Significado de Êxodo 6
Êxodo 6
Intertextualidade com o Antigo e Novo Testamento
Êxodo 6 nasce do choque entre a súplica ferida de um servo e a voz de um Deus que não abdica: depois do peso esmagador imposto por Faraó, quando Moisés confessa que, desde que falou, “de modo nenhum libertaste o teu povo”, a resposta divina não é um relatório explicativo, mas uma promessa performativa: “Agora verás o que hei de fazer a Faraó; porque, por mão poderosa, os deixará ir” (Êxodo 6:1). A esperança bíblica não se fundamenta em probabilidades, mas na fidelidade de Quem fala; por isso, quando o Senhor inaugura o capítulo repetindo “Eu sou o Senhor”, Ele não apenas se identifica: Ele reata o fio que sustentará a travessia inteira. É o mesmo pulso que, no Evangelho, sustém os discípulos sob a ameaça do mundo: “No mundo tereis aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (João 16:33). A vitória não é um atalho; é a certeza de companhia eficaz no meio das quotas e dos fornos, como canta o salmista que se aproxima do Deus “perto dos que têm o coração quebrantado” (Salmos 34:18).
A autodeclaração de Deus em Êxodo 6 aprofunda o que já fora revelado ao pé da sarça. “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso” — ʾEl Šadday — “mas pelo meu nome, o Senhor” — YHWH — “não lhes fui plenamente conhecido” (Êxodo 6:2–3). Não se trata de negar que os patriarcas pronunciavam ou ouviam o Nome, mas de anunciar que, agora, o Nome se desdobra em história: YHWH será conhecido como aquele que quebra jugos e faz nascer um povo ao som de promessas cumpridas. A fé aprende o Nome não como rótulo, mas como fidelidade em ato. No horizonte do Novo Testamento, essa progressão chega ao seu ápice quando Jesus, ao condensar em si a presença de Deus, deixa entrever o “Eu sou” em palavras e obras — “antes que Abraão existisse, Eu sou” (João 8:58) — e, pela Páscoa, grava na carne do mundo a memória viva de que o Deus de Abraão não é Deus de mortos, mas de vivos (Mateus 22:31–32). O Nome que sustém Moisés é o mesmo que sustém a Igreja: “Eu sou o Alfa e o Ômega… aquele que é, que era e que há de vir” (Apocalipse 1:8).
No coração do capítulo, o Senhor derrama uma sequência de promessas que reorienta a respiração do povo abatido. “Eu vos tirarei de debaixo das cargas do Egito”, “vos livrarei da sua servidão”, “vos remirei com braço estendido e com grandes juízos”, “vos tomarei por meu povo e serei o vosso Deus”, “vos farei entrar na terra… e vo-la darei por herança” (Êxodo 6:6–8). A língua hebraica aqui é catequese: o verbo de resgate, gāʾal (“remir”), evoca o parente-resgatador, gōʾēl, que intervém quando a vida e a herança estão ameaçadas; a imagem do “braço estendido”, zĕrōaʿ nĕṭuyyāh, acende o imaginário do poder que se inclina; os “grandes juízos”, mishpāṭîm, nomeiam a justiça que desinstala a tirania; o tomar por povo, lāqaḥ, sela uma aliança nupcial; a herança restitui dignidade. Em cada verbo, o evangelho em semente: o Deus que promete não é apenas Legislador; é Resgatador. Por isso Isaías cantará “Eu te remi; chamei-te pelo teu nome; tu és meu” (Isaías 43:1), e Rute encontrará, na figura do resgatador humano, sinal do Deus que não deixa o pobre à deriva (Rute 4:1–10). Por isso também Jeremias, ao anunciar a nova aliança, retomará a fórmula do coração de Êxodo 6: “Serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jeremias 31:33), linha que o Novo Testamento estenderá até a comunhão definitiva: “Eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo” (2 Coríntios 6:16; Apocalipse 21:3).
Quando Lucas abre a boca de Zacarias, o velho sacerdote interpreta a visitação de Deus em chave exodal: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e remiu o seu povo” (lytrōsis, Lucas 1:68). A palavra grega para “redenção” faz ponte com gāʾal, como se a casa de Zacarias ressoasse o mesmo canto do capítulo: o braço estendido agora é reconhecido no Filho que vem. E quando o autor de Hebreus disser que Cristo “entrou uma vez por todas no Santo dos Santos… tendo obtido eterna redenção” (Hebreus 9:12), a gramática de Êxodo 6 reedita-se com largueza: o resgate que ergue um povo do barro dos tijolos é janela da redenção que ergue a humanidade das profundezas da morte. A imagem do braço estendido crescerá, devocionalmente, até abraçar o madeiro: naquele dia, quando Jesus disser “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (João 12:32), o braço que se estende tornará visível o amor que toma por povo e, no sangue, sela a liberdade. A cruz não apaga o Êxodo; ela o leva ao clímax, e por isso os anciãos cantam ao Cordeiro: “Com o teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo” (Apocalipse 5:9).
