva o horizonte cosmogônico maior. Estudos clássicos sobre as “muitas águas” como conotação cósmica na poesia hebraica e pesquisas sobre a técnica da Septuaginta de Isaías, que às vezes atenuam alusões míticas, ajudam a perceber as variações de recepção antiga dessas imagens (NILSEN, The Creation of Darkness and Evil (Isaiah 45:6C-7), 2008, pp. 5–25).

O termo hebraico tannîn (“monstro”, “dragão”, “serpente”) alterna sentidos entre cobra venenosa e monstro marinho, sendo correlacionado literariamente com Leviatã e rahab. Esse campo lexical é bem mapeado por dicionários e por estudos que recolhem as passagens onde tannîn figura como criatura do caos e ameaça simbólica, ao mesmo tempo em que Gênesis 1 enumera os “grandes tannînîm” entre as criaturas do quinto dia, reafirmando que toda a fauna, inclusive a que povoa o “profundo”, é criação e está sob o decreto do Criador (JANZEN, Another Look at God’s Watch over Job (7:12), 1989, pp. 109–14).

A conexão com o “abismo” se dá, na Bíblia Hebraica, pelo campo de tĕhôm (“profundo”): um léxico que comparece desde Gênesis 1:2 — “trevas sobre a face do tĕhôm” — até relatos do dilúvio (“fontes do tĕhôm grande”), cânticos e oráculos onde o tĕhôm personificado treme perante YHWH. Ocorre de forma muito ampla nas três coleções (Torá, Profetas e Escritos), com exemplos vistosos em Gênesis 7:11; 8:2; Êxodo 15:5, 8; Deuteronômio 8:7; 33:13; Jó 28:14; 38:16; Salmos 36:6; 42:7; 71:20; 77:16; 104:6; 106:9; 107:26; Provérbios 3:20; 8:24.27–28; Isaías 51:10; Ezequiel 26:19; 31:4, 15; Amós 7:4; Jonas 2:5; Habacuque 3:10. A bibliografia recente sobre tĕhôm discute sua personificação poética, sua eventual deidade em contextos orientais e sua “transformação” na teologia de Israel, que separa e limita as águas por decreto, sem lhes conceder estatuto divino.

Na tradução grega antiga, tĕhôm é normalmente verte-se por abyssos, e as imagens de Leviatã e tannîn convergem em drakōn ou kētos, com nuances e escolhas de tradutores que às vezes “desmitologizam” o matiz combativo. O estudo técnico sobre a “Velha Grega de Isaías” mostra casos em que o tradutor não evidencia plena consciência de rahab como criatura mítica, o que explica por que, em algumas passagens, a Septuaginta dilui alusões a monstros cosmogônicos. Essa história de tradução ajuda a entender a recepção posterior desses textos (SCHWEITZER, STEVEN JAMES, Mythology in the Old Greek of Isaiah: The Technique of Translation, 2004, pp. 214–30)

Na literatura do Segundo Templo, a geografia moral do cosmos amplia o vocabulário do “abismo” como lugar de contenção. Em 1 Enoque, os “Vigilantes” rebelados são acorrentados em “vales” e “abismos” de trevas, prisões que Uriel revela a Enoque; o itinerário do vidente percorre regiões “entre o céu e o abismo”, destinadas a punição até o “tempo do cumprimento”. Esses cenários, estudados por NEWSOM e VENTER (1980), fixam a noção de cárceres abissais para espíritos transgressores e astros rebeldes, antecipando temas que reaparecem na tradição cristã (NEWSOM, VENTER, The Development of 1 Enoch 6-19: Cosmology and Judgment, 1980, pp. 310–29)

Os Manuscritos do Mar Morto contêm liturgias apotropaicas que pressupõem um mundo povoado por “espíritos” sob o domínio de Belial, contra os quais o maskîl recita hinos para “aterrorizar” demônios, bastardos e seres noturnos; embora o termo “abismo” não funcione ali como topônimo técnico em todas as passagens, a cosmologia subentendida é a de um cosmos estratificado, com forças hostis associadas às profundezas e ao deserto, mantidas à distância por louvor e bênção ritual. Estudos de reconstrução e análise sequencial de 4Q510–511 confirmam a moldura litúrgica de proteção e o papel de Belial como líder de espíritos malignos na Regra da Comunidade e no Rolo da Guerra (ANGEL, Reading the Songs of the Sage in Sequence, 2017, pp. 185-211).

No Novo Testamento, abyssos aparece nove vezes e retoma explicitamente a função de prisão ou fonte de seres hostis: em Lucas 8:31, os demônios suplicam para não serem enviados ao abismo; em Romanos 10:7, o termo designa o “profundo” em paralelismo com o “alto”, compondo uma antítese vertical; no Apocalipse, a expressão “poço do abismo” se abre para libertar a praga dos gafanhotos e seu rei, e a Besta “sobe do abismo”; por fim, um anjo desce com a “chave do abismo” e acorrenta o Dragão por mil anos. A bibliografia recente realça a centralidade desse motivo na teologia de João, que combina tradições veterotestamentárias e judaicas tardias para afirmar que até as profundezas infernais estão sob a chave soberana do Deus do Cordeiro.

Essa moldura ilumina o estatuto simbólico (poético) versus ontologia mítica das figuras. A linguagem bíblica não exige a crença num zoológico de monstros supramundanos como pressuposto literalista; pelo contrário, a poética do combate serve para dizer que a criação e a história são atos contínuos de ordenação e contenção do caos por parte de YHWH. Ao mesmo tempo, a tradição apocalíptica dramatiza o “abismo” como espaço real do imaginário religioso, onde o juízo de Deus já começou a confinar poderes rebeldes, em direção ao desfecho escatológico em que o Dragão é definitivamente derrotado. Clássicos como o verbete “Leviatã” em Dictionary of Deities and Demons in the Bible (p. 511) e estudos que reconstroem a migração dos motivos ugaríticos para a poesia e profecia israelita são fundamentais para situar a riqueza desse repertório na interface Bíblia–mundo antigo; leituras recentes de Salmos 74 e 89, de Isaías 27 e 51, e de Jó 26 e 41 seguem mostrando que o “abismo” bíblico é o palco onde a ordem criacional de YHWH se afirma sobre qualquer “mar” real ou metafórico.

Por fim, a recepção cristã do motivo culmina no Apocalipse, onde o Dragão de sete cabeças reencena a dramaturgia antiga do monstro marinho para ser vencido por Miguel e, em seguida, para ser confinado e julgado; a obra de Collins (1976) permanece uma referência para ler essa reapresentação do combate mítico como proclamação da soberania divina, agora centrada no reinado do Cordeiro. O arco que vai de tĕhôm e das “cabeças” esmagadas de Leviatã até a “chave do abismo” mostra uma gramática simbólica contínua: o “profundo” não é rival divino, mas criatura contida; os monstros do caos não são ontologias paralelas, mas metáforas potentes para narrar, em poesia e apocalipse, que a criação de Deus não sucumbirá ao mar — antigo ou futuro.

