ESPINHOS E CARDOS — Enciclopedia da Bíblia Online

ESPINHOS E CARDOS

Na Escritura, “espinhos e abrolhos” condensam numa imagem botânica todo um diagnóstico teológico: a terra, que fora criada para frutificar sob o labor humano, tornou-se hostil por causa do pecado, e os sinais dessa hostilidade são plantas hirtas, de crescimento fácil e uso quase sempre inútil, que ferem, sufocam, emparedam caminhos e ardem depressa. Em português bíblico, “espinho” costuma verter o hebraico קוֹץ (qōṣ, “espinho”), enquanto “abrolho” traduz preferencialmente דַּרְדַּר (dardar, “cardo/abrolho”). O primeiro é um substantivo masculino com plural קוֹצִים (qōṣîm), amplamente distribuído no Antigo Testamento; o segundo é forma reduplicada (um padrão expressivo que, em hebraico, intensifica a noção de algo áspero ou incômodo) que aparece de modo emblemático na maldição de Gênesis e reaparece em anúncios de juízo. A antiga versão grega (LXX) frequentemente verterá qōṣ por akántha (“espinho”) e dardar por termos como tríbolos (“cardo/abrolho”), associações que o Novo Testamento retoma quando fala de espinhos que não dão uvas e de solos que produzem mato daninho. No panorama vegetal da Palestina, com verões secos e terrenos pedregosos, havia muitas espécies espinhosas — cardos, sarças e urzes — que, além de dificultarem a passagem, eram usadas como sebes rústicas e, secas, tornavam-se um combustível que crepita rapidamente. É nesse chão concreto que a Bíblia forja sua linguagem teológica.

Imagem de um campo com vários espinhos e cardos (abrolhos).

“Espinhos e abrolhos” aparecem pela primeira vez no veredito de Gênesis sobre a terra após a queda: “Espinhos (qōṣ) e abrolhos (dardar) te produzirá” (Gênesis 3:18). A sentença não anula a vocação do trabalho, mas a frustra: o solo, agora refratário, devolverá resistência, dor e perda de rendimento. O restante da Escritura expande essa intuição inaugural. Quando Josué adverte que as nações remanescentes seriam “espinhos” para Israel (Josué 23:13), a metáfora desloca a hostilidade do chão para a história: desobediências toleradas transformam-se em farpas permanentes, ferindo olhos e lados. Jó reza com ironia moral que, se sua vida foi injusta, “em lugar de trigo cresça espinho (qōṣ)” (Jó 31:40); e, noutra cena, a fome de outros devora o produto do injusto (Jó 5:5), como se o próprio campo se aliasse ao juízo. Os Provérbios traduzem isso em pedagogia: “Espinhos e laços estão no caminho do perverso” (Provérbios 22:5); o terreno do negligente, visto de perto, está “coberto de espinhos” e “urtigas” (Provérbios 24:31), imagem de decadência cumulativa quando se abdica da vigilância. Isaías aplica a mesma gramática aos vereditos históricos: uma vinha sem proteção “crescerá em abrolhos e espinheiros”, porque Deus retirou sua cerca (Isaías 5:6); em dias de desolação, os lugares outrora cultivados “serão abrolhos e espinheiros” (Isaías 7:23; Isaías 32:13). Jeremias, por sua vez, aconselha: “não semeieis entre espinhos” (Jeremias 4:3), porque a palavra plantada em solo não preparado será tragada pelos matos do coração; e registra a colheita da infidelidade com uma ironia dolorosa: “semearam trigo e colheram espinhos” (Jeremias 12:13). Jesus retoma o fio ao dizer que a semente entre espinhos é sufocada (Mateus 13:7), e o autor de Hebreus conclui: a terra que, após receber chuva, produz “espinhos e abrolhos” está perto da maldição (Hebreus 6:8). Assim, a sentença de Gênesis 3:18 se prolonga como um eco: do trato duro com o solo ao trato duro com Deus, a lógica é a mesma — onde a aliança é desprezada, o mato vence.

Se olharmos atentamente cada ocorrência de qōṣ, veremos essa unidade semântica se desdobrar em cenas variadas. Em Gênesis 3:18, como já observamos, qōṣ figura o obstáculo físico e o desperdício de energia: o trabalhador suará mais para colher menos, porque os espinhos disputam o mesmo espaço que o pão. Em Êxodo 22:6, a lei prevê o incêndio que “pega nos espinhos” e se propaga aos montes e searas: os espinheirais secos eram combustível fácil, de chama alta e breve, ruído e cinza — imagem que os Salmos e os profetas explorarão para falar da pressa e da vacuidade do mal. Em Juízes 8:7 e 8:16, Gideão usa “os espinhos do deserto e os abrolhos” como instrumento de disciplina contra príncipes insensíveis: a planta que fere torna-se pedagogo que devolve à pele dos soberbos a dor que causaram. Em 2 Samuel 23:6, “os filhos de Belial são todos como espinhos arrojados, porque não se lhes pega com a mão”: o ímpio é intratável, só se lida com ele com “ferro e lança”, e no fim vai ao fogo — a mesma fogueira de limpeza com que se queima o restolho. O Salmo 118:12 compara os inimigos a um “fogo de espinhos”: chama veloz, barulhenta e breve, que arde muito e dura pouco; parece ameaçadora, mas em pouco tempo vira cinza. Isaías 32:13 volta à paisagem devastada: “sobre a terra do meu povo crescerão espinhos e abrolhos”, sinal de uma economia inteira colapsada; e Isaías 33:12 universaliza a imagem: os povos sob o juízo “serão como cal que se queima, como espinhos cortados que ardem no fogo”, reunindo os dois traços — inutilidade e combustibilidade. Em Jeremias 4:3, qōṣ aparece como má preparação do solo espiritual: quem não revolve o pousio e não arranca o mato semeia a Palavra para ser abafada; Jeremias 12:13 mostra o resultado inevitável: “colheram espinhos”, colheita de frustração. Ezequiel 28:24 promete um fim: “não haverá mais para a casa de Israel espinho que pique nem abrolho que cause dor” — a planta ferina torna-se metáfora dos vizinhos hostis; quando Deus remove o espinho, ele não está apenas limpando um canteiro, mas desarmando agressões históricas. Por fim, Oseias 10:8 declara que, na ruína da idolatria, “crescerão espinho (qōṣ) e abrolho (dardar) sobre os altares”: culto falso, solo abandonado e cardos são uma só paisagem — onde o coração abandona o Senhor, o altar se cobre de mato.