A promessa “Eu vos tirarei de debaixo das cargas” não é abstração. Deus diz que “ouviu o gemido” e “se lembrou da sua aliança” (Êxodo 6:5). Não é memória de arquivo, é memória de coração. A oração de Israel chegou ao trono, e a lembrança aciona libertação. Os Salmos guardam essa lógica do lembrar que salva: “Lembrou-se para sempre da sua aliança, palavra que prescreveu a mil gerações” (Salmos 105:8–10). No Novo Testamento, Paulo dirá que toda a criação geme, e que o próprio Espírito “intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Romanos 8:22–27). O clamor do oprimido em Êxodo 6 harmoniza-se com o choro de Marta e Maria diante do túmulo de Lázaro, que move Jesus às lágrimas (João 11:33–35). O Deus que promete não é indiferente; Ele ouve, lembra, desce, age.
Há ainda, na sequência de promessas, um selo que define destino: “vos tomarei por meu povo e serei o vosso Deus” (Êxodo 6:7). Aqui a liberdade ganha rosto: não se é liberto para o vazio, mas para Alguém. Essa linguagem atravessa a Escritura como voto nupcial. Os profetas ensinarão que a idolatria é adultério espiritual, e a fidelidade, amor esponsal (Oseias 2:19–20). No Evangelho, João apresentará Cristo como Noivo que chega às bodas, e o amigo do noivo regozija-se ao ouvir sua voz (João 3:29). A Igreja, por sua vez, aprenderá a chamar sua adoração de “culto racional” não por frieza, mas por entrega: oferecer o corpo inteiro como sacrifício vivo (Romanos 12:1). Em Êxodo 6, o que se prepara não é apenas uma fuga; é uma aliança que transforma escravos em assembleia sacerdotal.
A resposta do povo, porém, é o retrato fiel de quem sofre por muito tempo: “Moisés falou assim aos filhos de Israel; mas eles não ouviram a Moisés por causa da ânsia de espírito e da dura escravidão” (Êxodo 6:9). O hebraico chama essa asfixia de qōtser rûaḥ, “aperto do espírito”. Quem vive sob fornos e quotas tem o fôlego curto para promessas. O salmista conhece essa noite em que o coração recusa consolo: “No dia da minha angústia busquei ao Senhor… a minha alma recusava ser consolada” (Salmos 77:2). No caminho de Emaús, dois discípulos caminham com o coração apertado, e a esperança parece “já tardia” (Lucas 24:21). Ainda assim, é nessa estrada de respiração curta que o Senhor se aproxima, abre as Escrituras e faz arder o coração (Lucas 24:27, 32). O não-ouvir de Êxodo 6 não anula a promessa; ele a torna ainda mais necessária. A paciência de Deus inclui o qōtser rûaḥ do rebanho.
A partir do versículo 10, Deus renova a ordem: “Vai e fala a Faraó.” Moisés, porém, volta à própria insuficiência: “Eis que eu sou de lábios incircuncisos” — ʿaral śefātayim (Êxodo 6:12, 30). A metáfora corta fundo: há pele a ser removida na fala, impedimento que requer intervenção divina. Isaías confessará algo semelhante ao ver a glória: “Eu sou homem de lábios impuros” (Isaías 6:5), e a brasa do altar tocará sua boca. Jeremias ouvirá: “Eis que ponho as minhas palavras na tua boca” (Jeremias 1:9). No Novo Testamento, o Cristo ressuscitado soprará sobre os discípulos e dirá “Recebei o Espírito Santo” (João 20:22), e, em Pentecostes, línguas como de fogo pousarão sobre eles, transformando medo em anúncio (Atos 2:1–4). A fraqueza confessada em Êxodo 6 é berço da eloquência que o Espírito gera. E se, no Evangelho, Jesus promete que “não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mateus 10:19–20), então a expressão ʿaral śefātayim torna-se oração humilde: circuncida, Senhor, os meus lábios, para que tua palavra corra.
