Estudo sobre Filipenses 3:1-3

Estudo sobre Filipenses 3:1-3


No estilo epistolar é comum usar “quanto ao mais”, com o intuito de introduzir um novo bloco, particularmente quando está próximo da conclusão do todo. Por isso a mesma palavra ocorre também em 2Co 13.11; 1Ts 4.1; 2Ts 3.1 e na presente carta em Fp 4.8. Contudo, a seção final da carta não começa neste local. Pelo contrário, segue-se um dos capítulos mais impactantes e fundamentais que Paulo jamais escreveu. Esse capítulo também é tão surpreendentemente diverso da parte anterior da carta e tão completo em si que a pesquisa crítica acreditava que seria necessário considerá-lo como uma inclusão vinda de uma outra carta de Paulo. Nesse caso, porém, o que significaria o v. 1 deste trecho? A que se refere a observação de que Paulo não se importa em “escrever a mesma coisa” aos filipenses? Trata-se de mera observação intermediária exortando à alegria, na qual Paulo após Fp 1.4,18,25; 2.2,17,18,29 tinha a impressão: estou me tornando repetitivo, falando constantemente de “alegria” – pois bem, tanto mais fortaleço a igreja para a alegria? Ou será que o apóstolo de fato visava ditar originalmente uma seção final bem diferente, p. ex., conforme Fp 4.4-9, sendo então interrompido, seja por novas notícias sobre novos avanços da agitação judaísta, seja por refletir sobre a situação de todo seu campo missionário em vista de sua possível morte em breve? Será que Timóteo o lembrou aqui de que era imprescindível que ainda dissesse uma palavra de advertência diante do perigo judaísta, como respaldo para o trabalho que Timóteo depois faria em Filipos? Ou será que esse “escrever a mesma coisa…” pertence ao trecho subsequente, e que Paulo se refira a exposições de cartas anteriores para Filipos, que não conhecemos, mas que poderiam muito bem ter sido escritas em vista da afetuosa ligação entre Paulo e essa igreja? Não há como chegar a uma conclusão segura nessa questão.

A nós, porém, essa frase de Paulo diz que também não devemos ter receio de “dizer a mesma coisa”. Até mesmo em seus rudimentos mais simples a verdade de Deus não tem nada de “monótona”, assim como a luz solar que brilha sobre nós todos os dias, assim como a palavra amável que é trocada diariamente entre duas pessoas. A repetição nos torna firmes e seguros. Todo o fluxo da vida neste mundo, inclusive o da mais nobre moral e religião, flui de modo constante rumo ao evangelho. Por isso carecemos, para nosso fortalecimento, que nos seja dita incansavelmente “a mesma coisa”, a saber, o evangelho.

Em seguida aproximamo-nos do impactante trecho que evidentemente é muito menos conhecido na igreja que outras passagens “grandiosas” das cartas de Paulo, mas que deveria ser recuperado pela igreja. Ao lado de Gl 1.10-24 e 1Tm 1.12-16 esse trecho é o único retrospecto autobiográfico de Paulo [48] sobre sua conversão. Aliás, de todas as três passagens, esta é a mais profunda e íntima. A igreja de todos os tempos pode constatar aqui como o apóstolo autorizado de Jesus para os crentes de todas as nações considerou pessoalmente a grande guinada de sua vida. Tem a oportunidade de vislumbrar o coração de Paulo. Nesse testemunho pessoal cheio de profundo fervor[49] ao mesmo tempo também se torna-se extraordinariamente nítida e transparente a causa do evangelho, justamente porque neste caso as experiências da conversão e da justificação foram concebidas e expostas com expressões e ilustrações bastante diferentes.

