Estudo sobre Filipenses 1:8-9

Filipenses 1:8-9


O fato de que Paulo trazia os filipenses no coração ainda não era para ele razão suficiente para ter certeza a respeito do futuro deles. Porém agora passa a valer inteiramente a realidade de sua profunda ligação com eles. Depois de tempos de excessivo sentimentalismo vivemos hoje em uma época de desprezo ao sentimento (N.T.: Isso se refere, basicamente, aos países nórdicos da Europa). Qualquer expressão de calor e emoção íntima é suspeita para nós. Consideramos tudo isso no mínimo irrelevante e não-inerente ao objeto da existência cristã. Constantemente asseveramos que o amor cristão não tem nada a ver com “sentimento”. Contudo, será que existe “amor” sem qualquer sentimento forte e profundo pelo outro? Será o amor “cristão” tão sobrenatural que ele simultaneamente se torne não-natural? Paulo não pensa assim! “Minha testemunha é Deus, da saudade que tenho de todos vós, com a afeição do Cristo.” Também o amor cristão se iguala a todo amor natural no fato de demandar a presença real do outro, estar junto com ele. Paulo tem saudade dos filipenses, e não se envergonha dessa saudade, e tampouco a oculta como algo sem valor ou indigno perante Deus, mas torna o próprio Deus sua testemunha para eles. Contudo, evidentemente há dois aspectos que distinguem tal sagrada saudade “cristã” de todo anseio meramente natural. Não é uma saudade apoiada no eu, mas “com a afeição do Cristo”.

Para nós é muito salutar que conste aqui uma palavra que originalmente designa as “entranhas”. Todos nós sabemos que qualquer emoção forte age sobre o “coração”, e até mesmo sobre as “entranhas”, parecendo ter ali sua “sede” (cf. no AT a menção dos “rins”, além do “coração”). Ora, afirma-se justamente de Jesus Cristo que também ele não era puro “Espírito”, pura superioridade espiritual, divina, mas que tinha tais “entranhas”, tal “coração”, capaz de sentir intensa e profundamente. Da presente palavra depreendemos que Paulo realmente não ensinava um Cristo construído, mas que conhecia aquele Jesus que os evangelhos descrevem. Ao mesmo tempo, porém, temos de lembrar que no testemunho bíblico o Deus revelado nesse Jesus de forma alguma é “Espírito absoluto” ou qualquer outro “Deus dos filósofos”, mas o Deus “vivo”, um Deus de ira e de misericórdia, dos poderosos e vitais sentimentos divinos. Por essa razão tampouco Jesus e sua obra representam um ato jurídico frio, objetivo, mas a verdadeira compaixão afetuosa de Deus, que entrou em nossas vidas e passou a cuidar de nós. Por isso o mensageiro de Jesus, o ex-fariseu, agora também traz um amor ardente no coração. Não se trata de fórmula dogmática, mas de realidade poderosa: “o amor de Deus foi derramado em nosso coração por intermédio do Espírito Santo” (Rm 5.5). É com esse amor divino que Paulo tem saudade dos filipenses. Esse amor já não é governado pelo eu, mas determinado “pela afeição do Cristo”, e por consequência não tem mais preferências. A saudade de Paulo não se dirige a amigos pessoais, a pessoas simpáticas e indivíduos interessantes em Filipos. Não, ele torna a enfatizar: “de todos vós” tenho saudade. Como é maravilhoso que isso possa existir entre nós: um amor que abarca a todos sem diferenças e que não o faz porque seja frio e abstrato, tampouco forçando artificial e deliberadamente, mas que de forma autêntica e veraz se dirige com uma emanação viva e cálida a todos que são “santos em Cristo Jesus”. Eles existem “na afeição do Cristo”.


Paulo olha para essa igreja cheio de alegria e gratidão. Será que só tem a agradecer e não precisa pedir mais nada por eles? Será que roga apenas para que sejam preservados na condição em que estão? Não, “faço esta oração: que o vosso amor transborde mais e mais”. Em nossa condição de cristãos há algo capaz de crescer sem limites: o amor. Na tradução mantivemos literalmente a expressão “transbordar”. Atualmente vive-se em constante medo diante de tudo que é “expansivo”, valoriza-se o meio-termo e mantém-se um constante cuidado diante de exageros. Contentamo-nos rapidamente. Paulo, porém, tem predileção pela palavra “transbordar”, “derramar”, empregando-a com frequência. Não se satisfaz com aquilo que felizmente já existe em uma igreja. Deseja avançar. Vislumbra uma riqueza sempre maior que a igreja pode ter e pela qual por isso também deve se empenhar. Com quanta maior abundância e poder os filipenses podem aprender a amar!

De que maneira cresce o amor? “Em conhecimento e toda a sensibilidade”. “O amor cega” certamente vale para todo o amor egoísta. Este precisa fechar os olhos diante de tudo o que é desagradável e penoso no outro. Na verdade não pretende ser “perturbado”, pois visa obter do outro o desfrute e enriquecimento. Porém a agape, o amor na afeição do Cristo, interessa-se realmente pelo outro, deseja ajudá-lo, levá-lo ao alvo. Por isso ela precisa de “conhecimento”, de percepção clara da natureza e da situação do outro, percepção clara dos meios pelos quais de fato se pode ajudá-lo exterior e interiormente. A palavra aisthesis (nosso termo “estética” é derivado dela), que foi traduzida por “sensibilidade”, também pode ser vertida para “percepção”. O alvo é descrito por Paulo com uma formulação que ocorre literalmente também em Rm 2.18 e que não é fácil de reproduzir em português: dokimazein ta diapheronta. Dokimazein designa o “examinar”, mas também seu resultado: “aceitar algo como aprovado”. Ta diapheronta é “aquilo que diferencia”, e consequentemente também “o essencial”. Por essa razão a linguagem técnica teológica chamou as “questões intermediárias”, que são deixadas à nossa liberdade, de a-diaphora (“não-essenciais”). Paulo, portanto, desejou aos filipenses um amor que seja capaz de, por “conhecimento” e “sensibilidade” ou “percepção”, “examinar as diferenças” [Em termos linguísticos é interessante como um termo genuinamente bíblico se tornou simultaneamente uma palavra da filosofia popular grega. No AT Deus é aquele que examina: Sl 7.9; 139.1-6,23s; Jr 11.20; 17.10. Na filosofia grega o ser humano autônomo “examina” tudo a partir de sua razão. Também o “mestre nas Escrituras” corre o perigo de, não obstante toda a veneração oficial da Bíblia, colocar-se na prática “acima” da Escritura e de, ao “examinar o essencial”, prender a Bíblia em seu sistema pessoal. No NT ambos os aspectos estão dinamicamente interligados: como examinados por Deus, nós mesmos podemos e devemos ser examinadores: 1Ts 2.4 e 5.21 (“ser aprovado” constitui reprodução do mesmo dokimazein que significa “examinar”); Rm 12.2; 1Co 11.28; 2Co 8.8; 13.5; Gl 6.4; 1Jo 4.1).] ou “captar corretamente o essencial”, i. é, captar e implantar o que é importante e bom para o outro, deixando de lado as ajudas não importantes e insuficientes. Aquilo de que segundo Rm 2.18 o “judeu”, sobretudo o escriba, se gloria equivocadamente, aquilo nenhuma mera erudição na Escritura é capaz de propiciar, isso o amor realmente pode possuir e tornar eficaz na igreja.