Entre as ordens e objeções, o texto insere a genealogia de Rúben, Simeão e, sobretudo, Levi, culminando em Anrão e Joquebede, pais de Moisés e Arão; em Arão e seus filhos, Nadabe, Abiú, Eleazar e Itamar; e em Fineias, filho de Eleazar (Êxodo 6:14–25). Essa lista não é desvio; é selo de autenticidade e mapa de vocações. Ao enraizar Moisés e Arão na casa de Levi, a Escritura estabelece que o libertador e o sacerdote brotam da história real de um povo — um povo com memórias, quedas e fidelidades. Nadabe e Abiú lembrarão, mais adiante, que manusear o santo sem reverência consome (Levítico 10:1–3), enquanto Fineias, ao zelar pela aliança, se tornará sinal de um sacerdócio que protege a comunhão (Números 25:10–13). No Novo Testamento, as genealogias de Mateus e Lucas cumprem função semelhante: situam Jesus não em nuvens mitológicas, mas na linhagem concreta das promessas (Mateus 1:1–17; Lucas 3:23–38). E a carta aos Hebreus, ao apresentar Cristo como sumo sacerdote, não desfaz a história levítica; antes, mostra o seu cumprimento em um sacerdócio mais alto e eterno (Hebreus 5:1–10; Hebreus 7:11–28). A genealogia de Êxodo 6 é como um alicerce exposto: sem ele, a casa da missão balançaria ao vento das objeções.
Volta, então, a batida do Nome: “Eu sou o Senhor” (Êxodo 6:29). O refrão é âncora para um enviado hesitante e um povo exausto. A fórmula repete-se como sustentáculo da paciência divina até que a promessa invada a cronologia. Mais adiante, quando Israel cantar na outra margem, reconhecerá que tudo o que fora dito em Êxodo 6 se cumpriu na prática: “Com a grandeza do teu braço, derrubaste os que se levantaram contra ti… Guiaste com a tua beneficência este povo que salvaste” (Êxodo 15:6, 13). O braço estendido de que aqui se fala ecoará pelos livros: “Ou se Deus intentou ir tomar para si uma nação… com mão forte e braço estendido” (Deuteronômio 4:34), e “com mão poderosa e braço estendido, porque a sua misericórdia dura para sempre” (Salmos 136:12). O Novo Testamento não deixará essa música cair: quando Maria proclama que o Senhor “fez proezas com o seu braço” (Lucas 1:51), a jovem de Nazaré canta o mesmo braço que Moisés invocara — agora encarnado e próximo.
O “vos farei entrar… e vo-la darei por herança” em Êxodo 6 abre um horizonte que atravessa Josué e repousa em descanso; mas o descanso de Canaã, embora real, era figura de um repouso mais fundo. Por isso a carta aos Hebreus adverte: “Resta, portanto, um repouso para o povo de Deus” (Hebreus 4:9–11). A herança prometida ganha, no Evangelho, contornos de Reino que não se mede por fronteiras, mas por comunhão; e, ao fim, deságua na cidade onde não haverá lágrimas (Apocalipse 21:1–4). Pedro, ao anunciar que fomos regenerados “para uma herança incorruptível, incontaminada e imarcescível” (1 Pedro 1:3–5), não nega a história de Êxodo; ele a estende até a eternidade. A mão que retira das cargas também conduz ao repouso; o Deus que julga Faraó também planta a videira em “boa e larga terra”.
Se o capítulo começa respondendo ao desabafo de Moisés, ele progride curando a visão de um povo ferido e a voz de um profeta tímido com a mesma medicina: o Nome e as promessas. Não há solução apressada, há aliança reiterada. Deus não destrata o abatimento do povo; Ele o catequiza com “Eu serei o vosso Deus”. Deus não despreza a confissão de lábios fechados; Ele a acolhe e promete palavra. E quando tudo ainda soa impossível, a genealogia abre caminho entre o caos: a graça não começa do zero; ela redime a história. No Evangelho, essa pedagogia reaparece quando Jesus encontra um pai que diz: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade” (Marcos 9:24), e quando os discípulos, amedrontados, recebem o sopro da paz (João 20:19–22). Em todas as páginas, o fio é o mesmo: o Senhor da aliança não abandona os que chamou; Ele os visita com braço estendido, faz de gemidos oração e de promessas chão.
Ler Êxodo 6 é aprender a respirar outra vez. Entre fornos e quotas, a respiração da fé se refaz ao ritmo do “Eu sou” e do “Eu farei”. A vida devocional encontra aqui sua gramática quotidiana: lembrar a aliança quando a memória dói, tomar como alimento os verbos que Deus conjuga, entregar a Ele o qōtser rûaḥ dos dias, pedir que circuncide os lábios, confiar que o braço se estende mesmo quando a noite parece não ter alvorecer. E, sobretudo, aprender que a liberdade que Ele dá tem endereço: ser povo de Deus. Quando essa verdade desce do texto ao peito, a poeira vira santuário e o deserto se preenche de passos — não de escravos, mas de peregrinos —, porque o Deus que fala em Êxodo 6 é o mesmo que, em Jesus, nos chama à mesa, nos toma por seu povo, e caminha conosco até a herança que não fenece.