V. Abismo nos Sinóticos e em Paulo

Em Lucas 8:31, os demônios que controlavam o geraseno suplicam para não serem enviados ao abyssos, termo grego que, em sua história lexical, começou como adjetivo (“sem fundo”, “insondável”) e foi substantivado para indicar uma profundeza intransponível; os léxicos antigos registram o valor de “vazio infinito” e sua aplicação tanto ao “mar profundo” quanto ao “abismo” do mundo inferior, com uso bíblico recorrente traduzindo o hebraico tĕhôm na Septuaginta (por exemplo, Gênesis 1:2), embora também possa remeter a um cárcere para seres espirituais hostis, como se depreende do Apocalipse (poço/poço de ventilação do abyssos em Apocalipse 9:1–2 e 9:11). A recepção cristã primitiva consolidou essa ambivalência: ora “o mar profundo”, ora “o abismo” como domínio inframundano e lugar de confinamento; a gramática do episódio lucano pressupõe este último, pois o pedido para não ser “mandado ao abyssos” indica a perda de agência e um retorno ao estado de cativeiro antes do tempo. A tradição textual e as traduções modernas explicitam essa nuance: a NIV verte “Abismo”, com maiúscula, fixando o valor onomástico de lugar, ao passo que versões como a NASB e a NKJV mantêm “abísmo” (sem maiúscula), enquanto a KJV preferiu “as profundezas”, preservando o paralelismo semântico com a ideia de “profundeza” aquática; em português, ARC, NVI, NVT e NTLH vertem “abismo” em Lucas 8:31, com a NVI oscilando entre “abismo” e “Abismo” conforme a convenção tipográfica adotada. Essa variação de escolha mostra como a perícope lucana articula cosmologia e demonologia: o abyssos não é aqui metáfora de angústia subjetiva, mas topônimo teológico de um espaço de reclusão pré-escatológica para poderes impuros, coerente com o imaginário apocalíptico judaico do Segundo Templo e com os usos joaninos do termo em Apocalipse 9–20. Tanto o uso léxico histórico quanto o campo semântico bíblico que aproxima abyssos do tĕhôm corroboram essa leitura, embora seja necessário distinguir cuidadosamente o abyssos do Tártaro (2 Pedro 2:4), pois a tradição neotestamentária não os trata como sinônimos. Para o quadro lexical e sua aplicação canônica, ver a documentação lexicográfica padrão do termo, inclusive o mapeamento das ocorrências e a relação Septuaginta–hebraico, e observar que Lucas 8:31 constitui o único emprego do termo nos Evangelhos, exatamente no contexto do exorcismo do geraseno, em que “não nos mandes para o abismo” delimita o alcance do poder de Jesus sobre o destino dos demônios e sua localização “antes do tempo”.

Em Romanos 10:7, Paulo retoma Deuteronômio 30 para articular a “justiça que decorre da fé” e reconfigura retoricamente o paralelismo cósmico “céu/mar” do texto mosaico. Em Deuteronômio 30:12–13, a pergunta hiperbólica “quem subirá ao céu?” e “quem passará-nos o mar?” marca a inacessibilidade ilusória da Palavra; Paulo cita e adapta a passagem, deslocando “mar” para abyssos: “Quem descerá ao abismo? (isto é, para trazer Cristo dentre os mortos)”. Essa substituição não é mero detalhe estilístico, mas um movimento hermenêutico deliberado: “céu” e “abismo” tornam-se pólos de uma geografia soteriológica em que a encarnação (“fazer descer Cristo”) e a ressurreição (“fazer subir Cristo”) já ocorreram na história de Jesus, eliminando qualquer missão impossível que o ser humano pudesse reivindicar.

Estudos sobre a intertextualidade de Romanos 10 mostram que Paulo lê Deuteronômio 30:11–14 como promessa de proximidade e eficácia da Palavra, agora identificada com o evangelho, e que a troca de “mar” por abyssos condensa a dimensão descensional-ascensional do evento pascal: descer ao abyssos equivale a ir ao domínio dos mortos, e “trazer Cristo dentre os mortos” explicita o alcance da citação. Essa leitura aparece com nitidez na análise literária e retórica de Romanos 9–11, bem como nas leituras focalizadas do microcontexto de 10:6–8, evidenciando que o abyssos em Paulo não funciona como “prisão de demônios”, mas como designação do “abaixo” em contraposição ao “acima”, o lugar da morte do qual Cristo já foi erguido, de sorte que a Palavra “está perto, na boca e no coração” para confissão e fé.

Comparando traduções, confirma-se a nuance: a NIV traduz Romanos 10:7 por “quem descerá ao abismo?”, preferindo “profundezas” e não “Abismo”, e as versões portuguesas mantêm “abismo” com glosas explícitas (“isto é, para trazer Cristo dentre os mortos”), o que explicita a leitura soteriológica do termo em Paulo. A discussão acadêmica converge nesse ponto: Paulo relê Deuteronômio 30, “aplica” e “renomeia” o segundo polo cósmico para explicitar a cristologia pascal, reforçando a impossibilidade da autossalvação e a proximidade do evangelho.

O contraste entre Lucas 8:31 e Romanos 10:7, portanto, é de função: no primeiro, abyssos é locus de custódia demoníaca evitado pelos espíritos impuros, o que pressupõe uma geografia espiritual em que autoridade e julgamento pertencem ao Filho do Altíssimo; no segundo, abyssos integra o par retórico “céu/abismo” com valor soteriológico, o “abaixo” de onde Cristo já foi trazido por Deus, utilizado como figura de impossibilidade para sublinhar a proximidade da Palavra da fé. Ambas as passagens, contudo, se ancoram na mesma rede semântica bíblica e pós-bíblica: abyssos como “profundeza” e “mundo inferior”, com raízes na tradução grega de tĕhôm e desenvolvimento apocalíptico que o associa a um poço/cárcere escatológico; esse desenvolvimento explica por que muitas traduções inglesas capitalizam “Abismo” em Lucas e por que o Apocalipse fala do “poço do abyssos”, enquanto Paulo, concentrado no argumento de 10:6–8, mantém o termo no eixo vida-morte e aproxima-o do domínio dos mortos, sem conotação carcerária. A literatura secundária recente confirma a trajetória de sentido e o uso técnico em contextos diferentes, tanto quando a perícope lucana é lida dentro do horizonte apocalíptico, quanto quando Romanos 10 é analisado como releitura cristológica de Deuteronômio 30.

Algumas observações textuais e tradutórias ajudam a situar o leitor. Primeiro, a oscilação tradutória no inglês reflete uma convenção: “Abismo” com maiúscula perfila um topos escatológico; “abismo” ou “profundezas” privilegia o traço lexical de profundeza. Em Lucas 8:31, a NIV usa “Abismo” como entidade-lugar, opção seguida por diversas versões modernas; em português, ARC, NVI e NVT estabilizam “abismo” na perícope lucana. Em Romanos 10:7, a NIV prefere “profudezas”, e as versões portuguesas mantêm “abismo”, sempre com a glosa que amarra o termo à ressurreição (“para trazer Cristo dentre os mortos”). Segundo, a recepção patrística e o uso apocalíptico no Apocalipse, com seu phrear tou abyssou (“poço/poço de ventilação do abismo”), consolidam o sentido de cárcere espiritual que ilumina Lucas 8:31; já a retórica paulina de Romanos 10:6–8 é inseparável da leitura de Deuteronômio 30:11–14 como promessa de proximidade, internalização e acessibilidade da Palavra, agora identificada com o anúncio do senhorio e da ressurreição de Cristo. Essas duas linhas exegéticas caminham em paralelo sem se contradizerem, porque descrevem funções distintas do mesmo signo dentro de gêneros e contextos literários diferentes.

