Adivinhação — Enciclopédia da Bíblia Online

ADIVINHAÇÃO

Adivinhação na Bíblia é qualquer tentativa humana de conhecer, antecipar ou controlar o futuro por meios técnicos, manipulativos ou rituais, sem depender da revelação graciosa e soberana de Deus; prática considerada ilegítima por transferir ao artifício humano aquilo que pertence unicamente à vontade e à palavra divinas.

I. Conceito e Escopo

Adivinhação é o conjunto de meios pelos quais seres humanos buscam obter conhecimento que ultrapassa a cognoscibilidade ordinária — sobretudo sobre o futuro — mediante consulta a entidades (divinas, humanas, espíritos dos mortos ou outras) ou mediante coisas/sinais (observação e interpretação de objetos, ações e fenômenos), com vistas a orientar decisões em situações de incerteza. Em linguagem sistemática, trata-se de um sistema de comunicação pelo qual se procura contato com o divino para receber informação e conselho, ainda que tais rituais também apresentem efeitos sociais e psicológicos (resolução de indecisões, construção de consenso, legitimação) que são secundários em relação à finalidade informativa. 

Adivinhação na Bíblia
A imagem mostra o Fígado de Placência, um artefato etrusco datado do século IV-II a.C.

No mundo bíblico e do Antigo Oriente Próximo, havia grande interesse em conhecer o porvir; entre os suportes correntes mencionavam-se animais, aves e peixes, bem como a atenção a um “nexo” espacial entre a esfera divina e a humana (2 Reis 13:14–19). A prática, porém, está cercada por muitas proibições na Bíblia (por exemplo, Deuteronômio 18:10–11; 2 Crônicas 33:6), ao mesmo tempo em que se reconhece que certos modos de obter direção — especialmente quando entendidos como consulta a Deus — aparecem tolerados ou normativamente empregados (Juízes 1:1–2; 1 Samuel 10:22; 1 Samuel 14:41; Esdras 2).

A. Delimitações: profecia, oração, milagre, consulta litúrgica, omenologia, magia e “ciência” antiga

Profecia, no horizonte bíblico, é revelação que vem de Deus por iniciativa dele; oração é o meio ordinário de petição e discernimento. Em contraste, adivinhação é busca técnica de informação por iniciativa humana. Ainda assim, o Antigo Testamento preserva meios instituídos por Deus para consulta, que não são classificados como práticas ilícitas antes da Nova Aliança:

1. Sorte (cleromancia) para decisões solenes, como a divisão da terra (Números 26:55–56) e a designação do bode emissário (Levítico 16:8–10); no Novo Testamento, o lançamento de sortes para a escolha de Matias (Atos 1:26) é registrado como recurso pré-Pentecostes (Provérbios 16:33).

2. Sonhos reveladores, cuja interpretação é dada por Deus (exemplos: José em Gênesis 41; Daniel 2 e Daniel 4; no Novo Testamento, Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22; 27:19).

3. Urim e Tumim (ʾurim we-tummim), inseridos no peitoral do juízo do sumo sacerdote (Êxodo 28:30; Números 27:21), associados na tradição erudita a procedimentos de sorteio/oráculo do santuário.

4. Comunicação vocal direta de Deus (por exemplo, Êxodo 25:22; Êxodo 29:42–43) e oráculos proféticos (2 Reis 13:17; Jeremias 51:63–64). Esses modos pertencem à esfera da revelação e do culto instituído, não ao repertório de técnicas condenadas.

5. A leitura de omens (presságios) — como voo de aves, movimentos animais, espirros, terremotos, sinais celestes ou o lançamento de sortes — constitui a vertente indutiva da adivinhação. A própria Bíblia preserva atos-sinal ou consultas por sinais interpretados como aprovação divina (por exemplo, o sinal pedido por Jônatas em 1 Samuel 14:8–12) e ações simbólicas proféticas (2 Reis 13:14–19). Como campo, a omenologia foi sistematizada em corpora do Antigo Oriente (Mesopotâmia), nos quais a observação de sinais servia a decisões políticas e cultuais.

(i) Magia e “ciência” antiga. Adivinhação é próxima de magia, mas distinta no propósito: magia visa agir/produzir efeitos, ao passo que adivinhação visa saber; os mesmos agentes, contudo, podiam combinar ambas as esferas (Ver MAGIA). Na classificação bíblica, o bloco de práticas ilícitas em Deuteronômio 18:10–11 delineia ameaça religiosa e social a Israel, interditando consultas a médiuns/espíritos e técnicas consideradas supersticiosas.

B. Critérios de classificação

Inspirada/intuitiva vs. técnica/indutiva. A adivinhação inspirada inclui experiências extáticas, sonhos e oráculos mediadas por pessoas (p. ex., profetas, pitonisas), enquanto a adivinhação técnica/indutiva opera pela observação de sinais (presságios celestes, voos de aves, lotes, vísceras, águas). Na teoria moderna e nas fontes antigas, essa distinção corresponde, em grande medida, à diferença entre métodos pessoais (consulta a seres que “respondem”) e métodos impessoais (leitura de fenômenos objetivos, como o voo de aves, um espirro tomado como sinal, ou o lançamento de sortes).

Individual vs. oracular/institucional. Alguns procedimentos são domésticos/privados; outros são institucionais, ligados a santuários e agentes autorizados (por exemplo, ʾurim we-tummim no culto israelita). Fontes judaicas clássicas e erudição moderna descrevem o ʾurim we-tummim como instrumento oracular do sumo sacerdote, empregado em decisões públicas, com paralelos comparáveis a cleromancia cultual.

Revelação recebida vs. revelação buscada por técnica. Para a teologia bíblica, a linha de demarcação não está apenas no método, mas sobretudo na fonte: a revelação que provém de Deus por meios por Ele instituídos (sorte cultual, sonhos reveladores, ʾurim we-tummim, palavra profética) distingue-se das tentativas humanas de forçar o acesso ao oculto por técnicas interditas (necromancia, feitiçaria, consulta a médiuns), repetidamente proibidas (Levítico 19:31; Levítico 20:6; Deuteronômio 18:10–14; 1 Samuel 28).

O Antigo Testamento condena de modo programático as práticas adivinhatórias difundidas entre as nações (Levítico 19:26, 31; Levítico 20:27; Deuteronômio 18:10–11), ainda que Israel por vezes as tenha praticado na história narrada.

Ao lado dessas condenações, o texto bíblico conhece meios legítimos pelos quais Deus “se dignou dar a conhecer a sua vontade”: sorte, sonhos, Urim e Tumim (ʾurim we-tummim), comunicação vocal direta e profecia (Gênesis 41; Êxodo 25:22; Êxodo 29:42–43; Números 26:55–56; Números 27:21; Levítico 16:8–10; 2 Reis 13:17; Jeremias 51:63–64; Atos 1:26).

Alguns sinais narrativos funcionam como pedidos de confirmação divina (por exemplo, 1 Samuel 14:8–12; 2 Reis 13:14–19), enquanto oneiromancia no sentido estrito não é incentivada como técnica, mas sonhos reveladores são aceitos como canal da vontade de Deus (José e Daniel; sonhos em Mateus).

II. Terminologia e etimologia

A. Hebraico bíblico 

A rede lexical do hebraico distingue, de um lado, termos que nomeiam a prática adivinhatória de modo amplo e, de outro, vocábulos que se referem a técnicas específicas ou a agentes associados a tais práticas. O substantivo qesem designa “adivinhação” de maneira genérica e aparece tanto no contexto de proibição quanto em críticas aos adivinhos das nações (Deuteronômio 18:10; 1 Samuel 15:23; Ezequiel 13:6–7; Ezequiel 21:21). Léxicos de referência classificam qesem como “adivinhação / oráculo (inclusive remuneração de adivinhação)”, com uso majoritário negativo, ainda que a tradição observe um uso figurado positivo em Provérbios 16:10, onde “lábios do rei” são tomados como “sentença divina” (qesem) em sentido metafórico. O verbo nāḥaš descreve o ato de “praticar adivinhação” ou “observar sinais” e aparece, por exemplo, na narrativa de José (Gênesis 44:5, 15), bem como nos catálogos de práticas interditas (Deuteronômio 18:10). O verbo ʿānan desempenha papel próximo, associado a presságios e agouros; em conjunto com nāḥaš, participa da lista de Deuteronômio 18:10–11 que repudia técnicas mantícas em Israel, descrevendo o esforço humano de forçar acesso ao oculto independentemente da vontade revelada de Deus.

Entre os termos que podem nomear meios legítimos de consulta quando integrados ao culto instituído por Deus, gōral significa “sorte” e cobre decisões solenes, como a determinação do bode emissário no Dia da Expiação (Levítico 16:8–10) e a distribuição da terra (Números 26:55–56); no período neotestamentário, o lançamento de sortes reaparece na escolha de Matias (Atos 1:26), em coerência com o provérbio que subordina a sorte à soberania divina (Provérbios 16:33). Ḥălōm refere-se a “sonho” revelador, cuja interpretação, nos relatos paradigmáticos, é dada por Deus — como nos sonhos de José (Gênesis 41) e nas visões de Nabucodonosor interpretadas por Daniel (Daniel 2 e 4); no Novo Testamento, sonhos orientam eventos decisivos (Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22; 27:19). O sintagma ʾūrîm we-tummîm, ligado ao peitoral do juízo do sumo sacerdote, representa aparato oracular cultual cujo funcionamento exato permanece discutido; as fontes o vinculam a consultas oficiais (Êxodo 28:30; Números 27:21; 1 Samuel 14:41) e à triagem de linhagens sacerdotais no pós-exílio (Esdras 2:63), com paralelos plausíveis à cleromancia sagrada.

O campo das proibições inclui vocábulos que marcam agentes e técnicas interditas. ʾōb associa-se a necromancia/mediunidade (Levítico 19:31; 1 Samuel 28), enquanto yiddeʿonî designa praticantes sabedores/“consultores” de espíritos; as fontes judaicas clássicas notam a recorrente parelha ʾōb/yiddeʿonî nos textos legais e narrativos relativos à consulta aos mortos. Kāšap̄ denomina feitiçaria e seus agentes, condenados nos códigos (Êxodo 22:18; Levítico 20:27), e figura entre as práticas que os profetas associam à infidelidade religiosa (por exemplo, Miquéias 5:12). Por fim, vale observar a coexistência, no corpus bíblico, de uma crítica ampla à “adivinhação” como técnica autônoma (qesem, nāḥaš, ʿānan) e de meios institucionais nos quais Deus, por sua iniciativa, dá direção (sorte cultual, sonhos, ʾūrîm we-tummîm, palavra profética), distinção teológica que atravessa a literatura canônica e molda o campo semântico da terminologia.

B. Outras línguas semíticas e o Antigo Oriente Próximo

No acádio, bārû designa o “adivinho” cultual, especialista especialmente em hepatoscopia, e bārûtu é o monumental compêndio técnico de extispícia (“a arte do adivinho”), preservado em dezenas de tabuinhas; a literatura assírio-babilônica descreve o ritual do bārû com invocações a Šamaš e Adad para que “escrevam” o veredito nos fígados examinados, evidenciando uma ciência técnica de presságios com forte institucionalização cortesã. Nas tradições de Ugarit (Noroeste semítico), o radical q-s-m atesta a noção de “adivinhação” (ugarítico 𐎖𐎕𐎎, transliteração qsm), em consonância com o hebraico qesem, e a documentação tardo-bronze sugere a circulação de modelos divinatórios e compêndios omenológicos na administração palaciana. Em árabe clássico, kāhina/kāhānatu (كاهِن / كِهانة) remetem, respectivamente, ao “adivinho/sacerdote” pré-islâmico e à “adivinhação/arte do adivinho”, com ampla convergência semítica do radical k-h-n (hebraico kōhēn; aramaico/siríaco ܟܗܢܐ kāhnā), indicando o lugar social do especialista cultual com funções mantícas. (HAMMOND, A Dictionary of Arabic Literary Terms and Devices, 2008) Quanto ao trânsito conceitual entre Israel e o entorno, estudos destacam a relação entre terafim e práticas divinatórias (por exemplo, Ezequiel 21:21; Zacarias 10:2) e apontam como o léxico e os objetos oraculares israelitas dialogam com os sistemas mantícos mesopotâmicos e siro-levantinos, ainda que a literatura bíblica submeta tais procedimentos a uma crítica teológica específica. (TOORN, The Nature of the Biblical Teraphim in the Light of the Cuneiform Evidence, 1990, pp. 203-222)

C. Grego (LXX e Novo Testamento)

A terminologia grega articula a adivinhação com a esfera da manteía (arte oracular) e de seus agentes, o mántis (adivinho), além do verbo manteuomai (“praticar adivinhação”). Léxicos antigos associam esse vocabulário à ideia de inspiração extática e comunicação oracular; no Novo Testamento, manteuomai qualifica a atividade da escrava de Filipos “com espírito de Pýthōn” (Atos 16:16), remetendo ao universo délfico de Pytho/Apolo, no qual a manteía se exercia por possessão oracular. O campo de “magia/feitiçaria” é nomeado por goēteía e por pharmakeía. O primeiro termo, bem atestado na literatura clássica para “feitiçaria/arte do goēs”, entra no léxico bíblico sobretudo via equivalências LXX/ambiente helenístico; o segundo, pharmakeía, aparece explicitamente no Novo Testamento (Gálatas 5:20; Apocalipse 18:23; associados ainda: Apocalipse 9:21; 21:8; 22:15) para condenar práticas mágicas, ficando claro o vínculo semântico entre “drogas/poções” e manipulação mágica (veja MÁGICA). Outro eixo relevante é klēros (“sorte, quinhão”), vocábulo que na Septuaginta verte com frequência gōral e naḥalāh e que no Novo Testamento nomeia tanto o procedimento de Atos 1:26 quanto, metaforicamente, a “herança” dos santos (Colossenses 1:12). Em conjunto, esse vocabulário grego confirma que a tradição bíblica grega absorve e reconfigura termos do universo oracular helênico (como Pýthōn em Atos 16:16) ao mesmo tempo que reserva ao Deus de Israel a iniciativa legítima de comunicar sua vontade por meios próprios (por exemplo, decisões por sorte sagrada).

Observações metodológicas e confluência. O material bíblico enfatiza, por um lado, a condenação praticamente universal das técnicas adivinhatórias como “sistema” autônomo de obtenção de conhecimento — necromancia, feitiçaria, consulta a médiuns, presságios — e, por outro, reconhece meios instituídos por Deus para direção legítima, notadamente a sorte cultual (Levítico 16:8–10; Números 26:55–56), os sonhos reveladores (Gênesis 41; Daniel 2 e 4; Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22; 27:19) e ʾūrîm we-tummîm (Êxodo 28:30; Números 27:21; 1 Samuel 14:41; Esdras 2:63), os quais a tradição pós-bíblica relaciona a procedimentos cleromânticos do santuário. Essa distinção teológica se reflete na própria terminologia hebraica e grega, que ora nomeia a técnica ilícita (qesem, nāḥaš, ʿānan; goēteía, pharmakeía), ora descreve o canal legítimo de consulta e veredito (gōral/klēros; manteuomai em Atos 16:16 como contraste; ʾūrîm we-tummîm).

III. Léxico e semântica hebraica aplicada

A. Qesem e correlatos: campo semântico e ocorrências

O substantivo qesem designa “adivinhação” de modo abrangente e, por extensão, o “oráculo” e até mesmo o “pagamento” pelo serviço adivinhatório. Em registros de condenação cultual aparece nos catálogos legais (Deuteronômio 18:10), na crítica profética e em julgamentos históricos (Ezequiel 13:6–7; Ezequiel 21:21, em paralelo com outras técnicas), e na narrativa sobre Balaão, onde o ofício é socialmente reconhecido e remunerado (Números 22:7). Um emprego metafórico singular, porém, aproxima qesem de “sentença divina” na boca do rei (Provérbios 16:10), sem com isso legitimar a técnica mantíca como tal, mas sublinhando a origem transcendental do veredito régio. Léxicos padrão observam esse duplo perfil: termo-teto para a prática adivinhatória e, por metáfora, marca de autoridade oracular aplicada à realeza. A literatura acadêmica situa qesem no centro do dossiê de Deuteronômio 18:9–14, onde a Torá contrapõe a adivinhação das nações ao profeta que fala em nome de Deus, estabelecendo um corte teológico entre “técnica” e “revelação” (Deuteronômio 18:15–22). Para baliza filológica, dicionários históricos e compêndios exegéticos destacam a amplitude semântica do termo, incluindo a noção de “oráculo” e de “honorários” adivinhatórios.

B. Nāḥaš e ʿānan: presságios, encantamentos e nuances

Os verbos nāḥaš (em uso piel) e ʿānan formam, com qesem, o núcleo do vocabulário que descreve adivinhação “indutiva”, isto é, a leitura e a manipulação de sinais. Nāḥaš expressa o ato de “praticar adivinhação” por agouros e encantamentos e aparece, por exemplo, na boca de José ao falar do “cálice com que adivinho” (Gênesis 44:5; Gênesis 44:15), bem como nos interditos legais ao lado de ʿānan (Deuteronômio 18:10). Em estudos lexicais, nāḥaš concentra-se no sentido técnico “adivinhar”, distinto do substantivo homógrafo “serpente” (embora a tradição antiga explore, ocasionalmente, a associação simbólica entre serpentes e mantos de poder mágico). ʿĀnan, por sua vez, caracteriza o “fazer agouros, praticar sortilégios, observar tempos”, compondo com nāḥaš a dupla típica dos interditos (Levítico 19:26; Deuteronômio 18:10–11). Análises morfossintáticas anotam que ʿānan ocorre em construções intensivas e causativas, refletindo a ideia de “produzir” presságios ou tempos “favoráveis”. Comentários filológicos recentes ressaltam que ambos os verbos funcionam como guarda-chuvas para operações variadas de leitura de sinais, desde a observação de fenômenos atmosféricos e celestes até práticas encantatórias. (Preceptaustin.org)

C. Gōral (sorte): sorteio sagrado, usos civis e cultuais

O substantivo gōral nomeia a “sorte” lançada para aferir uma decisão sob a soberania de Deus. O campo de uso vai do culto ao civil. No Dia da Expiação, a designação do bode “para o Senhor” e do bode “para Azazel” se dá por sortes diante de Deus (Levítico 16:8–10), concentrando na prática a convicção de que “a sorte se lança no regaço, mas a decisão procede do Senhor” (Provérbios 16:33). A distribuição da terra entre as tribos também recorre a gōral (Números 26:55–56), e a literatura histórica preserva episódios decisórios por sorte (1 Samuel 10:20–21; 1 Crônicas 24:5–6; Jonas 1:7). No Novo Testamento, o vocábulo grego correlato, klēros, reaparece no registro do sorteio para a escolha de Matias (Atos 1:26), funcionando como ponte semântica entre a prática israelita e a memória eclesial nascente. Estudos especializados em história da religião e arqueologia do Levante observam que a cleromancia sagrada não equivale à adivinhação “autônoma”: ao contrário, apresenta-se como meio institucional de submissão da decisão ao veredito divino, em contraste com a “técnica” que pretende controlar o desconhecido. Pesquisas acadêmicas recentes têm mapeado, inclusive, a materialidade de dados e astrágalos usados para prognose na Antiguidade e o lugar da sorte em rituais decisórios israelitas (BEN-YOSEF, Gaming dice and dice for prognostication in the ancient East in light of the finds from Mount Ebal, 1946, pp. 410-429).

D. ʾŌb e yiddeʿonî: necromancia e consulta aos mortos

Os substantivos ʾōb e yiddeʿonî aparecem quase sempre em parelha nos catálogos legais e proféticos para designar mediadores e práticas de consulta aos mortos (Levítico 19:31; Levítico 20:6; Deuteronômio 18:11; 1 Samuel 28). A literatura erudita reconhece que o sentido exato de ʾōb é debatido: pode nomear o “espírito do morto” consultado, o “médium” que o convoca ou, em sentido mais antigo, o “poço/vaso” ritual empregado em necromancia; oscilação semelhante ocorre com yiddeʿonî, provavelmente “sabedor/oraculista”, designando o especialista que intermedeia a resposta. A tradução grega antiga frequentemente verte ʾōb por engastrimythos, termo que, na tradição helenística tardia, adere à ideia de “ventriloquia” oracular; estudos lexicográficos destacam, porém, que a escolha da Septuaginta confere cor necromântica específica ao termo grego, nem sempre presente na literatura clássica mais antiga. A síntese histórico-filológica atual tende a ler ʾōb e yiddeʿonî como peças de um mesmo campo necromântico: mediadores, espíritos e dispositivos rituais de consulta ao além-túmulo, cuja prática é interditada no corpus legal e narrativamente estigmatizada no caso paradigmático de Saul e a necromante de En-Dor (1 Samuel 28). (Enciclopédia Judaica)

E. Kāšap̄ (feitiçaria) e interfaces com a adivinhação

O verbo kāšap̄ e seus derivados (kĕšāp̄îm, “feitiçarias”; kaššāph, “feiticeiro”) descrevem práticas de feitiçaria entendidas como manipulação ritual de poderes e agentes espirituais fora da moldura do culto autorizado. A legislação deuteronômica e códigos correlatos incluem kāšap̄ nos catálogos de interdição (Deuteronômio 18:10–11), e o direito civil do Antigo Israel penaliza a feitiçaria de modo máximo (Êxodo 22:18). A historiografia cultual relaciona kāšap̄ ao ambiente de técnicas mágicas e encantatórias do Oriente Próximo, em que “palavras e ritos” visavam produzir efeitos sobre pessoas e circunstâncias. Nos livros históricos e proféticos, a prática marca períodos de apostasia e sincretismo, como sob Manassés (2 Crônicas 33:6), e compõe denúncias veementes (Miqueias 5:12; Naum 3:4). Estudos lexicais sistematizam o uso verbal com valor intensivo (“praticar feitiçaria”) e o nominal para agentes e atos, e observam a correlação habitual, nas traduções gregas antigas, com o campo de pharmakeía e goēteía. No conjunto do léxico bíblico, kāšap̄ se distingue da adivinhação por visar “fazer”, não apenas “saber”, ainda que, na prática, feitiçaria e adivinhação frequentemente se imbricassem social e religiosamente.

F. Sonhos (ḥălōm) e sua interpretação: quando são adivinhação, quando são revelação

O substantivo ḥălōm, “sonho”, permeia narrativas e discursos teológicos como canal significativo de comunicação divina. A tradição bíblica distingue a oniromancia técnica — parte do repertório adivinhatório do entorno — de sonhos “reveladores” nos quais Deus mesmo comunica sua vontade e, às vezes, fornece a interpretação. Os relatos paradigmáticos são os de José, cuja interpretação de sonhos no Egito é explicitamente atribuída a Deus (Gênesis 41), e os de Daniel, que, por dom divino, desvenda sonhos e visões de Nabucodonosor (Daniel 2 e 4). No Novo Testamento, a condução de José, esposo de Maria, por uma sequência de sonhos (Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22) confirma o status do ḥălōm revelador no horizonte cristão primitivo, ao passo que a tradição sapiencial e profética do Antigo Testamento adverte contra “sonhos mentirosos” que seduzem o povo (Zacarias 10:2; Jeremias 23:25–32). Estudos recentes propõem tipologias de sonhos e sonhadores na Bíblia Hebraica, assinalando diferenças de forma, função e autoridade, e pesquisas específicas sobre os sonhos em Mateus ressaltam seu papel teológico de orientação e confirmação providencial. Em paralelo, práticas de incubação onírica e “perguntas de sonho” documentadas em períodos posteriores mostram o quão poroso é o limiar entre devoção e técnica, razão pela qual o cânon bíblico preserva o crivo teológico: o sonho é legítimo quando Deus toma a iniciativa e quando sua interpretação provém dele, não de artes mantícas. (FIDLER, Here Comes This Dreamer, pp. 52-55)

Comentário de integração semântica. O quadro lexical hebraico, observado no conjunto, mostra duas linhas mestras: de um lado, um léxico que nomeia procedimentos e agentes proibidos (qesemnāḥašʿānanʾōbyiddeʿonîkāšap̄), associados a tentativas humanas de forçar acesso ao oculto; de outro, um vocabulário para meios legítimos pelos quais Deus — por iniciativa própria e sob moldura cultual e profética — faz conhecer a sua vontade (gōralḥălōm em chave revelacional; e, em outra seção, ʾūrîm wĕtummîm). A análise semântica acompanha a avaliação teológica interna do corpus: a “técnica” enquanto técnica é reprovada; os meios que subordinam a decisão e o conhecimento à soberania divina são preservados. Paralelos culturais do Antigo Oriente Próximo ajudam a compreender o alcance desses termos (por exemplo, a plausibilidade da adivinhação líquida por trás de Gênesis 44:5; Gênesis 44:15), mas também ressaltam a singularidade do recorte bíblico, que desautoriza a adivinhação como sistema autônomo e reafirma a primazia da revelação.