NOTAS ADICIONAIS DO TEXTO HEBRAICO
O texto de Êxodo 6 organiza-se como um saltério da identidade divina: a cadência “ʾănî YHWH” percorre 6:2.6–8 e instala, como refrão teológico, o reconhecimento da presença que vincula o Nome à ação. Essa fórmula retorna de modo insistente no Código de Santidade — “Eu sou YHWH” em Levítico 18–20 —, onde cada mandamento se ancora no mesmo timbre do ser que prometeu e age, e reaparece na profecia de Ezequiel como selo de reconhecimento histórico: “sabereis que eu sou YHWH” (Ezequiel 6:7; 36:23), mostrando que Êxodo 6 está no coração de um projeto veterotestamentário de educação da percepção, em que a revelação não é mera informação sobre Deus, mas aprendizagem do Nome através do juízo e da misericórdia. Ao repetir ʾănî YHWH, o capítulo transforma o Nome em métrica da história, preparando o ouvido para que Levítico e Ezequiel façam da fórmula não um bordão, mas a pauta de uma ética que deriva da teofania fundadora do Êxodo.
O verso 6:3, “apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como ʾēl šadday, mas pelo meu Nome YHWH não fui conhecido por eles”, não contradiz o uso patriarcal do Nome; define, antes, o modo de conhecer (yādaʿ) que a geração do Êxodo experimentará. Nos patriarcas, ʾēl šadday (Gênesis 17:1; 28:3; 35:11) estrutura a promessa e a fecundidade, enquanto o Nome é invocado em altares e chamadas (Gênesis 12:8; 26:25); em Êxodo 6, “conhecer” o Nome passa a significar atravessar a história sob atos inconfundíveis de fidelidade juramentada. Essa transição interna ao Antigo Testamento, de um conhecimento celebrativo à experiência de juízos e libertação, ilumina a promessa de Isaías 52:6 — “o meu povo conhecerá o meu Nome” — como ressonância direta do programa de Êxodo: o Nome se dá a conhecer quando a aliança entra em regime público de memória e intervenção.
A memória da aliança é explicitada por dois verbos nucleares: zākar (“lembrei-me da minha aliança”, Êxodo 6:5) e hēqîm/hēʿĕmîḏ (“estabeleci/confirmo a minha aliança”, 6:4). O par reaparece em Levítico 26:42–45, onde o ciclo de bênção/ disciplina culmina na promessa de que YHWH “se lembrará” da aliança com os pais; irrompe nos Salmos históricos — “lembra-se perpetuamente da sua aliança” (Salmos 105:8–11) — e molda as confissões tardias de Ezequiel, em que a memória divina restaura um povo quebrado (Ezequiel 16:60). O juramento é narrado em Êxodo 6:8 com a imagem da “mão erguida”, nāśāʾ yād, idiomatismo do jurar que ecoa em Números 14:30 e atravessa de modo programático Ezequiel 20, onde a “mão levantada” ritma a história de infidelidades e promessas reiteradas. A semântica da aliança em Êxodo 6 é, pois, a câmara de ressonância em que Lei, Salmos e Profetas aprenden a articular a esperança a partir de um Deus que lembra, confirma e jura.
O núcleo verbal de libertação em 6:6 — hôṣēʾ (“farei sair”), hiṣṣaltî (“livrarei”), gāʾaltî (“resgatarei”) — instala um campo lexical que costura a narrativa do Pentateuco aos livros poéticos e proféticos. Gāʾal, o verbo do resgate com conotações de parente redentor, fundamenta o instituto do gōʾēl em Levítico 25 (resgate de terras e pessoas) e encontra na história de Rute a sua encarnação comunitária, ampliando a leitura de Êxodo 6: a salvação não é apenas saída do Egito, mas restabelecimento de vínculos, nomes e heranças no seio do clã. Em paralelo, pādâ (redimir/resgatar) — voz frequente em Deuteronômio para nomear o ato gratuito de Deus (Deuteronômio 7:8; 9:26) — corre ao lado de gāʾal, sugerindo que a experiência do Êxodo gerou duas metáforas complementares: o resgate jurídico-afetivo do parente e a libertação régia do Soberano. Essa tessitura reverbera nos Salmos: “com o teu braço remiste o teu povo” (Salmos 77:15), onde a anatomia metafórica do “braço” se une ao léxico do resgate para cantar a mesma música de Êxodo 6.
