Espinhos e Cardos — Enciclopedia da Bíblia Online

ESPINHOS E CARDOS

Na Escritura, “espinhos e abrolhos” condensam numa imagem botânica todo um diagnóstico teológico: a terra, que fora criada para frutificar sob o labor humano, tornou-se hostil por causa do pecado, e os sinais dessa hostilidade são plantas hirtas, de crescimento fácil e uso quase sempre inútil, que ferem, sufocam, emparedam caminhos e ardem depressa. Em português bíblico, “espinho” costuma verter o hebraico קוֹץ (qōṣ, “espinho”), enquanto “abrolho” traduz preferencialmente דַּרְדַּר (dardar, “cardo/abrolho”). O primeiro é um substantivo masculino com plural קוֹצִים (qōṣîm), amplamente distribuído no Antigo Testamento; o segundo é forma reduplicada (um padrão expressivo que, em hebraico, intensifica a noção de algo áspero ou incômodo) que aparece de modo emblemático na maldição de Gênesis e reaparece em anúncios de juízo. A antiga versão grega (LXX) frequentemente verterá qōṣ por akántha (“espinho”) e dardar por termos como tríbolos (“cardo/abrolho”), associações que o Novo Testamento retoma quando fala de espinhos que não dão uvas e de solos que produzem mato daninho. No panorama vegetal da Palestina, com verões secos e terrenos pedregosos, havia muitas espécies espinhosas — cardos, sarças e urzes — que, além de dificultarem a passagem, eram usadas como sebes rústicas e, secas, tornavam-se um combustível que crepita rapidamente. É nesse chão concreto que a Bíblia forja sua linguagem teológica.

Imagem de um campo com vários espinhos e cardos (abrolhos).

“Espinhos e abrolhos” aparecem pela primeira vez no veredito de Gênesis sobre a terra após a queda: “Espinhos (qōṣ) e abrolhos (dardar) te produzirá” (Gênesis 3:18).  A sentença não anula a vocação do trabalho, mas a frustra: o solo, agora refratário, devolverá resistência, dor e perda de rendimento. A expressão, no hebraico, junta qōṣîm (“espinhos”) e dardar (“abrolhos”, “cardos”), par que reaparece, como par, apenas em Oséias 10:8, onde designa não esterilidade absoluta, mas matagal e crescimento invasivo que dificulta a colheita; trata-se, portanto, de um símbolo de resistência do solo ao lavrador, não de um decreto de improdutividade total (WESTERMANN, Genesis 1–11, 1984, p. 264).

No próprio fluxo de Gênesis, o anúncio “fará brotar espinhos e abrolhos” contrasta com o estado anterior do Éden, em que “brotavam” árvores agradáveis e frutíferas sem esforço humano; agora, a mesma raiz de “brotar” ressalta que o que brota, com ênfase, é aquilo que opõe resistência ao cultivo. A sequência imediata — “e comerás a erva do campo” — funciona como indício literário de saída do jardim: antes, o sustento vinha das árvores que Deus oferecera; doravante, a alimentação recai sobre “plantas do campo”, categoria que abrange o que é silvestre e o que é cultivado mediante arado, sol e suor (WENHAM, Genesis 1–15, 1987, pp. 46; 83).

O golpe, portanto, não recai sobre o trabalho em si — que já era vocação no jardim —, mas sobre a experiência do trabalho, que se torna marcada por dureza, frustração e escassez intermitente: “o castigo não é o trabalho, mas a dificuldade que o acompanha”, em íntima correspondência com as dores da mulher e o encurtamento do horizonte vital do homem até o pó.

Esse imaginário de qōṣîm (“espinhos”) e dardar (“cardos”) é antigo e pan-oriental: maldições de fronteiras e estelas acádias já pediam que, em lugar de erva verde, “brotassem ervas daninhas, e, em lugar do grão, espinhos” — uma figura da terra que devolve, ao ofensor, resistência e perda.