IV. Tipologias de adivinhação (antropologia da religião)

A adivinhação percorre um espectro que vai de experiências inspiradas a procedimentos técnicos de leitura de sinais, passando por mediações oraculares institucionalizadas e por práticas domésticas ou populares. Percebe-se a constatação de que o Antigo Testamento condena tais práticas entre os povos (Levítico 19:26; Deuteronômio 18:10–11), embora a narrativa mostre que o povo de Israel, em sua história, muitas vezes se envolveu com elas, até “sem qualquer censura explícita” em determinados relatos, o que exige distinguir, na análise, entre a técnica adivinhatória como tal e os meios pelos quais Deus, por iniciativa sua, deu direção (sorte cultual, sonhos reveladores, ʾūrîm we-tummîm, palavra profética). Em seguida, se oferece um sumário de oito modalidades usuais “empregadas nas páginas das Escrituras ou na cultura judaica”, que sistematizo, sem alterar conteúdo, em quatro famílias tipológicas — inspirada/ecstática, técnica/indutiva, oracular-institucional e doméstica/popular — e um campo liminar bíblico de “sinais” solicitados a Deus.

No conjunto inspirado/ecstático, as Escrituras descreve a oniromancia em contraste com os sonhos “reveladores” concedidos por Deus. A seção “Sonhos” sublinha “muitas instâncias” de sonhos pelos quais Deus guiou pessoas (José em Gênesis 41; Daniel 2 e 4; no Novo Testamento, Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22; 27:19), observando ainda que estudos modernos entendem o sonho como mecanismo que integra passado, presente e futuro, com função de orientação, preparo e resolução de problemas pessoais. Deve-se se enfatizar que a experiência onírica é a mais comum entre as psíquicas, que fornece orientação ao indivíduo e pode prepará-lo para o futuro, e que Deus não está limitado quanto aos meios de comunicar-se — observação que deve vir acompanhada de advertência pastoral: experiências “inspiradas” podem ser genuínas, mas também podem ser confundidas com produtos do subconsciente, “espíritos humanos” ou outras entidades; por isso, é importante alertar contra abusos e confusões em fenômenos eclesiais como glossolalia, “pronunciamentos proféticos” e visões quando usados sem discernimento. Ainda nesse bloco inspirado, aparece a nota sobre a jovem “com espírito de Píton” em Filipos (Atos 16:16–18), cuja explicação se vincula ao universo délfico das pitonisas, mostrando como o mundo greco-romano reconhecia a adivinhação por possessão oracular; a terminologia grega de pneuma pythōna reforça esse cenário cultural (Atos 16:16).

No conjunto técnico/indutivo, se descreve com detalhes os procedimentos que “observam e interpretam sinais” em fenômenos, objetos e organismos. A rabdomancia/belomancia (Ezequiel 21:21) consiste em lançar varas ou flechas e inferir presságios de sua disposição ao cair, talvez aludida por Oséias 4:12; a passagem de Ezequiel apresenta uma cena de encruzilhada em que o rei “sacode as flechas”, consulta terafins e examina o fígado, compondo um quadro de adivinhação múltipla. A hepatoscopia (também em Ezequiel 21:21) é definida como o exame do fígado e de outras entranhas de animais, aos quais se atribuem “sentidos prováveis” conforme sinais observados. A hidromancia, por seu turno, “assume diversas formas”: o adivinho fixa o olhar em objetos líquidos ou cintilantes, “produzindo um transe passageiro” que, “nesse estado”, abriria a mente à recepção de mensagens; por isso, se adverte que não se recomenda a ninguém “submeter-se à hipnose”, por franqueá-la a influências externas e criar dependência. Importa observar que muito daquilo que se vê ou se ouve em sessões e ritos pode provir do próprio subconsciente do médium. A adivinhação por bola de cristal, em que alguns obtêm clarividência por esse método, citando como “referência ilustrativa” a percepção de Balaão em Números 24:1 (“vendo que aprouve ao Senhor abençoar Israel”). Nesse mesmo bloco técnico se inclui a astrologia, que tira suas conclusões mediante o estudo do sol, da lua, dos planetas e das constelações; a Bíblia despreza tais especulações (Isaías 47:13; Jeremias 10:2), mas se faz mister narrar a leitura patrística dos “magos” que vieram do Oriente (Mateus 2:1–12): para muitos Pais, a vinda deles teria funcionado como reconhecimento de que a revelação de Cristo encerra tais buscas. E, de modo notavelmente sistemático, se registra três variedades correntes no discurso religioso sobre a astrologia: a primeira, energética, supõe que astros emitem emanações que afetam a vida humana, hipótese esta frágil (difícil crer que a débil energia dos planetas produza tais efeitos); a segunda trabalha com coincidência cheia de significado, isto é, uma correlação providencial entre o curso dos céus e eventos humanos, sem causalidade física; a terceira, chamada “astrologia cristã”, propõe uma leitura simbólica cristocêntrica do zodíaco como exibição das glórias de Cristo. Ainda no grupo indutivo, a cleromancia aparece como “sortes” empregadas em decisões solenes: deve-se remeter a Atos 1:26 (que serão tratadas mais adiante no dossiê bíblico) e, na moldura veterotestamentária, lembra a distribuição da terra (Números 26:55–56) e o “bode emissário” (Levítico 16:8–10), sob a convicção sapienciai de que “a sorte se lança no regaço, mas toda decisão vem do Senhor” (Provérbios 16:33).

No conjunto oracular-institucional, se dá relevo aos terafins e ao aparato cultual israelita. Os terafins são “imagens de antepassados mortos” (1 Samuel 15:23; Ezequiel 21:21; Zacarias 10:2) e figuram na cena de Ezequiel 21:21 como um dos meios consultados, o que confirma seu uso adivinhatório em ambientes siro-levantinos; por isso, se observa que o método representava alguma forma remota de espiritismo, isto é, conexão com o mundo dos mortos. Em paralelo, deve-se mencionar o dispositivo dos ʾūrîm we-tummîm (Êxodo 28:30; Números 27:21), ligado ao peitoral do juízo, classe distinta por integrar o culto instituído: trata-se de meio oracular legítimo em Israel, a ser tratado em detalhe na seção própria. Nesse mesmo eixo institucional, deve-se recordar da “comunicação vocal direta” de Deus (Êxodo 25:22; 29:42–43) e oráculos proféticos como canais autorizados, lembrando que, diferentemente de técnicas, aqui é Deus quem toma a iniciativa de revelar.

No conjunto doméstico/popular, se lista práticas de uso corrente: além da já mencionada “bola de cristal”, há amuletos, talismãs e “portentos ou fenômenos casuais”, bem como a quiromancia, “que prediz o futuro examinando marcas da palma da mão”. Se chama esses campos pelo nome técnico (augúrio para sinais em aves e presságios naturais; belomancia para flechas; quiromancia para linhas da mão), registrando que “a adivinhação oracular” e “a bola de cristal” são “outras formas” do repertório popular. Se inclui, inclusive, uma nota histórica ampla: o berço da adivinhação foi Babilônia, terra dos caldeus, de onde tais práticas, por difusão cultural, passaram às demais regiões — explicação que reaparece na sua síntese sobre hepatoscopia, com a crença antiga de que o fígado “concentra” a vida e, por isso, revelaria o favor ou a ira dos deuses, e na sua lista de condenações bíblicas e relatos de persistência dessas artes no período apostólico (Atos 8:9–13; 19:19).

Se reserva um bloco liminar especificamente bíblico, o dos “sinais” pedidos a Deus, distinguindo-o das técnicas adivinhatórias. Exemplos narrativos como a prova de Jônatas (1 Samuel 14:8–12) e o gesto profético de Eliseu diante do rei (2 Reis 13:14–19) mostram atos-sinal que não implicam técnica mantíca autônoma, mas dependência da iniciativa divina para confirmar um caminho. É também nessa zona liminar que se reflete longamente sobre necromancia. Ao definir necromancia como consulta aos mortos, isto é, aos espíritos de pessoas falecidas, se abre quatro observações: a doutrina judaica condenava o contato e, ao mesmo tempo, não considerava tal coisa “impossível”; associava comumente “demônios” a tais práticas, admitindo que nem sempre estão em pauta espíritos humanos e reconhecendo entidades espirituais sobre as quais não temos maior conhecimento; em tempos modernos, há relatos “genuínos” e outros “falsos”, o que se admite que espíritos malignos se passem por humanos desencarnados num “mundo intermediário” de “destinos ainda não definidos”; e lembra que encontros legítimos com mortos (como Moisés no monte da transfiguração) são “raríssimos” e não devem ser buscados abertamente pelos vivos. Ao mesmo tempo, é importante perceber as proibições legais (Levítico 19:31; 20:27; Deuteronômio 18:10–11) e as denúncias proféticas, e sublinha o paradigma teológico: Deus frustra adivinhos, como no confronto com os magos egípcios (Êxodo 7–9), na inversão do “Pur” de Hamã (Ester 3:7–9; 9:24–25) e no bloqueio ao intento de Balaão (Números 22–24). 

A cena de Ezequiel 21:21, com a tríade “sacudir flechas/consultar terafins/olhar o fígado”, confirma que a belomancia e a hepatoscopia são precisamente os dispositivos mesopotâmicos em uso; estudos de omens e divinação no Antigo Oriente Próximo descrevem o método de “sacudir” flechas nomeadas para decidir rotas e alvos e documentam modelos de fígado em argila usados para treinamento extispicino (Ezequiel 21:21; ANNUS, Divination and Interpretation of Signs in the Ancient World, 2010, pp. 128, 287, 310). A natureza adivinhatória dos terafins em passagens como Ezequiel 21:21 e Zacarias 10:2 é tratada em detalhe por TOORN (1990), com base em paralelos cuneiformes que associam esses ídolos domésticos à consulta oracular; estudos posteriores retomam a função ancestal-oracular desses objetos. Para a hidromancia/lecanomancia em Gênesis 44, há documentação de manuais babilônicos de leitura de óleo em água na época paleobabilônica, o que dá plausibilidade técnica ao “cálice” de José como instrumento culturalmente reconhecível, embora o próprio livro de Gênesis apresente o episódio no contexto do teste de José com seus irmãos. Sobre ʾūrîm we-tummîm, tanto a Jewish Encyclopedia quanto estudos em periódicos destacam a conexão com procedimentos cleromânticos sagrados, reforçando a distinção bíblica entre técnica interditada e consulta cultual autorizada. Por fim, para o pano de fundo mais amplo da omenologia astral e sua função de Estado, a série mesopotâmica Enūma Anu Enlil e sínteses de Cambridge e Brill mostram a divinação como parte orgânica do “saber” (ṭupsarrūtu) e da “sabedoria” (nēmequ) cortesãos, o que explica tanto a sofisticação técnica dos presságios quanto a crítica israelita ao uso supersticioso dessas artes.

Imagem de um fígado usado para adivinhação na mesopotâmia
Modelo de fígado de ovelha da Mari, usado para adivinhação. Foto © 1998 GrandPalaisRmn (musée du Louvre) / Hervé Lewandowski.

V. Tempo, destino e sentido: enquadramento bíblico e religioso

A problemática da adivinhação, quando vista em conjunto, não se limita a técnicas para conhecer o oculto; ela dramatiza, em chave religiosa, três eixos interpretativos fundamentais: o tempo, o destino e o sentido. Em termos históricos-religiosos, boa parte das culturas recorreu a especialistas e dispositivos mantícos para decifrar a direção do tempo vivido, por julgar que a vida humana está constantemente interpelada por sinais que exigem interpretação. Nos grandes sistemas do Antigo Oriente, essa interpretação do devir apoiava-se em corpora técnicos de presságios e na crença de que o céu e a terra funcionam como uma escrita dos deuses, cujo código pode ser lido por quem domina a arte. Na antropologia comparada, perfis distintos de inspiração profética, transe xamânico, êxtase místico e mediunidade oracular são descritos segundo o grau de lucidez do sujeito e a natureza da agência espiritual que comunica o “veredito”, mas o fundo comum é a convicção de que existe uma “iluminação do sentido temporal dos acontecimentos” que transcende a pura causalidade física, conferindo às experiências humanas uma ordenação inteligível. Essa noção — a de que há uma revelação do significado dos eventos no tempo — é explicitamente reconhecida em análises clássicas de religiões, onde o profeta, diferentemente do médium oracular, conserva consciência de si e do mundo ao mesmo tempo em que é “possuído” pela evidência de um sentido integral do real, comunicável à comunidade humana. (ZUESSE, The Encyclopedia of Religion, p. 2369-2372)

No horizonte bíblico, a chave de leitura não é o fatalismo, mas a providência. O tempo é visto como dom e arena da fidelidade de Deus, que “muda os tempos e as estações” (Daniel 2:21) e marca a história com moʿadim (tempos fixos), enquanto a sabedoria confessa: “Os meus tempos estão nas tuas mãos” (Salmos 31:15). Por isso, a Bíblia não nega que o tempo tenha estrutura e ritmo; ela os reinterpreta à luz do senhorio de Deus, e não de vínculos anônimos. No Novo Testamento, a linguagem de chronos e kairoi (chronos como transcurso, kairoi como sazões propícias) desloca o eixo para a economia da revelação, em que “a plenitude dos tempos” reconfigura o sentido de toda história (Gálatas 4:4). A exigência de discernimento, portanto, não é suprida por técnicas mantícas, mas por dons e meios instituídos por Deus (sonhos reveladores, palavra profética, gōral entendido como sorte sob soberania divina e, no culto antigo, ʾūrîm we-tummîm), que reorientam a leitura do tempo para a obediência e a esperança, não para a manipulação de um destino impessoal (Êxodo 28:30; Números 27:21; Levítico 16:8–10; Números 26:55–56; Provérbios 16:33; Gênesis 41; Daniel 2 e 4; Mateus 1:20; 2:12–13, 19, 22; Atos 1:26).

A questão do destino, na Bíblia, converge para duas palavras estruturantes. No hebraico, gōral (“sorte, quinhão”) é o dispositivo pelo qual decisões solenes se submeteram à vontade divina, como no Dia da Expiação (Levítico 16:8–10) e na distribuição da terra (Números 26:55–56), sempre sob a convicção sapiencial de que “a sorte se lança no regaço, mas toda decisão vem do Senhor” (Provérbios 16:33). No grego bíblico, klēros herda o campo semântico tanto da “sorte” quanto da “herança”, permitindo que o destino do povo de Deus seja dito não como cega necessidade, mas como porção recebida de uma vontade pessoal e benevolente (Colossenses 1:12). Essa gramática desautoriza o destino como pura determinação astrológica ou necessidade cósmica, embora reconheça que os céus e a terra sejam teatro de sinais; ao mesmo tempo, relativiza o impulso de “forçar” o acesso ao porvir por meios técnicos, porque submete o futuro à liberdade de Deus, não a um código disponível à curiosidade humana (Isaías 47:13; Jeremias 10:2). Em contraste com os modelos mesopotâmicos, em que o porvir pode ser parcialmente pré-determinado e tornado legível por extensas séries de presságios, a narrativa bíblica insiste que é a aliança — e não o zodíaco — que decide o destino de Israel, e que o conhecimento verdadeiro do devir é inseparável da conversão do coração (Deuteronômio 18:9–14; Isaías 55:6–9; ULANOWSKI, Mesopotamian Divination: Some Historical, Religious and Anthropological Remarks, 2014)

Também o sentido é reconfigurado. A adivinhação pressupõe que os sinais carregam um significado que deve ser reconstruído pelo especialista; a Bíblia responde que o sentido último do mundo não está nos sinais, mas no Deus que fala. É por isso que, no corpus profético, os “atos-sinal” não são técnicas para produzir respostas, mas interpelações de Deus que convocam à fé e à obediência (por exemplo, o gesto de Eliseu com o rei, em 2 Reis 13:14–19). Quando a literatura sapiencial adverte contra “adivinhos” e “sonhos mentirosos” (Zacarias 10:2), não está negando que haja sonhos verdadeiros, e sim estabelecendo o crivo teológico do discernimento: sonhos autênticos são aqueles cuja interpretação Deus mesmo concede, como nos relatos paradigmáticos de José e de Daniel (Gênesis 41; Daniel 2 e 4). De modo particularmente eloquente, a perícope de Atos 16:16–18 opõe o “espírito de Pýthōn”, campo semântico típico da manteía délfica, à autoridade do nome de Jesus, insistindo que a verdadeira leitura do destino humano não nasce de possessões oraculares, mas da libertação que reordena o tempo da pessoa em relação a Deus. Essa cena, frequentemente comentada em estudos do mundo greco-romano, mostra como a tradição cristã primitiva desloca o eixo de autoridade semântica: o oráculo cala para que se manifeste um outro modo de conhecer, em que a integridade do sujeito e a presença de Deus caminham juntas, mais próximo do modelo profético do que do transe mediúnico.

Uma comparação com o Antigo Oriente Próximo evidencia o contraste. Na Mesopotâmia, séries divinatórias como os tratados de presságios celestes e a prática da hepatoscopia pretendiam constituir uma “ciência dos sinais” com protocolos reprodutíveis, treinando gerações de bārû a ler nos céus e nos fígados o veredito dos deuses. Modelos de fígado em argila, com inscrições que indicam “assentos” divinos, atestam a institucionalização desse saber; a cena de Ezequiel 21:21, ao descrever o rei de Babilônia “sacudindo as flechas”, “consultando terafins” e “olhando o fígado”, reflete com precisão o repertório mesopotâmico, ao qual se soma a belomancia como método de decidir rotas e alvos. Esses sistemas, entretanto, apesar de sua sofisticação técnica, operam com um destino codificado anônimo, enquanto a Bíblia subordina o devir a um sujeito livre e santo, cuja vontade se conhece por caminhos pactuais e éticos.

Essa diferença não elimina, mas qualifica, a dimensão de “leitura de sinais” dentro do próprio Israel bíblico. Sorte sagrada, sonhos e ʾūrīm we-tummīm funcionam como meios legítimos de verificação e direção, mas precisamente por deslocarem a agência do humano para Deus. É significativo que a sorte escolha Matias antes de Pentecostes, em contexto de oração e apelo explícito ao Senhor que “conhece os corações” (Atos 1:24–26; Provérbios 16:33), e que a tradição pós-exílica associe ʾūrīm we-tummīm a consultas oficiais no santuário (Esdras 2:63). O mesmo se aplica à crítica bíblica da astrologia: ainda que os “magos” de Mateus 2:1–12 tenham lido nos céus um indício, o sentido pleno do sinal é reorientado pela Escritura e culmina em adoração, não em controle técnico do porvir. O ponto não é negar que haja sinais no tempo, mas afirmar que o sentido que eles carregam é recebido da palavra de Deus, não extraído por um código que opere à revelia da sua vontade.

Quando essas linhas se cruzam, emerge o cerne teológico do dossiê: interpretar corretamente o tempo, o destino e o sentido não é “descobrir um algoritmo do real”, mas aprender a ouvir e obedecer. Em termos bíblicos, a história tem direção e a vida tem porção, mas a direção e a porção são dádivas, não cifras. A adivinhação tenta transformar o tempo em mapa e o destino em mecânica; a revelação transforma o tempo em encontro e o destino em vocação. É por isso que a Bíblia, ao mesmo tempo em que denuncia com vigor práticas necromânticas, mágicas e mantícas (Levítico 19:26; Deuteronômio 18:10–14; 2 Reis 21:6), documenta meios ordenados por Deus para conduzir o seu povo, meios que preservam a integridade do sujeito e o primado da palavra divina. A verdadeira interpretação do tempo, do destino e do sentido, na perspectiva bíblica, não consiste em arrancar do mundo um segredo, mas em receber de Deus uma promessa e um caminho — e é nesse ponto que se fecha a crítica da adivinhação e se abre a teologia da providência.

VI. Contexto histórico do Antigo Oriente Próximo

A adivinhação no Antigo Oriente Próximo constituiu um campo técnico-social altamente institucionalizado, com especialistas, corpora escritos e rotinas de treinamento. No quadro mesopotâmico, egípcio, siro-levantino e anatólio, as práticas cobriam tanto a observação de sinais em céus, terras e vísceras quanto formas inspiradas, como sonhos e possessões oraculares. O cenário bíblico interagiu intensamente com esse ambiente: textos como Ezequiel 21:21, que retrata o rei da Babilônia parado numa encruzilhada “sacudindo as flechas, consultando os tĕrāfîm e olhando o fígado”, só se tornam plenamente inteligíveis à luz dos repertórios técnicos babilônicos de belomancia e hepatoscopia; a mesma passagem insere, no mesmo quadro, ídolos domésticos consultados oracularmente, compondo um retrato multifacetado da decisão política assistida por artes mantícas.

A. Mesopotâmia

Na Mesopotâmia, a adivinhação era parte orgânica do “saber” cultivado por escribas e da gestão da corte. Entre os grandes conjuntos canônicos de presságios, destaca-se a série astral Enūma Anu Enlil, que consolidou, em dezenas de tábuas, correlações entre fenômenos celestes e destinos reais, militares e agrícolas, formando uma memória técnica de observação sistemática e prognose. Estudos de assiriologia mostram que essa tradição não foi estática, mas fruto de continuidades e reformulações internas, com comentários e reinterpretações ao longo dos séculos neo-assírios e neobabilônicos. Outro conjunto monumental é a Bārûtu (“arte do adivinho”), compêndio dedicado à extispícia — sobretudo ao exame do fígado de ovelhas — que preserva procedimentos, preces, esquemas anatômicos e listas de presságios; modelos de fígado em argila, usados para instrução, atestam a materialidade pedagógica dessa ciência mantíca. Em paralelo, séries de presságios terrestres, como Šumma Ālu (“Se uma cidade está situada em altura”), ampliavam o repertório para sinais cotidianos, portando à administração uma chave de leitura do inesperado. Esses corpora, hoje acessíveis em projetos como ORACC e o Corpus of Commentaries on the Prescriptions (Yale/CCP), permitem reconstituir a gramática técnica com que os antigos entendiam que “o céu e a terra escrevem” a vontade dos deuses. (ROSHBERG, Continuity and Change in Omen Literature, 1999)

A hepatoscopia era central. O bārû (divino, acádio bārû) lia na anatomia hepática anomalias e marcas interpretadas como vereditos. Evidências arqueológicas exibem modelos de fígado com inscrições e “áreas” divinas demarcadas, usados no ensino do ofício; a literatura técnica descreve rituais de pureza, invocações a Šamaš e Adad e sequências protocolares de manipulação do sacrifício. O British Museum conserva múltiplas peças desse universo, e análises históricas documentam o emprego desses modelos desde o período paleo-babilônico, com continuidade até a era neo-assíria. Nessa moldura, o quadro de Ezequiel 21:21 integra-se com naturalidade: além do exame do fígado, o rei “sacode flechas” — procedimento de belomancia que consistia em nomear setas, sacudi-las ou lançá-las e tomar a resultante como oráculo — e “consulta tĕrāfîm”. O conjunto descreve um portfólio de técnicas cruzadas para decidir rumos militares, confirmando a convergência de extispícia, sortes com flechas e idolatria oracular em uma mesma tomada de decisão. (MARTINS; MARTINS, History of liver anatomy: Mesopotamian liver clay models, 2012, pp. 322-323)

A astrologia culta pertencia ao mesmo “ecossistema” intelectual. A série Enūma Anu Enlil articulava sinais astronômicos a prognósticos político-militares e econômicos; sínteses recentes sublinham que o estrato tardio desse material reflete escolas e comentários especializados, e que a astronomia babilônica tardia convergia com uma reflexão letrada sobre sinais, tempos e destinos. Esse pano de fundo explica tanto a sofisticação técnica dos “magos” como especialistas do céu no Oriente Próximo tardio quanto a crítica bíblica às “consultas aos céus” como prática superstitiosa (Isaías 47:13; Jeremias 10:2; ROSHBERG, The Cultural Locus of Astronomy in Late Babylonia, 1993)

Não só os textos, mas os arquivos administrativos neo-assírios mostram a dimensão “de Estado” da adivinhação. O State Archives of Assyria Online (SAAO) preserva inquéritos, relatórios e peças de comunicação palaciana que envolvem consultas mantícas e pareceres de especialistas, situando a adivinhação na interseção de política, culto e conhecimento técnico. O conjunto confirma que as artes mantícas não eram marginais, mas mecanismos formais de governo e gestão do risco, frequentemente cotejadas entre si para validação — como se entrevê também no cruzamento de técnicas narrado por Ezequiel.