Associado a esses verbos, o ícone do “braço estendido”, zĕrôaʿ nĕṭûyāh, marca o estilo inconfundível de YHWH. Deuteronômio não cessa de rememorar que a saída foi “com mão forte e braço estendido” (Deuteronômio 4:34; 5:15; 7:19; 26:8), e Jeremias reza à história com a mesma imagem (Jeremias 32:21), enquanto Salmos 136:12 integra o “braço estendido” ao refrão litúrgico do ḥesed perene. O que Êxodo 6 projeta como promessa (“vos resgatarei com braço estendido e grandes juízos”) torna-se, no Deuteronômio e na liturgia de Israel, gramática de louvor e de identidade nacional, prova de que uma única metáfora corporal concentra a memória do julgar e do salvar.
O anúncio “tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus” (6:7), com lāqaḥtî no sentido de adoção coletiva, institui a fórmula de pertença que estrutura o Antigo Testamento tardio. Levítico 26:12 expõe o desenho da convivência — “andarei no meio de vós, serei vosso Deus, e vós sereis meu povo” —, e os profetas reinterpretam a mesma expressão para épocas de ruína e restauração (Jeremias 31:33; Ezequiel 36:28). O casamento simbólico de Oséias leva a fórmula ao íntimo do lar: “direi a Lo-Ami: Tu és meu povo; e ele dirá: Meu Deus” (Oséias 2:23), convertendo a arquitetura concisa de Êxodo 6 na poética da reconciliação. A rigorosa simplicidade do binômio “povo/Deus” prova que a intertextualidade aqui não é coleção de alusões, mas a fixação de um código relacional que percorre Lei, Profetas e Escritos.
A concessão da terra em 6:8 condensa dois termos que farão carreira teológica: hēbēʾtî (“vos farei entrar”) e môrāšāh (“posse/ herança”). A terra prometida, jurada aos pais, não é apenas destino geográfico, mas estatuto jurídico-hereditário: por isso môrāšāh pode nomear, em Deuteronômio 33:4, a própria Torá — “Lei que Moisés nos ordenou, herança (môrāšāh) da congregação de Jacó” —, deslocando a herança do campo territorial para o textual-litúrgico. Ezequiel, por seu turno, tensiona a mesma palavra ao lamentar a usurpação da terra e prometer o seu retorno (Ezequiel 36:2), sugerindo que a “herança” desenhada em Êxodo 6 sustenta tanto o direito de habitar quanto a obrigação de santificar.
No verso 6:9, a psicologia da escravidão é nomeada sem eufemismos: “não ouviram Moisés por causa do qōṣer rûaḥ (angústia/estreiteza de espírito) e por causa da dura servidão”. O sintagma qōṣer rûaḥ conversa com tiqṣar nefeš (“a alma do povo impacientou-se”, Números 21:4) e com a “impaciência” que em Juízes 10:16 é atribuída ao próprio Deus que “se angustiou por causa da desgraça de Israel”. A intertextualidade aqui funciona como anatomia da opressão: Êxodo 6 dá nome ao colapso interior que impede a escuta, e a tradição recolhe esse diagnóstico para descrever tanto a fadiga do deserto quanto o cansaço dos exílios, com ecos no lamento dos Salmos (por exemplo, Salmos 102:1–11), onde a respiração curta da alma pede um Deus de memória longa.
A autopercepção de Moisés como incapaz de falar, “ʿăral śāp̄ātayim” — “lábios incircuncisos” (6:12; 6:30) —, encena uma antropologia profética que o Antigo Testamento reiterará com outras metáforas: “orelhas incircuncisas” (Jeremias 6:10), “coração incircunciso” (Levítico 26:41), “incircuncisos de coração e carne” (Ezequiel 44:7). A imagem cirúrgica da circuncisão migra do prepúcio para as potências da escuta, do afeto e da fala, indicando que o obstáculo à aliança não é meramente político, mas orgânico e simbólico. Deuteronômio 10:16 poiética essa verdade como imperativo — “circuncidai o vosso coração” — e assim fecha o circuito com Êxodo 6: somente um sujeito cuja boca, ouvido e coração sejam “desimpedidos” pode entrar na sintaxe do “Eu serei vosso Deus”.
A menção programática aos “grandes juízos”, mišpāṭîm gĕdōlîm (6:6), liga Êxodo 6 à promessa primeva de Gênesis 15:14 — “eu julgarei a nação que servirem” — e alimenta as recapitulações litúrgicas de Salmos 105–106, nas quais as pragas são recontadas como atos judiciais que desmascaram deuses e reis. Ezequiel herdará esse timbre ao anunciar juízos que não visam apenas punir, mas revelar (Ezequiel 25–32): o padrão é exodítico, e nele mišpāṭ é tanto martelo contra a tirania quanto sineta para o “saber” do Nome.
