Estudo sobre 1 Coríntios 1:4-5

Estudo sobre 1 Coríntios 1:4-5


Paulo se lembra de Corinto com enormes preocupações. Na carta ele falará dos graves danos na vida eclesial, precisando dizer muitas palavras duras. Não obstante, ele inicia a carta com gratidão: “Sempre dou graças a Deus por vós” [tradução do autor]. Será que isso é apenas uma concessão aos bons costumes dos devotos em Israel, que começavam tudo o que faziam com um louvor a Deus? Será um traço diplomático, a fim de, por meio de um certo elogio, obter atenção por parte dessa igreja difícil e desconfiada contra Paulo? Porém Paulo não louva os coríntios, mas a Deus! E de imediato cita o verdadeiro motivo que ele tem para agradecer: “pela graça de Deus que vos foi dada em Jesus Cristo” [rc]. Não importa qual seja a situação em Corinto, a existência da igreja como tal é obra da gloriosa “graça de Deus em Cristo Jesus”. Será que algum dia alguém teria imaginado que em Corinto, essa cidade do dinheiro e da imoralidade,14 seria possível existir uma “igreja de Deus”, de “chamados para ser santos”? Contudo, a graça redentora e transformadora de Deus realizou o milagre em Corinto através de Jesus. Não foi preparado por nada, nem merecido por nada. Era graça soberana,15 e por isso somente pode ser admirada com gratidão.16 Além do mais, tanto aqui como de modo geral na carta, Paulo fala na primeira pessoa: “dou graças” – uma prova de que devemos levar a sério o “nós” que ocorre em outras cartas. Sóstenes não participou pessoalmente no trabalho de fundação em Corinto. De sua parte também poderá recordar-se com gratidão dos coríntios. Porém Paulo é consciencioso demais em suas afirmações para escrever “Nós agradecemos a Deus sempre por vocês”, o que não corresponde integralmente aos fatos.17

Todas as dificuldades, falhas e carências não anulam essa gratidão. Por essa razão Paulo também a coloca no começo da carta.18 Por mais que Paulo tenha a criticar e exortar, a igreja pode estar ciente de que seu apóstolo se lembra dela constantemente cheio de gratidão.

Em que se mostra essa graça de Deus “dada” aos coríntios “em Cristo Jesus”? Eles “foram em tudo enriquecidos nele”. A graça presenteia,19 a graça de Deus torna maravilhosamente rico. Paulo o reconhece com júbilo, ainda que muitas coisas em Corinto não estejam em ordem.

A riqueza presenteada por Deus é abrangente. Paulo escreve audaciosamente “enriquecidos em tudo”. Na sequência, porém, ele define melhor esse “tudo”, a fim de mostrar concretamente em que essa riqueza divina se revela justamente em Corinto.20 Os coríntios são ricos “em toda a palavra e em todo o conhecimento”. Essas palavras mencionam duas coisas que a princípio correspondiam à característica natural dos gregos. O grego possuía a eloquência e a alegria de discursar.21 O “orador” era tido em alta consideração em todas as cidades gregas. Importância igual tinha para os gregos o poeta, que sabia manejar a palavra e descrever com a palavra o acontecimento, o pensar e o sentir humanos. Até hoje conhecemos e admiramos os grandes poetas gregos, como Homero e Sófocles. Paulo reconhecia todo o perigo dessa característica justamente entre seus coríntios. Por isso negava-se categoricamente a ser pessoalmente um “orador” e conquistar pessoas por meio da oratória (1Co 1.17; 2.1; 2Co 11.6). Contudo, a grandeza de Paulo é justamente que, não obstante, tem consciência de como a “palavra” é imprescindível para nossa convivência, também para a vida numa igreja de Deus. Deus também é capaz de santificar essa dádiva natural e engajá-la a seu serviço. Para tanto ele pode conceder a “palavra de sabedoria” e a “palavra do conhecimento”, a palavra da profecia e a palavra da gratidão e do louvor como dom especial de seu Espírito (1Co 12.8; 14.15s; 14.3; 14.24s). Os coríntios são ricos em todas essas “palavras”, com suas múltiplas formas. Quando se reúnem na igreja, não ficam calados e constrangidos. Não precisam esperar até que um orador incumbido abra a boca ou que um livro lhes comunique hinos e orações. São um grupo vivaz, no qual “cada um” tem algo a dizer (1Co 14.26). Isso é uma riqueza da igreja e motivo de gratidão.


