Estudo sobre 1 Coríntios 1:2-3

1 Coríntios 1:2-3

A carta dirige-se à “igreja de Deus2 que está em Corinto”. Com plena convicção Paulo se considera o “pai” dos cristãos coríntios (1Co 4.14s). Não obstante, está fora que qualquer possibilidade chamá-la de “sua igreja”. Uma “igreja” pertence a Deus, e exclusivamente a ele, que a comprou com o próprio sangue (At 20.28).3 É nesse fato que se baseiam toda a autonomia e a liberdade da igreja, que Paulo respeita com seriedade e zelo ao longo das duas cartas.4

A partir dessa verdade, porém, todas as “exortações” ganham gravidade e força. Pelo fato de os coríntios serem “igreja de Deus” as coisas de forma alguma podem continuar como estão no momento.
Quando Paulo não escreve simplesmente: “à igreja de Deus em Corinto”,5 mas “à igreja de Deus que está [persiste] em Corinto”, essa formulação enfatiza o milagre dessa igreja. Nessa cidade portuária sem tradições e mal-afamada, com toda a decadência moral, existe “igreja de Deus”! E essa igreja “persiste”. Em Corinto não acontecera apenas uma efervescência efêmera sob a proclamação da mensagem inaudita de Jesus. Ela formara uma igreja que preservava uma constituição sólida num contexto como aquele.

Paulo acrescenta: “aos santificados em Cristo Jesus, chamados [para ser] santos”. Também nisso seu olhar se dirige para aquilo que em seguida terá de ser tratado com os coríntios. Enquanto perante os gálatas Paulo tinha de destacar a irrenunciável “liberdade”, “para a qual Cristo os libertou” (Gl 5.1), o perigo em Corinto é a fatídica compreensão equivocada dessa liberdade. “Todas as coisas me são lícitas” era um mote destacado em Corinto (1Co 6.12; 10.23).


Por essa razão Paulo lembra os coríntios logo na abertura da carta: sois “santificados”, sois “santos chamados”, pertenceis a Deus, e não mais a vós mesmos e a vossos próprios desejos e concupiscências. Deus vos “chamou” do mesmo modo como a mim para ser propriedade dele. Em todo o NT os “santos” não são pessoas especialmente devotas e perfeitas no âmbito da igreja, mas “santos”, ou seja, pertencentes a Deus; consagrados a Deus são de fato todos aqueles que fazem parte da igreja de Deus. Eles não são “santos” em si mesmos. Pelo contrário: são “santificados em Cristo Jesus”, porque ele os salvou da corrupção, da perdição total e os remiu para si pelo preço de seu sangue e de sua vida. Essa redenção chegou a Corinto como um “chamado”, quando a mensagem de Jesus foi proclamada ali. Esse chamado atingiu pessoas que em si mesmas eram tão corrompidas e imprestáveis para Deus como Saulo de Tarso. Como é grandioso e maravilhoso que agora elas sejam são “santas”! A partir desse fundamento Paulo mostrará aos coríntios, em muitas questões do pensamento e da vida deles, como do “ser santificado” resulta a “santificação” da vida pessoal e da vida eclesial.6 Não é por meio de nossos esforços de santificação que nos tornamos santificados; mas por sermos santificados em Cristo Jesus podemos e devemos nos empenhar pela santificação.

Paulo e Sóstenes, porém, escrevem não apenas “à igreja de Deus que persiste em Corinto”. Ao mesmo tempo dirigem sua carta a “todos os que invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo em todo lugar, no deles e no nosso” [tradução do autor]. Fica claro que essas palavras se dirigem a cristãos que não pertencem diretamente à igreja de Corinto, mas vivem a vida cristã em outro “lugar”. Seu ser cristão se caracteriza pelo fato de que “invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Orar a Jesus é a diferença mais simples entre os cristãos e todas as demais pessoas, devotas ou não.7

Com base no AT, “invocar o nome do Senhor” era algo importante para Paulo.8 Não se trata apenas de uma “invocação” a Deus ocasional, em algumas aflições, por mais amavelmente que Deus pudesse responder. Para Paulo – como para Pedro no dia de Pentecostes – é importante sobretudo a palavra de Joel (Jl 2.32), citada por ele em Rm 10.13 num contexto decisivo: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.” Isso significa fundamentalmente buscar socorro junto de Deus em vista do iminente juízo quando a soberania divina irromper. É uma invocação escatológica,9 assim como toda a existência da igreja precisa ser compreendida em relação ao fim dos tempos. O “nome do Senhor” que pode ser invocado desse jeito, trazendo a salvação como consequência, é inequivocamente claro na Nova Aliança: ele é “o nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Uma ênfase maior recai sobre a palavra “Senhor”. Na ressurreição e na exaltação à direita de Deus Jesus foi feito “kyrios”, “Senhor” (At 2.36), em cujas mãos repousa nosso destino eterno. Como “Senhor” ele, e somente ele, é capaz de redimir da perdição e nos conceder participação no reino de Deus. Quem “invoca” a Jesus nesse sentido é um “cristão”.10