Na cadência do oráculo, a terra continua capaz de pão — “com o suor do rosto comerás o teu pão” —, mas agora sob a constante memória de que o chão, tocado por maldição “por tua causa”, devolve também o punhal do mato que fere as mãos e emperra as ferramentas. O trabalho segue dom; o mundo, porém, tornou-se campo de oposição e de espera paciente (SPEISER, Genesis, 1964, pp. 22–23).

“It is speaking about a singularly extraordinary phenomenon which requires explanation: the remarkable fact that a person's work is always joined in some way with toil, trouble, even with sweat and thorns. There are thorns and thistles in every field of work; every harvest demands sweat. To acknowledge this fact... is sober realism... People can do nothing to get rid of the difficulty of work, toil and sweat accentuated by ‘thorns and thistles’; it belongs and will always belong to the human state... The ground is burdened with the curse; but it will still give people bread.” [chave de busca: “There are thorns and thistles in every field of work”] (WESTERMANN, ibid., 1984, p. 265).

A tradição exegética clássica observou, com sobriedade, que não se trata de negar as alegrias da ceifa em Israel, mas de nomear a contraparte constante — a “terra renitente, que só à custa de suor cede pão”, ao passo que “espinhos e sarças” surgem espontaneamente. O exegeta nota ainda que dardar é termo raro no Antigo Testamento e até sobrevivente, como nome comum, em usos siro-levantinos (“dardar” para cardos), o que reforça o caráter de figura concreta e campesina do oráculo (SKINNER, Genesis [ICC], 1910, p. 84–85).

Lidos no conjunto do capítulo, qōṣîm (“espinhos”) e dardar (“cardos”) encenam a fenda aberta entre vocação e ambiente: o homem ainda é chamado a cultivar e guardar, mas o chão, agora sob um “pela tua causa”, devolve o atrito do emaranhado. Mesmo assim, a bênção original não é revogada; ela é disputada por um mundo que resiste. Por isso, o anúncio de 3:18 ecoa como uma pedagogia do coração: viveremos entre qōṣîm (“espinhos”) e pão, entre dardar (“cardos”) e mesa posta, e a fidelidade cotidiana precisará desatar, um dia após o outro, o nó do mato para abrir clareiras de sustento. É o que deixam entrever o contraste entre as árvores do jardim e as “plantas do campo”, a lembrança do pó e do retorno, e o realismo que não permite idealização do labor.

Mesmo quando o olhar se amplia para a Bíblia inteira, a imagem conserva esse núcleo: os “espinhos” como emblema do mundo devolvido à luta (cf. a parábola do joio que cresce “entre o trigo”, moldura evocada pelo próprio comentário) e, contudo, a promessa de pão, dia após dia, sob a benção que não se exaure. 

O restante da Escritura expande essa intuição inaugural. Quando Josué adverte que as nações remanescentes seriam “espinhos” para Israel (Josué 23:13), a metáfora desloca a hostilidade do chão para a história: desobediências toleradas transformam-se em farpas permanentes, ferindo olhos e lados. Jó reza com ironia moral que, se sua vida foi injusta, “em lugar de trigo cresça espinho (qōṣ)” (Jó 31:40); e, noutra cena, a fome de outros devora o produto do injusto (Jó 5:5), como se o próprio campo se aliasse ao juízo. Os Provérbios traduzem isso em pedagogia: “Espinhos e laços estão no caminho do perverso” (Provérbios 22:5); o terreno do negligente, visto de perto, está “coberto de espinhos” e “urtigas” (Provérbios 24:31), imagem de decadência cumulativa quando se abdica da vigilância. Isaías aplica a mesma gramática aos vereditos históricos: uma vinha sem proteção “crescerá em abrolhos e espinheiros”, porque Deus retirou sua cerca (Isaías 5:6); em dias de desolação, os lugares outrora cultivados “serão abrolhos e espinheiros” (Isaías 7:23; Isaías 32:13). Jeremias, por sua vez, aconselha: “não semeieis entre espinhos” (Jeremias 4:3), porque a palavra plantada em solo não preparado será tragada pelos matos do coração; e registra a colheita da infidelidade com uma ironia dolorosa: “semearam trigo e colheram espinhos” (Jeremias 12:13). Jesus retoma o fio ao dizer que a semente entre espinhos é sufocada (Mateus 13:7), e o autor de Hebreus conclui: a terra que, após receber chuva, produz “espinhos e abrolhos” está perto da maldição (Hebreus 6:8). Assim, a sentença de Gênesis 3:18 se prolonga como um eco: do trato duro com o solo ao trato duro com Deus, a lógica é a mesma — onde a aliança é desprezada, o mato vence.