Mesmo a seção genealógica de 6:14–27, muitas vezes lida como pausa documental, participa da conversação do Antigo Testamento. Ao identificar “as cabeças das casas dos pais”, rāʾšê bêt-ʾāḇōtām, e ao traçar a linha de Levi por Coate e Anrão até Aarão e Moisés, o texto injeta na narrativa o léxico e a lógica dos recenseamentos de Números 1–4, dos registros de Números 26 e dos anais sacerdotais de 1 Crônicas 6. A intertextualidade aqui é institucional: Êxodo 6 legitima o agente do livramento com o mesmo idioma que sustentará a organização cúltica e tribal, de modo que o “tomar-vos-ei por povo” ganha rosto, tribo e ofício.
Quando Êxodo 6 conclui reafirmando a missão apesar da recusa — “e Moisés falou… mas… lábios incircuncisos” —, a intriga retorna ao ponto inaugural, e todo o Antigo Testamento parece responder em coro: a aliança lembrada (Levítico 26), o Nome conhecido na história (Ezequiel 36), o braço que julga e salva (Deuteronômio 26; Salmos 136), a terra como môrāšāh (Deuteronômio 33; Ezequiel 36), o povo adotado (Oséias 2; Jeremias 31), e a cura do coração e da boca (Deuteronômio 10; Jeremias 6) são variações de um mesmo tema ensaiado aqui. O capítulo não apenas remete a outras páginas; ele fornece o léxico hebraico — ʾănî YHWH, zākar, berît, gāʾal/pādâ, zĕrôaʿ nĕṭûyāh, mišpāṭîm gĕdōlîm, lāqaḥ, môrāšāh, qōṣer rûaḥ, ʿăral śāp̄ātayim — com o qual Lei, Profetas e Escritos irão falar de juízo e graça, de pertença e herança, de ferida e cura, até que a memória do juramento se torne vida compartilhada no tempo e na terra prometida.
Comentário de Êxodo 6
Êxodo 6.2-9 Aqui está o propósito de Yahweh revelado em Êxodo. Fazia parte dos planos do Senhor que a inútil e desencorajadora experiência de Moisés em seu primeiro encontro com faraó (Êx 5.1-9) servisse para que esta essencial declaração das intenções de Deus fosse registrada em Êxodo. Esta passagem é tão importante que alguns teólogos acreditam que ela seja o coração do Pentateuco. O Deus vivo explica Seu intuito quanto ao povo de Israel [revelar-se como o Deus único e fiel com quem Abraão, Isaque e Jacó se aliançaram; o Senhor todo-poderoso, Rei soberano, que os livraria da escravidão e lhes daria a Terra Prometida como herança] .
Êxodo 6.2 Ao explicar Seu propósito para Israel, Deus encorajou Moisés após sua desalentadora conversa com faraó (Êx 5.1-9). Esta parte se edifica solidamente na revelação de Deus na sarça ardente (Êx 2.23-3.22). As palavras Eu sou o Senhor começam e finalizam esta seção (Êx 6.2,8). O Senhor é o nome de Deus, Yahweh.
Êxodo 6.3 Os patriarcas conheceram o Senhor como o Deus todo-poderoso. Não que eles nunca tivessem ouvido o nome Yahweh, mas não conheceram Deus de uma forma íntima. Os patriarcas estavam cientes do grande trato com o Altíssimo e experimentaram a bondade dele de muitas formas. Contudo, não tiveram uma revelação divina da maneira como foi apresentada a Moisés e ao povo israelita desse tempo.
Êxodo 6.4 Estabeleci o meu concerto com eles. Deus faz referência à aliança abraâmica celebrada em Gênesis (Gn 12.1-3,7; 15.12-21; 17; 22.15-18). Para dar-lhes a terra de Canaã, a terra de suas peregrinações, na qual foram peregrinos. Os primeiros pais de Israel peregrinaram pela terra de Canaã sem nunca possuírem mais do que locais de pasto, poços e sepulcros (Gn 23; Hb 11.8-10). Eles viveram como estrangeiros, sem a cidadania em sua própria terra.
Êxodo 6.5 E também tenho ouvido o gemido dos filhos de Israel. Este versículo remete ao clamor dos israelitas em Êxodo 2.23-25. Com esta maravilhosa apresentação de si mesmo, o Senhor agora estava pronto para realizar Seu plano concernente a Israel (v. 6-8).
