Estudo sobre Filipenses 1:22-24

Filipenses 1:22-24


Na sequência aparece aquela breve frase que se tornou uma das mais conhecidas de todo o NT. Inúmeras vezes ela foi recitada, inúmeras vezes cantada: “Jesus é minha vida, na morte hei de vencer” [HPD, nº 300, de Melchior Vulpius, 1609]. Justamente essas frases, porém, são particularmente ameaçadas e perigosas, de forma que devemos ouvi-las de forma completamente nova, a fim de passar por cima da habitual meia-compreensão e dos valores meramente orientados pelo sentimento. Nessa frase (assim como em todo o trecho) chama a atenção a marcante brevidade da linguagem, que exclui todos as dimensões sentimentais. A complexidade da tradução fornece uma impressão precária disso. Diversos aspectos de fato são difíceis de traduzir. Na palavra “viver, o grego faz diferença entre o verbo substantivado e o substantivo derivado do verbo, da mesma maneira como nós dizemos “o correr” e “a corrida”, “o cantar” e “o cântico”. Em “viver”, portanto, precisamos formular de forma análoga. Aqui nesta frase Paulo usa o verbo substantivado com artigo: “o viver”, ou seja, a atividade de viver, e não o substantivo mais abstrato “a vida” como um fenômeno existente. Por isso a frase de Paulo deve ser entendida de forma muito mais ativa e vital do que geralmente fazemos. Precisamos lê-la exatamente como a ouvimos, p. ex., a respeito de outra pessoa: a vida dela foi desenhar e pintar. Por isso, “para mim” também aparece enfaticamente na frente no texto grego. Não sei de que consiste a vida de outros, e isto tampouco me importa agora - para mim ela é “Cristo”. A frase tem ainda outro significado diferente do conhecido hino fúnebre. Cumpre perguntar enfaticamente se aqueles que, assustados diante do esquife, se refugiam no consolo “Jesus é minha vida”, na verdade também são capazes de repetir a frase de Paulo: “Viver para mim significa Cristo”. Não obstante, apenas quando esta primeira parte puder ser afirmada como singela realidade, também a segunda parte se torna verdade: que “morrer” significa “lucro”. Com que facilidade caímos no chavão devoto! Quem experimenta com o coração trêmulo quanto “prejuízo” o morrer lhe traz talvez esteja muito mais próximo da verdade e seja bem mais preferido por Deus! Em sua amarga aflição poderá encontrar o verdadeiro caminho para Cristo, e também terá o privilégio de viver de tal maneira para Cristo que o morrer se torna autêntica e sinceramente “lucro”. O “morrer” na morte física pode ser exercitada previamente no “morrer” múltiplo do “eu” na vida cristã. Já “morremos” com Cristo – esse é o postulado fundamental do evangelho. Na fé afirmamos e apreendemos esse “ter morrido”. Mas isso não permanece algo intelectual e “edificante”. Jesus arrasta-nos de modo muito real para dentro de seu morrer. “Carregamos todo o tempo o morrer de Jesus no corpo.” “Nós, os viventes, somos constantemente entregues à morte por causa de Jesus” (2Co 4.10s). Somos conduzidos por caminhos de morte. Neles aprendemos na prática, muito antes de nossa morte, que “morrer é lucro”. Quanto melhor e mais exaustivamente aprendermos isto aqui, mais poderemos considerar também o último morrer na morte física como “lucro”. A frase da presente carta e exposições como 2Co 4 estão profundamente interligadas na vida de alguém como Paulo.