O evangelho “livre da lei” de Paulo – que ele ocasionalmente chega a definir como “seu” evangelho (Rm 2.16) – representava uma mensagem incrível, inconcebível, e até mesmo escandalosa para todo pensamento natural. Pois o ser humano é por natureza “moralista”. Está profunda e tenazmente enraizada em seu coração a convicção de que ele precisa “merecer” algo diante das pessoas e de Deus, e que ele também é capaz disso e o faz. Sem dúvida o ser humano precisa de uma certa parcela de graça. Porém, unicamente graça, somente graça totalmente soberana? Impossível! Todo o sentimento moral e todo o orgulho do ser humano se rebelam contra isso. Exclusivamente graça – isso parece desconhecimento e desprezo total de todo o patrimônio moral e religioso da humanidade. Somente graça – esse seria um prêmio para a indiferença e a maldade éticas.[50] Por isso o evangelho de Paulo sempre encontra contestação indignada, em especial por parte de judeus e “judaístas”, i. é, de cristãos que também acreditavam em Jesus como o Messias, que também sabiam algo sobre redenção e perdão de pecados, mas que consideravam o evangelho de Paulo como perigoso descaminho e distorção, dizendo aos cristãos nas igrejas de Paulo: com toda a certeza vocês continuarão sendo “cristãos”, mas justamente como cristãos sérios e integrais vocês precisam seguir o caminho das realizações morais e religiosas que a lei nos mostra. Afinal, esse Paulo está arrasando tudo o que qualquer ser humano ético-religioso traz dentro de si e que nossa lei evidencia a nós israelitas com clareza concedida pelo próprio Deus. Na Galácia os sucessos desses adversários de Paulo foram consideráveis. A carta aos Gálatas é uma ardente luta contra eles. No entanto podiam aparecer em qualquer igreja, descobrindo aliados em todos os lugares no coração do ser humano natural. Toda moral e toda religião constituem uma profunda contradição ao evangelho. Por isso tais pessoas qualquer dia também poderão aparecer em Filipos. Por isso Paulo deseja advertir a tempo. “Acautelai-vos![51] dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros! Acautelai-vos da falsa dilaceração!” No antigo Oriente o cão não era o companheiro fiel e amado do ser humano, mas um animal semi-selvagem que vagueava em matilhas, caçando presas aos latidos. É assim que Paulo vê seus adversários metendo o nariz e latindo em todas as regiões.[52] Porque é verdade que são zelosos, trabalhadores laboriosos por sua causa, mas infelizmente também “maus obreiros” (cf. também 2Co 11.13) que não edificam, antes arrasam e destroem. Por isso o apóstolo os chama, com um amargo trocadilho, de “dilaceração”. Não são capazes de outra coisa senão “dilacerar” pessoas e, por insistir nesse tipo de procedimento, confundir e cindir a igreja, cortando o corpo de Cristo em pedaços!

Entretanto também precisamos considerar seriamente a possibilidade de a presente passagem não se referir a “judaístas”, mas diretamente aos judeus em Filipos. Do pequeno grupo de judeus havia se originado o começo da igreja. Quantos motivos de inveja e ódio isso representava! Contudo, naquele tempo o judaísmo e a “igreja” ainda não estavam tão óbvia e naturalmente separados como mais tarde. Sempre que alguém declarava “Cristo Jesus”, o significado era “o Messias é Jesus”. A mensagem “O Messias esperado veio na pessoa de Jesus!” dizia respeito diretamente aos judeus de todos os lugares! Dizer “não” a essa mensagem e, consequentemente, aos “cristãos” era inegavelmente uma questão judaica muito específica. Não é de admirar que por isso a luta contra Paulo e suas igrejas em muitos locais partisse dos judeus (cf., p. ex., At 13.45,50; 14.5,19; 17.5,13; 18.12; 19.9). Se em Filipos o pequeno, mas talvez bastante ativo, grupo de judeus fosse o foco de agitação contra os cristãos, então a imagem dos “cães” conforme o Sl 59.6,14s se tornaria consideravelmente tangível. Ao mesmo tempo essa ilustração já se tornaria uma incisiva inversão irônica de ideias judaicas correntes. Para muitos judeus os gentios obviamente eram “cães”. Não, diz Paulo, justamente esses judeus que agitam e latem são verdadeiros “cães”, enquanto a maioria dos “santos em Cristo Jesus” estava no lado dos “gentios”. Somente nessa perspectiva também teria contundência plena o trocadilho de “dilaceração” e “circuncisão”, ou seja, o verdadeiro Israel somos nós, o judaísmo não traz no corpo nada além de um pouco de dilaceração. Todavia persistem muitas dúvidas se Paulo, que circuncidou Timóteo pessoalmente (At 16.3), era capaz de julgar a circuncisão judaica (não a judaísta!) de forma tão radical e simplesmente chamar de “cães” membros do povo de Israel, que ele mesmo via debaixo da luz de Rm 9-11. Da mesma forma continua questionável se no clima anti-semita da colônia militar romana (cf. acima, p. 176) o pequeno grupo de judeus de fato podia se tornar tão perigoso para a igreja. Nesse caso o perigo certamente seria apenas exterior. No entanto, a forma da advertência de Paulo, e sobretudo a profunda controvérsia subsequente, não combinam com isso. De forma alguma podemos imaginar uma ameaçadora influência interior do judaísmo puro sobre os cristãos em Filipos. Por isso o olhar de Paulo deve estar voltado aos conhecidos adversários judaístas, com os quais já havia se defrontado suficientemente para alertar vigorosamente contra eles mesmo uma igreja que ainda não fora diretamente alcançada por eles.