Entretanto, onde devemos localizar esses cristãos? “Em todo lugar, no deles e no nosso.” Houve intérpretes que não quiseram ligar as expressões “no deles e no nosso” ao “lugar”, mas as remeteram ao “Senhor Jesus Cristo”, que desse modo estaria sendo designado como Senhor “deles e nosso”. Paulo teria falado de “nosso Senhor”, cujo nome invocam, acrescentando agora expressamente que Jesus não seria apenas “nosso”, mas também Senhor “deles”. Contudo, será que um acréscimo assim era realmente necessário? Em termos linguísticos, será que essa leitura é viável? Sobretudo, nesse caso Paulo teria de antemão endereçado a carta ao cristianismo no mundo inteiro, porque a designação “em todo lugar” ficaria sem uma definição mais precisa e restritiva. Isso, porém, é inverossímil justamente em relação à presente carta, que se debruça de forma tão concreta sobre as aflições específicas em Corinto.11 “Junto com” os coríntios somente podem ser citados os cristãos que vivem em torno de Corinto sem ter constituído uma igreja própria12 e aos quais Paulo concede participação na carta com maior prazer, pelo fato de que para eles a igreja em Corinto deve ter sido um ponto de agregação. Esses cristãos poderiam considerar-se expressamente citados quando a carta fosse lida em Corinto. Conheciam pessoalmente as circunstâncias em Corinto, de modo que podiam compreender o que Paulo e Sóstenes tinham a dizer.

Por que, porém, os “lugares” em que esses cristãos residem são chamados de “o deles e o nosso”? Nesse contexto, a partícula “e” deve ter um sentido de ligação e adição.13 Nesse caso os autores da carta procuram dizer: vocês não estão apenas vivendo ali no lugar “de vocês”, por conta própria. Não, o lugar “de vocês” é também “nosso” lugar, nós incluímos vocês integralmente e também nos sentimos responsáveis por vocês.

Na sequência é proferida a conhecida saudação, que não é apenas um “desejo devoto”, mas um “anúncio” real, uma bendição consciente: “Graça a vós e paz.” Esses termos não se referem a dádivas específicas da salvação, mas à redenção em sua totalidade e plenitude. A palavra charis tem som semelhante a chairein, com a qual o grego gostava de saudar, a fim de desejar aos outros bem-estar e uma vida feliz. E shalom (“paz”) representava para o israelita a quintessência de tudo o que podia ser proporcionado a todo o povo de Deus e a cada membro dele individualmente em termos de “integridade”, “felicidade” e “salvação”. Agora ambas as coisas se tornaram reais no evangelho, porque o Deus vivo as concede como “nosso Pai”, porque Jesus Cristo como “Senhor” as adquiriu mediante sua morte, e no-las outorga como Ressuscitado e presente no Espírito Santo. Por essa razão, Paulo também não manifestou simplesmente um desejo, um “seja convosco”, mas expressou no singelo “graça a vós e paz” que graça e paz estão disponíveis para vocês, ainda que seja preciso abordar na carta questões difíceis e penosas.

Paulo emprega para “igreja” o termo grego “ekklesia”. Contudo, no idioma grego essa palavra não designa a igreja como um grupo permanentemente coeso, mas somente a “reunião” convocada para determinados fins. É assim que Lucas a usa tecnicamente em At 19.39s. Por essa razão, ela não deve ser traduzida apenas de acordo com a etimologia que caracteriza a igreja como uma “multidão convocada para fora”. Pelo contrário, a “ekklesia tou theou” é uma reprodução da expressão do AT “kahal Jahwe” (Mq 2.5; Nm 16.3; 20.4), assim como também a própria palavra “kahal” ou combinada com “kahal Jisrael” muitas vezes designa solenemente Israel como o povo de Deus. Já a lxx traduz “kahal” com “ekklesia”. Paulo acolhe esse uso terminológico. Permanece importante, porém, o momento da reunião. Também “kahal” muitas vezes visa justamente o povo de Deus “reunido”, ao qual se anuncia, p. ex., Dt 31.30. Quem não participa da reunião da igreja não pertence verdadeiramente a ela. Por outro lado, também um pequeno grupo que se reúne na casa de um membro da igreja já constitui “ekklesia”, “congregação”, “igreja” (1Co 16.19).

Por isso também é impossível designar qualquer “congregação eclesiástica” simplesmente como “igreja de Deus”. A esse respeito, cf. E. Schnepel: “A mim fora apresentado o primeiro capítulo sobre a essência da igreja no NT, a saber, que apenas nosso Senhor pessoalmente é capaz de lançar o fundamento de sua igreja e construí-la, e que pertencem a ela aqueles que ele vincula a si mesmo por meio de uma misteriosa intervenção em sua pessoa” (Ein Leben im 20. Jahrhundert, p. 72, R. Brockhaus Verlag 1965).