A documentação exegética especializada aprofunda esses pontos. Sobre a perícope lucana e sua imagética do “cárcere” pré-escatológico para espíritos impuros, estudos sobre o ciclo de exorcismos e a narrativa do geraseno ressaltam que o pedido para evitar o abyssos é um indicador de que a autoridade de Jesus inclui poder de destinar e confinar espíritos, convergindo com o retrato apocalíptico, enquanto a cena com a manada de porcos dramatiza a transferência e o juízo antecipado; leituras apocalípticas recentes do episódio situam-no nessa chave de “mimesis apocalíptica”. Sobre Romanos 10, a análise literária e teológica de 10:6–8 mostra que Paulo seleciona e reordena Deuteronômio 30 para construir um duplo paralelismo descensional/ascensional, vinculando-o à encarnação e à ressurreição, e que a escolha de abyssos por “mar” torna explícita a realidade do domínio da morte diante da qual a ação de Deus em Cristo já ocorreu, razão pela qual a confissão e a fé são a resposta adequada à Palavra próxima (MOSCICKE, Goat for Yahweh, Goat for Azazel, 2021).

VI. Abismo no Apocalipse

No Apocalipse, o substantivo grego abyssos designa um domínio profundo, fechado e controlado por Deus, de onde procedem poderes hostis e para onde são encarcerados agentes do mal. O termo, frequente na Septuaginta para verter tĕhôm de Gênesis 1:2, forma o pano de fundo cosmológico do livro: trevas sobre a “face da abyssos” na criação, que a literatura apocalíptica judaica subsequentemente interpreta como espaço liminar de caos e prisão espiritual (Gênesis 1:2 LXX: “skotos epanō tēs abyssou”; cf. edição e transliteração em NETS; ver também o texto grego em LXX online).

O vocábulo ábyssos ocorre nove vezes no Novo Testamento, sendo sete no Apocalipse: 9:1, 2; 11; 11:7; 17:8; 20:1; 20:3, além de Lucas 8:31 e Romanos 10:7. Léxicos e contagens de ocorrências confirmam esse quadro, bem como a nuance de “região subterrânea/prisão” no uso neotestamentário.

A quinta trombeta (Apocalipse 9:1–2) apresenta a imagem-chave: “O quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que havia caído do céu sobre a terra. À estrela foi dada a chave do poço do Abismo. Quando ela abriu o Abismo, subiu dele fumaça como a de uma gigantesca fornalha; o sol e o céu escureceram com a fumaça que saía do Abismo” (NVI). Em versões portuguesas tradicionais lê-se “a chave do poço do abismo” (ACF) e “ela abriu o poço do abismo; e subiu um fumo do poço, como fumo de uma grande fornalha” (Matos Soares). Em registro católico contemporâneo, “Ela abriu o poço do Abismo, e dali subiu uma fumaça, como a fumaça de uma grande fornalha” (Bíblia de Jerusalém). As principais versões inglesas convergem na estrutura: “a chave para o poço do Abismo” (NIV), “a chave do Abismo” (NASB), contrastando com o tradicional “a chave do poço sem fundo” (KJV) e com o mais parafrástico “a chave para o túnel que leva ao poço profundo” (CEV). A diferença traduz “phreár tēs abýssou” como “poço/poço eixuto/shafts” versus o idiomatismo “bottomless pit”, sem alterar a função narrativa: abrir-se a comunicação entre o mundo humano e a morada dos demônios.

A cena avança em Apocalipse 9:11 com a chefia demoníaca “sobre eles, o anjo do Abismo, cujo nome, em hebraico, é Abadom, e, em grego, Apoliom” (ARA/NAA; cf. NVI e ARC; Veja: ABADOM). A dupla denominação associa a realeza das “gafanhotos” a uma personificação de ruína e destruição, ecoando tradições judaicas de anjos caídos aprisionados em profundezas até o juízo, como em 1 Enoque 10 e 21, onde Azazel e os “astros” transgressores são acorrentados em cavidades “até o abismo” e aguardam o dia do julgamento. Essa matriz intertextual ilumina o retrato do Abismo como prisão provisória e fonte de flagelos, ao mesmo tempo.

O Abismo é, ademais, o ponto de origem da “besta” que guerreia contra as testemunhas (Apocalipse 11:7) e da própria besta escatológica (Apocalipse 17:8). Nas versões portuguesas correntes, lê-se que ela “sobe do Abismo” para “fazer guerra” e “ir à perdição” (NVI/ARA), ao passo que as versões inglesas mantêm “sobe do abismo” (NASB/NIV). A ascensão a partir da ábyssos intensifica a dimensão política-teológica do mal: poderes imperiais são figurados como emanações de um reservatório de caos controlado por Deus, mas momentaneamente liberado. Estudos de história das religiões e de mitologia de combate mostram como o Apocalipse articula mitos de caos e monstro marinho com uma leitura cristológica da soberania divina, enquadrando o Abismo como espaço-tempo do “último suspiro” do mal antes do juízo (POPLE, Messiaen: Quatuor Pour La Fin Du Temps, 1998, pp. 40-46).

Em Apocalipse 20:1–3, a ábyssos reaparece como destino do próprio “dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás”. Nas traduções portuguesas: “Vi descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo, e uma grande cadeia na sua mão... E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele” (ACF); “Então, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave do abismo e uma grande corrente... lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele” (ARA); “Vi, então, descer do céu um anjo que tinha na mão a chave do abismo e uma grande algema... Atirou-o no abismo, que fechou e selou por cima” (Ave Maria). Em inglês, as escolhas lexicais espelham 9,1: “a chave para o Abismo” (NIV), “a chave do abismo” (NASB), “a chave do poço sem fundo” (KJV), e na CEV “a chave do abismo... o jogou no abismo”. O sentido jurídico é nítido: a ábyssos funciona como cárcere milenar, com chave, selo e tempo determinado, em coerência com o motivo veterotestamentário e enóquico da reclusão até o juízo.

A lógica do “controle por chave” sublinha que o Abismo não rivaliza com Deus; é esfera submetida, cuja abertura/fechamento se dá por concessão soberana. A estrela “que havia caído” recebe a chave (Apocalipse 9,1–2), os flagelos emergem, mas somente “até onde lhes foi permitido” (9:3–5, cf. NVI/NTLH), e, por fim, um anjo “com a chave do abismo” sela o dragão (20:1–3). Comentários acadêmicos destacam essa estrutura como teologia de limite: o mal procede da ábyssos, mas seus atos são contidos por delimitações temporais e por autoridade delegada. A tradição crítica recente também ressalta a tessitura mitopoética do livro, que integra cosmologia do caos (tĕhôm/ábyssos) e a mitologia de combate em chave cristológica.

O campo semântico traduzido em português por “abismo”, “poço do abismo” e, em inglês, por “abyss” (abismo), “shaft of the Abyss” (poço do Abismo) e “bottomless pit” (poço sem fundo) reflete escolhas editoriais. ACF, ARC e Matos Soares mantêm “poço do abismo” e descrevem literalmente a abertura do “poço” com fumaça que escurece sol e ar (Apocalipse 9,1–2). NVI e NVT preferem padronizar “Abismo” com inicial maiúscula como tecnônimo de lugar (“poço do Abismo”, “abriu o Abismo”), prática aproximada do NIV e do NASB. KJV preserva a locução tradicional “bottomless pit” (consagrado por “poço do abismo”), cuja força idiomática inspirou leituras devocionais, mas que não acrescenta valor semântico além de “ábyssos”. A CEV parafraseia “a chave para o túnel que leva ao poço profundo”, clarificando a imagem de “phreár” como eixo/poço. Essas escolhas, cotejadas verso a verso, mostram convergência de conteúdo e diversidade estilística.