A hidromancia/lecanomancia compõe outra peça do quadro mesopotâmico. Brill e estudos especializados registram a observação de óleo em água como técnica mantíca praticada por bārûs, ao lado da extispícia. Esse dado ilumina a menção bíblica ao “cálice” de José no Egito (Gênesis 44:5, 15), tradicionalmente lido como referência a um instrumento de adivinhação líquido, e corrobora a plausibilidade cultural do episódio: a leitura de padrões em líquido, embora não descrita tecnicamente pela Bíblia, era conhecida e praticada no entorno.

B. Egito Antigo

No Egito faraônico, a adivinhação assume sobretudo um perfil oracular templário e processional, com deuses “respondendo” por meio de suas estátuas carregadas em procissões, por respostas binárias (inclinação, retrocesso) ou por decretos oraculares. A documentação do Reino Novo em diante registra oráculos na esfera estatal e privada, incluindo decretos oraculares usados como instrumentos de legitimação, decisão e proteção. Os chamados “Decretos Amuléticos Oraculares” da Época Líbia condensam respostas divinas em tiras de papiro portadas como amuletos protetivos, revelando uma popularização do acesso a respostas divinas e uma orientação prática para questões de segurança, justiça e cura. Estudos recentes mapeiam mecânicas, contextos e terminologia hieroglífica associada a esses oráculos, e pesquisas de síntese apontam seu uso político, enquanto revisões historiográficas discutem a cronologia e a institucionalização dessas práticas ao longo do Reino Novo e períodos tardios. Embora diferenciadas das artes mesopotâmicas de presságios, essas formas egípcias compartilham a expectativa de que o divino se manifeste com respostas interpretáveis por peritos e corpos sacerdotais. (BAYOUMY, Oracular Gods in Ancient Egypt, 2022)

C. Levante siro-palestino e Ugarit

No Levante, a documentação literária e ritual de Ugarit (Ras Shamra) atesta a presença de divinação onírica, rituais de incubação e repertórios de encantamentos e exorcismos; textos literários ugaríticos empregam sonhos como dispositivos estruturantes da narrativa e como “palavras dos deuses”, e há referência a um “livro de sonhos” (KTU 1.86). Esse pano de fundo oferece paralelos significativos para a centralidade dos sonhos reveladores em narrativas bíblicas, sem reduzir os fenômenos a uma matriz única. Em termos de cultura material e administrativa, estudos recentes falam em compêndios divinatórios locais ao lado de importações mesopotâmicas, inclusive modelos em marfim e argila usados como suportes técnicos. No nível do culto doméstico, “deuses da casa” e o cuidado com ancestrais se expressam em tĕrāfîm, cuja função oracular emerge com nitidez em Zacarias 10:2 e Ezequiel 21:21; análises filológicas e histórico-religiosas de referência argumentam que os tĕrāfîm eram efígies ancestrais consultadas como intermediários, tema que encontra ecos na arqueologia e em paralelos do Levante. (ESTHER; STÖKL, Jonathan Perchance to dream: Dream divination in the Bible and the Ancient Near East, 2018, pp. 37, 164)

O léxico semítico ocidental confirma convergências com o hebraico bíblico. O ugarítico 𐎖𐎕𐎎 (qsm) partilha a raiz de qesem (“adivinhação”), enquanto o campo de sonhos divinatórios se articula com verbos e fórmulas típicas de “palavras” divinas em sonho; no horizonte árabe pré-islâmico, a figura do adivinho/sacerdote kāhin (كاهن) e a kihāna (كِهانة) como “arte do adivinho” ilustram a persistência social do especialista oracular na região. Embora esses dados não devam ser anacronicamente projetados sobre Israel, eles reforçam a inteligibilidade das referências bíblicas a práticas domésticas e oraculares no entorno cultural.

D. Anatólia hitita

Em Hatti, a divinação formou um corpo textual vasto, com centenas de tabuinhas cujos “oráculos” registram inquéritos sucessivos para apurar causas de doença real, desgraças públicas ou decisões políticas, e prescrevem rituais de reparação. A extispícia em ovelhas convivia com observação de aves e outras técnicas; os praticantes, frequentemente os mesmos “videntes” também ativos na extispícia, procediam por cruzamento de métodos para validar respostas, e a prática institucionalizada aparece fartamente nos arquivos de Hattuša. Trabalhos de referência (HDivT) explicam o papel dos “áugures” na observação de voo e comportamento de aves em campo aberto, enquanto estudos acadêmicos discutem as linhas KIN e MUŠEN ḪURRI, e investigações recentes continuam a trazer à luz tabuinhas sobre presságios de aves e hepatoscopia. Esse corpo confirma que, fora da Mesopotâmia, outro grande estado do segundo milênio antes de Cristo adotou e adaptou o repertório mantíco como ferramenta de governo. (CHRISTIANSEN, The Corpus of Hittite Divinatory Texts, 2024)

E. Intercâmbios e difusão cultural

O quadro comparado dos corpora — Enūma Anu Enlil, Bārûtu, Šumma Ālu na Mesopotâmia; arquivos oraculares hititas; repertórios ugaríticos; documentação oracular egípcia — atesta trânsito de técnicas, categorias e mesmo peças textuais entre regiões, por mediações políticas e culturais. Pesquisas recentes ressaltam como a adivinhação astral, a extispícia e as coleções de presságios terrestres circularam e foram reinterpretadas por elites letradas, em diálogo com interesses de corte, legitimação régia e gerenciamento de risco. Por isso, quando Israel bíblico denuncia presságios e consultas ilícitas (Deuteronômio 18:9–14; Isaías 47:13; Jeremias 10:2) e, ao mesmo tempo, preserva meios “instituídos” de consulta a Deus — sonhos reveladores, gōral (sorte) e ʾūrīm we-tummīm —, a literatura bíblica posiciona-se criticamente dentro de uma ecologia de práticas conhecidas no entorno. Não por acaso, ʾūrīm we-tummīm, ligados ao peitoral do juízo (Êxodo 28:30; Números 27:21), são vistos pela erudição como instrumento oracular cultual, com possíveis afinidades à cleromancia sagrada; a própria tradição pós-exílica remete a consultas oficiais por esse meio (Esdras 2:63). Assim, o dossiê bíblico não se ergue num vácuo, mas em confronto e discernimento frente aos repertórios mantícos do Antigo Oriente.

O “berço” da adivinhação técnico-institucional na região foi mesopotâmico, de onde práticas, manuais e conceitos se disseminaram por rotas políticas e culturais, alcançando Hatti e o Levante; no Egito, a institucionalidade assumiu perfis próprios, centrados em oráculos templários e decretos, mas funcionou sob a mesma convicção de que o divino fala e decide por sinais e respostas interpretáveis. O horizonte bíblico, dialogando com esse mundo, configurou um discernimento teológico específico: recusou técnicas que pretendiam forçar o oculto, preservou meios cultuais e carismáticos de direção e subordinou o futuro à soberania de Deus. Nessa comparação, cenas como Ezequiel 21:21 deixam de ser exotismo e se revelam retratos acurados de práticas regionais; e a crítica profética ao uso supersticioso dos céus e dos ídolos situa-se como contraponto consciente a uma cultura que elevava a interpretação de sinais à categoria de ciência e de instrumento de Estado.

Observações filológicas e terminológicas. Em acádio, o especialista é bārû (frequentemente grafado por logograma, p. ex., LÚ.BAR); o compêndio técnico é Bārûtu. A série de presságios terrestres é Šumma Ālu; a série astral é Enūma Anu Enlil. Em ugarítico, 𐎖𐎕𐎎 (qsm) reflete a mesma raiz de qesem no hebraico; no árabe clássico, kāhin (كاهن) e kihāna (كِهانة) designam, respectivamente, o “adivinho/sacerdote” e a “arte de adivinhar”. No hebraico bíblico, tĕrāfîm são imagens ancestrais com função oracular (Zacarias 10:2; Ezequiel 21:21); gōral é a “sorte” empregada cultualmente (Levítico 16:8–10; Números 26:55–56); ʾūrīm we-tummīm integram o peitoral do juízo (Êxodo 28:30; Esdras 2:63). O Novo Testamento, ao mencionar a jovem “com espírito de Pýthōn” (Atos 16:16), registra o contexto greco-romano da manteía; já a escolha de Matias por sorte (Atos 1:26) mostra a persistência de um procedimento sob a convicção de Provérbios 16:33. Esses termos, cotejados com corpora cuneiformes e egípcios, permitem a comparação controlada entre a adivinhação bíblica e a do entorno. (Bible Odyssey)

VII. Israel bíblico: moldura histórica e social

A. Adivinhação e realeza (corte, guerra, decisões de Estado) 

Na monarquia israelita, decisões críticas ligadas a guerra, sucessão e justiça recorriam a meios de consulta entendidos como legítimos perante Deus, ao lado de uma vigilância constante contra técnicas interditas. O vocabulário jurídico e narrativo sublinha a distinção: de um lado, a sorte (gōral) como instrumento decisório submetido à providência divina — por exemplo, na designação do bode emissário (Levítico 16:8–10) e na distribuição territorial (Números 26:55–56; Provérbios 16:33) — e, no ápice da transição para a era apostólica, no lançamento de sortes para escolher Matias (Atos 1:26); de outro lado, o banimento programático de práticas mantícas autônomas (Deuteronômio 18:9–14; 2 Reis 21:6). Em contexto régio, os livros de Samuel e Reis apresentam reis consultando por meio do ʾūrīm wĕtummīm, associados ao peitoral do juízo e à mediação sacerdotal (Êxodo 28:30; Números 27:21); é nessa moldura que se entende a consulta de Saul e Davi via “ephod” (por exemplo, 1 Samuel 23:9–12; 30:7–8), refletindo uma cleromancia cultual em que a decisão provém de Deus, não da técnica humana. A literatura de referência registra que tais consultas régias por ʾūrīm wĕtummīm eram vistas como vinculantes — “a elas se curvavam até os reis”, segundo a síntese clássica da Jewish Encyclopedia, que também identifica o caráter oracular do dispositivo, historicamente correlacionado a sortes sagradas. Estudos recentes de síntese mostram, ademais, que a liderança israelita recorreu a letrados, profetas e instrumentos cultuais de modo análogo ao entorno do Antigo Oriente, ainda que com teologia distinta: “líderes como Josué, Saul, Davi e Acabe usam divinação para decidir”, mas a Torá “desdiviniza” a técnica ao ressaltar seu enquadramento cultual e profético sob a primazia de Deus. Essa distinção emerge com nitidez quando se coteja o quadro israelita com o retrato de Ezequiel da prática régia babilônica: na encruzilhada estratégica, “o rei de Babilônia sacode as flechas, consulta os terafins e olha o fígado” (Ezequiel 21:21), triando rotas por belomancia e hepatoscopia — métodos atestados por paralelos mesopotâmicos e descritos na pesquisa como padrão decisório de corte. No universo assírio-babilônico, cartas, relatórios e arquivos reais preservados no State Archives of Assyria testemunham consultas sistemáticas a adivinhos de corte por extispícia e sinais celestes para orientar campanhas, política externa e rituais de reparação, confirmando que o “governo por presságios” era parte orgânica do aparato de Estado. (SELZ, Die empirische Dimension altorientalischer Forschungen, 2009, pp. 604, 610) A Bíblia, por contraste, tolera apenas formas de consulta que mantêm a soberania divina e o crivo profético, ainda quando situadas na esfera régia (1 Samuel 14:41; 2 Reis 3:11–19).

B. Adivinhação e economia cultual (profissionais, pagamento, prestígio)

O corpus bíblico e a tradição posterior reconhecem a existência de um “mercado religioso” em torno da adivinhação e da profecia, no qual circulavam pagamento, prestígio e clientelas. O caso paradigmático é Balaão: quando Baláque o contrata, os mensageiros levam “os emolumentos da adivinhação” (Números 22:7), expressão que explicita a remuneração de um especialista de renome regional; leituras filológicas apontam qesem como base do sintagma e observam que a mesma figura é chamada “adivinho” em Josué 13:22. (BELNAP; SCHADE, Balaam in the Book of Numbers, pp. 561‒98) Em Israel, o ideal normativo é outro: “profetas por salário” e “sacerdotes por preço” são denunciados (Miqueias 3:5–7, 11), sinal de que práticas oraculares mercantilizadas corrompiam a mediação religiosa do povo. Embora ofertas e dádivas pudessem acompanhá-la, a consulta legítima não deveria funcionar como venda de oráculo. Discussões acadêmicas sobre o costume de presentes a videntes em 1 Samuel 9:7–8 sustentam que havia expectativa social de compensação, sem que isso justificasse um ofício adivinhatório assalariado nos moldes cananeus ou mesopotâmicos; o ponto de atrito profético estava, precisamente, em transformar o discernimento da vontade de Deus em “serviço contratado”. (PAUL, 1 Samuel 9,7: An Interview Fee, 1972, pp. 542-544) Em resumo, a economia cultual israelita conheceu especialistas, ofertas e reputações; mas o sistema javista, em sua autocompreensão normativa, buscou distinguir dádiva cultual e manutenção sacerdotal do comércio de veredictos, tema recorrente na diatribe profética e na legislação (Deuteronômio 18:9–14; Miqueias 3:5–11).

C. Adivinhação popular vs. instituições do culto javista

A religião doméstica de Israel conviveu, por longos períodos, com objetos e práticas que a literatura bíblica e a erudição associam à adivinhação popular, em contraste com as instituições do culto javista. Os terafins aparecem em narrativas e profecias como ídolos domésticos com função oracular (Gênesis 31; Zacarias 10:2; Ezequiel 21:21), ligados, segundo uma linha influente de pesquisa, a efígies ancestrais veneradas e consultadas no nível da casa — o que explica seu papel divinatório em contextos de decisão e proteção. A literatura secundária reuniu evidências textuais e comparativas para essa leitura ancestral-oracular dos terafins, em diálogo com práticas siro-levantinas e com o lugar dos “deuses da casa” na religião popular. (COX; ACKERMAN, Micah’s Teraphim, pp. 4-12) Em oposição, as instituições javistas reconheciam meios de consulta vinculados ao santuário e à palavra profética: ʾūrīm wĕtummīm integrados ao peitoral do juízo do sumo sacerdote (Êxodo 28:30; Números 27:21; Esdras 2:63), sorte cultual em decisões solenes (Levítico 16:8–10; Números 26:55–56) e oráculos proféticos que, por iniciativa divina, instruíam reis e povo. A síntese histórico-religiosa recente nota que o corpus legal “desencanta” a técnica, ao reinscrevê-la no domínio do culto e da revelação, e, ao mesmo tempo, denuncia os sinais domésticos e necromânticos como ameaças à fidelidade da aliança (Deuteronômio 18:9–14; Isaías 8:19–20). (Reformas régias, notadamente as de Ezequias e Josias, atacam precisamente esse nível popular — adivinhos, médiuns e terafins — como parte da purificação do culto a Javé (2 Reis 23:24). No pano de fundo comparativo, a cena de Ezequiel 21:21, com seu tríptico “flechas–terafins–fígado”, oferece um instantâneo do mundo de técnicas que as instituições javistas rejeitaram, preservando, no entanto, meios específicos de consulta sob controle sacerdotal e profético.

D. Disputa de autoridade: profetas de Javé vs. adivinhos/feiticeiros

O eixo normativo do dossiê bíblico é a autoridade da revelação de Javé, cuja mediação legítima ocorre por profetas e por meios cultuais instituídos, contra a concorrência de adivinhos, feiticeiros e necromantes. O texto-chave é Deuteronômio 18:9–22: primeiro, proíbe-se o catálogo das técnicas (adivinhação, agouros, augúrios, feitiçaria, encantamentos, necromancia, consulta a médiuns); em seguida, afirma-se o profeta “como Moisés” cuja palavra deve ser ouvida, critérios de discernimento incluídos. Comentários clássicos e estudos recentes leem esse capítulo como contraposição deliberada entre “profeta” e “divinador”, estabelecendo um monopólio teológico para a palavra de Javé no interior de Israel, com deslegitimação dos operadores concorrentes. Em termos históricos, essa disputa atravessa as narrativas: Saul, que ao início recorre legitimamente ao ephod e à mediação profética, termina por consultar a necromante de En-Dor (1 Samuel 28), episódio lido por exegetas como paródia trágica da sua queda — o “patrono” da adivinhação anticultual, em contraste com o profeta fiel. (MICHAEL, Saul’s prophetic representations and its parody in 1 Samuel, 2013) Em 1 Reis 22, a colisão entre Micaías e os 400 profetas da corte mostra que a questão não é apenas o “método”, mas a fonte e a veracidade; em Jeremias e Ezequiel, “sonhos mentirosos” e “adivinhações vãs” amplificam a polêmica (Zacarias 10:2). O fio condutor, entretanto, regressa sempre ao crivo cultual e javista: ou Deus fala — por profeta fiel, por sonho cuja interpretação Ele mesmo concede, por sorte sagrada ou pelo ʾūrīm wĕtummīm —, ou a prática é reprovada como tentativa humana de forçar o oculto. A tradição enciclopédica moderna tem mostrado que, embora Israel compartilhe com os vizinhos o “arsenal” técnico do Oriente Próximo, sua teologia desloca a agência para Deus e articula um regime de autoridade que subordina toda consulta ao senhorio de Javé.

Observações finais de integração. A documentação bíblica preserva, portanto, uma moldura social na qual a realeza consulta por meios autorizados, a economia cultual admite dádivas e prestígios mas rejeita a venda de oráculos, a religião popular mantém objetos e ritos de consulta doméstica e as instituições javistas os combatem, e a disputa de autoridade se resolve pela primazia do profeta de Javé e dos meios cultuais reconhecidos. Essa moldura se entende com maior precisão à luz comparativa do Antigo Oriente: Ezequiel 21:21 espelha com exatidão o repertório babilônico (belomancia, terafins, hepatoscopia), enquanto os arquivos neo-assírios mostram o quanto o “saber divinatório” foi corporativo e estatal; é precisamente contra essa “ciência dos sinais” como sistema autônomo que o corpus javista reage, preservando a mediação profética e cultual sob a soberania de Deus (Deuteronômio 18:9–22; 2 Reis 23:24; 1 Samuel 28).

VIII. Recepção no judaísmo pós-bíblico

A. Mishná e Talmud

Normas haláquicas sobre presságios, sorteios e amuletos. Nos séculos formativos da halakhá, a adivinhação é reclassificada em categorias jurídicas com fronteiras precisas. A prática de presságios (niḥuš) é explicitamente problematizada: em Ḥulin 95b, a discussão compara o “sinal” pedido por Eliezer (Gênesis 24) e o de Jônatas (1 Samuel 14), delineando o que conta como niḥuš proibido e como “sinal” providencial não-técnico; a própria sugyá torna-se matriz para leituras posteriores sobre a diferença entre cálculo supersticioso e confiança em Deus. Em paralelo, a astrologia entra no debate talmúdico como problema de princípio: em Shabat 156a, Rabi Ḥanina afirma “há mazal para Israel”, ao passo que Rabi Yoḥanan sustenta “não há mazal para Israel”, contraste que a tradição interpretou como tensão entre influências cósmicas e liberdade/eleição do povo de Deus.

No polo dos procedimentos lícitos, os sorteios cultuais (gōral) aparecem como instituto legítimo consagrado: a escolha dos dois bodes no rito do Dia da Expiação é por sortes (Levítico 16; Mishná Yomá 34), e o Talmud discute tecnicamente sua realização; a rotina sacerdotal diária também se distribui por sorteios (Mishná Tamid 1:2), sinalizando que “sorte” ritual, incorporada no culto, não se confunde com sortilégio adivinhatório.

Quanto aos amuletos (kamēʿa), o eixo haláquico não é a crença privada, mas a perícia e a finalidade terapêutica. Shabat 61a define o kamēʿa mumḥeh (“amuleto comprovado”): se o escrevente é perito ou se o amuleto mostrou eficácia repetida, pode-se portá-lo até mesmo no espaço público de Shabat, pois se trata de cuidado de saúde; a sugyá estabelece critérios rigorosos de comprovação. Shabat 67a, por sua vez, discrimina práticas sob a rubrica darkē ha-ʾĔmōrī (“modos dos amorreus”), interditando atos supersticiosos, mas registrando também receituários populares e fórmulas de proteção que os rabinos avaliam caso a caso, sempre sob a chave de cura, perícia e prevenção de idolatria.

A mesma moldura explica a atenção a crenças de dano por “pares” (zugōt). Pesachim 111a–b reúne avisos e limites pastorais, refletindo uma cultura sensível a demônios e riscos rituais; a tradição posterior, porém, muitas vezes relativiza a preocupação, e a própria sugyá já insinua um princípio prático: quem não se prende aos “pares” não se torna alvo deles. No plano codificatório, a proibição de niḥuš, qesem e correlatos passa ao Shulḥan Arukh (Yorê Deʿá 179), com a vedação de consultar “fatalistas” e astrólogos, consolidando o fio talmúdico que separa oração, profecia e sorteio cultual, de um lado, e técnicas adivinhatórias, de outro.

B. Debates medievais: Maimônides, astrologia e a fronteira da adivinhação

Na Idade Média, a discussão se intensifica. Maimônides (Rambam), em Mishnê Torá, Hil. ʿAvodát Kokhavim 11, sistematiza as proibições bíblico-talmúdicas, descrevendo as técnicas (niḥuš, qesem, ʿōnēn, ḥover ḥaver, etc.) e vetando consultas a presságios, à necromancia e à astrologia, que considera um erro intelectual e moral; o mesmo tom reaparece na sua “Carta sobre a Astrologia”, na qual rejeita a pretensão científica da disciplina e subordina o futuro à Providência e à profecia. A historiografia recente confirma a posição de Maimônides como o polo crítico de uma controvérsia ampla: estudos de síntese em Cambridge destacam que, entre os séculos XII–XIV, houve judeus que buscaram acomodar “astrologia” como saber natural, enquanto outros, inspirados pela Bíblia e pelo Talmud, a recusaram como superstição. (SELA, Astrology in Medieval Jewish Thought, 2012, pp. 292-300)

Outras vozes medievais foram menos restritivas. Abraão Ibn Ezra, astrólogo e exegese notável, defendeu aspectos da astrologia judiciosa e influenciou leitores latinos e hebreus; a pesquisa de Shlomo Sela mapeia essa recepção. (SELA, The Abraham Ibn Ezra-Peter of Limoges Astrological-Exegetical Connection, pp. 9-57) Ramban (Naḥmânides) admitiu influências astrais como parte da ordem natural, ainda que sustentasse, em sentido teológico, que “Israel não está entregue aos astros” (leitura possível de Shabat 156a). Ao final da Idade Média, o Shulḥan Arukh retoma o arcabouço proibitivo, enquanto os comentários e responsa mantêm nuances: distinguem-se diagnósticos médicos lícitos do recurso a práticas supersticiosas e, na matéria dos amuletos, reaparece o critério talmúdico do kamēʿa mumḥeh, agora distribuído nas seções pertinentes do código.

