Estudo sobre Filipenses 3:19-20

Estudo sobre Filipenses 3:19-20


Alguns consideram que ele continua a falar dos “judaístas”. Não haveria nenhuma indicação de que agora Paulo estaria se dirigindo a um grupo diferente de pessoas. Seria improvável que naquele tempo já houvesse “muitos” que se gloriassem de uma vida marcadamente desregrada, impressionando assim as igrejas. As expressões utilizadas por Paulo só teriam algum sentido marcante se as relacionarmos aos judaístas. Eles seriam “os inimigos da cruz do Cristo”. O uso do artigo definido não apenas se referiria a pessoas “receosas da cruz”, mas teria um foco bem mais fundamental. A mesma questão estaria em jogo também na carta aos Gálatas, onde Paulo luta contra os descaminhos judaístas em relação à validade da cruz (Gl 2.21; 3.1ss; 5.2; 5.11; 6.14). Seria difícil imaginar que “muitos” cristãos transformassem o estômago em “deus” pela glutonaria ou buscassem sua honra em excessos sexuais. O fato, porém, de que os judaístas consideravam toda a observância das leis alimentares como ponto central da religião faz com que realmente coloquem o estômago no lugar de Deus, com sua constante e receosa atenção no cumprimento desses preceitos. A palavra geralmente traduzida por “infâmia” poderia também designar o órgão sexual. Com dura ironia – mas não mais dura que o trocadilho da “dilaceração” para “circuncisão” e que o insulto “cães” – Paulo assinalaria que aqui a operação no órgão sexual do homem se transformaria em sua “honra”. Mesmo a afirmação final, “que só se preocupam com as coisas terrenas” não falaria, como teria sido necessário diante de “libertinos”, da busca das coisas “carnais”. Pelo contrário, salientaria que os judaístas, apesar de todas as suas práticas religiosas, ficam presos às coisas terrenas. Também em 2Co 11.15 Paulo falaria com temível seriedade sobre o “fim” dos judaístas.

Já outros comentaristas argumentam que esse tipo descrição dos adversários judaístas de Paulo na verdade seria uma “caricatura frívola”, e preferem insistir que no presente trecho Paulo fala de pessoas diferentes do que em Fp 3.2ss, dos gentios cristãos que proclamam que o ser humano que vive no “Espírito” tem plena liberdade em áreas inferiores e por isso menos relevantes da vida.

Para superar o conflito insolúvel entre as interpretações acima, Lohmeyer tentou demonstrar nesta passagem – no contexto de sua compreensão geral da carta! – que se estava estigmatizando os que renegaram a fé durante a perseguição. Porém não se pode notar nada de uma apostasia dessas justamente quando Paulo fala expressamente das aflições da igreja (Fp 1.27-30). E quando o apóstolo teria falado com os filipenses “repetidas vezes” sobre esses renegados? Essa leitura da passagem também não leva a interpretação dos termos empregados por Paulo a resultados tão marcantes quantos os que precisam ser admitidos caso a interpretação se refira aos “judaístas”.

Devemos levar em conta que a verdadeira frase principal é: “Muitos andam… como aqueles que só se preocupam com as coisas terrenas.” O restante é uma frase secundária intercalada e subordinada a “dos quais, repetidas vezes, eu vos dizia… que são inimigos…”. Igualmente não fará mal nenhum à interpretação “histórica”, sendo antes benéfico, se olharmos primeiro para nós mesmos ao tentar compreender a frase principal. Todos sabemos com que intensidade “as coisas terrenas”, com sua realidade brutal e sua insistente imprescindibilidade, atraem nosso coração para si nas situações de temor e prazer. Porventura não temos de “pensar nas coisas terrenas”, para nós mesmos, para nossos filhos? Não é assim com todos nós, cristãos de hoje? Como vencer nas coisas cotidianas, como conquistar uma vida boa e confortável na terra, como nossos filhos conseguirão ser algo neste mundo – não é esse o ponto de vista determinante para nós? E mesmo que ainda tentemos negá-lo, não o reconheceremos imediatamente tão logo nossas “coisas terrenas” correrem algum risco? O cristianismo é muito bom, não queremos abrir mão dele, porém não deve custar nada, ou pelo menos não a posição, o pão, o futuro de nossos filhos ou até a liberdade e a vida!