No entanto, como Paulo é capaz de julgar esses adversários de forma tão áspera e negativa? Será que não exagera nessas reprimendas e nessa ironia? Isso ainda é “cristão”? Afinal, esses adversários também estavam convictos de defenderem a causa certa e desejavam o bem! Se acreditavam que além de Jesus deviam apresentar uma série de realizações morais e religiosas, isto é, a circuncisão, o sábado e as boas obras – não se pode ter opiniões distintas a esse respeito? É assim que pensamos hoje. Mesmo na igreja acabamos conhecendo somente “opiniões” e “óticas”, em cuja abundância – afinal, quantas denominações e “tendências” existem? – já não descobrimos o rumo, motivo pelo qual tendemos a ser bastante tolerantes diante de todo tipo de “ponto de vista”, desde que não se afaste demais do bom meio-termo e não seja “exagerado”. No fundo estamos impregnados da medíocre moral religiosa cristã que não presta atenção alguma à mensagem de Paulo e por natureza está completamente do lado dos adversários de Paulo. Por isso precisamos ouvir de maneira totalmente nova o que Paulo afinal diz para fundamentar sua “posição”, por que ele não constata uma “opinião divergente” na ação dos adversários, passível de “discussão”, mas a destruição da obra do próprio Deus e o ataque à própria verdade de Deus.

Paulo formula o contraste intransponível em dois conceitos marcantes, cujo teor são opostos como fogo e água: “espírito” e “carne”. Toda a compreensão da mensagem bíblica depende do entendimento correto deles!

“Carne” – a helenização do cristianismo fez com que diante dessa palavra pensemos imediatamente em “sensualidade” (até mesmo em “sexualidade”, na forma extrema), mas quase nunca em nossa “existência material”. Temos de eliminar radicalmente esse mal-entendido. Na Bíblia, “carne” é primeiramente a designação da criatura mortal impotente em contraposição ao Deus eterno e vivo. A natureza de Deus, porém, é “espírito”. Por isso o termo “espírito” na Escritura não tem o sentido greco-moderno de “vida intelectual”, a faceta “intelectual” de nosso ser em contraste com o corpo e a “sensualidade”, mas refere-se à vitalidade e ao vigor eterno e glorioso de Deus. Por exemplo, o profeta Isaías diz em Is 31.3: “Pois os egípcios são homens e não deuses; os seus cavalos, carne e não espírito.” Em seguida “carne” passa a ser particularmente a designação de toda pessoa separada de Deus, tanto no seu sentido “intelectual” quanto na sua existência material transitória. “Carne” é tudo o que essa pessoa separada de Deus possui e sabe, o que ela mesma pode criar e realizar, inclusive suas mais sublimes e nobres realizações. “Carne” no sentido da Bíblia é também sua arte mais delicada e sublime, “carne” é sua mais nobre moralidade, “carne” é também toda a religião produzida pessoalmente nas profundezas do coração e do estado de espírito. Essa “carne” pode ser sempre reconhecida no fato de que o ser humano continua voltado sobre si mesmo, confia em si mesmo e se gloria em si mesmo. “Carne” é sua natureza centrada em si mesma. Mesmo quando exerce a moral e a religião, o ser humano fica preso a seu eu, cultiva e glorifica-o, até mesmo quando cita o nome de Deus.