Como isto poderá suceder? Não por meio de quaisquer artifícios, não por meio de um heroísmo qualquer, de disposição pessoal para morrer. Isso sempre resultaria em lutas que certamente falhariam no momento decisivo. É algo que só existe na forma de um presente libertador e soberano, no exato momento em que o viver para nós passa a ser Cristo. Porque então o morrer para nós se tornará um “partir” que nos conduz de todas as aflições, lutas, sofrimentos da atual existência para o “estar junto de Cristo”. É evidente que para Paulo esse “estar com Cristo” não é o alvo último e essencial de sua expectativa de futuro! Afinal, ele não poderia negar subitamente não apenas o que expôs tão poderosamente em 1Ts 4.13-18 e 1Co 15.35-57, mas também o que ele acaba de elaborar na presente carta em Fp 1.6,10s e sobretudo em Fp 3.20s. A explicação eventual de que, por causa do não retorno de Jesus e em vista da proximidade de sua própria morte, Paulo teria sido forçado a voltar-se agora para a esperança pela imortalidade puramente pessoal é totalmente impossível em vista de Fp 3.20s. Do mesmo modo, porém, a presente passagem também é violada pela sistemática teológica que considera como doutrina do NT a morte total do ser humano todo, quando leva a supor que nas entrelinhas o texto poderia insinuar que “tenho o desejo de partir e (mais tarde, quando da ressurreição dos mortos) estar com Cristo.” Sistematizações precipitadas sempre são negativas diante do NT, e não competem ao exegeta. Afinal, Paulo fala de um “lucro” trazido pelo morrer, e não apenas pelo retorno do Senhor. O desejo por ele testemunhado une tão estreitamente o “partir” e o “estar com Cristo” que não temos o direito de dissociá-los intercalando um longo tempo de morte ou de sono da alma. Assim a passagem perderia seu vigor peculiar no contexto geral das afirmações. Somente podemos constatar que a esperança de Paulo era mais rica do que nós queremos admitir com nossa sistemática, seja ela qual for. Com pleno vigor ele preservou a expectativa da parusia também quando escreveu aos filipenses. Considerou como alvo pleno somente a parusia e a perfeição da igreja que ela concretizará, inclusive mediante a dádiva de um novo corpo. Mas ao mesmo tempo ele era tão intensamente ligado à sua vida com Jesus que nem mesmo o morrer físico não poderia afastá-la, tão-somente aprofundando-a. Então ele estará “com Cristo” de um modo que até o momento ainda não era possível neste mundo, embora aqui também já esteja “em Cristo”. Por isso o morrer é um “lucro” pessoal para ele, sério e não-artificial, de forma que ele realmente podia ansiar de coração por essa “partida”. É capaz de afirmar com uma sucinta e forte frase intraduzível: “porque em muito melhor (seria isso!)”.


No entanto, Paulo não era nenhum individualista moderno! De forma alguma partilhava da ideia: “Já que estarei em situação tão mais favorável, posso tranquilamente deixar de lado a expectativa de futuro para as demais coisas”. Para ele importa a igreja, a consumação da obra de Jesus, a honra de Deus, a renovação de toda a criação! E este alvo não será ajudado em nada se Paulo, depois de morto, tiver recebido o presente de estar com Cristo e viver em condição muito melhor. Por isso Fp 1.21 e 3.20s permanecem consistente e claramente lado a lado, de modo que não temos a menor razão para atenuar ou modificar uma afirmação em favor da outra. Igualmente teremos de nos acostumar com o fato de que há etapas na ligação da vida com Jesus que não podem ser contrapostas uma à outra, porque cada uma possui seu próprio valor pleno. Há um “crer em Jesus”, há um “estar em Cristo” nesta terra, há um “estar com Cristo” após a morte, e há aquele “estar com o Senhor para todo o tempo” na consumação da igreja. Até mesmo neste ponto nosso olhar contempla mais alguns estágios na palavra da Escritura: “herdar tudo com Cristo”, “governar com Cristo como rei” em uma nova criação. Tudo o que Paulo fez e vivenciou nesta carne aconteceu “em Cristo”. Mas, por mais maravilhoso que isso seja, ainda não é “tudo”. Redimido dos labores, das dores e lutas de sua existência terrena, ele estará “com Cristo” de modo diferente e mais concreto. Porém nem mesmo isso ainda não é “tudo”, ainda não é o último e supremo estágio. Junto com a igreja também ele aguarda ardentemente a vinda de Jesus Cristo, o Senhor e Redentor, dos céus, para que transforme nosso corpo de humilhação em corpo igual ao de sua glória segundo o poder eficaz com que ele também é capaz de submeter o universo (Fp 3.20s).

Não precisar mais temer a morte, ansiando coerente e livremente pela partida, diante da qual todos em geral se assustam e atemorizam - isso é algo grandioso. Mas justamente agora Paulo revela algo ainda maior. Sua atitude permanece totalmente livre de qualquer anseio sentimental pela morte, como diz até mesmo o coral “Vem, doce morte” de J. S. Bach. Se lhe for atribuído “permanecer na carne”, isso para ele “significa fruto do trabalho”. Não sabe, agora, o que escolher, até mesmo no aspecto concreto do desfecho de seu processo. Ambos os desejos são intensos em seu coração, e ambos são em si puros e bons. Pode orar assim: que venha agora a sentença de morte, conduzindo-me de todo o enorme fardo de minha vida (cf. 2Co 11.23-33) para uma unificação mais profunda com Cristo! Concedendo-me a absolvição, pretendo produzir ainda mais frutos da obra! – Também essa prece ele pode e tem o direito de elevar a Deus. Que oração será essa, então? Uma coisa se torna decisiva para ele: “Permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (literalmente “continuar na carne”, como nosso “continuar vivo”). Com isso sua decisão foi tomada. Precisa acontecer aquilo que é “mais necessário”, ou, neste caso, é preciso rogar pelo “mais necessário”.