A peculiaridade do desenvolvimento grego favoreceu muito o anseio por conhecimento. Não é por acaso que na Grécia estão as raízes do que chamamos de “filosofia”. Foi ali que surgiram pela primeira vez “visões de mundo” propriamente ditas. Paulo percebe todo o perigo do “conhecimento”, que pode deixar as pessoas soberbas (1Co 8.1). Ele sabe também que essa busca por conhecimento deixa de atingir justamente a única coisa que seria capaz de responder às indagações extremas do ser humano: o verdadeiro conhecimento de Deus (1Co 1.21). Por essa razão, ele declara justamente aos coríntios, com toda a rudeza e contundência, que somente a loucura da mensagem salva, e que a salvação reside exclusivamente em crer na tola mensagem da cruz (1Co 1.21). Praticamente convida a nos tornarmos “estultos” na presente era (1Co 3.18). Isso, porém, não tem nada a ver com burrice, ignorância e preguiça mental. A partir da salvação existe na fé o conhecimento frutífero e imprescindível. Existe a “palavra de sabedoria” e a “palavra do conhecimento” (1Co 12.8) concedidas pelo Espírito de Deus. Através do Espírito Santo existe um lídimo saber sobre Deus e seus grandes planos, uma “sabedoria” genuína, da qual os poderes determinantes desse éon não fazem nenhuma ideia (1Co 2.6-16).

A frase de Paulo, muitas vezes usada, “não quero que ignoreis” evidencia como era grande o interesse do próprio Paulo que as igrejas tivessem um entendimento lúcido e penetrante de todas as questões da fé e da vida. Como, então, não haveria de agradecer por uma igreja que em se tornava rica em “todo o conhecimento”? Aqui, como em tantas outras ocasiões nos escritos de Paulo, a palavra “todo” não deve ser compreendida em termos estatísticos. É óbvio que Paulo não quer dizer que os coríntios soubessem tudo o que é possível saber. Quantos conhecimentos ele tem de desvendar para eles justamente na presente carta! Contudo, os coríntios de fato possuem não apenas vislumbres isolados e precários da verdade divina, mas reconheceram de modo múltiplo e abrangente o que a mensagem diz.22


Notas:
14 Cf. Questões Introdutórias, p. 19s.

15 A palavra grega charis contém uma variedade de conotações. Também pode significar “gratidão”. O verbo eucharisto (“eu agradeço”) é derivado da mesma raiz. Charis, porém, designa também “formosura, encanto”, da mesma forma como a palavra latina correspondente, da qual derivamos “graça”, “gracioso”. Portanto, não devemos ouvir a locução “graça de Deus” como uma fria fórmula dogmática, mas como uma palavra calorosa e cordial cheia de amor e benevolência. Por isso “graça” suscita imediatamente a alegre gratidão.

16 Diante da circunstância de que entre nós o cristão parece ser o produto da “educação cristã”, nós desaprendemos a agradecer. Na realidade, porém, também entre nós cada igreja verdadeira, cada grupo vivo, cada obra de fé é uma dessas dádivas da graça. Sim, cada um de nós que de fato é um filho de Deus, tão somente pode enaltecer, agora e eternamente, a graça soberana que o arrancou da perdição, presenteando-o com a vida eterna.

17 Com quanta facilidade, por gentileza ou desatenção, deixamos de ser precisos quando nos expressamos de forma oral ou escrita, também quando se trata de questões sagradas!

18 Somente na epístola aos Gálatas falta a gratidão, porque na Galácia era justamente a própria graça de Deus que corria perigo de ser substituída por um cristianismo de realizações próprias das pessoas.

19 Por isso, não honramos genuinamente a Deus quando somente falamos de nossa pobreza e nossa miséria, temendo qualquer testemunho de nossa “riqueza” como vaidade e falta de autenticidade. Afinal, a graça de Deus não nos presenteou? Ou apenas de forma deficiente e precária? Como somos pouco gratos por nós e por outros!

20 Da mesma forma como cada cristão, cada igreja também pode ter seu cunho próprio e possuir uma riqueza especial. Nós gostamos demais de uniformizar. Deus, porém, por natureza e graça é o Criador de individualidades infinitas. Ele não cria nem “a árvore”, nem “o cristão” ou “a igreja”. Ele cria coqueiros e pinheiros, cria “filipenses”, “tessalonicenses”, “coríntios”, cria a você e a mim.

21 Aqui e em 2Co 11.6 Paulo se refere ao discurso por meio da expressão logos (“palavra”), não à “palavra de Deus” que havia sido trazida aos coríntios em abundância por Paulo e outros mensageiros de Jesus.

22 Consequentemente, nós também não devemos tomar o nítido reconhecimento da “loucura” da mensagem e do papel especial da “fé” como desculpa para a preguiça mental. Nossas igrejas precisam ser igrejas de “conhecimento”, e nós todos precisamos crescer não apenas na graça, mas também no conhecimento.