Estudo sobre Filipenses 3:7-8

Estudo sobre Filipenses 3:7-8


Esse mundo do idealista ético e religioso Saulo, fechado em si, só poderia ser aberto e ferido de morte de fora para dentro. Foi o que ele descreve pessoalmente, numa correlação precisa com o relato de At 9: “Mas o que, para mim, era ganho, isto considerei perda por causa do Cristo.” “Por causa do Cristo”: no episódio às portas de Damasco Saulo se deparou com o fato de que apesar de tudo Jesus era o Messias, o Ressuscitado, o Senhor vivo. Por meio desse fato objetivo, já não contestável, todo seu caminho anterior se evidenciou como errado. Afinal, esse caminho havia levado com consequência lógica à rejeição, e mesmo à perseguição do Messias Jesus enviado de Deus (“Saulo, Saulo, por que me persegues?”, At 9.4). Esse caminho fizera do homem puro, irrepreensível e devoto um “blasfemo, perseguidor e sacrílego” (1Tm 1.13). O zeloso implacável pela honra de Deus na verdade se fizera um inimigo de Deus! Esse caminho, portanto, não apenas devia ter falhas, mas ser profunda e essencialmente errado. E agora Paulo volta o olhar para esse Messias Jesus, cuja realidade se tornou irrefutavelmente certa na estrada para Damasco. Ele olha para esse Cristo sofredor, crucificado, morto e amoroso. Então se dá conta do que acaba de escrever aos filipenses em breve síntese: diante da natureza essencial e verdadeira de Deus, conforme ela se mostrava no Cristo Jesus e em sua morte na cruz, tudo de que o ser humano é capaz se evidencia como “carne”, justamente também no caso de seus mais sublimes valores eclesiásticos, morais e religiosos. Também a circuncisão, a descendência do povo da aliança, o cumprimento férreo e puro da lei, todo o zelo próprio e impiedoso por Deus – tudo é apenas “carne”. E “espírito”, ou seja, verdade e vida a partir de Deus, somente é aquilo que entrou neste mundo por meio do amor redentor de Cristo, algo que a mais decidida religiosidade humana apenas consegue considerar ridículo e blasfemo.

Por essa razão ocasiona-se a grande inversão de todos os valores, que deve ter acontecido de modo fundamental em Paulo naqueles três dias em Damasco, dos quais se informa: “Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu, nem bebeu” (At 9.9). “O que, para mim, era ganho, isto considerei perda por causa de Cristo.” Em geral entendemos erroneamente essa palavra, privando-a de sua acuidade e profundeza. Afinal, conhecemos somente a conversão dos “pecadores”. Consequentemente, diante do que era considerado “ganho” e agora é tido por “perda”, pensamos em bens terrenos, em prazeres terrenos e talvez pecaminosos, em toda a vida mundana, com a qual o cristão precisa romper. Mas Paulo não via “pecados”, nem “prazeres”, nem “bens mundanos” neste retrospecto. Via tesouros em seu passado que qualquer pessoa religiosa contabilizaria como “ganho”: o sacramento da circuncisão, a inclusão na congregação do povo da aliança, sim, toda a elevada moralidade e devoção em que ele havia apostado a seriedade de homem – isso ele aprendera a considerar “perda”! Jesus é tão cabalmente diferente, tão novo, tão maravilhoso que os valores terrenos não desvanecem diante dele, mas o maior ganho interior que um ser humano puder ter torna-se “perda”! Será que nós “cristãos” de hoje ainda temos alguma percepção dessa magnitude e singularidade de Jesus?