A matriz judaica de “prisão subterrânea” é ampliada pela tradição apocalíptica do Segundo Templo. Em 1 Enoque 10,4–6, Rafael “amarr[a]” Azazel e o “lança nas trevas” até o dia do juízo; em 1 Enoque 21:6-7, Enoque vê “colunas de fogo... até o abismo” e anjos “atados por dez mil anos”, linguagem que fornece paralelos diretos às “correntes”, “trevas” e “selo” de Apocalipse 20:1-3 e aos “gafanhotos” prisioneiros liberados em 9:1-5. A crítica moderna emprega esses paralelos para explicar por que, no Apocalipse, a ábyssos é simultaneamente fonte de juízos e cárcere do Adversário.

Na recepção acadêmica, estudos recentes defendem que a ábyssos constitui eixo literário-teológico do livro: ela é o “abaixo” do qual sobem as bestas e para o qual desce o dragão, dramatizando a vitória do Cordeiro na história. Pesquisas de tradição (por exemplo, o estudo monográfico de Edward Gudeman) rastreiam o motivo no Antigo Testamento e no judaísmo do Segundo Templo para explicar seu desenvolvimento singular em João. A leitura mitocrítica destacada por COLLINS (1985) interpreta o imaginário do Abismo à luz do “mito de combate” e do caos pré-criacional, com ecos explícitos da tĕhôm/ábyssos da criação agora subordinada ao Cristo vitorioso (GUDEMAN, The Abyss in Revelation, 2021).

Comparações textuais pontuais ajudam a observar nuances. Em Apocalipse 11,7, NVI: “a besta que sobe do Abismo os atacará, derrotará e os matará”; NASB: “a besta que sobe do abismo fará guerra... e os matará”. Em Apocalipse 17,8, NVI: “A besta que você viu, era e já não é, e está para subir do Abismo e caminhadas para a destruição”; NASB: “a besta... está prestes a sair do abismo e ir para a destruição”. A literalidade do “subir do Abismo” permanece estável nas principais tradições, enquanto o peso teológico recai sobre a cadência “sobe... e vai à perdição”, sinalizando que o efluxo do Abismo é, paradoxalmente, a rota que conduz ao juízo final.

O fechamento do arco está em Apocalipse 20,7: após o milênio, “será solto por um pouco de tempo”. O cárcere da ábyssos não é escatologicamente definitivo; é etapa que prepara a derrota final e a eliminação do mal. Em termos narrativos, a chave, o selo e a liberação por prazo breve reiteram o princípio da permissão: a ábyssos é locus de contenção, nunca de soberania do mal. As traduções cristãs modernas e clássicas reproduzem esse quadro com variações estilísticas, mas sem divergências de sentido.

O “Abismo” no Apocalipse é o reservatório do caos e da hostilidade espiritual devidamente posto sob a autoridade do Deus criador e do Cordeiro. A estrela que abre o “poço do Abismo” sob a quinta trombeta (Apocalipse 9,1–2), o “anjo do Abismo” chamado “Abadom/Apoliom” (9,11), a “besta que sobe do Abismo” (11,7; 17,8) e a prisão milenar do dragão (20,1–3) compõem uma teologia do tempo curto do mal: ele irrompe da ábyssos para flagelar e enganar, mas é limitado por chaves, selos e tempos contados, até ser finalmente aniquilado. Essa leitura, sustentada pelo léxico, pela tradição apocalíptica judaica e pela crítica moderna, harmoniza os dados textuais com o horizonte monoteísta e cristológico do livro.

A. Traduções bíblicas do termo “abismo” no Apocalipse

No Apocalipse, a maioria das versões tende a conservar “Abismo” como nome próprio ou como topônimo teológico. A NIV escreve com inicial maiúscula e, em Apocalipse 9:1, traduz: “a chave do poço do Abismo”, preservando a imagem do “eixo/poço” que dá acesso ao domínio subterrâneo (Apocalipse 9:1). Em Apocalipse 20:1, a mesma tradução mantém a formulação: “um anjo descendo do céu, tendo a chave do Abismo e segurando em sua mão uma grande corrente”, o que sublinha a função do abismo como cárcere cósmico na perícope do milênio. A NASB é convergente: “a chave do abismo” (Revelation 9:1; 20:1), reforçando a leitura técnico-terminológica do termo. Já a KJ, fiel à sua tradição, prefere “poço das prifundezas” em passagens como Apocalipse 9:1, opção que explicita a metáfora do “poço sem fundo” e marca a história da recepção anglófona do texto. Em registro mais contemporâneo, a CEV opta por paráfrase pedagógica quando necessário; em Lucas 8,31, por exemplo, verte “deep pit” acompanhado de nota explicativa sobre o lugar de punição de espíritos, recurso que ilumina o pano de fundo conceptual em que o Apocalipse opera.

As versões portuguesas convergem notavelmente no léxico do Apocalipse. Em Apocalipse 9,1, a ACF verte: “foi-lhe dada a chave do poço do abismo”, preservando a sintaxe do genitivo e a imagética do “poço”. A NVT mantém a mesma imagem: “foi-lhe dada a chave para o poço do abismo”, e, na sequência do milênio, “a chave do abismo e uma grande corrente” (Apocalipse 9,1; 20,1–3). A Nova Tradução na Linguagem de Hoje, com vocabulário mais correntio, ainda assim conserva o sintagma: “a chave do abismo”, vinculando-o explicitamente ao aprisionamento de Satanás (Apocalipse 20,1–3). Nas edições católicas em português, tanto a Bíblia Ave-Maria quanto Matos Soares mantêm “poço do abismo” em Apocalipse 9,1 e “chave do abismo” em Apocalipse 20,1, preservando a coesão imagética e o paralelismo interno entre as cenas da quinta trombeta e do início do milênio.

Quando o Apocalipse personifica a agência hostil oriunda desse domínio, as versões igualmente mantêm a mesma toponímia. Em Apocalipse 11,7, a NIV registra: “a besta que sobe do Abismo”, articulando a proveniência da “besta” ao mesmo espaço de confinamento demoníaco que fora aberto em 9,1–2; a NVI acompanha: “a besta que vem do abismo”. Em Apocalipse 17,8, o paralelismo se repete: “sairá do Abismo” (NIV), “está para subir do abismo” (NVI), reforçando a unidade retórica do motivo em 9:1–11; 11:7; 17:8; 20,1–3. Ao mesmo tempo, traduções históricas em inglês preservam a dicção “bottomless pit” nessas mesmas passagens, o que explica a forte presença desse sintagma em comentários anglófonos clássicos.

