Estudo sobre Filipenses 3:14

Estudo sobre Filipenses 3:14


Não são propriamente a carência pessoal e a própria pecaminosidade que põem o cristão em movimento – nesse caso sua vida no fundo ainda continuaria completamente determinada pelo eu – mas “o prêmio da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus”. “Vocação” é uma das palavras axiais da Bíblia. Com a “vocação de Abraão” começa a história da antiga aliança propriamente dita. Abraão emigra de sua terra natal não porque lá tivesse uma vida ruim, mas porque essa misteriosa vocação por Deus o atraía para uma terra desconhecida. Essa, porém, é também a característica do chamado de Deus na nova aliança. A “vocação celestial” (Hb 3.1)[58] conclama para uma herança que é “desconhecida” para nós seres terrenos e somente pode ser captada com nossa “esperança” (Ef 1.18; 4.4; 2Tm 1.9; 2Pe 1.10). Não se importa com grandeza ou aptidão humanas, mas escolhe justamente o que é indigno, desprezado e nada (1Co 1.26ss). Em última análise o próprio Deus é o sujeito do movimento pelo qual uma pessoa é arrastada. Isso distingue o movimento de todo “andar e correr” próprio dos humanos. É a razão pela qual Paulo não apenas diz que o prêmio da vitória em si atrai o cristão, pois isso novamente poderia ser entendido de forma “legalista”. Atrás do prêmio da “justiça própria” corria também Saulo de Tarso. Por isso Paulo rompe e transcende aqui a figura tomada do esporte, e cria a palavra do prêmio de vitória da vocação celestial. Experimentou – e conhece essa experiência inerente a toda autêntica vida cristã – que a vocação de Deus em Jesus interveio em sua vida, em sua própria corrida tempestiva, dando-lhe o impulso para um movimento completamente diferente do qual tentou apossar-se.

Consequentemente, essa ilustração de fato se refere a ambas as coisas: graça soberana e extremo empenho pessoal. É a vontade graciosa de Deus que me “convoca”. O “prêmio da vitória” é pura dádiva. Ninguém de nós se pôs “por si mesmo” em movimento rumo a Deus. Unicamente Deus nos chamou do sono da morte e da perdição. Ninguém confecciona pessoalmente o prêmio da vitória. Unicamente Deus o entrega. Aqui vigora tudo o que a teologia sempre afirmou acerca da atuação exclusiva de Deus e da majestade de sua soberana misericórdia. Contudo: não obteremos esse prêmio da vitória se permanecermos sentados à beira do estádio e refletirmos sobre ele, nem se fizermos declarações corretas acerca dele. Tampouco somos levados até ele em um automóvel da graça. Temos de “caçá-lo” com o empenho de todas as forças. Pelo menos é o que afirma o apóstolo Paulo. Não faz parte deste contexto que, na retrospectiva, também nesse “caçar” reconheçamos que a graça e fidelidade de Deus estiveram operando e que no alvo somente exclamaremos “Tudo foi graça!” Em momento algum isso deve tolher nosso engajamento. “Quem correr, porém correr mal, perde seu direito à coroa” e “Lá ressoará, quando ele nos coroar: Deus é quem tudo realizará” – ambas as coisas são igualmente testemunho da Escritura e experiência da fé.

O corredor não está no alvo. Justamente por isso corre empenhando todas as forças. Não tem tempo de olhar para trás e para medir o trajeto que já deixou para trás. “Esqueço-me das coisas que para trás ficam.” Com essas palavras Paulo não condenou a memória grata. Com freqüência e seriedade ele estimula a igreja a agradecer. Agradecer, no entanto, sempre inclui o “Não te esqueças de nem um só de seus benefícios”. Afinal, Paulo também acaba de fazer uma retrospectiva, descrevendo sua vida antes e depois da conversão. Nunca “se esqueceu” do que fizera como perseguidor da igreja de Jesus. Nunca “se esqueceu” de como Jesus o havia tomado pela mão com incompreensível misericórdia, a ele, o perseguidor e blasfemo. Com quanto amor e gratidão ele olhou no começo da carta para tudo o que vivenciara com os filipenses. Agora, porém, ele simplesmente reflete a imagem do “corredor”, que não pode se deter com aquilo que fica atrás dele. Essa palavra de Paulo representa uma aplicação viva da palavra de Jesus: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus”.

É para frente que está voltado o semblante do corredor. Lá está o “escopo”,[59] o “alvo” a ser alcançado, a coluna a ser contornada! Toda a atenção é dirigida para lá, para que a corrida tenha êxito e o prêmio seja conquistado. “Avanço para as coisas que diante de mim estão e me precipito para o alvo.” De acordo com a convicção de Paulo é essa a atitude de uma igreja (e, ligada a ela, também a de cada cristão). Levanta-se uma grave pergunta para o cristianismo de hoje: ainda se pode ver em ti algo disso?!

Resta debelar um mal-entendido que pode se associar à forma de expressão do apóstolo justamente no v. 14. Aqui também ele parece falar a língua de Platão. O “em frente” parece ser ao mesmo tempo “em cima”, o “céu”, em direção do qual devemos nos lançar. Contudo, diante disso é muito significativo que no v. 11 Paulo não cite o “céu” como o alvo que almeja para si, mas a “ressurreição para fora dos mortos”! Se tivesse entendido o “em cima”, a “vocação celestial”, como o “céu”, no qual reside o alvo final para nossa “alma”, ele deveria ter dito o seguinte no v. 11: “para de algum modo alcançar o céu com sua felicidade eterna e glória”. Mas ele permanece na imagem bíblica de futuro, como o final do capítulo mais uma vez mostrará com clareza. O “prêmio da vitória da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus” não é “entrar no céu”, mas participar da ressurreição dentre os mortos, do arrebatamento e perfeição da igreja quando acontecer a unificação definitiva com seu cabeça e, a partir daí, participar da derrubada do anticristo, do governo sobre a terra “no reinado dos céus”, do juízo sobre o mundo e sobre os anjos, da habitação da nova Jerusalém sobre a nova terra! Sem dúvida um “prêmio de vitória” que deve movimentar o cristão da maneira mais voluntária e poderosa possível, imprimindo-lhe a configuração em que Paulo a viu aqui na imagem do atleta corredor!



Notas
58. Neste texto consta literalmente não a vocação “celestial”, mas “a vocação no alto”. Trata-se da vocação cujo conteúdo está “no alto”. É o mesmo “no alto” que aparece também na conhecida passagem de Cl 3.1s. Harmonizando com Hb 3.1, a palavra foi traduzida também aqui como “vocação celestial”, visto que para nós não há como reproduzir com precisão o teor grego.

59. A palavra skópos está ligada a skopein = “ver, olhar” (“microscópio”). A designação grega do “alvo”, portanto, já contém a direção invariável do olhar, o que também se evidencia na expressão “mirar”. O alvo é o “ponto de visão”.