Paulo confirma novamente: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da destacada magnitude do conhecimento do Cristo Jesus.” A ênfase não está na troca do tempo verbal. Paulo não deseja enfatizar que hoje ainda concorda com o entendimento adquirido em sua conversão, ou seja, que ela não foi, p. ex., um entusiasmo inicial transitório. Nesse caso deveria ter escrito expressamente “agora” ou “hoje”. O mero uso do presente não seria suficiente para isso. A tônica está no “tudo”. Não somente os valores arrolados de seu passado judaico, não - tudo o que Paulo desde então aprendeu nos encontros com pessoas é somente “perda”. Isso “por causa da destacada magnitude do conhecimento do Cristo Jesus, meu Senhor”. Porventura ainda conseguimos entender isso? Será que nós ainda conhecemos este tipo de conhecimento de Jesus? Ou será que essa palavra de Paulo é totalmente estranha, exagerada, fanática para nós? Contudo, esse Cristo Jesus de fato se tornou para Paulo, desde o encontro às portas de Damasco, todo o conteúdo de seu pensar e entender. Escreve aos coríntios: “Decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Co 2.2). Porque precisamente o fato de que ele, o “Senhor da glória” se tornou o impotente, humilhado, crucificado, foi para ele objeto inesgotável de todos os seus pensamentos. Em Fp 2.5-11 Paulo forneceu aos próprios filipenses uma demonstração da visão admirada e adoradora desse mistério de Jesus. Também em Cl 1.15-2.15 encontramos um exemplo dessa “sobreexcelente magnitude do conhecimento do Cristo Jesus”. Por isso ele pede dos efésios (Ef 3.19) o que repetidamente preenche sua própria vida até transbordar: “conhecer o amor do Cristo, que excede todo entendimento”. Diante desse conhecimento todo o resto perde o valor.

Isso não é somente teoria! Ao empregar os termos do antigo jogo de dados, “ganho” e “perda”, Paulo retira a questão do nível da moral e da razão, no qual involuntariamente a situamos a partir de nosso cristianismo moralizado. Arriscou um grande jogo em sua vida! “E perdeu muito com isso”, diz o expectador sensato. Verdade, confirma Paulo: “por amor do qual tive de perder tudo isso.” A realidade era dura: seu povo (talvez também seus pais e sua família), sua reputação, sua posição, seu futuro promissor, uma vida sossegada e honrada – tudo isso ele “perdeu no jogo”. Não faz mal, diz Paulo, intercalando uma observação com uma palavra rude: “Considero-o porcaria.” Na verdade ganhei nesse jogo arriscado de minha vida e continuo ganhando: “Para ganhar a Cristo e ser achado nele.” Assim como perder, o ganhar não é mera “questão de opinião”, mera aquisição de conhecimentos dogmáticos. Nem mesmo se trata apenas do chamado “crer em” Cristo. Não, esse mesmo Cristo é a propriedade que ele ganha, tão real como a perda de todo o resto, que não aconteceu apenas em pensamento, mas de fato.

Esse Cristo é, pois, o ambiente de vida no qual Paulo deve ser “encontrado”. Ter conquistado esse amor que jamais será entendido, essa glória divina, essa plenitude da vida eterna de fato faz com que cada outro “ganho” se pareça com “perda”. A vida do cristão certamente é “ascese”, precisando perder, abrir mão, porém isso não é realização moral (que novamente não passaria de “carne”), mas é um ganhar exuberante – no perder, a vida é uma riqueza transbordante na pobreza, e por isso é “alegria” até mesmo quando se é derramado como libação (Fp 2.17). Também o abandono de toda a “religião” própria constitui ganho total. Porque viver neste Cristo é viver “no Espírito”. A partir dessa vida em Cristo fica claro como a mais séria das moralidades e a mais nobre das religiões são mortas, pobres, sombrias, “até mesmo no melhor padrão de vida”. É “carne” e não “Espírito”. Antes não podíamos vê-lo, por estarmos pessoalmente dentro. Agora, porém, ocupando esse “lugar” totalmente diferente em Cristo, nós vemos e já não podemos depositar nossa confiança em qualquer coisa que seja apenas “carne”, mas nos gloriamos unicamente do Cristo Jesus. Será que os filipenses notam do que os “maus obreiros” privam a igreja com todo seu zelo, em que prejuízo eles a precipitam com seu suposto “lucro”?