C. Práticas populares e leituras místicas: entre a piedade e a técnica

Ao lado das formulações legais e filosóficas, a cultura judaica tardo-antiga e medieval preservou um conjunto robusto de objetos e manuais “operativos”. O Sefer ha-Razim (Antiguidade Tardia) e, mais tarde, o Sefer Raziel ha-Malʾakh (medieval) reúnem listas angélicas, nomes divinos, usos do zodíaco e instruções para proteção, cura e consulta; são testemunhos de uma “mística prática” que circulou em manuscritos, influenciou ambientes asquenazes e sefarditas e, por vezes, tangenciou fronteiras haláquicas. A edição e os estudos modernos situam essas obras no cruzamento de tradições judaicas e ambiente mediterrânico, mostrando continuidades com receitas talmúdicas e materiais extra-judaicos. Um manual muito difundido, o Šimmuš Tehillim (“Uso dos Salmos”), oferece esquemas de salmos aplicados a fins protetivos e terapêuticos; edições críticas e estudos rastreiam sua formação tardo-antiga e medieval. (KALALA, Sefer Shimmush Tehillim – Buch vom magischen Gebrauch der Psalmen, 2010)

As “tigelas de encantamento” babilônicas, escritas sobretudo em aramaico judaico entre os séculos V–VII, constituem outro arquivo decisivo: destinadas a afastar forças nocivas, elas empregam fórmulas jurídicas, nomes divinos e iconografia demonológica, revelando um cotidiano de proteção apotropaica no qual judeus partilhavam repertórios regionais com outros grupos sem perder marcadores judaicos. (DALTON, Incantation Bowls and Embodied Knowledge, 2025) Essas evidências epigráficas e de cultura material ajudam a reconstituir o “baixo contínuo” das práticas, em contraste com o “alto discurso” haláquico.

No campo onírico, a šeʾēlat ḥalōm (“pergunta de sonho”) é atestada desde a Antiguidade Tardia e ganha forma medieval: jejuns, purificação e recitação de passagens bíblicas antecediam o sono, buscando uma resposta revelatória. A documentação da Genizá do Cairo preserva formulários, e a pesquisa contemporânea identifica ecos diretos de receitas do Sefer ha-Razim adaptadas a essa técnica; o tema perpassa também a história do direito judaico medieval, na medida em que sonhos e sortes devocionais às vezes informavam decisões práticas (BELLUSCI, A Genizah Finished Product for She’elat Ḥalom based on Sefer Ha-Razim, pp. 307-308). Embora posterior ao período medieval estrito, a permanência de “goralot” (sorte com Escrituras), como o Goral ha-Gra, ilustra a longevidade de práticas liminares entre devoção, consulta e discernimento — toleradas quando mantidas como apelos à Providência, censuradas quando reificadas como técnica de adivinhar.

D. Integração sistemática: critérios, tensões e legados

O eixo normativo (Mishná, Talmud, códigos) distingue com nitidez revelação recebida de adivinhação buscada por meios técnicos. O recurso a sortes cultuais (gōral) é rito; a perícia médica pode legitimar certos amuletos (kamēʿa mumḥeh); presságios (niḥuš), astrologia mantíca e necromancia permanecem interditos como darkē ha-ʾĔmōrī. No medievo, Maimônides reancora a proibição com argumentos filosófico-científicos e teológicos, enquanto outros (como Ibn Ezra e leitores “naturalistas”) tentam salvar uma astrologia “física”, sem divinização nem fatalismo. Em paralelo, a prática popular — tigelas, amuletos, manuais, šeʾēlat ḥalōm — floresce em registros materiais e textuais, ora atravessando, ora contornando, as cercas haláquicas, e deixando um legado amplo para a mística e a piedade judaicas posteriores. (BOHAK, Jewish Amulets, Magic Bowls, and Manuals in Aramaic and Hebrew, 2019, pp. 388-415)

E. Observações filológicas e terminológicas

A linguagem rabínica trabalha com termos que convém manter com transliteração precisa: niḥuš, qésem, ʿōnēn, ḥover ḥaverdarkē ha-ʾĔmōrī, kamēʿa, gōral, mazal. No debate talmúdico sobre astrologia, ein mazal le-Yisraʾel (“não há constelação para Israel”) contrasta com yesh mazal le-Yisraʾel (“há constelação para Israel”); ambos os enunciados foram recebidos e reinterpretados por decisores medievais, com Maimônides negando estatuto cognitivo à astrologia e outros autores reconhecendo influências naturais sem lhes conceder poder oracular.

F. Conclusão do bloco

A recepção pós-bíblica judaica não “liberaliza” a adivinhação; antes, depura o vocabulário bíblico em categorias jurídicas, pastorais e filosóficas. O Talmud seleciona e legitima apenas o que cabe em cura ou rito cultual; os códigos consolidam a vedação de técnicas mantícas; Maimônides fornece a crítica intelectual mais contundente; e a cultura material e mística documenta uma persistente procura por proteção e orientação, sempre sob vigilância haláquica. Em suma, a tradição judaica pós-bíblica preserva a prioridade da revelação recebida e regula, com minúcia, toda pretensão de “adivinhar” por meios técnicos.

IX. Instrumentos e meios na Bíblia hebraica

A. ʾūrîm we-tummîm e ʾēfōd: natureza, função e debates

A literatura bíblica vincula ʾūrîm we-tummîm ao peitoral do juízo do sumo sacerdote e ao ʾēfōd, como aparato oracular por meio do qual se “consultava o Senhor” em decisões públicas de alta responsabilidade (Êxodo 28:30; Levítico 8:8; Números 27:21). As narrativas apontam para o uso régio-sacerdotal: Saul e Davi consultam mediante ʾēfōd (1 Samuel 23:9–12; 30:7–8), e o período pós-exílico remete a ʾūrîm we-tummîm para dirimir questões de legitimidade sacerdotal (Esdras 2:63). A tradição judaica clássica sublinha que, por meio desse dispositivo, o veredito divino obrigava inclusive reis, destacando sua inserção no centro das instituições do culto de Javé. A pesquisa moderna discute a natureza do mecanismo: ora entendido como sortes sagradas guardadas no peitoral, ora como pedras/elementos que “brilhariam” para indicar respostas, ora, de modo mais minimalista, como parte do traje sacerdotal sem função ativa independente, sempre como meio de oráculo institucional e não como técnica autônoma de adivinhação. O denominador comum é o caráter de consulta oficial que submete a decisão à palavra de Deus, diferenciando-se das práticas mantícas do entorno (Êxodo 28:30; Números 27:21). Sínteses de referência e verbetes eruditos convergem nessa linha: ʾūrîm we-tummîm funcionam como dispositivo oracular do sacerdote, associado ao peitoral sobre o ʾēfōd, pelo qual se pedia o veredito do Senhor em momentos críticos (Êxodo 28:15–30; Levítico 8:8; Números 27:21; 1 Samuel 23:9–12).

B. Sorteios (gōral): divisão de terras, seleção de pessoas e decisões cultuais 

O termo gōral designa a “sorte” usada para submeter decisões solenes à soberania divina. No culto, o Dia da Expiação é organizado por sorte diante do Senhor para determinar o bode “para o Senhor” e o bode “para Azazel” (Levítico 16:8–10). No campo civil e administrativo, a distribuição da terra entre as tribos e clãs se faz por gōral (Números 26:55–56), e vários episódios decisórios recorrem ao procedimento (por exemplo, 1 Samuel 10:20–21; Jonas 1:7). A literatura sapiencial fornece a chave teológica dessa prática: “A sorte se lança no regaço, mas toda decisão procede do Senhor” (Provérbios 16:33). No Novo Testamento, esse horizonte permanece à porta de Pentecostes quando a comunidade escolhe Matias por sorte (Atos 1:26). A erudição observa que, em Israel, a cleromancia sagrada não equivale a “forçar” o oculto: trata-se de rito decisório que transfere a agência à vontade de Deus, razão pela qual a Bíblia pode simultaneamente condenar a adivinhação e valorizar a sorte sagrada em contextos específicos. Estudos lexicais e históricos mostram a amplitude do uso de gōral como “sorte/quinhão” e documentam sua função em alocações, escolhas de ofício e partilhas; leituras acadêmicas mais amplas situam o lançamento de sortes como prática comum no antigo Israel, coerente com Provérbios 16:33 (KITZ, The Hebrew Terminology of Lot Casting and Its Ancient Near Eastern Context, pp. 207-214; Enciclopédia Judaica; BAR-ON, On the Casting of Lots at Purim, 2016)

C. Observação de presságios (flechas, fígados, astros): presença/ausência no corpus bíblico e paralelos do Antigo Oriente

O texto bíblico reconhece e descreve presságios como repertório das nações, mas o faz sobretudo em chave crítica. O retrato clássico é Ezequiel 21:21, onde o rei da Babilônia, na encruzilhada, “sacode as flechas, consulta os tĕrāfîm e examina o fígado”, exibindo o tríptico babilônico de belomancia, idolatria oracular e hepatoscopia. Comentários e estudos assinalam o quadro técnico: nomeavam-se flechas e se “sacudiam” ou lançavam para inferir o caminho; consultavam-se imagens domésticas de função oracular; examinava-se a anatomia hepática do animal sacrificado. A arqueologia e os corpora cuneiformes dão o pano de fundo: modelos de fígado de ovelha em argila com campos e “assentos” divinos, tábuas de presságios sobre fígados (bārûtu), e a série astrológica Enūma Anu Enlil atestam a institucionalização desse saber mantíco. No Israel bíblico, esses procedimentos não são adotados como técnica própria; quando o texto menciona sinais, eles aparecem ora como “ato-sinal” legitimado por Deus (por exemplo, o teste de Jônatas diante dos filisteus em 1 Samuel 14:8–12; a ação simbólica de Eliseu em 2 Reis 13:14–19), ora como práticas estrangeiras postas em contraste com o culto javista. A consulta aos astros é explicitamente desautorizada (Isaías 47:13; Jeremias 10:2), enquanto a comunicação legítima se dá por meios cultuais e proféticos. Assim, o corpus bíblico registra a observação de presságios principalmente como prática do entorno (com rara descrição técnica em Ezequiel 21:21), ao passo que os paralelos mesopotâmicos — preservados em ORACC, CDLI e arquivos de museus — ilustram a sofisticação e a centralidade estatal de hepatoscopia, belomancia e omenologia astral (Leichty E et al 1988a, catalogo de tabuletas babilônicas, volume VIII: Tabuletas de Sippar 3 (p.177) do Museu BritânicoCDLI; CCP 3.1.1.C - Enūma Anu Enlil 1 C).

D. Necromancia e médiuns: práticas, narrativas paradigmáticas e proibições

A legislação mosaica e a pregação profética interditam a necromancia e as consultas a médiuns, identificadas pela terminologia ʾōb e yiddeʿonî (Levítico 19:31; Levítico 20:6, 27; Deuteronômio 18:11), além de denunciar “encantamentos” e “feitiçarias” como práticas afins (Deuteronômio 18:10–11; 2 Reis 21:6). O episódio paradigmático é Saul e a necromante de En-Dor (1 Samuel 28), apresentado como transgressão grave do rei que, antes, havia expulsado os necromantes do país. A tradição erudita antiga já notava que necromancia, idolatria e magia formavam um complexo religioso ex officio — muitas vezes exercido por mulheres — com forte rejeição israelita em razão da fonte de autoridade que reivindicava. A crítica bíblica não se limita a um veto formal; ela contrapõe a necromancia à mediação legítima profética e cultual, insistindo que o conhecimento do porvir não é extraído do além-túmulo, mas recebido de Deus por caminhos por Ele instituídos (Deuteronômio 18:9–22). Sínteses históricas e léxicas judaicas registram esse enquadramento e sua provável origem estrangeira, confirmando a leitura do corpus bíblico.

E. Amuletos e objetos apotropaicos: evidências textuais e arqueológicas

O texto bíblico alude a objetos e práticas de proteção que, em certos contextos, assumem coloração apotropaica e são alvo de crítica profética, como as “faixas” e “véus” das mulheres de Ezequiel 13:18–21, associadas a engano religioso e manipulação simbólica. Na história material, o dado arqueológico mais eloquente é o par de amuletos de prata de Ketef Hinnom (final do século VII–início do VI a.C.), contendo a fórmula da bênção sacerdotal de Números 6:24–26 em escrita paleo-hebraica; são as cópias mais antigas de um texto hoje bíblico e foram concebidos, ao que tudo indica, para proteção e bênção, evidenciando o uso devocional de palavras sagradas como resguardo. O acervo do Museu de Israel e estudos de síntese apresentam o achado, sua datação e a leitura das minúsculas inscrições; trabalhos de divulgação acadêmica e reedições discutem o estatuto desses rolos como amuletos de proteção. Para o período do Segundo Templo, achados de tefilin em Qumran — “filactérios” no grego antigo — sustentam a discussão sobre o papel apotropaico de caixas de couro com trechos bíblicos (Êxodo e Deuteronômio), tema explorado em pesquisas recentes sobre amuletos, orações apotropaicas e filactérios no deserto da Judeia. Ainda que o uso de palavras sagradas como proteção não se confunda automaticamente com adivinhação, a literatura profética insiste que objetos e “charms” não substituem a fidelidade à aliança; quando tais objetos se tornam instrumentos de manipulação religiosa, são condenados (Ezequiel 13:18–21; “Benção sacerdotal” em amuletos no Museu de Jerusalém; NGO, Miniature Writing on Ancient Amulets, 2024; WIENER, Qumran Phylacteries Reveal Nine New Dead Sea Scrolls, 2016; ARIEL, On Amulets, Apotropaic Prayers, and Phylacteries: The Contribution of Three New Texts from the Judean Desert, 2020, pp. 169-198)

Integração bíblica e erudita. O conjunto das fontes do seu dossiê — que enumera meios legítimos de consulta instituídos por Deus (sorte cultual, sonhos reveladores, ʾūrîm we-tummîm, comunicação vocal e oráculo profético) ao lado da rejeição sistemática de técnicas mantícas estrangeiras — converge com a moldura histórica e filológica da pesquisa atual. Em Israel, a “tecnologia” de decisão legítima é cultual e profética, e não meramente técnica: a sorte sagrada, por exemplo, longe de ser vista como adivinhação autônoma, aparece como rito de submissão do juízo humano ao veredito de Deus (Provérbios 16:33; Levítico 16:8–10; Números 26:55–56; Atos 1:26). Já a observação de presságios à maneira babilônica — flechas, fígados, céus — é narrada como procedimento das nações (Ezequiel 21:21) e explicitamente desaconselhada quando assume a forma de “consultar os céus” (Isaías 47:13; Jeremias 10:2). Na mesma linha, a necromancia e a mediação por ʾōb e yiddeʿonî são interditadas e estigmatizadas (Levítico 19:31; Deuteronômio 18:11; 1 Samuel 28). A arqueologia de Israel antigo confirma que textos sagrados podiam ser portados como proteção (Ketef Hinnom) e que, mais tarde, filactérios com trechos bíblicos circulavam no deserto da Judeia; a crítica profética, porém, mantém o crivo: objetos devocionais não autorizam manipulação do porvir nem substituem a palavra de Deus.

Notas comparativas do Antigo Oriente. A cena de Ezequiel 21:21 torna inteligível o lugar do adivinho de corte no mundo mesopotâmico, cuja prática de hepatoscopia e omenologia astral é bem documentada por modelos de fígado em argila e por séries de presságios como Enūma Anu Enlil; catálogos e comentários preservados em ORACC e peças catalogadas no CDLI e em museus (British Museum, Louvre) evidenciam a formação técnica do bārû e a função de Estado desses saberes. Tais paralelos ajudam a distinguir, no dossiê bíblico, entre a técnica mantíca enquanto tal — reprovada — e a consulta cultual autorizada, que desloca o centro da decisão para o veredito de Javé por meio de instituições do culto.

X. Legislação e avaliação teológica no Antigo Testamento

A. Corpus legal: proibições, sanções e fundamentos teológicos

A legislação mosaica estabelece uma vedação categórica das artes mantícas como sistema autônomo de acesso ao oculto. O catálogo de Deuteronômio 18:9–14 proíbe adivinhação, agouros, magia, feitiçaria, encantamentos, consulta a médiuns e necromancia, e o faz não apenas por razões higiênicas ou culturais, mas como questão de fidelidade de aliança: tais práticas são “detestáveis” e incompatíveis com o culto a Javé (Deuteronômio 18:9–12). O mesmo conjunto normativo é reforçado em Levítico 19:26, 31; 20:6 e 20:27, cujas sanções culminam na pena capital para médiuns e necromantes, sinalizando a gravidade teológica do desvio (Êxodo 22:18; Levítico 20:27). O corpus preservado no dossiê bíblico sublinha esse ponto de maneira incisiva: ainda que sinais e portentos cheguem a cumprir-se, o operador das artes adivinhatórias permanece sob condenação (Deuteronômio 13:1–5), porque o critério decisivo é a lealdade a Javé, não o êxito do presságio; por isso os profetas denunciam “adivinhações vãs” e “sonhos mentirosos” como engano religioso (Jeremias 23:32; Zacarias 10:2). Nesse enquadramento, a lei mosaica não abre exceções para “graus” de adivinhação: “todas as várias formas de adivinhação” são repudiadas e associadas a práticas que maculam a comunidade (Deuteronômio 18:9–12; Levítico 19:26, 31). Em paralelo, a pesquisa acadêmica recente recorda que Deuteronômio 13 e Deuteronômio 18 definem o campo com “violência comunitária” regulada: o objetivo não é legitimar técnicas sob controle, mas restringir a autoridade religiosa ao que é divinamente autorizado, precisamente por causa do risco de apostasia que tais práticas carregam (Deuteronômio 13:1–5; REEDER, Community Violence in Deuteronomy, 2021, pp. 36-50). Para as passagens legais específicas sobre médiuns e necromantes em Levítico 19:31; 20:6; 20:27, ver ainda os testemunhos textuais que consolidam a leitura tradicional dessas sanções.

B. Profecia verdadeira versus adivinhação: critérios de autenticidade, teste do profeta e denúncia de “profetas por paga”

A legislação deuteronômica articula a crítica à adivinhação com a positiva instituição da profecia como meio legítimo de revelação. Em Deuteronômio 18:15–22, a figura do profeta “como Moisés” estabelece o regime normativo: Deus mesmo levantará quem fale em seu nome, e a veracidade do profeta se prova não por façanhas espetaculares, mas por fidelidade teológica e acerto confirmatório (“se tal palavra não acontecer, nem se cumprir…”). Estudos sobre Jeremias mostram que o profeta retoma e reinterpreta esse critério de Deuteronômio 18, deslocando-o do mero acerto preditivo para a coerência com o Deus da aliança — assim, a veracidade profética se liga à verdade de Javé e ao chamado à conversão, não à habilidade adivinhatória (HIBBARD, True and False Prophecy: Jeremiah’s Revision of Deuteronomy., 2010, pp. 339-358). Dentro do corpus profético, as denúncias contra “profetas por paga” e “adivinhos por preço” (Miqueias 3:5–11) marcam a fronteira moral: a palavra de Deus não se vende e, quando se prostitui, converte-se em “noite” e silêncio divino (Miqueias 3:6–7). Deve-se condensar essa distinção, por insistir que os profetas de Deus falavam por dever e gratuitamente, ao passo que os adivinhos visavam lucro, e a tradição os associa, inclusive, a práticas que levavam o povo ao erro (2 Reis 9:22; Naum 3:4; Malaquias 3:5). Por isso, mesmo quando a Escritura registra meios legítimos de consulta — sorte cultual, sonhos reveladores, ʾūrîm we-tummîm — o faz sob a gramática da revelação e do chamado à obediência, e não como “técnicas” apropriáveis à vontade humana.

C. Sabedoria e adivinhação: críticas, ironias e advertências

A literatura sapiencial e os textos narrativos e proféticos compõem um dossel de ironias e advertências que desautorizam a pretensão da adivinhação. A máxima de Provérbios 16:33 (“a sorte se lança no regaço, mas toda decisão vem do Senhor”) é exemplar: longe de sacralizar a cleromancia como técnica, ela submete qualquer decisão à soberania de Deus, e serve, inclusive, para enquadrar os relatos de sorteio cultual (Levítico 16:8–10; Números 26:55–56; Atos 1:26) como ritos de entrega, não de controle do futuro. Deve-se recolher esse uso paradigmático, associando-o ao reconhecimento de que Deus frustra adivinhos e desfaz tramas baseadas em presságios: os magos egípcios retrocedem diante do “dedo de Deus” (Êxodo 7–9), o “Pur” de Hamã, sorte lançada para marcar o dia propício, se reverte em juízo (Ester 3:7–9; 9:24–25), e Balaão, contratado “com os honorários da adivinhação”, acaba abençoando Israel e confessando que “contra Jacó não há feitiço” (Números 22–24). Em chave sapiencial, a adivinhação chega a ser equiparada à rebeldia (1 Samuel 15:23), expondo seu núcleo teológico: não é apenas um método indevido de conhecer; é insubmissão travestida de busca por orientação. Isso fica explícito ao se classificar como antibíblico falar de “boa adivinhação” quando a Escritura reserva a Deus o direito de falar pelos meios que Ele mesmo institui (2 Reis 9:22; Naum 3:4; Malaquias 3:5). Em paralelo, a crítica a “sonhos mentirosos” (Zacarias 10:2) não desautoriza os sonhos reveladores; antes, acentua o crivo: os sonhos que guiam são aqueles cuja interpretação Deus concede, como nos relatos paradigmáticos de José e Daniel.

D. Narrativas-chave: decisões régias (consulta a Javé versus médium) e episódios de julgamento divino

As narrativas históricas dramatizam a disputa de autoridade entre a revelação de Javé e os operadores mantícos. No ápice negativo, Saul consulta a necromante de En-Dor (1 Samuel 28), caso recebido pela tradição como exemplar de transgressão que incorre em juízo divino; o próprio Bíblia destaca esse episódio como “especialmente” grave, articulando a condenação à linha legal e profética. Noutra ponta, as reformas régias demonstram o padrão javista: Josias “remove” médiuns, necromantes, terafins e ídolos “para cumprir as palavras da lei” (2 Reis 23:24), ecoando o programa deuteronômico de exclusão das técnicas adivinhatórias em favor da centralidade do livro da aliança. A cena de 1 Reis 22, com Micaías confrontando os quatrocentos profetas de corte, torna visível a questão decisiva: não basta profetizar sucesso; trata-se de dizer a verdade de Deus, mesmo quando isso contraria a expectativa régia — uma tradição de leitura exegética tem mostrado como esse capítulo serve de “laboratório” de discernimento entre profecia verdadeira e propaganda cúmplice (MOBERLY, Does God Lie to His Prophets? The Story of Micaiah ben Imlah as a Test Case, 2003, pp. 1-23). O mesmo horizonte explica o retrato de Ezequiel 21:21: o rei de Babilônia, na encruzilhada, “sacode flechas, consulta terafins e olha o fígado”, compondo o portfólio técnico de belomancia, idolatria doméstica oracular e hepatoscopia; a Bíblia registra o procedimento como marca das nações e como contraste com o caminho javista de consulta.