Para Paulo, o aspecto insuportável dos adversários é que eles – ainda que tenham “boas intenções” – prendem o ser humano nessa esfera da carne ou que, sendo ele membro da igreja de Jesus, tentam novamente rebaixá-lo a essa esfera. O verdadeiro cristão havia recebido uma maneira totalmente diferente de servir a Deus. “No Espírito”, na própria natureza e vida de Deus ele vivia para Deus. Esse “culto a Deus” é, no sentido estrito da palavra, algo absolutamente diferente de toda a religião humana, por mais sublime que esta seja. Esse culto a Deus “no Espírito e na verdade” é tão distinto de qualquer “religião” como o dia difere da noite, o Espírito, da carne, Deus, da criatura. Por essa razão nesse culto a Deus nós não nos gloriamos novamente das realizações pessoais, mas gloriamo-nos do Cristo Jesus somente. Porque tudo o que um ser humano poderia ter e ostentar pessoalmente em termos morais e religiosos na verdade é apenas “carne”. Por isso aparece aqui apenas uma alternativa, e não aquela mescla de evangelho e “religião” que os adversários promoviam, e por meio da qual tão-somente mostravam que nem mesmo haviam entendido o evangelho. Por isso são pessoas tão perigosas, “dilaceração”, “maus obreiros”: quanto mais zelosos, tanto piores. Por isso são “cães”, que têm de ser prontamente afastados. Porque a verdadeira “circuncisão”, a verdadeira igreja de Deus nesta era somos “nós, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne”. [53]

No entanto – será que Paulo está pensando seriamente que todas as realizações morais do ser humano e toda a sua religião não são nada? Afinal, todo o ser se rebela contra isso, até mesmo nós! Sim, Paulo pensa assim com toda a seriedade. Não consegue explicitar melhor essa gravidade do que demonstrando o “caráter carnal” e a completa inutilidade de toda a religião e moralidade próprias não em seus adversários, mas em seu próprio exemplo e em sua vida pessoal.




Notas

[48] At 9 e os discursos de Paulo em At 22 e 26 na verdade saíram da caneta de Lucas, embora se baseiem em relato confiável, até mesmo em informes pessoais do apóstolo Paulo.
[49] O fato de Paulo relatar sua conversão em três de suas cartas e, conforme At, em dois de seus discursos, mostra que também considerava o testemunho pessoal um meio especial para explicitar a grande causa a outros.
[50] Confira-se a indignação interior tão instrutiva de alguém como Mathilde Ludendorff acerca da acolhida do filho pelo pai na parábola do filho pródigo! O irmão mais velho expressa exatamente o que qualquer pessoa virtuosa e correta tem de sentir.
[51] Paulo utiliza “Acautelai-vos!” ou “Vede!” com mais frequência como um grito de advertência: 1Co 8.9; 10.12; Gl 5.15; Cl 2.8.
[52] Quanto à figura dos “cães”, cf. Sl 59.6,14s; Ap 22.15.
[53] Em vista disso há uma certa justificativa para que a igreja de Jesus se sinta como o verdadeiro Israel espiritual (cf. também Rm 2.28s; Gl 4.21-31; 1Pe 2.9s). Nessa consideração, porém, não se deve pensar, contrariando as claras afirmações de Rm 9-11, que Israel tenha sido “rejeitado” e que a igreja tenha ocupado o lugar de Israel! Deus mantém a vocação de Israel e, conforme as promessas de Deus, sua grande tarefa no futuro.