Não causa surpresa que já naquele tempo Paulo visse surgir tal perigo em “muitos”. Pouco antes (Fp 2.21) ele ditara: “Todos eles buscam o que é seu próprio, não o que é do Cristo Jesus”. Somente quem de fato não desviou o olhar do “prêmio da vitória da vocação celestial de Deus” e corria com todo o empenho rumo ao alvo, esquecendo tudo que ficasse para trás, podia escapar desse perigo. Os “muitos” que sucumbiam poderiam muito bem ser “judaístas” que asseguravam sua vida terrena mantendo boas relações com o judaísmo, usufruindo assim da proteção da religião judaica permitida no Império Romano e livrando-se de perseguições. Foi justamente assim que Paulo os descreveu em Gl 6.12. Daquela descrição há uma linha direta até as afirmações da presente passagem. No entanto, poderiam ser igualmente pessoas gregas que não viam por que motivo não se deveria conceder o máximo de benefícios ao corpo e instalar-se da melhor maneira possível neste mundo: afinal, importava somente a “alma” e sua ligação com Deus! De 1Co 6.12ss sabemos que Paulo teve de lutar contra essas ideias na igreja de uma cidade portuária grega: “Tudo é lícito.” Naquela época de incontáveis seitas, religiões e visões de mundo, além de muitos pregadores itinerantes, havia também o perigo de que nas igrejas ganhassem influência as pessoas que sabiam falar bem, mas que somente buscavam um confortável meio de vida. Contra esse tipo de pessoas Paulo advertiu em Rm 16.17s, usando palavras muito similares a estas. A carta de Judas, no v. 12, mostra essas pessoas de forma nua e crua. Também seria possível que aqui Paulo pense nelas. A “honra” de que se beneficiam nas igrejas se baseia naquilo que na verdade é sua vergonha: religiosidade e atuação mentirosa e hipócrita.

Portanto, há muitas possibilidades de entender historicamente o texto em questão. Porém, visto que Paulo fala apenas genericamente de “muitos”, sem caracterizá-los mais precisamente como “judaístas” ou “libertinos”, “pregadores itinerantes” ou “renegados”, faremos bem em deixar prevalecer essa indefinição. Isso é muito salutar para nossa própria leitura da carta! Com quanta facilidade nos esquivamos da assustadora gravidade dessa passagem ao identificar os culpados daquele tempo com zelo e perspicácia! Trata-se dos “judaístas” – mas, afinal, nós também somos “judaístas”! O fato de que Paulo falou “frequentemente” com os filipenses acerca desses “muitos” evidencia que ele reconhecia aqui um risco abrangente e geral para o cristianismo, que podia se firmar tanto em Filipos quanto em outros lugares, mesmo sem o surgimento de determinada “linha”. Toda vez que alguém começava o “buscar o que é terreno”, nascia uma enfermidade mortal para a condição cristã. Essa enfermidade corroía justamente aquilo que Paulo havia exposto aos filipenses como a “essência” do cristianismo: “considerar tudo como perda por amor de Jesus”, “correr” sem detença “atrás do prêmio da vitória da vocação celestial”. Por essa razão Paulo fala disso agora “com lágrimas”. Dificilmente podemos dizer que são lágrimas de compaixão para com os “muitos”; são lágrimas de lamento e de ira com vistas às devastações que esse solapamento do cristianismo causava nas igrejas. É curioso que no cristianismo evangélico de fato lutamos com zelo apaixonado em favor dessa ou daquela “doutrina”, mas pouco nos importamos com essa ameaça ao cristianismo que arrasou Paulo até as lágrimas!

Acontece que cristãos que “buscam as coisas terrenas” necessariamente se tornam “os inimigos da cruz do Cristo”. Não devemos dar valor demais à inclusão do artigo definido, pois isto foi inevitável na sintaxe da frase. Em nossa língua diríamos, por exemplo: “Muitos andam… Repetidas vezes falei deles a vocês… desses inimigos da cruz de Cristo, cujo…” Mais uma vez, é característico da unilateralidade do cristianismo ocidental relacionar essa expressão, de forma natural e imediata, com as coisas da “doutrina”, aplicando-a, por exemplo, aos teólogos da escola liberal. Mas não é a isso que Paulo se refere em primeiro lugar. Uma “teologia da cruz”, que consola e tranquiliza, um Cristo que realizou tudo por nós na cruz – essas são coisas que o cristão afundado nas coisas terrenas gosta muito de ouvir! Paulo, porém, na verdade havia falado de seu desejo de “participar dos sofrimentos dele”. Via a cruz, justamente como a cruz “do Cristo”, pairando sobre os seus com poder realmente mortífero. A cruz do Cristo é juízo eficaz e sentença de morte executada por Deus, que faz com que nossa carne seja condenada e morta, por dentro e também por fora (cf. a esse respeito 2Co 5.14ss!). Em contraposição, todo aquele que busca as coisas terrenas é necessariamente um rebelde. Isso sempre se evidenciará também no sentido “teológico”. Isso transparecerá no papel que concedermos a essa cruz na proclamação (será que nossa pregação ainda é “palavra da cruz”?). A “inimizade contra a cruz”, porém, está muito mais profundamente arraigada no coração e no ser, e brota mesmo sob a cobertura da doutrina incontestável quando a cruz ataca nossa existência terrena real.