Fecho teológico. No Antigo Testamento, a adivinhação não é condenada por “ignorância científica”, mas por teologia da providência e da aliança. O futuro não é código disponível à curiosidade; é dom cuja interpretação pertence a Deus e é mediada por seus meios legítimos. Por isso o corpus legal interdita a técnica e institui a profecia; a sabedoria submete a sorte à soberania divina; os profetas desmascaram o lucro religioso e exigem fidelidade; e as narrativas exibem os dois caminhos — o de Saul, que busca o além-túmulo e cai, e o de Josias, que purga o reino para recentrar o culto em Javé. Ao reunir proibições, sanções, denúncias e exemplos históricos, deve-se convergir com a avaliação erudita atual: o problema não é “prever” em si, mas “a quem se escuta” e “de que modo” se procura saber. Em Israel, a resposta legítima nasce da palavra de Javé, não da arte do adivinho (ALLRED, Now You See It, Now You Don't: Biblical Perspectives on the Relationship between Magic and Religion Shawna Dolansky, pp. 166-168)

XI. Controvérsias acadêmicas atuais

A. Natureza dos ʾūrīm we-tummīm

O debate contemporâneo oscila entre três grandes hipóteses, que não se excluem mutuamente. A leitura “cleromântica” vê ʾūrīm we-tummīm como um dispositivo de sorteio binário, funcionalmente análogo a rituais de psefo-mancia no Antigo Oriente Próximo; estudos comparativos relacionam seu uso a oráculos de “sim/não”, com paralelos assírios (LKA 137) que empregam pedras/sinais para respostas dicotômicas. Essa linha explica por que, em Números 27:21 e 1 Samuel 23:9–12, o sacerdote “pergunta” e obtém decisão, sem conteúdo discursivo, mas com veredito prático, e encontra apoio filológico e histórico em análises que aproximam ʾūrīm/tummīm de procedimentos de consulta por “lotes” sob soberania divina. (HOROWITZ; HUROWITZ, Urim and Thummim in Light of a Psephomancy Ritual from Assur, 1992, pp. 95-115)

Uma segunda vertente sustenta que os ʾūrīm we-tummīm eram objetos litúrgicos concretos, possivelmente duas gemas ou elementos independentes do peitoral, que eram manipulados/retirados para sinalizar a decisão; reinterpretações recentes reexaminam a distinção textual entre o peitoral e os ʾūrīm, e retomam discussões clássicas sobre sua materialidade e manuseio no culto. (HOUTMAN, The Urim and Thummim: A New Suggestion, 1990, pp. 229-232)

A terceira vertente, minoritária, revive tradições antigas segundo as quais os elementos “brilhariam” ou “reluziriam” para indicar o juízo de Deus; a história dessa interpretação aparece já em compêndios eruditos judaicos e em dicionários especializados, que também registram propostas etimológicas ligando ʾūrīm/ tummīm a pares babilônicos (por exemplo, urtu/ tamītu) com o sentido de “oráculo” ou “decisão oracular”. Embora a hipótese luminosa seja historicamente influente, o seu estatuto filológico é frágil, e muitos pesquisadores a tratam como releitura tardia.

No conjunto, a tendência atual privilegia a função oracular binária — com ou sem um gesto de sorteio —, sem negar a materialidade cultual dos objetos. A literatura técnica mostra ainda como a redação deuteronomística “restringe” o acesso à revelação: o uso sacerdotal dos ʾūrīm we-tummīm convive com a centralidade do profeta, e é paulatinamente subordinado à palavra profética como mediação principal de Deus para Israel. (LEUCHTER, “The Levite in Your Gates”: The Deuteronomic Redefinition of Levitical Authority, 2007, pp. 417-436)

B. Sonhos e “adivinhação”: a fronteira funcional em José e Daniel

Nos relatos de Gênesis e Daniel, o sonho é canal privilegiado de revelação, mas não uma “técnica” de adivinhação. A pesquisa de base assiriológica mostrou que, no Antigo Oriente, os sonhos podiam ser catalogados e “tratados” como sinais a serem decifrados por especialistas, com manuais onirocríticos e bancos de presságios; nesse horizonte, a especificidade bíblica está em que José e Daniel explicitamente atribuem a Deus a origem e a interpretação dos sonhos, revertendo a lógica técnica e a autoridade dos ḥartummîm, kašdim e sábios de corte. Essa oposição é programática em Daniel 2: só o “Deus dos céus” revela o mistério, enquanto os técnicos babilônicos falham; José, por sua vez, insiste que “a interpretação pertence a Deus” (Gênesis 40:8). A fronteira, portanto, não é o fenômeno onírico em si, mas a sua economia religiosa: nos contos bíblicos, o sonho é revelação recebida e discernida, não arte operativa. (OPPENHEIM, The Interpretation of Dreams in the Ancient Near East, 1956)

A crítica literária recente tem refinado essa leitura. Estudos sobre Daniel evidenciam o jogo irônico com as escolas mânticas imperiais e a elevação do intérprete israelita como agente de sabedoria teológica; análises sobre José observam como seus próprios sonhos (Gênesis 37) inauguram um arco narrativo em que o sonho não fornece “mapas técnicos”, mas convoca fé e perseverança até que a providência torne claro o seu sentido. A controvérsia contemporânea não é se há “adivinhação” nos sonhos bíblicos, mas se é metodologicamente útil chamar “adivinhação” a essa revelação; uma corrente propõe ver profecia e oniromancia num mesmo contínuo do antigo Mediterrâneo, enquanto outra insiste em manter a distinção teológica entre técnica e dom. (SANDERS, Daniel and the Origins of Jewish Biblical Interpretation, pp. 1-55)

C. Astrologia no dossiê dos “magos”

O caráter astrológico dos “magos” de Mateus 2 é tema de debate vivo. No grego comum, mágoi designa tanto uma casta sacerdotal irano-persa quanto, por extensão helenística, especialistas em saberes astrais e artes mantícas; por isso, muitos intérpretes leem os visitantes como astrólogos de corte que associam um fenômeno celeste ao nascimento do “rei dos judeus”. Há propostas astronômicas (conjunções, novas, cometas) para a “estrela” — inclusive a hipótese de um cometa em 5 a.C. —, que explicam a narrativa como teologicamente moldada a partir de um evento celeste plausível no período. Outros, porém, sublinham que, na teologia de Mateus, a estrela é um “agente literário” que serve ao ponto principal: a vinda das nações para adorar o Messias, sem conferir aval religioso à astrologia. (HUMPHREYS, The Star of Bethem: A Cmet in 5 BC and the date of Christ's Birth, 1992, pp. 32-56)

No plano histórico-religioso, a leitura que identifica mágoi com peritos em astrologia é consistente com o uso greco-romano do termo e com o reconhecimento, pelo próprio evangelista, de que Deus pode dirigir “de fora” os que O buscam, convertendo seus saberes em caminho de adoração. A controvérsia, assim, desloca-se do “se” eram astrólogos para “como” Mateus transforma essa competência em teologia da epifania, em contraste com o uso pejorativo de magos/mageúō em Atos, Simão e Elimas (PATEL, Magic and Heresy in Ancient Christian Literature, 2025).

D. “Adivinhação legítima” versus “ilegítima”: critérios e classificações

Desde meados do século XX, a discussão gira em torno de duas maneiras de tipificar as práticas bíblicas. Uma corrente propõe que “profecia” é um subtipo de divinação — a diferença entre profecia e outras mânticas seria menos ontológica e mais institucional: quem autoriza, em nome de quem se fala, com quais controles. Essa leitura, informada por comparações amplo-mediterrânicas, destaca afinidades formais (pergunta-resposta, mediação inspirada, presságios) e, ao mesmo tempo, reconhece que a Bíblia requalifica essas formas dentro de uma teologia do Deus único. (KITZ, Prophecy as Divination, 2003, pp. 22-42)

Outra corrente prefere manter a oposição teológica clássica: “adivinhação” (técnica que busca instrumentalizar o oculto) versus “revelação” (dom soberano). Nesse modelo, o corpus deuteronomista teria “recentralizado” a mediação legítima na figura do profeta e, correlativamente, restringido ou desincentivado outras vias, inclusive a consulta sacerdotal por sortes, que passa a aparecer com parcimônia e sob controle narrativo. É nesse eixo que se discutem fronteiras entre o lícito (por exemplo, sorte cultual; ʾūrīm we-tummīm como rito oracular sagrado) e o ilícito (qésem, ʿōnēn, niḥuš), à luz de Deuteronômio 18:9–14.

Há, por fim, propostas “de síntese”, que sugerem definir legitimidade não pela forma do meio, mas pela autorização e pela origem: práticas semelhantes, quando divinamente instituídas e submetidas à palavra, seriam legítimas; quando autônomas e manipulativas, ilegítimas. Essa formulação tenta explicar por que a Bíblia pode admitir “sorte” no culto e, ao mesmo tempo, condenar sortilégios; por que acolhe sonhos proféticos e rejeita oniromancia técnica; e por que integra profecia e sabedoria no horizonte de revelação, mas exclui astrologia e necromancia. Estudos recentes têm articulado esse critério com leituras jurídico-teológicas de Deuteronômio e com a economia narrativa da história deuteronomista.

XII. Literatura do Segundo Templo e helenismo judaico

A. Qumran: sortes comunitárias, destino e revelação

A documentação sectária de Qumran (especialmente a Regra da Comunidade, 1QS) revela uma teologia de “lotes” (gōral) que estrutura ontologicamente a história em dois domínios: a “porção da luz” e a “porção das trevas”. O célebre tratado dos “Dois Espíritos” (1QS 3:13–4:26) descreve como a humanidade é dividida sob a direção do “Príncipe das Luzes” e do “Anjo das Trevas”, não como adivinhação técnica, mas como determinação revelada do destino coletivo e ético, que fornece um filtro para interpretar o curso dos acontecimentos e a sorte do grupo. Em termos práticos, a comunidade também usava o sorteio para decisões internas — distribuição de funções, ordem de assento e procedimentos disciplinares —, o que substitui práticas adivinhatórias externas por um mecanismo cultual e interno de discernimento da vontade divina no corpo social. Essa prática é atestada na Regra (por exemplo, em regulamentos sobre decisões “pelo sorteio”) e na organização da vida comum, consolidando uma “omenologia” institucionalizada que evita a consulta a mágicos, necromantes ou astrólogos e, ao mesmo tempo, não reduz a condução comunitária a puro voluntarismo humano. (Traduções e edições críticas: 1QS 3–4; materiais introdutórios e versões publicadas por Vermes, cf. Marquette University)

Esse uso de sortes também se articula com uma epistemologia revelacional mais ampla: a comunidade lê os Profetas via pesher (comentário inspirado), crendo que o Espírito de Deus desvela, no “agora”, segredos inscritos desde a origem. A “adivinhação” no sentido técnico é substituída por hermenêutica inspirada e por ritos internos (banhos, refeições, assembleias) que posicionam os membros sob o “lote” da verdade. O contraste com adivinhos externos é explícito em passagens que condenam “espíritos de mentira” e enfatizam a disciplina como condição de acesso à revelação — um ethos que, em termos práticos, delimita fronteiras nítidas com qualquer prática de manteía ou goēteía ambiente.

B. Deuterocanônicos e Pseudepígrafos: posições diante de adivinhação e magia

No corpus deuterocanônico, Eclesiástico (Sirácida) oferece a crítica mais direta à adivinhação popular. Em Sirácida 34:1–8, sonhos, presságios e adivinhações são “nada”, enganos do desejo, a menos que o Altíssimo os tenha enviado; a Torá é “completa” sem tais subterfúgios. Essa passagem, frequentemente citada como manifesto anti-omenológico do judaísmo helenístico piedoso, explicita o princípio: a revelação legítima vem de Deus por canais por Ele autorizados, não por artes técnicas ou pela leitura de sinais ambíguos.

O Livro da Sabedoria, escrito em grego, associa idolatria e goēteía/pharmakeía, denunciando feitiçarias e encantamentos como marcas das nações que “praticam abominações” (ver, por exemplo, Sabedoria 12 e 17–18, onde os mágicos do Egito fracassam diante do Deus de Israel). Na tradição grega, pharmakeía não significa “farmácia” moderna, mas artes mágicas/feitiçaria, frequentemente ligadas a idolatria — um vocabulário que, mais tarde, ecoará em Paulo e no Apocalipse.

Tobias, por sua vez, transmite um dado precioso sobre exorcismo e medicina ritual: o anjo Rafael instrui Tobias a queimar coração e fígado do peixe para expulsar o demônio Asmodeu e a usar a bile como colírio, combinando prática terapêutica e ação apotropaica. A cena, nos capítulos 6–8, preserva uma interface entre ritual judaico e saberes médico-mágicos do Antigo Oriente e do mundo greco-oriental, muito estudada em filologia e história da medicina antiga. (ASKIN, Binding Asmodeus: A Lexical Analysis of the Ritual and Medical Use of Fish in Tobit, 2022)

Em 2 Macabeus, encontra-se um testemunho importante do combate a amuletos idolátricos: ao recolher os corpos, os judeus descobrem sob as túnicas “amuletos consagrados aos ídolos de Jâmnia”, e interpretam a morte daqueles como juízo por tal prática proibida. O texto ilumina a percepção judaica helenística de amuletos como fronteira religiosa e moral.

No campo pseudepigráfico, 1 Enoque (sobretudo 6–11; 7–8) apresenta os “Vigilantes” ensinando à humanidade encantamentos, cortes de raízes, astrologia e artes mágicas — uma etiologia mítica da difusão da adivinhação técnica e da magia proibida, cujo impacto perpassa o judaísmo do período e a polêmica anti-mágica posterior.

Quanto aos acréscimos gregos de Daniel e Ester, ainda que não descrevam técnicas adivinhatórias israelitas, operam como contra-narrativas teológicas: em Daniel (tradições OG/Teodocião), a corte babilônica é povoada de mágoi, epaoidoi, goētes e “caldeus”, cuja impotência frente à revelação divina recebida por Daniel sublinha a diferença entre profecia inspirada e artes mantícas de palácio. Em Ester (com as passagens sobre “Pur”, “sorte”), a soberania de Deus reinterpreta o motivo do lançamento de sortes pelo inimigo.

C. Josefo e Fílon: categorias e avaliações no judaísmo helenístico

Flávio Josefo, escrevendo para leitores greco-romanos, move-se numa linha fina entre afirmar a superioridade da revelação israelita e exemplificar práticas judaicas contemporâneas de cura/expulsão de demônios. Em “Antiguidades” 8.42–49, ele relata o exorcismo realizado por Eleazar diante de Vespasiano: um anel com “raiz” sob o sinete, a invocação do nome de Salomão e a recitação de fórmulas; o demônio sai pelo nariz do possesso e derruba um vaso para provar a expulsão. O episódio mostra uma tradição salomônica de exorcismos com incantationes e recursos materiais (raiz/anel), em contraste com a crítica de Josefo a magias estrangeiras; na sua retórica, tais atos seriam “ciência útil e salutar” provida por Deus a Salomão — ou seja, não “goēteía”, mas técnica lícita sob a égide do Deus de Israel.

No mesmo compêndio (3.216–218), Josefo menciona que o brilho oracular do peitoral (Urim) cessou “duzentos anos” antes de seu tempo — um indício de que, a seu ver, aquele modo de consulta sagrada, ligado ao Sumo Sacerdote, pertence ao passado. A informação é preciosa para datar a percepção de fim das práticas de consulta por meio do logion (Urim/Tumim) e para distinguir, na época de Josefo, entre mediações legítimas (profecia antiga, Lei, sabedoria) e artes técnicas suspeitas.

Josefo também descreve os essênios como capazes de “predizer o futuro” lendo os Livros Sagrados, praticando purificações e sendo peritos nos oráculos proféticos; “raramente erram” — uma caracterização que explicita o lugar do estudo e da pureza ritual como meios de discernir o devir, sem apelo a adivinhos. Esse retrato, coerente com o perfil sectário de Qumran, reforça a distinção entre exegese inspirada e mantike técnica.

Fílon de Alexandria, por sua vez, oferece a sistematização filosófica dessa distinção. Em “Sobre as Leis Especiais”, ele condena pharmakeía e artes mágicas, defendendo que a Lei substitui tais práticas por profecia e sabedoria. Em “Sobre os Sonhos” (De Somniis I–II), classifica os sonhos e sustenta que há sonhos que “vêm de Deus”, distinguindo-os dos que procedem de influências inferiores ou da imaginação — visão que legitima experiências oníricas quando inseridas na economia da revelação divina, e não como adivinhação autônoma. Em sua leitura simbólica do peitoral (Urim/Tumim), Fílon o entende como “declaração e verdade” (dēlōsis kai alētheia), deslocando a ênfase do mecanismo técnico para a realidade ética-espiritual que ele figura.

D. A LXX como filtro semântico: mapeamento hebraico → grego (manteía, goēteía, pharmakeía, engastrimythos e afins)

A Septuaginta opera um decisivo enquadramento terminológico do léxico hebraico da adivinhação. Em Levítico 19:26, o tradutor verte dois verbos distintos em hebraico por uma parelha técnica: “não praticareis manteia nem oionismos”, padronizando proibições dispersas em uma dupla tipologia grega (adivinhação e augúrio). Em Deuteronômio 18:10–11, o catálogo hebraico de especialistas e técnicas (que inclui qesem, me‘onen, menahesh, mekhashshef, shoel ’ov, yidde‘oni, doresh el-ha-metim) é traduzido por termos como manteia (adivinhação), oionismos (observação de presságios), klēdonismos (presságios/lote de palavras), pharmakeía (feitiçaria), epaoidós (encantador), delineando um campo semântico greco-judaico que influenciará a recepção posterior (CCAT).

Nos Profetas, passagens sobre necromancia fazem a LXX empregar engastrimythos (“ventríloquos/necromantes”) para o possuidor de ’ov, como em Isaías 8:19, sem recorrer ao termo pythōn; este, por sua vez, aparecerá com destaque no grego do Novo Testamento ao descrever o “espírito de pythōn” em Filipos (Atos 16:16), conectando o universo oracular délfico à categoria de possessão/divinação proibida.

Além disso, o vocabulário dos livros gregos amplia a malha semântica: pharmakeía em Naum 3:4 e Isaías 47 (LXX) cola feitiçaria à sedução política e à idolatria; goēs e goēteía aparecem como rótulos polêmicos para práticas de charlatanismo ritual; em Daniel (tradições gregas), a corte caldaica é tecnicamente descrita por magoi, goētes e epaoidoi, contrastando com a “revelação” concedida ao profeta (Daniel 2). O resultado é um “filtro” grego que estabiliza equivalências e cria uma taxonomia que a literatura judaico-cristã posterior herdará.,

No período do Segundo Templo e no judaísmo helenístico, “adivinhação” é sistematicamente deslegitimada quando entendida como técnica autônoma (manteía, goēteía, pharmakeía), e legitimada quando subsumida à economia da revelação: profecia, sabedoria, interpretação inspirada da Escritura, sonhos “enviados por Deus”, e práticas cultuais (sorteio sagrado, Urim/Tumim na memória antiga). Qumran exemplifica a internalização do destino por “lotes” e a substituição da adivinhação técnica por disciplina e pesher; os deuterocanônicos reforçam a crítica à omenologia popular (Sirácida 34) e, ao mesmo tempo, preservam tradições terapêutico-apotropaicas (Tobias); Josefo e Fílon traduzem essas fronteiras em categorias aceitáveis ao mundo greco-romano, distinguindo entre milagre/cura/divina revelação e magia adivinhatória; a LXX fixa o dicionário que mediará o debate terminológico até o cristianismo primitivo.

XIII. Adivinhação no Novo Testamento

A. Vocabulário e campo semântico no corpus cristão primitivo

O Novo Testamento utiliza um pequeno conjunto de termos gregos para descrever práticas adivinhatórias e mágicas, que aparecem em contextos narrativos e parenéticos bem definidos. Em Atos 16:16 ocorre o único emprego explícito do verbo manteuomai (“praticar adivinhação”), ao caracterizar a atividade lucrativa da jovem escravizada em Filipos; trata-se de um tecnicismo da linguagem mantíca grega, que aqui qualifica a fala oracular mediada por um “espírito de pythōn” (pneuma pythōna). A literatura clássica preserva a associação de pythōn com o santuário de Apolo em Delfos, onde a Pítia proferia oráculos; esse pano de fundo histórico-religioso é amplamente discutido na bibliografia sobre Delfos e sobre a figura da Pítia, inclusive com debates acerca da natureza da inspiração e da performance (versificada ou não) da sacerdotisa. A conexão entre pythōn, Delfos e Apolo encontra documentação sistemática em repertórios enciclopédicos e em estudos de história da religião grega, que também lembram rituais como o Septerion, dramatizando o mito da vitória de Apolo sobre Python. Essa rede semântica ajuda a compreender por que Lucas escolhe a formulação “espírito de pythōn” para situar o caso filipense no universo mantíco helênico, ao qual o cristianismo nascente responde por exorcismo e catequese, não por assimilação (MAURIZIO, Anthropology and spirit possession: A reconsideration of the Pythia’s role at Delphi, 1995, pp. 69-86).

Além de manteuomai e pythōn, o campo lexical inclui magos e o verbo mageuō. Em Mateus 2, “magos” oriundos do Oriente identificam, por meio de sinais celestes, o nascimento do rei dos judeus; a palavra magos, que tem história persa/iraniana e densa recepção greco-romana, não é, nesse episódio, um rótulo pejorativo, mas um marcador de status de especialistas e de sua busca cultual por tributo. Estudos recentes contextualizam os magos de Mateus em cenários de relações romano-partas e de circulação de saberes astrológicos e cortesãos no século I, ampliando o alcance histórico do relato veterotestamentário releitural de Mateus. Em outros textos lucanos, porém, a família de palavras “mag-” recebe conotação negativa: em Atos 8:9, Simão é apresentado “praticando mageuō” (emprego verbal que sugere o exercício de artes mágicas para fascinar a população), e em Atos 13:6–8, Elimas é chamado magos diante do procônsul Sérgio Paulo, oposição terminológica nítida à revelação apostólica. Comentários críticos notam, ainda, que “Elimas” pode refletir um título árabe de “sábio”, contrastado ironicamente por Lucas ao qualificá-lo como magos no sentido técnico e depreciativo que o termo assumiu no uso popular greco-romano. (GEORGE, Matthew, the Parthians, and the Magi, 2025)

No domínio parenético, a palavra-chave é pharmakeía (“feitiçaria”, “práticas mágicas”), presente em Gálatas 5:20 entre as “obras da carne” e na literatura joanina do Apocalipse (9:21; 18:23; 21:8; 22:15, com o correlato pharmakoi). O termário grego associa pharmakeía a ritos, poções e encantamentos e não serve, em seu horizonte semântico antigo, como sinônimo de “farmácia” moderna; dicionários e estudos de referência em história das religiões e do mundo greco-romano apresentam pharmakeía como categoria de magia/feitiçaria, frequentemente ligada a idolatria e à manipulação religiosa.

Por fim, na discussão do vocabulário, cumpre registrar klēros (“sorte”, “lote”), decisivo para a interpretação de Atos 1:26. O emprego de klēros na cena da escolha de Matias tem forte lastro na tradição bíblica e greco-romana do lançamento de sortes como técnica decisória e oracular, com matizes que vão de mecanismo sacral de discernimento a sorteio administrativo; a lexicografia e os comentários ao versículo sublinham que a expressão “caiu a sorte sobre Matias” não descreve uma votação, mas o resultado de um procedimento cleromântico.

B. Episódios paradigmáticos: dos “magos” ao “espírito de pythōn”, de Simão a Elimas, até os “livros de magia” de Éfeso

O nascimento de Jesus segundo Mateus apresenta os magos como visitantes astrossequentes que reconhecem e veneram o menino em Belém. A pesquisa moderna lê a cena na interseção de astrologia de corte, diplomacia entre impérios e releituras proféticas; trabalhos de referência publicados por editoras acadêmicas discutem como a figura dos magos condensa saberes orientais e expectativas régias, sem que o evangelista endosse artes adivinhatórias como via legítima de acesso à vontade de Deus. A chegada dos magos funciona, assim, como sinal teológico de epifania às nações, e não como validação cristã de astrologia.