Essa leitura panorâmica ajuda a articular a cadeia de textos que comentam, por expansão e aplicação, a sentença de Gênesis 3:18. Recapitulando, Josué 23:13 empresta à vida comunitária o vocabulário do campo: espinhos nos olhos e açoites nos lados são o que as alianças imprudentes fazem com a santidade do povo. Jó 5:5 e 31:40 trazem a moral da colheita: quem se alimenta de injustiça acaba colhendo qōṣ onde plantou trigo, e a própria terra protesta contra mãos ímpias. Provérbios 22:5 e 24:31 transmutam a imagem em sabedoria de vida: há uma “trilha de espinhos” que acompanha o perverso, e o descuido transforma qualquer vinhedo em baldio. Isaías 5:6 e 7:23, acentuando a retirada da cerca protetora divina, deixam o terreno entregue às sarças; Isaías 32:13 mira a terra do povo, que deveria ser jardim, e a encontra tomada por mato. Jeremias 4:3 e 12:13 lidam com a espiritualidade do preparo: é possível semear o bem e colher o mal quando o coração permanece intocado; a metáfora agrícola denuncia a superficialidade de uma religiosidade sem arado. No Novo Testamento, Jesus identifica a etapa mais trágica: a Palavra que cai “entre espinhos” (Mateus 13:7) é sufocada pelas preocupações e seduções, de modo que a maldição se atualiza dentro da alma; Hebreus 6:8 dá o veredicto de longo prazo: depois de muita chuva recebida (muita graça), se só nascem “espinhos e abrolhos”, o terreno está à beira do fogo. Assim, “espinhos e abrolhos” não são só botânica: são uma cartografia do coração e da história sob a tensão entre maldição e graça.

Quanto às palavras em si, קוֹץ (qōṣ, “espinho”) é o termo mais geral e frequente para plantas que ferem com pontas rígidas; seu plural qōṣîm aparece tanto para massas de mato literal quanto para imagens morais. דַּרְדַּר (dardar, “abrolho/cardo”) parece designar cardos de capítulos espinhosos, com sementes voadoras, que tomam facilmente áreas incultas e abandonadas — por isso ele surge lado a lado com qōṣ quando a Bíblia quer pintar abandono e juízo (Gênesis 3:18; Oseias 10:8). Outros vocábulos hebraicos aproximam-se desse campo semântico — como “brier” e “urtiga” em diversas passagens —, e por isso as traduções portuguesas às vezes alternam “espinhos”, “abrolhos”, “cardos”, “urtigas” e “sarças”. O relevo teológico, porém, permanece estável: são plantas-sinal do mundo desordenado pela culpa humana. Na paisagem palestina descrita pela Escritura, não é raro ver cardos estrelados desprendendo-se como bolas secas e rolando ao vento outonal, efeito que o salmista e Isaías evocam para descrever inimigos dispersos como palha (Salmos 83:13; Isaías 17:13). Também não é fortuito que se usem espinheirais como sebes: a cerca feita de plantas que picam recorda que, às vezes, é a dor que limita e protege; Provérbios fala do caminho do preguiçoso como “sebe de espinhos”, e a história ilustra, aqui e ali, como o sofrimento admoesta (compare Juízes 8:16). Quando Jesus diz que não se colhem uvas de espinheiros nem figos de abrolhos (Mateus 7:16), ele apenas aplica a velha observação de que a natureza não mente: aquilo que algo é por dentro se desdobra naquilo que produz por fora.

Por fim, o par “espinhos e abrolhos”, do Éden em diante, opera como uma chave: denuncia o descompasso entre vocação e realidade, entre lavoura e colheita, entre culto e vida. Onde Deus é esquecido, o campo vira ermo; onde a aliança é guardada, a mesma terra dá fruto. A Bíblia não romantiza o mato — ela o queima (Isaías 33:12), o corta (2 Samuel 23:6), o arranca (Jeremias 4:3) e o toma como alerta espiritual (Mateus 13:7; Hebreus 6:8). Ler qōṣ em suas cenas múltiplas confirma isso: às vezes ele fere a pele, às vezes sufoca a semente, às vezes se acende e some; em todos os casos, lembra que a criação aguarda redenção e que o coração precisa de arado. E quando os profetas prometem dias sem “espinho que pique nem abrolho que cause dor” (Ezequiel 28:24), anunciam não apenas um jardim restaurado, mas um mundo reconciliado em que o trabalho volta a florescer, o altar volta a ser altar e, onde havia cardo e sarça, torna a brotar trigo.

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GALVÃO, Eduardo. Espinhos e Cardos. In: Enciclopédia da Bíblia Online. (S. l.), ago. 2025. Disponível em: [Cole aqui o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].
               

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