Se olharmos atentamente cada ocorrência de qōṣ, veremos essa unidade semântica se desdobrar em cenas variadas. Em Gênesis 3:18, como já observamos, qōṣ figura o obstáculo físico e o desperdício de energia: o trabalhador suará mais para colher menos, porque os espinhos disputam o mesmo espaço que o pão. Em Êxodo 22:6, a lei prevê o incêndio que “pega nos espinhos” e se propaga aos montes e searas: os espinheirais secos eram combustível fácil, de chama alta e breve, ruído e cinza — imagem que os Salmos e os profetas explorarão para falar da pressa e da vacuidade do mal. Em Juízes 8:7 e 8:16, Gideão usa “os espinhos do deserto e os abrolhos” como instrumento de disciplina contra príncipes insensíveis: a planta que fere torna-se pedagogo que devolve à pele dos soberbos a dor que causaram. Em 2 Samuel 23:6, “os filhos de Belial são todos como espinhos arrojados, porque não se lhes pega com a mão”: o ímpio é intratável, só se lida com ele com “ferro e lança”, e no fim vai ao fogo — a mesma fogueira de limpeza com que se queima o restolho. O Salmo 118:12 compara os inimigos a um “fogo de espinhos”: chama veloz, barulhenta e breve, que arde muito e dura pouco; parece ameaçadora, mas em pouco tempo vira cinza. Isaías 32:13 volta à paisagem devastada: “sobre a terra do meu povo crescerão espinhos e abrolhos”, sinal de uma economia inteira colapsada; e Isaías 33:12 universaliza a imagem: os povos sob o juízo “serão como cal que se queima, como espinhos cortados que ardem no fogo”, reunindo os dois traços — inutilidade e combustibilidade. Em Jeremias 4:3, qōṣ aparece como má preparação do solo espiritual: quem não revolve o pousio e não arranca o mato semeia a Palavra para ser abafada; Jeremias 12:13 mostra o resultado inevitável: “colheram espinhos”, colheita de frustração. Ezequiel 28:24 promete um fim: “não haverá mais para a casa de Israel espinho que pique nem abrolho que cause dor” — a planta ferina torna-se metáfora dos vizinhos hostis; quando Deus remove o espinho, ele não está apenas limpando um canteiro, mas desarmando agressões históricas. Por fim, Oseias 10:8 declara que, na ruína da idolatria, “crescerão espinho (qōṣ) e abrolho (dardar) sobre os altares”: culto falso, solo abandonado e cardos são uma só paisagem — onde o coração abandona o Senhor, o altar se cobre de mato.