Em Atos 8:9–24, Simão, em Samaria, “praticava mageuō” e assombrava o povo com seus atos; ao tentar “comprar” o dom do Espírito, sua postura é denunciada por Pedro como torção mercantil da graça, e não como discernimento espiritual. A tradição patrística posterior transformará “Simão, o mago” em emblema de falsas maravilhas e gnosticismo incipiente; estudos de história do cristianismo primitivo e de literatura patrística mapeiam esse desenvolvimento, mostrando como a narrativa lucana tornou-se um sítio de memória polêmica contra a magia. (KOLENKOW, Healing Controversy as a Tie between Miracle and Passion Material for a Proto-Gospel, 1976, pp. 623-638)

(i) Semântica de mageuō em Atos 8:9. O verbo grego mageuō (μαγεύω), atestado em Atos dos Apóstolos 8:9, designa o exercício de artes mágicas, o atuar “como mago”. Léxicos históricos registram o uso de mageuō na literatura clássica para “praticar magia”, com ocorrências, por exemplo, em Eurípides e Plutarco, o que confirma que, no grego comum, o termo não tem conotação neutra de “maravilhar”, mas descreve tecnicamente a prática de magia e encantamentos. No contexto de Atos 8:9, a forma participial μαγεύων indica atividade continuada: Simão “praticava magia” em Samaria. A observação exegética tradicional de que a tradução “enfeitiçava” é infeliz — pois a ideia primária é “praticar magia” e o “assombrar/espantar” das multidões é efeito secundário — aparece já em comentários clássicos de referência.

(ii) Distinções semânticas no perícope. O narrador lucano distingue entre o ato técnico de “praticar magia” (mageuō) e o estado psicológico produzido no público, indicado pelos verbos do campo de “pasmo/assombro” (no relato, as pessoas “se admiravam” das façanhas de Simão). Essa distinção reforça que o foco semântico de mageuō é a ação ritual-técnica do operador, não a reação da audiência. Comentadores do século XIX, como Albert Barnes, explicitam essa nuance ao notar que “bewitched” é uma tradução infeliz para o inglês, pois o grego descreve antes o exercício de artes mágicas do que um “ato de bruxaria” no sentido folclórico; o assombro do povo vem como consequência do desempenho do mago.

(iii) Enquadramento histórico-cultural. O próprio Barnes, em diálogo com historiografia e fontes patrísticas, situa Simão no horizonte das artes dos mágoi — originalmente sábios persas e, por extensão, em períodos posteriores, praticantes de astrologia, encantamentos e técnicas divinatórias — e recorda a proibição mosaica de consultas a tais especialistas (Gênesis legislativo: Levítico 19:31; 20:6) como pano de fundo ético-teológico do relato lucano. A mesma linha é seguida por John Gill, que lê mageuō em Atos dos Apóstolos 8:9 como prática real de “artes mágicas”, alinhando Simão aos “feiticeiros” conhecidos no Antigo Oriente e no mundo greco-romano.

(iv) Testemunhos extra e pós-bíblicos usados por Barnes e Gill. Na recepção antiga, Simão Magus é amplamente tratado por autores cristãos, e tanto Barnes quanto Gill mobilizam essa tradição. Barnes remete a Mosheim (História Eclesiástica) e a discussões à margem de Josefo (Antiguidades 20.7.2, com reservas quanto à identificação pessoal), além de lembrar o dossiê patrístico sobre o simonianismo e suas doutrinas; Gill cita explicitamente Justino, Apologia II, e também fontes judaicas (Juchasin), como parte do repertório histórico sobre Simão. Esse aparato secundário foi utilizado para iluminar o sentido técnico de mageuō e o lugar social do “mago” no período.

(v) Intertextos greco-egípcios e o horizonte técnico da magia. O termo mageuō pertence ao mesmo universo prático que os procedimentos atestados nos Papiros Mágicos Gregos (PGM), um vasto corpus de fórmulas, receitas e rituais de época helenística e romana. Ainda que o vocábulo específico não figure em todos os textos, o conjunto dos PGM demonstra o caráter técnico-ritual de tais artes e sua circulação mediterrânica, oferecendo paralelo cultural para a atividade de Simão em Samaria.

(vi) Síntese exegética. Em Atos 8:9–24, o emprego de mageuō fixa a identidade de Simão como operador de práticas técnico-rituais que buscavam produzir efeitos e reputação religiosa (“dizia ser alguém grande”), em contraste com os “sinais” do evangelho (Atos 8:6–8, 13). O vocabulário lucano evita legitimar as artes de Simão como “revelação” e mantém a distância ética e teológica já estabelecida na Lei. Comentários clássicos como Barnes e Gill reforçam, com farta remissão a fontes antigas, que a perícope não descreve mera “ilusão de ótica”, mas uma profissão religiosa reconhecida no mundo antigo e rejeitada no horizonte bíblico.

Em Atos 13:6–12, na corte de Sérgio Paulo, Elimas, chamado magos, opõe-se ao anúncio apostólico e é temporariamente ofuscado pela intervenção de Paulo; comentários históricos observam a tensão entre reivindicações mágicas e autoridade apostólica, e notam que “Elimas” pode ser um título de “sábio” ressignificado por Lucas. A cena reforça, portanto, a distinção entre “maravilhas” como sinais de Cristo e “magia” como técnica de poder autônoma frente a Deus.

Em Atos 16:16–19, em Filipos, a jovem escravizada com “espírito de pythōn” traz lucro a seus donos por meio de manteuomai. A literatura clássica e a pesquisa moderna lembram que pythōn remete ao imaginário delfiano, e que “Pítia” e “pythonissa” tornaram-se, por metonímia, rótulos de médiuns inspirados; Lucas situa a cena precisamente nesse universo. O exorcismo apostólico não apenas interrompe o ciclo lucrativo de adivinhação, gerando protesto econômico, mas dramatiza o confronto entre a inspiração mantíca e a inspiração pneumática do Espírito Santo, temática recorrente na historiografia sobre Delfos e na análise do vocabulário lucano. (MAURIZIO, Anthropology and spirit possession: A reconsideration of the Pythia’s role at Delphi, 1995, pp. 69-86)

Em Atos 19:18–19, em Éfeso, muitos que haviam praticado magia trazem seus livros e os queimam publicamente, num gesto que, além de pastoral, é também cultural e econômico. O episódio tem sido lido à luz do dossiê das Ephesia grammata, fórmulas inscritas ligadas a práticas apotropaicas e manuais rituais atestados em papiros mágicos; a literatura de estudos clássicos documenta tais textos e sua circulação, permitindo entender por que a renúncia pública teve peso social e financeiro num centro como Éfeso. A narrativa lucana explicita, assim, a ruptura do discipulado com a cultura mágica local, gesto que ecoa no crescimento da “palavra do Senhor” no desfecho do parágrafo (MCCOWN, The Ephesia Grammata in Popular Belief. Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 1923, pp. 54, 128–140)

C. Condenações éticas e listas de vícios em Paulo e na literatura joanina

O uso de pharmakeía em Gálatas 5:20 integra um catálogo de comportamentos antitéticos à vida no Espírito, a par de idolatria e de vícios relacionais; o termo não trata de “medicina” em sentido moderno, mas de práticas mágicas que manipulam forças, nomes e substâncias na busca de proteção, poder ou dano. Vocabulários enciclopédicos e estudos de referência confirmam esse valor semântico, que se mantém na recepção neotestamentária do léxico helênico.

No Apocalipse, o mesmo campo lexical aparece com vigor: “não se arrependeram de suas pharmakeíai” (Apocalipse 9:21); Babilônia “seduziu todas as nações por sua pharmakeía” (Apocalipse 18:23); “os pharmakoi terão parte… na segunda morte” (Apocalipse 21:8) e “ficam de fora… os pharmakoi” (Apocalipse 22:15). O autor combina crítica à idolatria imperial com denúncia de artes mágicas como instrumentos de sedução e engano, reassumindo, num horizonte escatológico, a oposição bíblica entre revelação de Deus e técnicas humanas de controle do destino. A bibliografia técnica, inclusive de perfil filológico e histórico-religioso, sustenta que a família pharmak- no corpus joanino remete a feitiçaria e não tem relação direta com a prática médica doméstica do período.

Esse quadro ético-teológico confirma a unidade do testemunho neotestamentário: quando “adivinhação” designa artes técnicas autônomas — manteuomai, mageuō, pharmakeía — o corpus cristão as rejeita como práticas incompatíveis com a confissão de Jesus como Senhor; quando se trata de revelação divina, o Novo Testamento recorre a categorias próprias (profecia, sonho revelado, palavra do Senhor, discernimento de espíritos) e inscreve a mediação legítima no horizonte da graça, não da técnica.

D. A sorte apostólica em Atos 1: a prática antes de Pentecostes e o debate sobre legitimidade

Em Atos 1:15–26, a comunidade, em oração, invoca o Senhor que “conhece os corações” e, após estabelecer critérios, recorre ao lançamento de sortes para preencher o apostolado de Judas. A frase “caiu a sorte sobre Matias” emprega a linguagem de klēros para indicar o resultado de um procedimento cleromântico, que não equivale a “votação”. E. H. Plumptre, em comentário clássico, insiste que o texto descreve sortes, não votos; o vocabulário posterior do versículo (“foi contado com os onze apóstolos”) traz o verbo sugkatepsēphisthē, que deriva de psēphos (“pedrinha de voto/sorte”), mas que aqui, conforme os comentários históricos-linguísticos, expressa apenas o ato de ser incorporado ao colégio, em continuidade com o resultado da sorte.

A tradição cristã antiga conheceu múltiplas formas de lançamento de sortes. O testemunho judaico preservado por Josefo, por exemplo, descreve procedimentos no Dia da Expiação com dois “lotes” retirados de uma kalpē (urna), prática que ecoa Levítico 16:8; comentários históricos sobre Atos 1:26 notam que alguns exegetas antigos imaginaram método semelhante para a escolha de Matias, com duas urnas ou dois conjuntos de tabuinhas, embora Lucas não detalhe o mecanismo. A exposição de John Gill, frequentemente citada, propõe justamente esse tipo de reconstrução técnico-ritual do episódio, à maneira do antigo sortear sacerdotal e das cleromancias do Mediterrâneo.

A antiguidade greco-romana favorecia amplamente sorteios para decisões religiosas, políticas e judiciais, com exemplos que vão de Homero a historiadores e poetas posteriores; a cena lucana, portanto, não é exótica ao contexto do primeiro século, mas ressoa uma tecnologia social de decisão conhecida. A pesquisa moderna discute, por isso, não a “possibilidade” do procedimento, e sim a sua teologia: teria o recurso às sortes sido uma prática legítima apenas antes de Pentecostes, isto é, antes do dom do Espírito à Igreja em Atos 2? A maioria dos pesquisadores observa que, após Atos 2, Lucas não registra de novo a utilização de sortes na comunidade, preferindo mostrar discernimento por oração, profecia e decisão colegiada; mas não há no texto um interdito explícito contra sortes. Estudos vivos de exegese histórica observam esse padrão, sugerindo que a economia do Espírito reorienta os meios de discernimento sem que se precise supor um juízo negativo retroativo sobre Atos 1.

O ponto decisivo, sob o ângulo lexicológico e narrativo, é que Atos 1:26 não descreve uma eleição por sufrágio, mas um apelo ritual à soberania divina por meio de klēros, coerente com a oração precedente (Atos 1:24–25). Daí a pertinência da paráfrase de comentários como o de Plumptre: “o texto fala de ‘sortes’, e não de ‘votos’ ”; o reconhecimento final de Matias como apóstolo indica acolhimento eclesial do resultado, não uma competição de blocos partidários. Essa leitura, aliás, converge com a longa tradição bíblica de sortes cultuais decisórias, da partilha da terra a ritos sacerdotais, e com a ubiquidade de cleromancias no mundo mediterrânico, onde urnas, tabuinhas e pedrinhas eram instrumentos habituais de decisão.

Nota metodológica final

Nesta síntese, mantive integralmente os pontos centrais do dossiê para o Novo Testamento: a singularidade de manteuomai em Atos 16:16 e a referência a pythōn e Delfos; a tipologia lucana que contrasta magos/mageuō com missão apostólica; a cena de Éfeso e os “livros de magia” à luz das Ephesia grammata; a ênfase parenética de pharmakeía em Gálatas e no Apocalipse; e a análise de Atos 1:26 como procedimento de sortes, conforme esclarecido por E. H. Plumptre e por John Gill, com paralelo técnico-ritual em práticas judaicas e greco-romanas. Para fundamentação acadêmica, mobilizei estudos e repertórios de referência sobre Delfos e a Pítia, entradas enciclopédicas de alta confiabilidade, artigos em Cambridge e em periódicos indexados, além de dicionários especializados de bíblia e religião do mundo antigo.

E. A família lexemática pharmak- no Apocalipse

(i) Distribuição e formas. O Apocalipse utiliza termos da família pharmak- de modo programático: em Apocalipse 9:21 aparece o substantivo ligado a “práticas/drugs/feitiçarias”; em Apocalipse 18:23, “as nações foram enganadas pela tua pharmakeia”; e, nas listas parenéticas, figuram “os pharmakoi” em Apocalipse 21:8 e Apocalipse 22:15. Esse campo semântico está presente também na literatura grega mais ampla e, na Bíblia grega, já comparece em tradições sapienciais e proféticas (por exemplo, Sabedoria 12:4; 18:13; Isaías 47:9 LXX) para qualificar práticas de feitiçaria e engano.

(ii) Crítica textual de Apocalipse 9:21. O aparato textual antigo registra uma interessante oscilação entre pharmakon (genitivo plural de pharmakon, “poções/‘drogas’/remédios-feitiço”) e pharmakeion (genitivo plural de pharmakeia, “feitiçarias/práticas mágicas”). Edições críticas de linhagem alexandrina (por exemplo, Westcott-Hort) refletem φαρμάκων, ao passo que tradições bizantinas e do Textus Receptus leem pharmakeion; edições históricas como Nestle 1904 mostram variações ortográficas. Em termos semânticos, ambas as leituras convergem para o mesmo campo, distinguindo apenas entre o resultado/meio material (pharmakon) e a prática/arte (pharmakeia). Essa documentação manuscrita ajuda a entender por que traduções modernas oscilam entre “feitiçarias/magia” e paráfrases que aludem ao uso de “poções” como instrumentos de engano.

(iii) Valor semântico em 18:23; 21:8; 22:15. Em Apocalipse 18:23, a acusação à “Babilônia” emprega pharmakeia para caracterizar a sua capacidade de sedução enganosa em escala mundial: “por tua ‘pharmakeia’ foram enganadas todas as nações”. Léxicos de referência descrevem pharmakeia como “uso de artes mágicas, frequentemente envolvendo drogas e encantamentos”, sem reduzir o termo ao campo médico moderno. Nas listas éticas de Apocalipse 21:8 e Apocalipse 22:15, o plural “os pharmakoi” designa os praticantes dessas artes; sua presença ao lado de homicidas, idólatras e praticantes de imoralidade sexual enfatiza a gravidade social e cultual da prática no quadro do juízo final.

(iv) Léxico grego e paralelo clássico. O conjunto pharmak- cobre, no grego antigo, a preparação e uso de “pharmaka”: remédios, venenos, amuletos e poções, com forte conotação ritual quando associados a encantamentos e malefícios. Em contexto religioso, “pharmakeia” desloca-se do mero “fármaco” material para a arte de manipular pessoas e eventos por meios ritual-técnicos. Por isso, traduções que leem “feitiçaria/magia” fazem justiça ao valor pragmático do termo em textos religiosos. Léxicos e compêndios acadêmicos de língua grega e literatura mágica greco-egípcia confirmam esse movimento semântico.

(v) A intertextualidade veterotestamentária grega. Na tradição bíblica grega anterior a João, “pharmakeia” e correlatos aparecem para qualificar práticas de nações idólatras (por exemplo, Isaías 47:9 LXX) e de povos cuja religiosidade recorre a encantamentos e ritos de manipulação (Sabedoria 12:4; 18:13). Essa intertextualidade prepara o uso joanino, no qual a “pharmakeia” de Babilônia é metáfora teológica para o poder sistêmico de sedução que mistura técnica, religião e economia para enganar “todas as nações”.

(vi) Observações de aparato em Apocalipse 21:8 e 22:15. Em Apocalipse 21:8, a leitura φαρμακοῖς/οἱ φαρμακοί (“os que praticam feitiçaria”) é estável nas linhas textuais principais, e a tradição receptiva a compreendeu como denominação do agente (o “feiticeiro”, o especialista em artes mágicas). Em Apocalipse 22:15, “os pharmakoi” figuram “fora” da cidade, reafirmando a exclusão cultual dos praticantes dessas artes do espaço escatológico de comunhão com Deus e o Cordeiro. Comentários textuais e exegéticos de referência salientam a coerência literária desse duplo emprego.

(vii) Delimitação teológico-prática: “pharmakeia” não é “farmácia” moderna. Estudos recentes de orientação pastoral e acadêmica têm refutado leituras anacrônicas que identificam “pharmakeia” com a indústria farmacêutica moderna. O termo, em seu horizonte antigo, designa práticas mágicas e enganos ritualizados (com uso de substâncias, sim, quando pertinente), não a medicina científica. Essa advertência metodológica é importante para a leitura responsável de Apocalipse 18:23. 

(viii) Conexões com a magia greco-egípcia e o papel de “pharmaka”. O material dos Papiros Mágicos Gregos oferece amostragem de ritos em que substâncias, ungentos, fumigações e poções (pharmaka) são prescritos em conjunto com invocações e gestos, compondo um sistema técnico de manipulação simbólica. Esse “ambiente ritual” ajuda a entender por que, no Apocalipse, “pharmakeia” serve como síntese de práticas de sedução religiosa e social, e explica a vizinhança semântica com idolatria e corrupção comercial em Apocalipse 18.

(ix) Convergência com a tradição profética bíblica. A denúncia joanina retoma a censura profética à “feitiçaria” como instrumento de opressão e engano (por exemplo, Isaías 47), agora aplicada à “Babilônia” simbólica do Apocalipse. A categorização de “pharmakeia/pharmakoi” entre pecados que ferem gravemente a lealdade a Deus e o amor ao próximo (justapostos a homicídios, prostituição e idolatria em Apocalipse 9:21 e 21:8) mostra que o problema não se reduz a “superstição”, mas envolve estruturas de controle e sedução exercidas por meios ritual-técnicos. (Blue Letter Bible)

(x) Síntese lexical-exegética. Em Atos dos Apóstolos 8:9, mageuō fixa a identidade de um operador de “artes mágicas” e permite compreender por que o público “se surpreendia”; o foco recai na técnica e no prestígio religioso que ela pretendia produzir. No Apocalipse, a família pharmak- amplia esse mesmo universo, descrevendo tanto os meios (pharmaka) quanto a prática (pharmakeia) e os agentes (pharmakoi) de um engano cultual e social em escala imperial. A crítica textual de Apocalipse 9:21 mostra que, já na transmissão manuscrita, os escribas percebiam a proximidade semântica entre “poções/mezclas” e “feitiçarias”, adotando ora a forma material (pharmakon), ora a forma abstrata (pharmakeion). A leitura de Barnes e Gill, alicerçada em fontes patrísticas e históricas, insere esses vocábulos em seu horizonte técnico-religioso próprio, evitando anacronismos e mantendo a continuidade com a legislação e a profecia bíblicas (por exemplo, Levítico 19:31; Isaías 47:9) e com o ambiente ritual mediterrânico atestado nos Papiros Mágicos Gregos.

XIV. Recepção na tradição cristã

A tradição cristã antiga consolidou um consenso: técnicas de adivinhação — astrologia judiciária, presságios, necromancia, sortilégios — não são caminhos de revelação, mas tentativas de controlar o desconhecido, incompatíveis com a providência de Deus e com a natureza da profecia. Tertuliano, em Sobre a idolatria, verte esse princípio em catequese moral: viver como cristão em uma sociedade paganizada exige afastar-se das “artes” que sustentam a idolatria, entre as quais a adivinhação, a magia e a astrologia, pois todas supõem transferir a outrem o que pertence somente a Deus (ver também a leitura histórica que o situa como uma matriz de disciplina eclesial contra essas práticas). João Crisóstomo, com veemência pastoral, combateu a astrologia por submeter a liberdade humana a uma necessidade cega e por substituir a confiança filial em Deus por cálculos estelares; estudos modernos preservam essa pregação antiastrológica e situam-na na crítica cristã mais ampla à cultura escolar pagã e aos seus correlatos religiosos. (THOMSON, ‘Let Now the Astrologers Stand up’: The Armenian Christian Reaction to Astrology and Divination, 1992, pp. 305–12) Em Agostinho, a recusa ganha densidade filosófica e teológica. No tratado Sobre a adivinhação dos demônios, argumenta que “revelações” atribuídas a espíritos não desvelam o futuro: no máximo, dependem de observação mais rápida, conjetura e ilusão; por isso, tanto a adivinhação “demônica” quanto a astrologia fracassam como conhecimento do porvir. O mesmo eixo retorna na Cidade de Deus (5.7), ao interpretar acertos astrológicos como expediente demoníaco e não como ciência. A história intelectual recente confirma a centralidade desse dossiê agostiniano para a crítica cristã da mantéia tardo-antiga. (AGOSTINHO, On the Divination of Demons) No plano normativo, sínodos e coleções canônicas do século IV–V repetem o interdito, desautorizando astrólogos, adivinhos e assembléias supersticiosas; Laodiceia tornou-se referência medieval para a disciplina que proscreve cultos e invocações estranhas ao Evangelho.

O Ocidente medieval herdou e sistematizou a crítica patrística. Os penitenciais e coleções canônicas organizaram, em perguntas e tarifas de penitência, um repertório de proibições contra “sortes”, encantamentos, adivinhos e observâncias astrológicas. O caso mais emblemático é o Livro XIX do Decretum de Burchard de Worms, o Corrector sive medicus (c. 1008–1012), um manual de confissão que interroga e pune práticas mágicas e adivinhatórias ao lado de homicídio e adultério. Cópias e testemunhos manuscritos são hoje rastreáveis em acervos digitalizados; estudos recentes resumem seu conteúdo e demonstram como o Corrector se tornou lente para disciplinar “modos pagãos” residuais na cristandade. (BURCHARD, Bispo de Worms, aproximadamente 965–1025: Decretorum libri XX [Latim]) Em paralelo, o chamado Canon Episcopi, preservado em Regino de Prüm (c. 906), Burchard e Gratiano (c. 1140), tornou-se norma influente ao combater crenças populares e “artes perniciosas de adivinhação e magia”, sustentando que certas experiências — como supostos “voos noturnos” — são ilusões demoníacas e não realidades físicas; esse texto foi amplamente usado, na alta Idade Média, para enquadrar superstição e imaginação religiosa.

A disciplina medieval não se limitou a listas negativas. Os mesmos séculos preservaram, por um lado, a memória de práticas liminares — “sorte com as Escrituras” (sortes sanctorum/sortes biblicae) — e, por outro, inventários de repressões e queimas de livros que cercavam o universo mágico. Estudos e edições mostram como coleções de sortes e oráculos, de origem clássica (como as Sortes Astrampsychi) e reelaborações cristãs, circularam no Mediterrâneo tardo-antigo e medieval; manuscritos bizantinos e loterias devocionais cristianizadas ilustram uma zona cinzenta entre leitura piedosa e técnica mantíca. Ao mesmo tempo, a tradição canônica e pastoral repetiu proibições conciliares contra o uso supersticioso de Escrituras, com sínodos gauleses (século V–VI) censurando os que “consultassem por sortes” — um dado frequentemente retomado na historiografia da prática medieval de sortes. Esse material pode ser hoje verificado em acervos digitais como o da British Library, cujo catálogo de manuscritos digitalizados e as entradas específicas para penitenciais e coleções canônicas (por exemplo, Burchard de Worms) facilitam a consulta direta às fontes (bl.uk).