No entorno do Apocalipse, os outros dois usos canônicos de abyssos ajudam a calibrar as decisões tradutórias. Em Lucas 8:31, a NIV verte ipsis litteris: “não os ordene para irem ao Abismo”, explicitando o lugar de confinamento de demônios, enquanto a KJV conserva “sair das profundezas”, opção que privilegia a tradição lexicográfica “deep” em inglês bíblico. Em português, a NVI mantém “abismo” e a NTLH igualmente conserva “abismo”, coadunando Lucas com o uso apocalíptico. Em Romanos 10,7, Paulo cita Deuteronômio 30 com releitura cristológica; a NIV prefere “profundezas” enquanto a NASB explicita “abismo” e a ARC/ACF verte “abismo”, o que evidencia um eixo de equivalência pragmática entre “abismo/profundezas” e o domínio dos mortos na retórica paulina.

A tradição exegética de referência sustenta a leitura do abismo como “prisão” ou “morada” intermediária de forças hostis que ainda não foram lançadas ao lago de fogo. Comentários acadêmicos de uso público descrevem o “poço do abismo” como o “cárcere penal dos demônios”, citando inclusive Lucas 8:31 como paralelo conceitual, e relacionam as saídas do abismo (9:1–11; 11:7; 17:8) com o seu caráter de origem e confinamento, em contraste com o lago de fogo, destino final de juízo (20,10.14–15). Essa leitura se beneficia ainda de estudos que recordam a presença de abyssos na Septuaginta de Gênesis 1,2, conectando a simbologia das “profundezas” à tradição bíblica das águas primordiais e à memória de caos, o que ajuda a explicar a imagética densa de Apocalipse 9, onde a abertura do “poço” libera fumaça e “gafanhotos” de caráter infernal.

A nomeação do “anjo do abismo”, ʾăḇaddôn em hebraico e Apollyōn em grego (Apocalipse 9,11), encontra nas traduções de base textual uma estabilidade notável: a maior parte das versões mantém os nomes próprios transliterados e identifica o agente como “anjo do abismo” ou “rei” sobre os que dele saem, operação visível nos painéis comparativos que reúnem KJV, NASB, NET e outras traduções reconhecidas. O dado filológico de que Apocalipse privilegia o termo abyssos para essa topografia espiritual também aparece em estudos de teologia bíblica e artigos recentes sobre o livro, inclusive em material de sociedades acadêmicas que discutem a coerência do milênio com o aprisionamento e a posterior soltura de Satanás “do abismo” (Apocalipse 20:1–3.7).

Por fim, merece registro o padrão coeso das traduções portuguesas nos textos-chave do Apocalipse: em 9,1, tanto ACF quanto NVT e edições católicas (“Bíblia Ave-Maria”, “Matos Soares”) preservam “poço do abismo”, e em 20,1–3, “a chave do abismo” e o lançamento do adversário “no abismo”, com variação apenas estilística mínima entre “algema/corrente” e ordem dos termos, o que mantém a topografia escatológica de João sem ruptura terminológica. A equivalência funcional entre “Abismo” (NIV/NASB) e “poço sem fundo” (KJV) é verificável nos mesmos contextos, especialmente em Apocalipse 9,1; 11,7; 17,8; 20,1–3.

Esta convergência tradutória nas passagens centrais do Apocalipse, lida à luz do uso lucano e paulino e da herança da Septuaginta, confirma que “abismo” não é mero sinônimo retórico de “profundezas”, mas um locus técnico do imaginário apocalíptico cristão primitivo: um espaço real no horizonte simbólico do texto, com chave, poço, tampa e selo, de onde saem agentes hostis e para onde são confinados até o juízo final.

VII. Distinções conceituais cruciais

No horizonte bíblico, abyssos não se confunde com šeʾôl/hadēs (o domínio geral dos mortos) nem com o “lago de fogo” (pena final); no Novo Testamento, o abismo funciona como prisão/intermédio para poderes hostis. O grego abyssos, atestado em autores clássicos com o sentido de “sem fundo, imensamente profundo”, é um adjetivo substantivado cuja ideia básica é de profundidade insondável, como registram os léxicos (LSJ) com a glosa “sem fundo” e afins. No grego da LXX, abyssos verte frequentemente o hebraico tĕhôm, “profundezas” ou “o Grande Abismo” aquático primordial (Gênesis 1:2; 7:11), estabelecendo uma ponte semântica entre “profundidade” e “domínio de confinamento”, ainda que a própria Septuaginta costume traduzir šeʾôl por hadēs, e não por abyssos; a literatura especializada nota a relação abyssostĕhôm, mas distingue-a de šeʾôl/hadēs (WALLACE, Leviathan and the Beast in Revelation, 1948, pp. 61–68)

A. Abyssos como prisão/intermédio.

Em Lucas 8:31, espíritos impuros “suplicavam [...] que não os mandasse para o abismo”; na NVI lê-se “que não os mandasse para o abismo”, enquanto a NIV verte “não ordená-los a entrar no Abismo”, com o mesmo valor de lugar de confinamento demoníaco. Em Romanos 10:7, Paulo emprega o termo na pergunta “Quem descerá ao abismo? (isto é, para fazer Cristo subir dentre os mortos?)”, e a NIV conserva o paralelismo, “Quem descerá ao abismo? (isto é, para trazer Cristo de volta dos mortos)”; o uso associa o abismo ao âmbito dos mortos, sem com isso igualá-lo tecnicamente a šeʾôl/hadēs. No Apocalipse, a função carcerária é explícita: “Vi descer do céu um anjo que trazia na mão a chave do abismo e uma grande corrente”, “lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele” (Apocalipse 20:1–3, NVI). A NIV registra ipsis litteris “tendo a chave do Abismo [...] Ele o jogou no Abismo, trancou-o e selou-o sobre ele.”, e as versões de controle mostram convergência: NASB “tendo a chave do abismo”, KJV “tendo a chave do poço do abismo”, CEV “carregando a chave do poço profundo”. Em português, ACF “a chave do abismo”, NTLH (BLH) “a chave do abismo” e Matos Soares “a chave do abismo”. O mesmo quadro se observa em Apocalipse 9:1–2: ACF “a chave do poço do abismo”, NASB “a chave para o poço sem fundo”, KJV “a chave para o poço do abismo”, CEV “a chave para o poço profundo”, reforçando que se trata de um espaço selável, aberto e fechado por chave. A literatura acadêmica realça que “Morte e Hades” (e não o abismo) aparecem personificados e submetidos ao Cristo (Apocalipse 1:18; 6:8), o que confirma a distinção funcional dos termos dentro do livro.

B. Šeʾôl/hadēs: o domínio geral dos mortos

Šeʾôl, no Antigo Testamento, designa o lugar para onde descem vivos e ímpios indistintamente, enquanto hadēs é o seu correlato grego; estudos de síntese mostram que nem šeʾôl nem hadēs são idênticos a abyssos. No Apocalipse, “Morte e Hades” entregam os mortos que neles havia e, então, são lançados noutro lugar, o “lago de fogo” (Apocalipse 20:13–14). Na NIV se lê que “Morte e Hades entregaram os mortos que estavam neles”, e “a Morte e o Hades foram jogados no lago de fogo”; em português (NVI) traduz “A morte e o Hades entregaram os mortos que neles havia” e, logo após, “A morte e o Hades foram lançados no lago de fogo”. A ACF, por sua vez, verte “a morte e o inferno” para hadēs, preservando, porém, a distinção subsequente do “lago de fogo”. Assim, hadēs é provisório e dá lugar ao juízo; abyssos, por sua vez, é o cárcere provisório de poderes espirituais hostis que pode ser trancado e aberto; nenhum dos dois coincide com a pena última.