De que forma irrefletida falamos de “minha igreja” e “nossa igreja”, e seguramente não agimos assim apenas por “amor”! Pelo contrário, vemos de fato a congregação ou igreja como objeto do qual podemos dispor e que podemos configurar conforme nossa própria força, com a qual agimos de acordo com nossas próprias idéias, ainda que com a melhor das intenções. Isso está relacionado com o fato de que pensamos que nosso ensino e educação formariam cristãos e igrejas. Não estamos mais imbuídos da verdade de que somente o próprio Deus cria a igreja despertando, convertendo e fazendo renascer. Se tivéssemos essa obra de Deus permanentemente diante dos olhos, poderíamos pensar e dizer com toda a naturalidade, exatamente como Paulo: “igreja de Deus em…”.

A formulação é significativa. Nós falamos facilmente de “igrejas alemãs”, “igrejas brasileiras” etc., dando importância aos traços humanos e nacionais. Na verdade, a “igreja de Deus” por natureza é determinada por Deus, de maneira igual em todos os lugares. Sua localização geográfica em “Corinto”, na Alemanha, na América do Norte etc. obviamente não deixa de ter importância, confrontando a vida da igreja com problemas concretos, conforme podemos depreender justamente das cartas aos Coríntios. Porém, apesar disso é preciso afirmar com toda a seriedade que não existe uma “igreja de coríntios”, mas apenas uma “igreja de Deus em Corinto”. Essa circunstância fundamenta o fato de que em todas as igrejas isoladas, em todos os locais e em todos os tempos, não obstante as diferenças advindas dessa localização, vive ao mesmo tempo uma mesma “ekklesia”. A “santa igreja cristã, a comunhão dos santos” não se estabelece pela reunião posterior das igrejas locais, porém existe de antemão em todas elas como “igreja de Deus”.


Notas:
6 Em amplos setores do cristianismo esquecemos completamente que somos “santos” e que por isso também devemos “viver santos como filhos de Deus em conformidade com essa verdade”, “viver divinamente”, como diz Martinho Lutero em seu Catecismo. Com quanto esforço procuramos a fundamentação da “ética cristã” e o ponto de partida da “santificação” junto com e depois da “justificação”! Novamente isso é devido ao fato de que não focalizamos mais o processo básico do tornar-se cristão: a verdadeira redenção e a acolhida real entre os “membros da família de Deus”.

7 A “oração a Jesus” como característica decisiva da verdadeira fé em Jesus foi certeiramente salientada por W. Künneth em contraposição à moderna teologia existencialista (“Glaube an Jesus”, Hamburgo 1930 2ª ed., p. 255ss).

8 Dentre as numerosas referências do AT sejam citadas apenas Dt 28.10; 32.3; 1Rs 18.24; Sl 116.4; 124.8; 129.8; Pv 18.10; Is 24.15; Dn 2.20; Jl 3.5; Sf 3.9; 3.12. Nós, humanos, nos apresentamos a outros citando nossos nomes. Então podemos ser interpelados pelo nosso nome. Estabeleceu-se a relação pessoal. Muito mais importante, porém, é o nome de Deus. Ao dizer seu “nome”, Deus sai de seu mistério inescrutável, torna-se nosso conhecido, mostra-nos sua natureza e nos permite “invocar” seu nome. Sobre essa questão, cf. especialmente Êx 3.1-15. Conhecer o nome de Deus e por isso ser capaz de invocá-lo de forma sincera e audível é a sublime propriedade de Israel.

9 Quando ao termo “escatológico”, “escatologia”, cf. a nota 24, à p. 38.

10 Como o NT é abundante em referências ao acontecimento decisivo que nós chamamos de “conversão” e “ser convertido”! Uma vez que é muito fácil entendermos a conversão equivocadamente como nossa própria realização, é para nós uma grande ajuda que seja explicitado agora no que consiste a “conversão”. “Converte-se” corretamente aquele que em vista de sua perdição total diante do tribunal de Deus invoca o nome daquele único que salva através de seu sacrifício na cruz. Esse grito de socorro é tudo, menos uma “realização” da qual nos pudéssemos orgulhar!

11 É uma questão diferente o fato de que pelo Espírito Santo a carta era destinada da parte de Deus para as igrejas de todos os tempos e lugares. Na presente passagem trata-se do vocativo da epístola redigido por Paulo.

12 Em Rm 16.1 já se fala de uma “igreja em Cencreia”, a cidade portuária de Corinto. Desde a época da redação da presente carta o grupo de cristãos cresceu ali de tal modo que se tornava viável uma vida própria como igreja.

13 Manuscritos do grupo Koiné ainda inserem um “te”, que sublinha esse sentido. Embora esses manuscritos tenham acrescentado o “te” ao texto original, isso não obstante explicita como esse “e” foi entendido desde cedo.