Êxodo 6.6-8 Esses versículos expressam quatro aspectos do plano de Deus para Israel: (1) Ele libertaria os israelitas do Egito. Isto era mais do que a cessação dos trabalhos escravos; era o início do processo de salvação que Ele revelaria à nação israelita e que culminaria no perdão, na libertação dos pecados e na redenção da alma (Êx 14-31). (2) Ele faria deles Seu povo, uma nação de crentes. (3) Ele seria o Deus dos israelitas; teria um relacionamento pessoal com Seu povo. (4) Ele levaria o povo israelita a Canaã, a Terra Prometida.
Êxodo 6.9 Apesar das poderosas palavras de Deus a Moisés, o povo ainda não acreditava no que este falava. O cruel sofrimento pelo qual os israelitas estavam passando os dominava completamente. Mas, por fim, eles acreditariam! Só precisavam experimentar a presença real do Deus vivo (Êx 14.31).
Êxodo 6.10, 11 O Senhor ratificou Seu prévio comando a Moisés (Êx 4.22,23). A recusa arrogante do faraó não era o fim da história, mas o começo.
Êxodo 6.12 Moisés se queixou, usando o argumento de que, se seu próprio povo não lhe dera ouvidos, como faraó o faria? Mais uma vez, Moisés lembrou o Senhor da sua pouca habilidade como orador (Êx 4.10), alegando: eu sou incircunciso de lábios.
Êxodo 6.13 A resposta do Senhor a Moisés consistiu na repetição da ordem inicial. A obediência integral a este mandamento não era algo que podia ser negociado, mas uma coisa que deveria ser cumprida.
Após a descrição da genealogia nos versículos 14 a 27, a história continua no versículo 28. Lá, ficamos sabendo que havia mais interação entre Moisés e o Senhor dos que estes versículos sugerem.
Êxodo 6.14-27 O registro da história da família de Moisés, Arão e Miriã interrompe rapidamente a narrativa. Contudo, este não é apenas um texto com fins de registro público, mas algo para se celebrar! Todos os sacerdotes de Israel viriam desta família.
Êxodo 6.14-16 Rúben foi o primogênito de Jacó com a sua esposa Léia (Gn 29.32; 35.23; 49.3,4). Seus filhos também estão listados em Gênesis 46.9 e Números 26.5-11.
Simeão foi o segundo filho do patriarca Jacó com Léia (Gn 29.33; 35.23; 49.5-7). Seus descendentes diretos são mencionados em Gênesis 46.10 e Números 26.12-14. Jemuel, em algumas listagens, é nomeado como Nemuel (Nm 26.12). Saul, descendente de Simeão, era filho de uma cananéia. Este fator também é notado em Gênesis 4-10. É um registro nefasto, o que sugere que o problema da associação com as pessoas cananeias fez com que Deus não levasse diretamente a nação de Israel do Egito para Canaã, onde tal prática não poderia continuar (ver Gn 38).
Levi foi o terceiro filho de Jacó com Leia (Gn 29.34; 35.23; 49.5-7). Seus filhos também são mencionados em Gênesis 46.11 e Números 26.57-62 (1 Cr 6.1-30). Apesar de sua propensão para o pecado junto com o irmão Simeão na vingança do estupro de sua irmã Diná (Gn 34; 49.5-7), Levi viveu uma longa vida 137 anos. Com base em Êxodo 6.17-27, fica claro que o propósito desta passagem é descrever a história da família de Moisés, Arão e Miriã, e não a descendência de cada uma das três tribos. A menção do histórico familiar de Rúben e Simeão, aqui, aparenta ser simplesmente uma “cortesia”, baseada na precedência destes entre os filhos de Jacó.
Êxodo 6.17-19 Cada um dos três filhos de Levi deu origem a várias famílias (1 Cr 6.1-30) que desempenhariam papéis importantes na adoração a Deus. Todos os verdadeiros sacerdotes e levitas viriam delas.
Êxodo 6.20 Os versículos acima levaram à menção de Anrão, um descendente de Levi, de quem Moisés e seus irmãos eram filhos. De acordo genealogias similares (Nm 26.57-59; 1 Cr 6.1-3), Anrão, o filho de Coate, era um neto de Levi. Joquebede, sua esposa, era também sua tia, filha de Levi. Mais tarde, a Lei proibiria os casamentos entre parentes tão próximos (Lv 18). Todavia, nas famílias mais antigas de Israel, deve ter havido este tipo de enlace consanguíneo.