C. “Lago de fogo” e “segunda morte”: pena final, distinta do abismo e de hadēs

A tradição joanina apresenta o “lago de fogo” como destino último de Satanás, da Besta e do Falso Profeta (Apocalipse 20:10), identificado como “a segunda morte” (Apocalipse 20:14–15). Em inglês (NIV), a fórmula é “o lago de enxofre ardente”/“o lago de fogo” e, em português (NVI), “lago de fogo” e “segunda morte”, marcando um estágio escatológico diferente de hadēs e do abismo. A discussão técnica recente sobre “segunda morte” corrobora essa distinção terminológica e teológica.

D. Tártaros, não o mesmo que abyssos

A única ocorrência de tártaros no Novo Testamento (2 Pedro 2:4) refere-se ao aprisionamento de anjos pecadores. A NASB anota em nota de rodapé “Tártaro Grego”, e versões portuguesas registram explicitamente “tártaro” (Almeida Século 21) ou, mais livremente, “inferno” com glossas indicando o grego. A diferença de vocábulo serve para confirmar que o Novo Testamento dispõe de termos técnicos distintos para espaços e estados punitivos intermediários, e não para confundir todos sob um único rótulo.

Em termos formais e funcionais, abyssos designa a “profundidade” que, no corpus joanino, funciona como prisão selável de agentes demoníacos e do próprio Satanás durante o milênio (Apocalipse 9:1–2; 20:1–3). Šeʾôl/hadēs, por sua vez, é o domínio geral dos mortos, o qual “entrega os mortos” e, ao final, é ele mesmo abolido quando lançado no “lago de fogo” (Apocalipse 20:13–15). O “lago de fogo”, identificado como “segunda morte”, é a pena final, qualitativamente diversa do cárcere do abismo e do caráter provisório de hadēs. A coerência tradutória translinguística confirma essas distinções: em Apocalipse 20:1, NIV “o Abismo”, NASB “o abismo”, KJV “o poço do abismo”, CEV “o poço das profundezas”; e, em português, ACF/NVI/NTLH/Matos Soares preservam “abismo”, ao passo que Apocalipse 20:14 apresenta, de modo uniforme, a separação entre “Morte e Hades” e o “lago de fogo”.

A matriz semântica abyssostĕhôm, já visível na tradição grega de Gênesis, explica por que o termo podia significar “o profundo” e, por extensão, um “abismo” metafórico de confinamento, sem colidir com šeʾôl/hadēs, termo reservado na Septuaginta à realidade do “mundo dos mortos”. O estudo clássico sobre šeʾôl/hadēs e geenna na tradição bíblica e na Septuaginta sustenta esse uso distinto e ajuda a entender por que, em Romanos 10:7, descer “ao abismo” funciona retoricamente para falar do levantar de Cristo dentre os mortos, sem redefinir hadēs.

VIII. Recepção judaica

A designação hebraica tĕhôm, que em Gênesis 1 descreve o “abismo/Profundezas”, recebeu releituras plurais na tradição judaica tardo-antiga. A literatura midráshica preserva leituras em que tĕhôm é criatura submetida e plenamente domada pelo Deus criador, em contraste com personificações politeístas do caos. Estudos recentes sobre Bereshit Rabbah (Gênesis Rabbah) mostram como os rabinos operam uma “desmitologização” pedagógica do vocábulo, integrando-o à teologia da criação e à ética da obediência, e não a um princípio cósmico rival; a coletânea de ensaios sobre Gênesis Rabbah contextualiza essa hermenêutica tardo-antiga e seu enquadramento pós-bíblico, em que tĕhôm aparece como parte da economia criacional e não como força autônoma a ser apaziguada (SIEBECK, Genesis Rabbah in Text and Context, 2016).

Em diálogo com essa linha rabínica, a memória judaica do Segundo Templo legou outra vertente que reaproxima o abismo de cárcere para seres angélicos transgressores: a tradição enoquita (amplamente retomada na recepção cristã primitiva) projeta o “abismo” como prisão escatológica, motivo literário cuja presença em Apocalipse 9 é reconhecida pela pesquisa especializada. A análise de uma tese doutoral dedicada a Apocalipse 9:1–21, depositada em repositório acadêmico brasileiro, documenta a função retórico-narrativa dessa memória de “seres celestes caídos e aprisionados”, que emerge no episódio da quinta trombeta com a abertura do “poço do abismo” e a liberação de agentes de juízo (TERRA, Quando os Espíritos Saem do Abismo, 2015, pp. 106-169).

Na recepção cristã antiga, o “poço do abismo” torna-se locus de aprisionamento demoníaco e de contenção do Dragão. Em Apocalipse 9, versões inglesas registram formulações que calibram a imagética: a NIV fala em “a chave para o Abismo... Quando ele abriu o Abismo, fumala ascendeu” (Apocalipse 9:1–2), enquanto a KJV mantém “a chave do ço do abismo... ele abriu o poço do abismo”; já a CEV verte “a chave para o túnel que leva ao poço profundo”. Em português, a tradição protestante e católica converge no léxico: a Almeida Corrigida Fiel lê “a chave do poço do abismo... E abriu o poço do abismo” (Apocalipse 9,1–2), a NVI emprega “poço do Abismo... abriu o Abismo”, e a tradução católica Matos Soares conserva “a chave do abismo”. Essas escolhas reforçam a materialidade imagética de um “poço/shaft” (gr. phrear) que dá acesso à ἄβυσσος (abyssos).

No quadro patrístico, a interpretação como cárcere de potências hostis se amplia em conexão com Apocalipse 20,1–3: a NASB registra “segurando a chave do abismo... ele o jogou no abismo e o fechou e selou sobre ele”, expressão que molda leituras antigas sobre o encadeamento do Diabo no “abismo”. Agostinho, ao comentar o milênio em A Cidade de Deus XX, reconhece a imagem do aprisionamento: o anjo “desceu do céu” e “lançou [o Diabo] no abismo”, usando-a para argumentar pela contenção do engano das nações ao longo da história até a liberação final breve. A patrística latina mais antiga, representada por Vitorino de Pettau, também articula o “abismo” com a economia do juízo e com a ação demoníaca no drama apocalíptico, numa exegese que cruza o vocabulário do “poço” e da “chave” com a dinâmica de abertura/fechamento que regula a atuação dos demônios no tempo do fim.

A prudência hermenêutica exige evitar a importação indevida de mitologias extra-bíblicas para dentro da semântica neotestamentária de abyssos. Em estudos filológico-linguísticos de referência, argumenta-se que tĕhôm não é a deusa Tiamat disfarçada, nem um princípio cósmico rival: trata-se de um substantivo comum que, no hebraico bíblico, designa as “profundezas” aquosas e, no relato da criação, aparece sob o domínio soberano do Deus de Israel; essa leitura linguística torna ilegítima a leitura do Novo Testamento como se estivesse subscrevendo um dualismo cosmoteísta. A pesquisa recente sobre a “transformação de Tĕhôm” na memória cultural de Israel reconhece, por outro lado, que certas comunidades (por exemplo, Qumran) remitem o “abismo” a um polo maléfico ou a um reservatório do caos; esse deslocamento, porém, é literário-teológico e ocorre dentro do horizonte bíblico/judaico, não por simples “importação” de mitos externos. A exegese responsável, portanto, considera a pluralidade de camadas na tradição judaica, mas lê a abyssos do Apocalipse no eixo de prisão/limite sob o juízo de Deus, e não como potência autônoma.

