ABOMINAÇÃO — Enciclopédia Bíblica Online
ABOMINAÇÃO
A noção de “abominação” na Bíblia forma um dos campos semânticos mais densos da teologia bíblica, articulando a linguagem do culto, da ética e do juízo. Desde os vocábulos hebraicos como tôʿēbāh (repulsa moral e idolátrica), šeqets (impureza física e repulsa cerimonial), shiqqûṣ (ídolo desolador) e piggûl (carne sacrificial deteriorada), até os termos gregos do Novo Testamento como bdélygma, bdelyktós, bdelyssomai e athémitos, a abominação é sempre o que se opõe estruturalmente à santidade de Deus. Não se trata apenas de um julgamento moral, mas de uma linguagem teológica que descreve o que é intrinsecamente incompatível com a glória, a verdade e a ordem da criação. Ao longo da revelação bíblica, a abominação abarca desde práticas cultuais impuras até sistemas inteiros de idolatria, desde comportamentos sociais odiosos até manifestações escatológicas do anticristo.
No Novo Testamento, a abominação adquire contornos escatológicos mais agudos, tornando-se o selo visível da falsificação religiosa e da oposição ao Reino. Aquilo que era apenas impuro ou ilegítimo torna-se agora sinal do juízo final: o bdélygma tēs ērēmōseōs profanando o lugar santo, a Babilônia embriagada com abominações, e os abomináveis excluídos da Nova Jerusalém. Ao mesmo tempo, a linguagem da abominação é reconfigurada pela graça: Deus pode purificar o que antes era considerado impuro, como em Atos 10. A abominação não é, portanto, apenas um conceito fixo de exclusão, mas uma categoria teológica que demarca o contraste absoluto entre o que é santo e o que se desviou. Ela denuncia, mas também convoca à conversão. Aquele que compreende o peso da abominação segundo as Escrituras está mais próximo de discernir a beleza da santidade e a urgência do arrependimento.
I. תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh): A Abominação como Ruína Ética e Existencial
O vocábulo hebraico tôʿēbāh (תּוֹעֵבָה) emerge como o núcleo semântico da ideia de abominação no Antigo Testamento, designando tudo o que é radicalmente repulsivo aos olhos de YHWH — não apenas no sentido subjetivo, mas como sentença divina de exclusão. Derivado do verbo taʿav (תָּעַב), que expressa o ato de detestar com repulsa sacral, o termo é aplicado a realidades rituais, éticas, sexuais, judiciais e escatológicas, configurando um sistema de valores onde o abominável representa uma ameaça existencial à ordem santificadora da aliança. Presentes desde o Pentateuco até os escritos pós-exílicos, suas 127 ocorrências revelam uma teologia em que a idolatria, a injustiça, os desvios morais e a corrupção litúrgica são tratados como realidades contaminantes, incompatíveis com a presença de Deus. Em Deuteronômio, Provérbios e especialmente em Ezequiel, tôʿēbāh torna-se o termo técnico por excelência para nomear aquilo que deve ser destruído, purificado ou expulso — seja um ídolo, um ato, ou até uma pessoa. O abominável não é apenas errado: é incompatível com o mundo redimido, merecendo rejeição absoluta, juízo escatológico e separação definitiva.
A. Forma, Etimologia e Classificação
O substantivo feminino תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh, Strong H8441) deriva do verbo תָּעַב (taʿav, Strong H8581), que significa “abominar”, “detestar”, “odiar com repulsa”. Trata-se de um termo próprio do campo semântico da repulsa sacral e ética, e está profundamente enraizado na linguagem legal e profética do Antigo Testamento. De uso predominante na literatura deuteronomista, sapiencial e profética, ocorre ao todo 127 vezes na Bíblia Hebraica conforme o cômputo da KJV. Embora não haja cognatos diretos no acádio ou ugarítico, é reconhecida uma relação com raízes do aramaico targúmico e do fenício que exprimem o conceito de repulsa ou tabu.
Sua morfologia apresenta-se quase sempre como substantivo absoluto, funcionando como complemento direto ou nominativo predicativo, frequentemente acompanhado de construções verbais como עָשָׂה תּוֹעֵבָה (ʿāsâ tôʿēbāh, “cometer abominação”) ou נֶאֱמַר תּוֹעֵבָה (neʾĕmar tôʿēbāh, “dizer-se abominação”).