O caminho que leva às perseguições de bruxaria dos séculos XV–XVII envolve uma virada teológico-jurídica e política. A bula Summis desiderantes affectibus (1484), de Inocêncio VIII, autorizou inquisições específicas em territórios germânicos e foi impressa no frontispício do Malleus Maleficarum (1487), ainda que sua recepção e alcance sejam discutidos pela historiografia. A partir dessa recombinação entre preocupações doutrinais e ansiedades sociais, práticas antes tratadas como ilusões passaram a ser juridicamente requalificadas como crimes reais de bruxaria, com efeitos duradouros na Europa confessional.

As Reformas do século XVI reforçaram a crítica bíblica à adivinhação, com ênfase peculiar na suficiência da Escritura e na providência de Deus. Martinho Lutero, nas Conversas à Mesa, rejeita a astrologia como instrumento que atemoriza consciências e usurpa o senhorio divino sobre o futuro (“os astrólogos nada de bom presagiam”, observa, censurando sua retórica de presságios). Ao mesmo tempo, parte do humanismo reformado flertou com a astrologia natural; a ambiguidade aparece, por exemplo, no círculo de Filipe Melanchthon, cuja receptividade à astrologia foi, não raro, funcionalizada à pedagogia e ao comentário bíblico — um campo que a pesquisa recente continua a mapear, inclusive quando discute horóscopos atribuídos a figuras públicas da época (Onlinedigeditions.com).

João Calvino dá expressão sistemática ao repúdio da “astrologia judiciária”. Além de passagens nos Comentários e nas Institutas, escreveu a Admonitio adversus astrologiam, quam iudiciariam vocant, tratando a astrologia preditiva como superstição e perversão do culto, por atribuir aos astros o que a Escritura reserva à providência. Em chave teológico-moral, sua crítica retoma o argumento clássico de que honras e temores devidos a Deus foram transferidos às estrelas, e que a religião verdadeira não admite tal transferência. No campo disciplinar, confissões e catecismos reformados enquadram “feitiçaria, adivinhação, superstição” sob a primeira tábua da Lei: o Catecismo de Heidelberg (P. 94) manda evitar “toda idolatria, feitiçaria, adivinhação e superstição”; os catecismos de Westminster, na linha do segundo mandamento, proíbem “dispositivos supersticiosos” e toda forma de culto não instituído por Deus (um enquadramento que, historicamente, foi aplicado a jogos e sortes).

A Reforma também precisou lidar com as “sortes devocionais”. Na tradição latina, sortes biblicae tinham circulação antiga, mas foram repetidamente condenadas por concílios locais; o problema ressurgiu em contextos evangélicos dos séculos XVII–XVIII, quando setores do pietismo e do metodismo ocasionalmente recorreram a “abrir a Bíblia ao acaso”. A historiografia recente traça esse fio, documentando críticas internas (o risco de superstição e de leitura sem contexto) e a permanência ocasional da prática na piedade popular (BARTLETT, Consulting the Oracle: Sortes Biblicae in Evangelicalism to 1900, pp. 206ss). Em paralelo, teólogos reformados de linha estrita distinguiram o uso legítimo de sortes em contextos bíblicos normativos (por exemplo, a escolha dos bodes em Levítico 16; Atos 1:24–26) do abuso supersticioso de “sortes” no cotidiano, insistindo que o governo de Deus sobre o “sorteio” (Provérbios 16:33) não legitima transformar a providência em técnica.

A partir do século XVII, e com aceleração no século XVIII, a crítica teológica encontra a racionalização cultural descrita por Max Weber como “desencantamento do mundo”: um horizonte no qual o conhecimento científico e a administração racional contestam, ou reordenam, espaços antes ocupados por astrologia, presságios e artes mantícas. A literatura recente releu Weber com atenção aos seus matizes; em termos religiosos, o efeito foi fortalecer a avaliação cristã tradicional de que “saber o futuro” não é disciplina “científica”, mas dom concedido por Deus quando e como quer. (MAROTTA, A disenchanted world: Max Weber on magic and modernity, 2023, pp. 224-242) Ainda assim, a modernidade não aboliu “sobrevivências” populares. Persiste a consulta a horóscopos e a “bibliomancias” caseiras; nos arquivos e museus, multiplicam-se vestígios manuscritos de coleções de sortes e devocionários usados como oráculos, hoje acessíveis em catálogos e repositórios digitais (como o conjunto de manuscritos digitalizados da British Library e guias acadêmicos que reúnem recursos para o estudo de sortes e bibliomancia).

No magistério católico, a posição é inequívoca: “Todas as formas de adivinhação devem ser rejeitadas (…) consultar horóscopos, astrologia, quiromancia, a interpretação de presságios e sortes, fenômenos de clarividência e recurso a médiuns” (Catecismo da Igreja Católica 2115–2117). Trata-se de repetir, em linguagem contemporânea, a distinção bíblica entre oração e profecia, de um lado, e técnica de “adivinhar”, de outro. No protestantismo histórico, os catecismos continuam a tratar “feitiçaria, adivinhação e superstição” como violações da Lei, e teólogos e pastores costumam advertir contra o uso de “sortes” como método de direção, distinguindo discernimento espiritual e abuso supersticioso; o debate reaparece toda vez que ressurge o interesse popular por lançamentos “ao acaso” de textos sagrados.

A recepção cristã da adivinhação é notavelmente coerente desde a Antiguidade tardia: profecia e Escritura são meios de revelação recebida; adivinhação é técnica de revelação buscada e controlada. A patrística fornece a gramática (Tertuliano, Crisóstomo, Agostinho), a disciplina conciliar desenha as cercas; a Idade Média consolida instrumentos jurídicos (penitenciais, Canon Episcopi, Decretistas) e, em simultâneo, testemunha uma cultura material onde a busca por proteção e sinais nunca desaparece; as Reformas renovam o apelo à Escritura e, com confissões e catecismos, rearticulam a crítica; a modernidade encontra na racionalização um aliado para deslegitimar pretensões de “ciência do futuro”, sem, contudo, extinguir as sobrevivências populares que desafiam, até hoje, a catequese e a pastoral. Para o pesquisador, os acervos digitais (por exemplo, a lista de manuscritos digitalizados da British Library e catálogos especializados de penitenciais) e as sínteses acadêmicas (p. ex., estudos recentes sobre sortes, astrologia cristã e crítica agostiniana) permitem reconstruir, com documentação primária e historiografia atual, a amplitude e a continuidade desse juízo cristão sobre a adivinhação.

XV. Patrística e Antiguidade Tardia

Na literatura cristã dos séculos II–V, “adivinhação” é sistematicamente desautorizada como técnica autônoma, seja na forma de astrologia, necromancia, consulta a médiuns ou encantamentos; em seu lugar, os Padres articulam um regime de revelação que privilegia profecia, Escritura, oração, discernimento e caridade como meios legítimos de conhecer e decidir. A investigação recente sobre a Igreja antiga descreve esse movimento como parte de um processo mais amplo de distinção entre “magia” e “milagre”, entre manteía e palavra profética, e entre “sorte” como rito de entrega a Deus e “sortilégio” como tentativa de controlar o destino. A síntese historiográfica da Cambridge History of Magic and Witchcraft in the West situa a Igreja antiga nesse esforço de redefinir fronteiras, com legislação e catequese voltadas a desautorizar adivinhos e astrólogos e a educar fiéis quanto à diferença entre culto e superstição. (KAHLOS, The Cambridge History of Magic and Witchcraft in the West: From Antiquity to the Present, 2015, pp. 148-182)

Entre os latinos precoces, Tertuliano é explícito ao delinear uma ética de separação frente às práticas religiosas pagãs. Ao tratar da vida cotidiana “imersa na idolatria”, insiste que o cristão não deve participar de ritos e ofícios que impliquem “técnicas” de culto estranho — um princípio que atinge tanto a fabricação de imagens quanto a adesão a feitiçarias e adivinhações que sustentavam a sociabilidade antiga. Sua reflexão, preservada em tratados como “Sobre a idolatria”, funciona como matriz catequética: a fé cristã requer renúncia a artes mantícas que, mesmo quando culturalmente prestigiadas, comprometem a lealdade a Deus. (Projeto Tertuliano) Lactâncio, em obra apologética, retoma a distinção entre profecia verdadeira e “adivinhação dos demônios”, associando feitiçarias e presságios a uma economia espiritual de engano; sua crítica antecipa leituras posteriores que verão na magia um esforço de manipular, e não de obedecer, ao divino. Em conjunto, esses autores forjam um léxico teológico-moral que influenciará a disciplina canônica dos séculos seguintes.

Na homilética grega, João Crisóstomo figura entre as vozes mais firmes contra a astrologia. Em comentários pastorais, ele adverte que recorrer aos cálculos celestes para prever o curso da vida equivale a substituir a providência por necessidade cega; a pregação antiaztral é, ao mesmo tempo, doutrina e terapia espiritual, porquanto liberta os fiéis do medo de “estrelas” e de tramas do destino. Estudos acadêmicos sobre a tradição armênia e grega preservam menções diretas à denúncia crisostômica de práticas astrológicas, bem como referências mais amplas à sua crítica da cultura pagã escolar e de seus correlatos religiosos. A recepção desses textos na pesquisa moderna confirma o quadro: a astrologia é tratada como superstição prejudicial à vida cristã, não como “ciência” legítima do céu.

Em Agostinho, a crítica à adivinhação ganha densidade filosófica. No tratado “Sobre a adivinhação dos demônios”, ele argumenta que os chamados “oráculos” e prenúncios atribuídos a espíritos não dão acesso ao futuro como tal; no máximo, operam por capacidades naturais de observação e velocidade superiores às humanas — analogadas, em suas páginas, ao faro do cão — e por conjeturas, truques e conivências com desejos humanos. Por isso, tanto a adivinhação “demônica” quanto a astrologia falham como conhecimento seguro do porvir; esta última, em particular, requer cálculos e medições que excedem a autópsia humana (experiência sensorial), sendo mais retórica do que ciência. Intelectualmente, Agostinho tece sua crítica dialogando com a tradição cristã e com o cânone clássico (Cícero, Apuleio), e a atual historiografia ressalta o modo como ele faz do “limite da percepção humana” uma peça central para desmontar pretensões de adivinhar. A convergência com a rejeição bíblica de “consultas aos céus” (Isaías 47:13) é intencional: o futuro pertence a Deus e se conhece por graça, não por técnica. (HANAGHAN, Precision and the Limits of Autopsy in Augustine’s Critique of Pagan Divination, 2023, pp. 426-442)

A disciplina canônica da Antiguidade tardia reforça o ensino catequético e homilético. O Sínodo de Laodiceia (século IV) deixou cânones que, na tradição patrística e jurídico-canônica, foram lidos como interditos a práticas mágicas, adivinhação e observâncias astrológicas entre clérigos e leigos, com o objetivo de manter pureza de culto e vida. As listas canônicas preservadas em compêndios patrísticos e bases de consulta mostram que a Igreja antiga tratou o recurso a adivinhos e a técnicas de sorteio supersticioso como matéria disciplinar, com sanções. Em termos práticos, os concílios atuaram como instrumentos pedagógicos e jurídicos para conduzir comunidades numa cultura onde presságios e astrologia eram socialmente onipresentes.

A prática de abrir um livro sagrado ao acaso em busca de direção — conhecida na historiografia como “sorte com as Escrituras” — tornou-se elemento recorrente da cultura cristã tardo-antiga e medieval, paralela a sorteios com Homero ou Virgílio no mundo clássico. Agostinho narra sua própria viragem espiritual à luz de uma abertura fortuita da carta aos Romanos (“tolle lege”), mas, em cartas e observações morais, adverte que transformar o procedimento em técnica oracular é reprovável, ainda que considere preferível recorrer aos Evangelhos do que consultar demônios. O debate continuou vivo: na Antiguidade tardia, coleções de “sorte” circularam tanto entre pagãos (Sortes Astrampsychi) quanto entre cristãos (as chamadas “sorte dos santos”), revelando um espectro que vai de usos devocionais a instrumentalizações mantícas. A pesquisa recente sistematizou esse dossiê: há continuidade entre “bibliomancia” tardo-antiga e medieval e, ao mesmo tempo, um esforço pastoral consistente para distingui-la de oração e de leitura espiritual obediente. Em síntese, a Igreja antiga tolerou a linguagem do “sinal” providencial, mas não sancionou a técnica de arrancar do texto um oráculo (SANZO, My Lots are in Thy Hands: Sortilege and its Practitioners in Late Antiquity. Religions in the Graeco-Roman World, 188, 2018, p. 392).

A hostilidade a textos e ritos mágicos não nasceu apenas de convicções cristãs; o mundo romano já conhecia episódios de proibição e destruição pública de livros de astrologia e magia como política de Estado. A historiografia contemporânea lembra que a queima de escritos esotéricos e astrológicos ocorreu sob autoridades romanas, de longa data anterior ao triunfo do cristianismo, e continuou de formas variadas depois. Esse pano de fundo ajuda a entender por que, em Atos 19:19, a queima de “livros de magia” em Éfeso possui também ressonâncias jurídico-culturais mais amplas no Mediterrâneo tardio: abandonar manuais e fórmulas era gesto religioso, social e político.

Vista em conjunto, a patrística articula um princípio coerente: a adivinhação, enquanto técnica destinada a forçar o oculto — por astros, demônios, presságios ou livros usados como oráculo —, é incompatível com a fé cristã; a revelação, ao contrário, é dom de Deus, mediado por profecia, Escritura, sacramentos e vida moral. Agostinho unifica essa crítica com um argumento epistemológico (os limites da percepção e da inferência humanas) e com uma teologia dos anjos e demônios que reduz a “divinação” demoníaca a conjetura e sofisma; João Crisóstomo insiste na liberdade frente às estrelas; Tertuliano e a disciplina conciliar traçam fronteiras práticas; e a tradição sobre “sorte com as Escrituras” permanece como caso-limite, ora recebendo leitura devocional, ora sofrendo repreensão quando degenera em sortilégio. A bibliografia especializada recente confirma a densidade e continuidade desse conjunto, ao mesmo tempo em que mapeia as ambiguidades pastorais de uma cultura em que técnicas de decidir e de “saber” permeavam do palácio à casa.

A patrística ecoa, de forma explícita, a avaliação bíblica: “consultas aos céus” e artes mágicas aparecem como sinais da idolatria das nações (Isaías 47:13), enquanto a direção legítima vem de Deus por seus meios e tempos. A Antiguidade cristã redefine “saber o futuro” como questão de fé e obediência, não de técnica. Os cânones desenham a cerca disciplinar; a homilética catequiza contra astrologia e feitiçaria; a reflexão de Agostinho oferece as bases filosóficas; e a memória tardo-antiga da “sorte com as Escrituras” ilustra, por contraste, a tensão permanente entre devoção e superstição. Assim, o amplo consenso patrístico não apaga nuances históricas, mas mantém o núcleo: a adivinhação — como sistema — é rejeitada, e a revelação — como dom — é confessada, em continuidade com a Escritura e com a consciência pastoral de uma Igreja que navegava um Mediterrâneo saturado de presságios.

XVI. Fronteiras conceituais dentro da teologia bíblica

A. Revelação graciosa versus manipulação ritual

A teologia bíblica distingue, com nitidez, a revelação como dom gratuito de Deus — palavra profética, sonho revelado, direção do Espírito — e a adivinhação como técnica de manipulação do invisível. Essa distinção percorre o cânon: a Lei proíbe qésem, ʿōnēn, niḥuš e congêneres (Deuteronômio 18:9–14), enquanto legitima mediações que dependem da iniciativa divina, como a profecia e, em momentos específicos, os instrumentos do culto. No Antigo Testamento, ʾūrīm wĕ-tummīm pertencem ao aparato sacerdotal e servem, por concessão divina, a decisões de alto impacto (Êxodo 28:30; Números 27:21); a pesquisa filológica tem comparado seu uso a rituais mediterrânicos de psephomancia (consulta por pedras/sortes) e discutido sua relação com práticas cleromânticas assírias, sem reduzir o fenômeno a “magia” indiscriminada. A linha de força é clara: quando o discernimento se apoia em meios instituídos por Deus e subordinados à sua palavra, trata-se de revelação recebida; quando se busca controlar o futuro por artifícios, entra-se no território da manipulação ritual rejeitada pela Escritura (Ezequiel 21:21 é um contraponto paradigmático ao descrever um rei estrangeiro que “sacode as flechas, consulta os terafins, observa o fígado”). Estudos de alto nível sobre ʾūrīm wĕ-tummīm mostram que, no antigo Israel, até mesmo as “sortes sagradas” eram pensadas como submissas à soberania de YHWH, e não como automatismos ritualizados autônomos.

No Novo Testamento, o mesmo contraste emerge: a comunidade ora, recebe direção do Espírito, julga profecias e age; “técnicas” mantícas e mágicas são recusadas. A perícope de Atos dos Apóstolos 19:19, com a queima de livros de magia em Éfeso, ilustra a ruptura social e religiosa com um sistema de poder técnico; as listas parenéticas situam pharmakeía entre os vícios (Gálatas 5:20) e o Apocalipse denuncia “os pharmakoi” como partícipes do engano idolátrico (Apocalipse 21:8; 22:15). A bibliografia especializada sobre pharmakeía e sobre o “discernimento de espíritos” em Paulo (1 Coríntios 12–14) sustenta a fronteira: carismas são dons a serviço do corpo; adivinhação é técnica que pretende instrumentalizar o sagrado. (MUNZINGER, The Discernment of Spirits. In: Discerning the Spirits: Theological and Ethical Hermeneutics in Paul, 2007, pp. 45-74)

B. Soberania divina, providência e “sorte” sob controle de Deus

O provérbio “a sorte (gōral) é lançada no regaço, mas do Senhor procede toda a decisão” (Provérbios 16:33) condensa uma tese teológica: mesmo quando um procedimento envolve acaso humano, o resultado não está fora da providência. No Antigo Testamento, gōral regula partilhas (Josué 18), seleções (1 Samuel 14; 1 Samuel 10) e decisões cultuais (Levítico 16), sempre sob a convicção de que Deus governa o desfecho. Em Atos dos Apóstolos 1:24–26, antes de Pentecostes, a comunidade invoca o “Conhecedor dos corações” e recorre a sortes; a literatura acadêmica realça que a expressão grega descreve cleromancia — não votação — e que o gesto está ancorado no mesmo horizonte teológico de Provérbios 16:33. Após Atos 2, o padrão muda: discernimento comunitário e direção explícita do Espírito (por exemplo, Atos 13:2; 15:28) substituem o recurso a sortes sem que se negue, porém, a tese maior de que não há “acaso” fora da providência.

A relação entre ʾūrīm wĕ-tummīm e as cleromancias do entorno é tema clássico de pesquisa. Comparações com rituais assírios de psephomancia (LKA 137), bem como debates metodológicos subsequentes, ajudam a situar esses instrumentos como meios cultuais nos quais o resultado é teologicamente atribuído a Deus, em contraste com sistemas divinatórios que pressupõem automatismos cósmicos ou manipulação técnica independente. Esses estudos reforçam a leitura veterotestamentária: a “sorte sagrada” não é tecnociência do destino, mas rito de entrega da decisão à vontade de YHWH.

C. Discernimento de espíritos: critérios e carismas

A teologia neotestamentária substitui a busca de oráculos por um regime de discernimento espiritual. Em 1 Coríntios 12:10, Paulo menciona diakrisis pneumaton (διάκρισις πνευμάτων), “discernimento de espíritos”, como carisma destinado a julgar manifestações carismáticas e magistérios — não como “técnica” divinatória, mas como juízo prudencial iluminado pelo Espírito. Pesquisas de referência em Cambridge discutem o alcance do termo e sua relação com a crítica de profecias em 1 Coríntios 14:29, notando que Paulo supõe a necessidade de avaliar o “espírito” que anima o discurso e os sinais, porque a experiência religiosa é, de fato, ambivalente no campo social. Essa chave paulina encontra paralelos em 1 João 4:1–3 (“não creiais a todo espírito, antes provai os espíritos”), onde o critério cristológico e eclesial testa pretensas revelações; estudos exegéticos mapeiam como a perícope joanina se tornou base para uma longa tradição de “provar os espíritos” na Igreja antiga. Por fim, 1 Tessalonicenses 5:19–22 articula o equilíbrio: não “apagar” o Espírito, não desprezar profecias, mas “examinar tudo” e “reter o que é bom” — uma regra que, segundo leitura acadêmica recente, configura um ethos comunitário de prudência espiritual.

Daí decorrem critérios: centralidade de Jesus como Senhor encarnado e ressuscitado (1 João 4:2–3), conformidade com o evangelho recebido (Gálatas 1:8–9), fruto ético (Mateus 7:15–20), testemunho do Espírito na comunidade (Atos 15:28) e submissão das experiências à Escritura. A literatura bíblica e patrística não homologa “toda” experiência espiritual; ela a julga. O carisma não automatiza decisões: ele se exerce em oração, colegialidade e submissão à palavra, em contraste frontal com procedimentos adivinhatórios que prometem neutralizar a incerteza por meios técnicos.

D. O problema dos “sinais” pedidos a Deus: fé, tentação e teste

A Bíblia conhece “sinais” (ʾôt) dados por Deus, mas também adverte contra “testar” Deus (nissāyôn) como quem lhe impõe condições. Três dossiês são determinantes. Primeiro, Massá e Meribá: o povo “põe o Senhor à prova” ao exigir garantias de sua presença apesar de todos os feitos já vistos (Êxodo 17:1–7). Essa memória vira paradigma de incredulidade litúrgica nos Salmos (“não endureçais o coração… em Massá”, Salmos 95:8–9) e fundamenta a proibição explícita: “não porás o Senhor teu Deus à prova, como o fizeste em Massá” (Deuteronômio 6:16). Jesus, em sua provação, cita precisamente esse texto para recusar o espetáculo pedido pelo Tentador (Mateus 4:7). A pesquisa bíblica contemporânea explora como “Massá/Meribá” é reatualizada na liturgia e na catequese de Israel, e como Deuteronômio 6:16, relido por Jesus, delimita o pedido de “sinais” como tentação quando visa submeter Deus a condições humanas.

Segundo, o “sinal” a Acaz (Isaías 7): o profeta ordena que o rei “peça um sinal” — ʾôt — como ato de fé na palavra de YHWH; Acaz recusa, com falsa piedade, porque preferia sua política pró-assíria. Estudos clássicos em JSTOR avaliam se o sinal encerra promessa, ameaça ou ambas, e como a recusa do rei revela incredulidade travestida de devoção. Aqui, o ensino é sutil: pedir “sinal” por obediência à palavra profética é ato de fé; recusar o “sinal” de Deus por confiar no cálculo político é tentação invertida. (SCULLION, An Approach to the Understanding of Isaiah 7:10-17, 1968, pp. 288-300)

Terceiro, o “velho da lã” de Gideão (Juízes 6:36–40). Gideão não pede direção inédita, mas confirmação de uma palavra já recebida. Leituras acadêmicas recentes têm mostrado como a cena funciona, literariamente, como turning point que expõe a hesitação do líder e inaugura um fio de ambivalência que perpassa o restante do livro; outros estudos analisam a escolha de “orvalho” e “geografia” como dispositivos narrativos. A tradição posterior popularizou “pôr a lã” como método de decidir; a exegese, porém, advertiu contra transformar o episódio singular em técnica. O contraste com Deuteronômio 6:16 permanece: quando a exigência de “sinal” é mecanismo para condicionar Deus, trata-se de tentação; quando o “sinal” é dado soberanamente por Deus — ou pedido em obediência explícita à sua palavra —, ele serve à fé.

No Novo Testamento, Jesus recusa pedidos de sinal que encenam incredulidade (“esta geração pede um sinal…”, Mateus 12:38–42; Lucas 11:29–32) e aponta ao “sinal de Jonas”, isto é, à própria páscoa de sua morte e ressurreição. A teologia dos sinais desloca o eixo: o “sinal” supremo é Cristo e sua obra; a fé se ancora na palavra e nos atos de Deus, não em provas repetidas exigidas como condição para obedecer. A tradição cristã, por sua vez, acolheu “sinais” sacramentais e carismáticos como dons, preservando, porém, a advertência bíblica contra o “testar” Deus.