Essas recepções ajudam a entender como escolhas tradutórias consolidaram, já na Antiguidade cristã, a percepção do “abismo” como espaço de contenção demoníaca. Em inglês, a alternância entre “Abyss” e “bottomless pit” (Apocalipse 9; 20) produz ênfases distintas, ora cosmográficas, ora penais; em português, “poço do abismo” preserva a metáfora de acesso/egresso que já está na imagem do phrear, enquanto “abismo” sozinho em Apocalipse 20 destaca o cárcere final do Dragão. A convergência interconfessional em português — “a chave do abismo... lançou-o no abismo” (NVT; ACF; NAA) — reforça o eixo de autoridade divina sobre o espaço de confinamento e ecoa, na recepção patrística, a leitura eclesial do milênio como tempo de limitação do engano de Satanás.

Por fim, a recepção judaica rabínica do tĕhôm como criatura submissa, cotejada com a memória apocalíptica de cárcere dos anjos caídos e com a patrística que lê a abyssos como prisão e lacre do Dragão, sugere um arco contínuo: do “abismo” como elemento da criação à sua função forense no drama escatológico. Em Apocalipse 9 a imagética do “poço do abismo” estrutura a irrupção do juízo; em Apocalipse 20, o “abismo” é o lacre do engano; nas traduções, “poço do Abismo / poço sem fundo” (NIV; KJV) e “poço do abismo / chave do abismo” (ACF; NVI; NVT) fixam para leitores antigos e modernos a topografia jurídica de um cosmos sob a soberania do Cordeiro.

Perpassando a literatura rabínica preservada, duas linhas principais organizam a recepção de tĕhôm (“abismo”) no Tanakh: leituras filológicas/realistas, que descrevem tĕhôm como as massas hídrico-oceânicas primordiais e suas manifestações históricas (dilúvio, mar), e releituras midráshicas que transformam “al pĕnê tĕhôm” (“sobre a face do abismo”) em símbolo teológico e histórico (impérios, exílios) enquanto mantêm a materialidade das águas. Em Gênesis 1:2, o comentário de Rashi identifica a cena primordial como “água” recoberta por trevas, com rûaḥ ʾĕlōhîm a pairar sobre sua superfície; essa leitura sustenta o sentido físico de tĕhôm na criação e estabelece a relação entre a “água” informe e a ordenação subsequente do cosmos, preservando ao mesmo tempo um nível aggádico sobre a separação entre luz e trevas já no primeiro dia (a luz “reservada” aos justos) (Gênesis 1:2–4).

A tradição midráshica amplia o alcance de “ʿal pĕnê tĕhôm”. Em Bereshit Rabbah 2:4, “ʿal pĕnê tĕhôm” (“sobre a face do abismo”) é lido tipologicamente como “a realeza ímpia, insondável como o abismo”, e “rûaḥ ʾĕlōhîm merachefet” (“o espírito de Deus pairava”) é entendido como o sopro messiânico que paira até que a ordem salvífica se manifeste. Essa exegese estabelece uma ponte entre a opacidade do abismo e a história de Israel, convertendo tĕhôm em marcador do caos moral-político que será vencido pela ação divina.

Entre os exegetas medievais, Ibn Ezra, ao comentar Gênesis 1:2, cita Ḥagigá 12a e conserva ecos de descrições antigas do cosmo: “tôhû é a faixa que circunda o mundo... e têhôm contém pedras lisas”, imagem que continua a afirmar o caráter físico e indiferenciado do abismo antes da estruturação dos domínios (céus/terra, seco/mar). Tal recepção, mesmo quando relê termos raros (“tôhû/bohû”), pressupõe tĕhôm como reserva hídrica pré-ordenada, sobre a qual o Espírito/vento divino atua.

No relato do dilúvio, tĕhôm reaparece como agente histórico: “romperam-se todas as fontes do grande abismo”. Rashi explicita o paralelismo ético, chamando tĕhôm rabbâ (“grande abismo”) para destacar o juízo “medida por medida”: grande foi a corrupção, grande a irrupção das fontes. Essa formulação reforça a ideia de tĕhôm como reservatório sob o controle de YHWH, cuja abertura e fechamento são atos judiciais.

Os sábios também situam o momento dessa irrupção no calendário e na cosmologia antiga. Em Rosh Hashaná 11b, a opinião de Rabi Eliezer vincula o início das águas à ascensão diurna de Kimá e ao “fortalecimento das fontes”, integrando astronomia antiga à hidráulica de tĕhôm. Nessa leitura, o abismo não é caos autônomo, mas infraestrutura cósmica obediente a decretos celestes e ao comando do Criador.

A recepção do Cântico do Mar (Êxodo 15) confirma essa dupla chave. Quando o poema canta “os abismos se congelaram no coração do mar”, a tradição rabínica mais ampla lê o travamento e a contenção do tĕhôm como face de um juízo ordeiro — águas imobilizadas, canalizadas e, em seguida, liberadas —, coerente com a criação por separação e nomeação. A moldura midráshica do louvor em Êxodo 15 reaparece em numerosas coleções, reafirmando que o domínio do tĕhôm pertence ao Deus que cria e julga.

Nos Salmos, tĕhôm ganha um estatuto teológico denso. Salmos 104 retoma o drama cosmogônico: “cobriste-a com o abismo como com uma veste; as águas pararam sobre os montes... À tua repreensão fogem”. A tradição de Midrash Tehillim sobre esse salmo desenha o quadro de soberania absoluta: o Deus que “se veste de luz” é o mesmo que veste a terra com tĕhôm e, por sua palavra, limita e afasta as águas. Aqui, tĕhôm funciona como metáfora do ilimitado submetido à vontade ordenadora, cuja vitória se torna fundamento do louvor.

O mesmo salmo, em leituras midráshicas afins, insiste em que a retirada ou a ocultação do “rosto” divino devolve criaturas ao pânico e à morte, implicando que a proximidade/ocultação de YHWH regula o comportamento de tĕhôm e de tudo que dele depende. Essa teologia do abismo como “potência controlada” atravessa o louvor e a ética: se o rosto se oculta, o caos retorna; se se revela, a ordem se recompõe.

Textos proféticos e sapiençais mantêm a coesão dessa recepção. Quando Provérbios proclama que “pela sua sabedoria se romperam os abismos” e quando Isaías celebra “o ressecamento do mar, as águas do grande abismo”, a tradição rabínica lê a criação e o êxodo como atos comparáveis: em ambos, tĕhôm é freado, aberto ou contido por decreto. Essa gramática explica por que Jonas pode dizer “o abismo me cercou”: a descida às entranhas aquáticas simboliza a proximidade da morte, mas sem autonomia ontológica das águas; Rashi sublinha a pedagogia desse mergulho, em que a compressão do ventre conduz à oração e ao livramento.

Por fim, a aggadá devolve tĕhôm à história de Israel por um paralelismo ousado: Resh Laquish, em Bereshit Rabbah 2:4, correlaciona “tôhû”, “bohû”, “trevas” e “sobre a face do abismo” a sucessivas experiências de opressão e exílio, enquanto lê “e o espírito de Deus pairava” como sopro messiânico. Essa hermenêutica converte a insondabilidade do abismo em símbolo da insondabilidade do poder ímpio e, simultaneamente, em palco da promessa de ordem futura. O tĕhôm bíblico, assim recebido, não é monstruosidade mitológica autônoma: é profundidade real, inescrutável ao humano, porém sempre medida, pesada e limitada pelo Criador, tanto na cosmogonia quanto no juízo histórico e no louvor.