B. Classificação Semântica e Tipologia de Uso
A palavra hebraica tôʿēbāh ocupa um lugar central na linguagem teológica do Antigo Testamento como termo técnico para aquilo que é absolutamente repulsivo a YHWH. Seu uso atravessa múltiplas categorias semânticas: designa objetos de idolatria no contexto ritual, práticas sociais corruptas no campo ético, transgressões sexuais que contaminam o corpo e a terra, injustiças judiciais que profanam o pacto social, e, finalmente, como acusação escatológica, torna-se motivo do juízo e da destruição do povo. Longe de se restringir a uma questão cerimonial, tôʿēbāh qualifica o que é ontologicamente inconciliável com a santidade divina — seja um ídolo em um altar, um juiz corrupto em um tribunal ou um ato sexual que viola os limites da criação. Sua função é declarar a incompatibilidade radical entre certas ações ou entidades e o mundo redimido que Deus está construindo.
O vocábulo aparece em todos os grandes blocos do cânon hebraico, desde o Pentateuco, onde regula a pureza do culto e da terra, passando pelos Profetas, onde denuncia a idolatria institucionalizada e os crimes sociais, até os livros sapienciais, nos quais atua como categoria moral que separa o justo do ímpio. Em Ezequiel, torna-se símbolo do colapso religioso e político de Judá, sendo repetido dezenas de vezes como expressão da corrupção do templo e da liderança. Mesmo em contextos aparentemente neutros, como a repulsa egípcia aos hebreus, o termo carrega o peso de uma ruptura de ordem. No conjunto, tôʿēbāh não é uma repulsa subjetiva, mas um veredito divino de exclusão: o abominável, seja qual for sua forma, corrompe o espaço sagrado, ameaça a integridade da aliança e exige purificação ou destruição.
1. Categoria Ritual: Violação das Normas Cúlticas
No campo cultual, תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) define aquilo que, embora possa ser fisicamente íntegro ou desejável, se encontra em oposição à vontade de YHWH por transgredir a pureza ritual, a ortodoxia do culto ou a exclusividade do monoteísmo israelita. Em Deuteronômio 7:25–26, os ídolos de prata e ouro são chamados “abominação” (תּוֹעֵבָה לַיהוָה אֱלֹהֶיךָ — tôʿēbāh laYHWH ʾĕlōheykā), exigindo não apenas repulsa emocional, mas destruição física: “não os trarás à tua casa... totalmente os abominarás” (taʿav taʿavennū, v. 26). Trata-se de um tabu contagioso, cuja presença causa impureza (חֵרֶם).
2. Categoria Ética: Crimes Morais e Deformações Sociais
A abominação ética envolve atos que transgridem a justiça divina, como falsidade, orgulho, perversidade, idolatria interior e injustiça judicial. Em Provérbios 6:16-19, a sabedoria enumera sete abominações que YHWH odeia: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que maquina planos perversos, pés que correm para o mal, testemunha falsa e aquele que semeia discórdia. Provérbios 15:8-9 contrasta a “abominação do sacrifício dos ímpios” com o “prazer na oração dos justos”. O termo indica não apenas repulsa, mas condenação existencial: o abominável torna-se incompatível com o mundo de Deus.
3. Categoria Sexual: Desvios Naturais e Profanações do Corpo
No Levítico, especialmente no capítulo 18, תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) aparece reiteradamente para descrever condutas sexuais proibidas, incluindo relações incestuosas, bestialidade e a homossexualidade masculina (Lv 18:22; 20:13). Tais práticas são ditas ter contaminado a terra e causado sua expulsão dos cananeus (וַתִּטְמָא הָאָרֶץ — vattitmaʾ hāʾārets). A abominação aqui é simultaneamente moral, cultual e territorial: os atos transgridem o corpo, o altar e o solo.
4. Categoria Judicial: Idolatria e Justiça Corrompida
Tôʿēbāh torna-se um termo técnico na jurisprudência profética para denunciar a corrupção estrutural. Ezequiel 8–11 é o maior repositório do termo, onde o profeta contempla visões sucessivas das “grandes abominações” cometidas no templo: desde imagens idólatras até rituais solares. Em Jeremias 7:10, o povo se atreve a dizer “fomos livres para fazer todas estas abominações”, invertendo a libertação do Egito em licença cultual. Provérbios 17:15 condena o juiz que absolve o culpado e condena o justo, dizendo que ambos são abominação a YHWH.