As fronteiras conceituais são firmes: revelação é recebida, não produzida por técnica; a providência governa até o que parece acaso, de modo que “sorte” cultual é rito de entrega, não mecanismo de controle; o discernimento é dom comunitário que submete experiências à confissão de Cristo e à Escritura; e “sinais” são dons que fortalecem a fé, não fichas com as quais se negocia com Deus. Essa arquitetura conceptual permite integrar casos emblemáticos — ʾūrīm wĕ-tummīm e gōral; o “discernimento de espíritos” paulino e joanino; Massá/Meribá, Acaz e Gideão — sem confundir dom com técnica. Ela também se apoia em sólida pesquisa acadêmica: estudos de Cambridge sobre diakrisis pneumaton; dossiês em JSTOR sobre Isaías 7 e a tradição de “provar os espíritos”; análises especializadas sobre ʾūrīm wĕ-tummīm e psephomancia; e leituras contemporâneas de 1 Tessalonicenses 5:19–22 como regra de equilíbrio entre abertura e crítica.

XVII. Arqueologia e cultura material

O léxico bíblico associa os terafins (terāfim) não só a idolatria doméstica, mas também a fins mantícos: falam oráculos (Zacarias 10:2), aparecem na capela de Mica (Juízes 17–18) ao lado do éfode e são parte do repertório consultivo em contextos régios (1 Samuel 19:13; Ezequiel 21:21). Na discussão acadêmica, dois vetores interpretativos se cruzam: por um lado, a leitura “doméstica”, que os entende como ídolos familiares; por outro, a leitura “profissional”, que os aproxima de mediações oraculares, às vezes como ícones que “representavam seres intermediários” consultados para obter um oráculo (assim já propôs K. van der Toorn), o que explica sua associação a sacerdotes e reis em textos-chave e sua contiguidade a outros instrumentos de consulta, como o éfode (Juízes 17:5; 1 Samuel 23:9). A bibliografia de referência resume essa tensão e a situa no horizonte da religião familiar israelita e das práticas divinatórias do Levante.

Entre as evidências materiais mais eloquentes de religiosidade familiar conexa a práticas de consulta estão as chamadas “figurinhas coluna” judaítas (Judean Pillar Figurines). Embora não sejam terafins stricto sensu, sua massiva difusão no Reino de Judá no Ferro II e a recorrente hipótese de ligação com cultos de fertilidade e proteção doméstica compõem o pano de fundo material em que a adivinhação popular se moveu. A discussão clássica — se representam Asherá ou outras deusas e como se articulariam a ritos de proteção — mostra o quanto o registro arqueológico preserva dispositivos de procura por favor e direção, mesmo quando a função exata de cada peça é debatida (TAPPY, The Judean Pillar-Figurines and the Archaeology of Asherah Raz Kletter, 1998, pp. 85-89).

No eixo “amuletos e lamelas/lamínulas”, há artefatos que descem diretamente ao universo bíblico. Os dois amuletos de prata de Ketef Hinnom (século VII/VI a.C.), gravados com formas da bênção sacerdotal (Números 6:24–26), são textos devocionais condensados em miniaturas portáteis e atestam a circulação de fórmulas protetivas na Judeia do fim da monarquia. Edições críticas reavaliaram leituras e paleografia, mas o consenso mantém seu caráter de amuletos inscritos com invocações ao Nome divino e fórmulas de bênção. Esses objetos permitem observar a borda entre piedade e apotropaísmo onde, historicamente, crescem práticas de consulta. (BARKAY; LUNDBERG; VAUGHN; ZUCKERMAN, The Amulets from Ketef Hinnom: A New Edition and Evaluation, 2004, pp. 41-71) No extremo noroeste semítico, os célebres amuletos de Arslan Tash, com inscrições mágicas fenícias do século VII a.C. e fórmulas contra espíritos noturnos, documentam um repertório incantatório no qual deuses, demônios e forças astrais se mobilizam para proteção e prognóstico; sua autenticidade e leitura têm sido amplamente discutidas e retrabalhadas pela filologia. (CROSS; SALEY, Phoenician Incantations on a Plaque of the Seventh Century B. C. from Arslan Tash in Upper Syria, 1970, pp. 42-49)

Já as lamelas malditórias (defixiones) em chumbo, mais frequentes no ambiente greco-romano, são particularmente abundantes em contextos do litoral da Palestina/Bíblia romana. Em Cesareia Marítima, por exemplo, escavações do circo revelaram pranchas de chumbo dobradas com imprecações contra adversários de corridas, às vezes pregadas no piso da arena — um uso mágico-competitivo de escrita e metal que ilustra o prolongamento mediterrânico de cleromancias e sortilégios. Achados associados incluem estatuetas rituais (figurines) “agressivas”, parte do mesmo horizonte de magia prática (DANIEL; YOSEF, A Greek Curse Tablet from the Eastern Circus at Caesarea Maritima, 2018, pp. 167–174).

A cultura material dos “dados” e dos ossos usados para lançar sortes tem ganhado documentação notável. Os astragali (falanges-astragalus de ovinos e caprinos, às vezes perfurados ou polidos) aparecem em depósitos concentrados e contextos cultuais no Levante. Em Tel Abel Bete Maacá (Ferro IIA), veio à luz um conjunto de mais de quatrocentos astragali, interpretado como evidência de jogos e práticas mantícas; em Maresa (Beit Guvrin), um estudo recente analisou mais de seiscentos astragali helenísticos, com sinais de uso ritual e lúdico; e em Tel Nagila, um conjunto do Bronze Médio atesta a profundidade temporal do costume. O padrão corrobora que lançar peças com faces diferenciadas — seja osso, seja dado — serviu tanto a jogos quanto a cleromancia, prática paralela ao gesto bíblico de “lançar sortes” (Provérbios 16:33; Atos 1:24–26). Em diálogo mais amplo com o Antigo Oriente, estudos mostram que séries de astragali e dados integram um continuum de técnicas (cleromancia, extispicina, onirocrisia) no qual o acaso controlado oferece respostas binárias ou graduadas — contexto no qual Israel e Judá viveram e do qual textos como Ezequiel 21:21 (“o rei de Babilônia… agita as flechas, consulta os terafins e observa o fígado”) são uma janela rara. (sciendo.com)

Por fim, “ossos oraculares” no sentido estrito — escápulas produzidas para piromancia ou osteomancia — são bem documentados em corpora hititas e mesopotâmicos (paralelos do entorno cultural de Israel), onde a extispicina sobre fígado e vísceras (bārûtu) era ciência de Estado, com modelos anatômicos de argila e compêndios de presságios; a Bíblia conserva ecos dessa vizinhança intelectual (Ezequiel 21:21). Ainda que o registro arqueológico israelita para hepatoscopia material seja discreto, o paralelo oriental é crucial para compreender a gramática mantíca da região. (PLIATSIKA, Why So Serious, 2022)

O repertório visual levantino preserva, desde a Idade do Ferro, signos que cruzam religião, proteção e astrologia. O dossiê tardo-antigo das sinagogas com mosaicos zodiacais (Hammat Tiberíades, Seforis, Naʿaran, Beth Alfa, Huqoq) revela, já na Antiguidade Tardia, uma convivência entre calendários astronômicos/astrológicos e iconografia solar (Hélio no carro), com os doze signos dispostos em anel e as quatro estações nos cantos — um programa cuja função é interpretada como calendárica e cósmico-litúrgica, não como licença a adivinhação, mas ainda assim indicador de forte presença do imaginário astral na arte judaica. Mais cedo, em esferas fenícias e siro-palestinas, amuletos inscritos, placas de bronze, selos e glíptica trazem símbolos protetivos e possivelmente mantícos (olhos apotropaicos, estrelas, combinações divinas), bem como fórmulas linguísticas típicas de encantamentos; um amuleto próximo de Tiro com inscrição fenícia é exemplo dessa tradição ocidental semítica de objetos textuais para proteção e, por extensão, para orientação perante o desconhecido (SCHMITZ, Reconsidering a Phoenician Inscribed Amulet from the Vicinity of Tyre, 2002, pp. 817-823).

No campo epigráfico monumental, certas estelas iluminam a interface entre culto, ideologia régia e oráculo. A Estela de Mesa (Moab, c. 840 a.C.) é exemplar: o texto faz o rei declarar “Quemosh disse a mim: Vai, toma Nebo de Israel”, fórmula que pressupõe consulta e resposta divinas e que inscreve, em basalto, um modelo de decisão política por mediação oracular — um paralelo externo de primeira ordem para a cultura bíblica. (LEIMARE, What Does the Mesha Stele Say? 2022) A inscrição de Deir ʿAlla (século VIII a.C.), com o “livro de Balaam, filho de Beor”, registra visões noturnas e assembleias divinas, com linguagem e cenografia próximas às profecias; a tinta sobre reboco infravermelha e vermelha, encontrada em complexo possivelmente cultual, atesta como, no vale do Jordão, o discurso oracular pôde ser monumentalizado em parede, não só em rocha (Deir ʿAlla Inscription).

No interior de Judá, o santuário de Tel Arad, com maṣṣēbôt e altares de incenso no debir, é o melhor laboratório para ver como objetos e aromas corporificam gestos de consulta e de intercessão; a desmontagem ritual do aparato em algum momento do século VIII/ VII a.C. e traços de resinas (olíbano) e canabinóides nos topos dos altares, conforme estudo de resíduos, dão a medida de uma ritualidade complexa que contextualiza práticas consultivas, ainda que o sítio não documente, por si, um “oráculo” formal. (USSISHKIN, The Date of the Judaean Shrine at Arad, 1988, pp. 142-157)

A geografia cultual do sul do Levante conserva, desde o Bronze Médio, recintos com maṣṣēbôt em série (Hazor, Gezer), altares de pedra, bancos e nichos — “cantos de culto” com mobiliário mínimo, que funcionaram como pontos de mediação e decisão ritual. A dificuldade de determinar, em cada caso, o exato “uso” (memorial, jurídico, oracular, funerário) não impede reconhecer que tais conjuntos pertencem a uma ecologia de consulta cujo correlato textual, no Israel bíblico, inclui a sorte lançada, a pergunta ao sacerdote e o oráculo profético (DEVER, The Middle Bronze Age “High Place” at Gezer, 2014, pp. 17-57). A arqueologia de Judá no século VII a.C. mostra, além disso, “espaços liminares” com função devocional nas portas das cidades, como o santuário de portão de Laquis, lugar onde decisões, avisos e ritos se encontram — cenário compatível com consultas públicas e aclamações. (GANOR; KREIMERMAN, An Eighth-Century B.C.E. Gate Shrine at Tel Lachish, Israel, pp. 211-236)

As inscrições de cunho religioso e administrativo que emergem desses espaços completam o quadro. Nos óstracos de Arade (século VI a.C.), o célebre “Casa de YHWH” (Ostracon 18) parece referir-se ao Templo de Jerusalém, funcionando como referência espacial de uma autoridade cultual; outros óstracos mencionam luas novas e remessas cultuais, sinalizando o calendário ritual que enquadrava consultas e votos. O conjunto de Laquis (cartas de porta) captura, às vésperas do exílio, um clima de ansiedade profética e militar que dialoga com Jeremias e, indiretamente, com o lugar social do “aviso” inspirado — um termômetro histórico do valor dado, em situações-limite, a mensagens e sinais (STEINMEYER, The Lachish Letters, 2023).

A documentação epigráfica extrabíblica que tangencia oráculos — além de Deir ʿAlla e Mesa — inclui inscrições do deserto do Sinai e do Neguebe (Kuntillet ʿAjrud) com fórmulas de bênção (“YHWH de Samaria e sua asherá”), cujo vocabulário litúrgico mostra a expectativa de favor e proteção divinos em postos periféricos, e revela práticas devocionais que, no plano sociológico, encostam-se à procura de respostas e sinais. No entorno greco-anatólico, santuários oraculares formalizados (como Didima/Branchidai) oferecem um paralelo institucional claro para a mântica mediterrânica — trance profético e cleromancia — lembrando que Israel conviveu, por séculos, com vizinhos cujas cidades-estado sustentavam casas de oráculos e suas infraestruturas. (GREAVES, Divination at Archaic Branchidai-Didyma: A Critical Review, pp. 177-206)

Do ponto de vista erudito, o registro arqueológico e epigráfico do Levante sustenta três conclusões úteis para o estudo bíblico da adivinhação. Primeiro, a cultura material “doméstica” (figurinhas, amuletos, lamelas) revela uma procura difusa por proteção e direção, em gradações que vão do devocional ao mágico; é nesse nível que os terafins se tornam inteligíveis como objetos liminares, aptos tanto à tutela da casa quanto à consulta mantíca (Zacarias 10:2; Juízes 17–18). Segundo, a cultura “pública” (maṣṣēbôt, altares, santuários de portão, inscrições murais) mostra que espaços e textos podiam ser configurados como lugares de mediação de decisões — da “palavra” divina à “sorte” lançada —, e que reinos vizinhos a Israel registraram, em pedra ou reboco, respostas de deuses a reis (Mesha; Deir ʿAlla). Terceiro, a iconografia astral e os conjuntos de astragali mostram a persistência de um imaginário cósmico e de técnicas de acaso orientado que atravessam séculos, do Bronze ao Bizantino, e que, no judaísmo tardo-antigo, foram reconfigurados como arte calendárica sem sancionar adivinhação, embora preservando a gramática dos signos.

XVIII. Perspectiva comparada das religiões

Entre os iorubás da África Ocidental, o sistema de Ifá organiza a consulta por meio de signos binários dispostos em dezesseis odù e suas combinações, interpretados por especialistas (babaláwo) a partir de um corpus de versos e de um protocolo ritual conhecido. Pesquisas etnográficas e históricas descrevem o aparato (tabuleiro, palitos/ikín ou corrente opelé), a ética profissional, a ligação de Ifá com a tomada de decisões e o lugar de adivinhos ligados à corte, atestando que, além da orientação pessoal e terapêutica, o sistema possui dimensão pública e política (BASCOM, Ifa Divination: Communication between Gods and Men in West Africa, 1969, p. 608) No Brasil, herdeiros afro-atlânticos desse repertório operam o jogo de búzios como técnica de consulta que organiza prescrições rituais, diagnósticos e terapêuticas religiosas, com literatura antropológica documentando sua função de conhecimento e de cuidado no Candomblé (BASSI, Atos rituais: eventos, agências e eficácias no Candomblé, 2016). Ainda no continente africano, os azande do Sudão do Sul tornaram célebre o oráculo de veneno (benge), consulta de alta autoridade social em que a resposta emerge do destino de uma ave envenenada, com regras e controles próprios; documentação clássica e acervos fotográficos de campo preservam a centralidade desse oráculo e seus contextos de uso (LEHMANN, Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande, 1937, pp. 366-367).

Adivinhação nas religiões africanas
A imagem retrata um ritual de adivinhação do sistema Ifá, uma prática religiosa e oracular da cultura iorubá.

Na Ásia, a China dos Shang (século XIII–XI a.C.) institucionalizou a piro-osteomancia em escápulas de bovinos e plastrões de tartaruga, com inscrições que registram perguntas, respostas e relatórios do ritual; a massa documental é extraordinária e permite datar, descrever e interpretar um sistema divinatório de Estado. Trabalhos de referência quantificam dezenas de milhares de peças, analisam o gesto técnico do aquecimento e a lógica do registro, e demonstram como a adivinhação se articulava ao calendário, à agricultura, à guerra e ao culto dinástico (LIU; WU; GUO; et al, Radiocarbon Dating of Oracle Bones of Late Shang Period in Ancient China, 2020, pp. 155-175). Em continuidade histórica, manuais dos Períodos Zhou e posteriores formalizaram a cleromancia do Yijing (livro dos “Mudanças”), com métodos de contagem de varetas de milefólio e, mais tarde, de moedas, para obter hexagramas interpretados por comentários; estudos recentes reconstroem a técnica e a sua disciplinarização filosófica. (Cambridge University Press & Assessment)

Nas Américas indígenas, o mundo mesoamericano preservou, em códices pictográficos do grupo Borgia e congêneres, almanaques divinatórios centrados no calendário de 260 dias (tōnalpōhualli), com séries de prognósticos para viagens, guerra, casamento, saúde e ritos de passagem; a pesquisa textual e iconográfica contemporânea explora a lógica interna desses livros de destino e sua relação com o tempo ritual. Entre maias do Yucatán e outros povos, a prática calendárica de “queimar períodos” e organizar ritos nas “trezenas” foi descrita analiticamente como moldura para decisões e adivinhação (PHARO, The Ritual Practice of Time of the Yucatec Maya 260-Day Calendar in the Post-Classic Period: The Burner Ceremonies of Quadripartite 65-Day Intervals, 2009, pp. 15-27). No Andes, por sua vez, a coca é fonte ritual para auscultar o oculto, com descrições de longa duração sobre seu uso divinatório e terapêutico em ambientes quéchua e aimará; artigos clássicos e dossiês etnográficos relacionam o lançamento e a leitura das folhas a decisões práticas e a ordens morais locais (MARTIN, The Role of Coca in the History, Religion, and Medicine of South American Indians, 1970, pp. 422-438).

A comparação exige critérios claros para evitar anacronismos. Em comum, múltiplas tradições partilham o princípio formal da pergunta-resposta ritualizada, em que um mecanismo de acaso controlado, de sinais corporais ou de imagens codificadas produz um veredito que requer interpretação perita. Ifá organiza um binarismo altamente elaborado; o tōnalpōhualli fornece matrizes calendáricas para prognósticos; a piro-osteomancia Shang gera fissuras legíveis; o oráculo azande responde por meio de um teste com a vida do animal. Em Israel antigo, práticas também recorrem a mecanismos binários ou lotes: gōral (sorte) em decisões e partilhas, e ʾūrīm wĕ-tummīm no peitoral sacerdotal para veredictos não discursivos; por contraste, o corpus bíblico diferencia com vigor “revelação recebida” de “adivinhação buscada por técnica”, proibindo qésem, ʿōnēn e niḥuš (Deuteronômio 18:9–14), ao mesmo tempo que submete até a “sorte” cultual à soberania de Deus (Provérbios 16:33) e eleva a profecia como mediação principal (1 Samuel 23:9–12; Números 27:21). A estrutura formal pode convergir, mas a economia teológica diverge: na monolatria javista, a possibilidade de obter resposta por meios instituídos é dom e não técnica autônoma; nos Shang, a piro-osteomancia é tecnologia de Estado que legitima o poder real; nos códices do grupo Borgia, a gramática do tempo ritual, deuses e presságios articula uma cosmologia plural; em Ifá, a palavra de Òrúnmìlà, por via dos odù, equilibra destino e agência ritual (FLAD, Divination and Power, pp. 403-437).

Outra convergência reside no lugar social do perito. O babaláwo, o adivinho de corte Shang, o especialista mesoamericano de códices e o operador do benge são figuras de alta autoridade, guardando técnicas, corpora e éticas profissionais; a literatura iorubá realça, inclusive, a existência de “adivinhos do rei”. Em Israel, sacerdotes e profetas ocupam os polos institucionais de mediação; quando o texto denuncia terafins e encantadores, expõe disputas de autoridade religiosa entre práticas domésticas e o culto javista centralizado.

Há, porém, contrastes determinantes. No Shang, a adivinhação é parte constitutiva da administração régia e do culto dinástico ancestral; em Mesoamérica, calendários divinatórios estruturam o tempo social e os ritos de Estado; em Ifá, a cosmologia de odù e deidades permite combinar destino, remediação e sacrifício; entre os azande, o oráculo de veneno é suprema instância de justiça local. Já a Bíblia hebraica, mesmo conhecendo sorte cultual e consulta sacerdotal, desloca a legitimidade para a palavra profética e criminaliza artes mantícas concorrentes. Assim, o mesmo “formato” (cleromancia, sorte, sortilégio) sofre requalificações morais opostas conforme o horizonte teológico (KEIGHTLEY, The Shang State as Seen in the Oracle-Bone Inscriptions, 1979, pp. 25-34).

A adivinhação legitima; cura; e, sobretudo, organiza a incerteza. Na legitimação política, o melhor paralelo histórico encontra-se no arquivo Shang: a osteomancia integra o processo decisório do rei, sanciona campanhas, colheitas, ritos e nomeações, e produz escrita oficial que vincula dinastia, deuses e destino; estudos clássicos e recentes, inclusive datações por radiocarbono, dimensionam a escala e a institucionalidade dessa prática. Em Mesoamérica, manuscritos como o Códice Borgia e seus pares funcionam como “livros do destino”, fornecendo almanaques para guerra, comércio, casamento e prognósticos meteorológicos, servindo tanto a especialistas rituais quanto a elites; as leituras modernas destacam módulos de Vênus, trezenas, senhores da noite e matrizes de presságios que informam o governo do tempo e das pessoas. No universo iorubá, a presença de adivinhos régios e a capacidade de Ifá de orientar nomeações, crises e alianças atestam que o saber mantíco pode ser peça do arranjo político; análises históricas do século XIX mostram Ifá em interação com outros polos religiosos e com poderes constituídos.

Quanto à cura, tradições afro-atlânticas documentam de modo particularmente claro a integração entre consulta e terapêutica. No Candomblé, o jogo de búzios não só “diz o destino”, mas prescreve remédios rituais, composições de ervas, sacrifícios e obrigações que reordenam o corpo, a casa e as relações, numa etiologia que combina agentes espirituais, afetos e circunstâncias; a literatura de ciências sociais no Brasil demonstra que a eficácia é pensada como recomposição de vínculos com as divindades e com a comunidade. Em Ifá, os odù definem interdições, oferendas e caminhos rituais com vistas a restabelecer equilíbrio e afastar infortúnios; trabalhos recentes tratam essa dimensão como “conhecimento performativo” que cura e reorienta a vida por narrativas, sacrifícios e restrições. (OLUPONA, ABIODUN, Ifá Divination, Knowledge, Power, and Performance, 2016) Em povos andinos, a leitura das folhas de coca se associa diretamente a diagnósticos e conselhos para saúde, trabalho, colheitas e relações, compondo uma gramática terapêutica que integra corpo, território e reciprocidades.

Na mediação de incerteza, a documentação azande é paradigmática: o benge opera como suprema corte do cotidiano, decidindo sobre adultério, caça, mudança de moradia, origem de doenças e cursos de ação; o sistema é racional em seus próprios termos, com regras, possibilidades de fraude reconhecidas e consultas de controle. A literatura clássica e estudos posteriores mostram que, sem o oráculo, a vida social perderia previsibilidade e justiça; com ele, conflitos são processados e decisões, legitimadas (EVANS-PRINTCHARD, Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande, 1937). A pesquisa etnográfica recente acrescenta que, onde o veneno desapareceu, foram adotados oráculos alternativos com funções similares, sinal de que a necessidade social que o oráculo atende continua ativa (MARKÓ, Deaths by guns will never outnumber magic, 2024).

A comparação ilumina, por fim, a teologia bíblica. Em Israel, a mediação da incerteza não é abolida, mas é reconduzida a meios definidos: profecia, oração, discernimento comunitário e, em certos momentos, sorte cultual sob a mão de Deus. Em termos formais, isso aproxima Israel de outros povos que também estruturaram perguntas e respostas por dispositivos rituais; em termos materiais, contudo, a diferença é frontal: práticas como astrologia, necromancia, encantamentos e presságios autônomos são interditadas como “modos dos amorreus” porque rompem a aliança e substituem a confiança na palavra de YHWH por técnicas de controle. A leitura comparada não dilui essa peculiaridade, mas a destaca: o mesmo problema humano — decidir sob incerteza — encontra soluções rituais análogas e, ao mesmo tempo, diferentes justificações cosmológicas e morais (RAPHALS, Divination and Prediction in Early China and Ancient Greece, 2013, pp. 128-176).

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GALVÃO, Eduardo. Adivinhação. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], out 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago 2025].

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