IX. História da interpretação moderna: escolas e debates

A leitura moderna do tĕhôm de Gênesis e do abyssos do Apocalipse foi marcada por um arco que vai da ênfase no chaoskampf (combate divino contra as forças aquáticas ou monstruosas do caos) a propostas linguísticas e cosmológicas que recusam dependência mítica direta. Na vertente do chaoskampf, Alexander Heidel consolidou o paralelo comparativo entre as tradições mesopotâmicas (especialmente o Enūma eliš) e o imaginário bíblico, ainda que o próprio Heidel, do ponto de vista filológico, considerasse “gramaticalmente impossível” derivar tĕhôm de Tiamat, mantendo, porém, o pano de fundo comum do conflito com o mar e o dragão como horizonte interpretativo da Bíblia Hebraica (edição de 1951 com traduções e notas às fontes acádias e sumérias). Em continuidade e com força programática, DAY (1985) demonstrou como textos poéticos de Israel preservam ecos do combate divino contra “dragão” e “mar”, ecoando mitos cananeus e ugaríticos e “escatologizando” esse motivo em desenvolvimentos proféticos posteriores. Essa leitura se tornou um pivô para ligar Gênesis, Salmos e Profetas à “besta” e ao “mar” do Apocalipse, numa linha que privilegia a continuidade do imaginário de conflito. Na mesma direção, LEVENSON (1988) sintetizou a teologia da criação como drama contínuo de contenção das potências caóticas: Gênesis 1 não narra a erradicação do mal, mas a sua contenção; a onipotência se manifesta na manutenção da ordem contra o retorno do caos, tema que reaparece no conjunto canônico. Revisões recentes reafirmam que Salmo 74, Salmo 89 e Isaías 51 preservam esse fio de conflito associado ao mar, ampliando seu alcance hermenêutico sobre Gênesis 1–3 (RAMANTSWANA, Conflicts at creation: Genesis 1-3 in dialogue with the Psalter, 2014, pp.553-578).

Em contraste, propostas linguísticas e cosmológicas lideradas por TSUMURA (2015) recusam que Gênesis 1 dependa de um mito de combate e que tĕhôm deva ser relacionado etimologicamente a Tiamat. A investigação filológica sustenta que tōhû wābōhû descreve desolação não-habitável e que rûaḥ ʾĕlōhîm em Gênesis 1:2 indica ação ordenadora sobre as águas, sem pressupor divindade hostil a ser vencida; nesse quadro, Gênesis 1 é um relato de organização soberana do cosmos por palavra efetiva, não de vitória sobre uma deusa aquática (TSUMURA, The Chaoskampf Myth in the Biblical Tradition, 2020, pp. 963–70). Estudos exegéticos de base filológica detalham ainda a construção ʿal pĕnê

(“sobre a superfície de”) em Gênesis 1:2 e revisitam ḥōšek (“trevas”) e tĕhôm, concluindo que a cena inicial descreve estado não produtivo e ausência de vida, não caos personificado; entre as sínteses, destaca-se a análise de Roberto Ouro em Andrews University Seminary Studies, que, dialogando criticamente com Tsumura, reforça a leitura “abiótica” da terra primitiva e sublinha o valor sintático de ʿal pĕnê na apresentação do cenário aquoso sob a ação do sopro divino. Nessa trilha, Mark S. Smith preferiu falar em “visão sacerdotal” serena de Gênesis 1, que conhece o repertório mítico do Antigo Oriente Próximo, mas reelabora-o teologicamente sem pressupor um combate diegético no texto sacerdotal.

Essas escolas impactam diretamente a exegese de Gênesis. Leituras chaoskampf tendem a ver em Gênesis 1:2 uma recordação mítica de conflito, o que pesa na tradução e na interpretação de tĕhôm como “o abismo” em chave ameaçadora; em comentários clássicos (Von Rad; Westermann) e em releituras comparativas, o motivo do mar/monstro funciona como pano de fundo para entender por que a bênção criacional inclui domar e separar águas. Por outro lado, a abordagem linguística de Tsumura, acolhida e debatida em periódicos e coletâneas recentes, sustenta que Gênesis 1:1–2 apresenta o início da obra criadora com foco em estruturação e nomeação, não em subjugação mítica; daí decorre a preferência por entender tĕhôm como massa aquosa impessoal e tōhû wābōhû como deserto inabitável. Um ponto de inflexão útil é a discussão no Tyndale Bulletin acerca da tensão não resolvida de Gênesis 1:1–2, mostrando que a tradição exegética bíblica suporta simultaneamente a ideia de estruturação a partir do não-habitável e a memória bíblica de conflito com “mares” e “dragões” em outros gêneros, sem impor um único modelo a Gênesis 1 (ROUTLEDGE, Did God Create Chaos, 2010, pp. 71-87).

No Apocalipse, os impactos das duas correntes são nítidos. Na linha do chaoskampf, Collins (1976) em The Combath Myth in the book of Revelation mostrou como o livro absorve e reconfigura o motivo do combate: a “besta” que emerge do mar, o “poço do abismo” e a derrota final do “mar” servem para dramatizar o juízo de Deus sobre potências cósmicas e histórico-políticas que se alimentam do caos. Essa leitura ajuda a entender a densidade simbólica do “poço do abismo” (Apocalipse 9) como eixo de acesso e egressão de agentes demoníacos e a insistência do texto em associar o mar com ameaça, idolatria imperial e violência. Bauckham explicitou a consequência escatológica: quando o vidente declara “o mar já não existe” (Apocalipse 21:1), o que se anuncia é o fim das “águas do abismo primevo” como fonte de mal destrutivo e risco de recaída no caos; a nova criação se define pela remoção definitiva dessa possibilidade (BAUCKHAM, The theology of the Book of Revelation, 1993, pp. 49, 133). Koester (2001), em diálogo com essa tradição, mostra como o mar, a “besta” e o abismo estruturam a narrativa de conflito e preservação da comunidade fiel, reforçando que o imaginário aquático funciona como marcador de oposição ao senhorio do Cordeiro (cf. Revelation and the End of All Things, pp. 116-133).

O estado atual do debate é de pluralidade qualificada. Há forte consenso de que Israel conhecia, polemizou e reelaborou repertórios míticos do Antigo Oriente Próximo, inclusive a luta contra mar/monstro; mas também se reconhece que o relato sacerdotal de Gênesis 1 opera teologicamente por organização verbal, separação e nomeação, não por uma batalha narrada no texto. A melhor exegese de Gênesis 1–2, portanto, combina atenção filológica às expressões (ʿal pĕnê

, tōhû wābōhû, rûaḥ ʾĕlōhîm, tĕhôm) com sensibilidade canônica para a rede de alusões bíblicas ao combate com o mar; e a melhor exegese do Apocalipse reconhece que João retoma esse imaginário para dramatizar o triunfo de Deus “no céu, na terra e debaixo da terra”, culminando na supressão do mar como símbolo da ameaça caótica na nova criação.

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GALVÃO, Eduardo. Abismo. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], out. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago 2025].

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