Essa leitura panorâmica ajuda a articular a cadeia de textos que comentam, por expansão e aplicação, a sentença de Gênesis 3:18. Recapitulando, Josué 23:13 empresta à vida comunitária o vocabulário do campo: espinhos nos olhos e açoites nos lados são o que as alianças imprudentes fazem com a santidade do povo. Jó 5:5 e 31:40 trazem a moral da colheita: quem se alimenta de injustiça acaba colhendo qōṣ onde plantou trigo, e a própria terra protesta contra mãos ímpias. Provérbios 22:5 e 24:31 transmutam a imagem em sabedoria de vida: há uma “trilha de espinhos” que acompanha o perverso, e o descuido transforma qualquer vinhedo em baldio. Isaías 5:6 e 7:23, acentuando a retirada da cerca protetora divina, deixam o terreno entregue às sarças; Isaías 32:13 mira a terra do povo, que deveria ser jardim, e a encontra tomada por mato. Jeremias 4:3 e 12:13 lidam com a espiritualidade do preparo: é possível semear o bem e colher o mal quando o coração permanece intocado; a metáfora agrícola denuncia a superficialidade de uma religiosidade sem arado. No Novo Testamento, Jesus identifica a etapa mais trágica: a Palavra que cai “entre espinhos” (Mateus 13:7) é sufocada pelas preocupações e seduções, de modo que a maldição se atualiza dentro da alma; Hebreus 6:8 dá o veredicto de longo prazo: depois de muita chuva recebida (muita graça), se só nascem “espinhos e abrolhos”, o terreno está à beira do fogo. Assim, “espinhos e abrolhos” não são só botânica: são uma cartografia do coração e da história sob a tensão entre maldição e graça.

Quanto às palavras em si, קוֹץ (qōṣ, “espinho”) é o termo mais geral e frequente para plantas que ferem com pontas rígidas; seu plural qōṣîm aparece tanto para massas de mato literal quanto para imagens morais. דַּרְדַּר (dardar, “abrolho/cardo”) parece designar cardos de capítulos espinhosos, com sementes voadoras, que tomam facilmente áreas incultas e abandonadas — por isso ele surge lado a lado com qōṣ quando a Bíblia quer pintar abandono e juízo (Gênesis 3:18; Oseias 10:8). Outros vocábulos hebraicos aproximam-se desse campo semântico — como “brier” e “urtiga” em diversas passagens —, e por isso as traduções portuguesas às vezes alternam “espinhos”, “abrolhos”, “cardos”, “urtigas” e “sarças”. O relevo teológico, porém, permanece estável: são plantas-sinal do mundo desordenado pela culpa humana. Na paisagem palestina descrita pela Escritura, não é raro ver cardos estrelados desprendendo-se como bolas secas e rolando ao vento outonal, efeito que o salmista e Isaías evocam para descrever inimigos dispersos como palha (Salmos 83:13; Isaías 17:13). Também não é fortuito que se usem espinheirais como sebes: a cerca feita de plantas que picam recorda que, às vezes, é a dor que limita e protege; Provérbios fala do caminho do preguiçoso como “sebe de espinhos”, e a história ilustra, aqui e ali, como o sofrimento admoesta (compare Juízes 8:16). Quando Jesus diz que não se colhem uvas de espinheiros nem figos de abrolhos (Mateus 7:16), ele apenas aplica a velha observação de que a natureza não mente: aquilo que algo é por dentro se desdobra naquilo que produz por fora.

Por fim, o par “espinhos e abrolhos”, do Éden em diante, opera como uma chave: denuncia o descompasso entre vocação e realidade, entre lavoura e colheita, entre culto e vida. Onde Deus é esquecido, o campo vira ermo; onde a aliança é guardada, a mesma terra dá fruto. A Bíblia não romantiza o mato — ela o queima (Isaías 33:12), o corta (2 Samuel 23:6), o arranca (Jeremias 4:3) e o toma como alerta espiritual (Mateus 13:7; Hebreus 6:8). Ler qōṣ em suas cenas múltiplas confirma isso: às vezes ele fere a pele, às vezes sufoca a semente, às vezes se acende e some; em todos os casos, lembra que a criação aguarda redenção e que o coração precisa de arado. E quando os profetas prometem dias sem “espinho que pique nem abrolho que cause dor” (Ezequiel 28:24), anunciam não apenas um jardim restaurado, mas um mundo reconciliado em que o trabalho volta a florescer, o altar volta a ser altar e, onde havia cardo e sarça, torna a brotar trigo.

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GALVÃO, Eduardo. Espinhos e Cardos. In: Enciclopédia da Bíblia Online. (S. l.), ago. 2025. Disponível em: [Cole aqui o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

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