Ela gerou-lhe a Arão e a Moisés. A linguagem utilizada na Bíblia permite que um ancestral distante seja ligado a um descendente não direto, dando a ideia de que foi “imediatamente sucedido” . Sendo assim, em outras palavras, Joquebede “gerou-lhe a família que resultou, posteriormente, no nascimento de Moisés”. Os reais nomes da mãe, do pai e dos irmãos de Moisés não são citados. Quando o profeta nasceu, muitas gerações já haviam passado desde que Anrão, o neto de Levi, e Joquebede, a filha de Levi, tinham se unido. Na verdade, a família dos descendentes de Anrão multiplicou-se em milhares (Nm 3.27,28).
De certa forma, é surpreendente para o leitor moderno perceber que a linguagem é utilizada desta maneira. Para o antigo semita, às vezes, era mais importante preservar o nome dos ancestrais relevantes do que o nome das pessoas mais próximas, incluindo a citação dos próprios pais.
A descendência de Moisés e seus irmãos foi certificada como sendo da família de Levi. Este era um ponto importante, pois Arão se tornaria o pai dos sacerdotes da nação. Veja os comentários acerca das genealogias em Gênesis 5 e 10, onde se encontram também citações desta lacuna de gerações.
A ordem dos filhos é dada aqui: Arão é três anos mais velho que Moisés (Êx 7.7). Miriã não é mencionada neste versículo, pois a maioria das listas de descendentes em Israel citava apenas os filhos homens. Contudo, os leitores da Torá nunca a esquecerão, assim como nós também não podemos fazê-lo (Mq 6.4). Junto com seus celebrados irmãos, ela foi o presente de Yahweh para Israel.
Êxodo 6.21-23 Isar, o segundo filho de Coate (v. 18), e Uziel, o terceiro, também fundaram famílias importantes. Dentre os nomes que são mencionados está o de Corá, o sacerdote que posteriormente lideraria uma rebelião contra Moisés (Nm 16). Os filhos de Corá (v. 24) sobreviveram ao seu julgamento (Nm 26.11) e tornaram-se uma famosa família de músicos, cujos louvores se tornariam parte dos cantos dos templos por gerações (SI 84; 85; 87). Eliseba era o nome da mulher de Arão. O nome dela em hebraico [‘Eliysheba] significa Deus é um juramento, ou é por Deus que alguém jura. Em grego, corresponde ao nome Isabel (Lc 1.5). O pai de Eliseba era Aminadabe (hb. ‘Ammiynadab, que significa meu parente [o Senhor] é nobre) que vinha de uma conhecida família da tribo de Judá (Nm 1.7; 2.3; 7.12,17; 10.14), a qual, mais tarde, figurou na linhagem de Davi, e consequentemente na do Messias (Rt 4-19,20; 1 Cr 2.10). Os filhos Nadabe e Abiú se tornaram conhecidos em Israel por usarem seu ofício sacerdotal para propósitos malignos (Lv 10.1-7; Nm 3.2-4). Já Eleazar e Itamar eram sacerdotes fiéis.
Êxodo 6.24 E os filhos de Corá: Assír, e Elcana, e Abiasafe; estas são as famílias dos coraítas. Os filhos de Corá também eram levitas. Estavam envolvidos especialmente com o louvor.
Êxodo 6.25 Fineias, filho de Eleazar, foi um homem que Deus usou poderosamente durante um dos momentos mais sombrios da jornada espiritual de Israel (ver Nm 25).
Êxodo 6.26, 27 Estes são Arão e Moisés. O estilo de expressão de toda esta passagem (v. 14-27) aparenta vir de um período diferente do tempo de Moisés e Arão. Este é um exemplo de trecho que pode ter sido adicionado ao livro de Êxodo em um período posterior. Como foi mencionado na introdução, não se fazia necessária nenhuma discussão sobre a autoria do livro. É preciso, entretanto, ter em mente que o livro por inteiro e todas as suas passagens são autênticos, oficiais e inspirados. Escribas posteriores podem ter sentido que era muito necessário inserir o histórico familiar de Moisés e Arão como um parêntese na linha narrativa, para que os leitores pudessem ficar cientes da ligação que Moisés e Arão tinham com o povo de Israel. A repetição da expressão estes são Arão e Moisés, com inversão dos nomes, não apenas identifica estes homens, como também celebra a sua memória.
Êxodo 6.28-30 Estes versículos repetem o conteúdo de Êxodo 6.10-13. A expressão o Senhor falou poderia ser traduzida como “o Senhor tinha falado” (Êx 4-19; 12.1). É provável que este conteúdo (Êx 6.14-27) exigisse uma recapitulação. Já a frase eu sou incircunciso de lábios quer dizer não tenho facilidade para falar (veja Êx 6.12).
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