5. Categoria Escatológica: Condenação Irreversível
Na literatura exílica e pós-exílica, como Ezequiel e Malaquias, a abominação assume contornos escatológicos: é a acusação final contra a terra, motivo da destruição de Jerusalém (Ez 5:7-9; 36:31), razão pela qual o povo será julgado. Malaquias 2:11 denuncia Judá por haver cometido “abominação” ao se unir à filha de deus estranho — o termo une impureza sexual e apostasia religiosa.
C. Ocorrências Canônicas
1. Pentateuco
Em Gênesis 43:32 e 46:34, os egípcios consideram os hebreus e os pastores como תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) — mostrando que o termo pode refletir valores culturais de repulsa e hierarquia social. No restante do Pentateuco, especialmente em Levítico e Deuteronômio, o termo aparece em legislações contra idolatria (Dt 7; 12; 13), práticas sexuais ilícitas (Lv 18; 20), impurezas de gênero (Dt 22:5), transações econômicas injustas (Dt 25:16) e sacrifícios defeituosos (Dt 17:1).
2. Profetas
Em Ezequiel, תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) ocorre mais de 40 vezes, incluindo Ez 5; 6; 7; 8; 9; 11; 16; 18; 22; 23; 33; 36; 43; 44. Em Jeremias, aparece em contextos de idolatria, prostituição cultual e corrupção jurídica (Jr 2:7; 6:15; 7:10; 16:18; 32:35; 44:4). Isaías 1:13 rejeita o incenso como “abominação”, mesmo sendo litúrgico — pois é oferecido com hipocrisia. Isaías 41:24 aplica o termo às próprias divindades pagãs, chamadas de “obras nulas e abominação”.
3. Livros Históricos
Aparece em 1 Reis 14:24; 2 Reis 16:3; 21:2,11; 23:13; 2 Crônicas 28:3; 33:2; 36:8,14, sempre em conexão com cultos cananeus, molk-sacrifício1 e práticas de idolatria nacional. A “abominação” é o símbolo da apostasia monárquica.
4. Livros Sapienciais
Em Provérbios, תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) aparece 21 vezes, caracterizando atitudes, pessoas e ações: lábios mentirosos (12:22), justiça pervertida (17:15), escárnio (24:9), orgulho (16:5), iniquidade real (16:12), pesos falsos (20:23), oração do ímpio (28:9), entre outras.
5. Escritos Pós-Exílicos
Em Esdras 9, Neemias denuncia casamentos mistos como abominações, seguindo a linguagem deuteronomista. Malaquias 2:11 retoma a mesma linguagem ao acusar Judá por ter se profanado com a adoração de deuses estrangeiros.
D. Conclusão Semântica
Tôʿēbāh não designa apenas o que é ofensivo à moral ou ao culto: trata-se de uma ruptura com a ordem criacional e santificadora de YHWH. É o antípoda teológico da palavra “delícia” (רָצוֹן – rāṣôn) — o que é abominável nunca poderá ser aceito, tolerado ou integrado. A presença de uma תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) contamina o espaço, o tempo e o ser. A ação de abominar é, portanto, mais do que um juízo: é um ato de separação, exclusão e justiça divina.
II. שֶׁקֶץ (šēqets) e שִׁקּוּץ (šiqqûṣ): A abominação como impureza corpórea e idolatria encarnada
O vocábulo hebraico šēqets (שֶׁקֶץ), com sua forma correlata šiqqûṣ (שִׁקּוּץ), designa inicialmente a impureza cerimonial e alimentar, mas evolui para uma poderosa categoria teológica que expressa a repulsa visceral tanto do culto como da idolatria corpórea. Em Levítico, šēqets funciona como um termo técnico para classificar animais ritualmente impuros, estabelecendo um vocabulário normativo para a pedagogia da pureza. A contaminação não é apenas simbólica: ela se propaga pelo toque, pela ingestão e pela associação com o que é considerado ritualmente execrável, tornando o próprio adorador indigno da aliança. A estrutura legislativa da pureza é, portanto, permeada por um rigor sacerdotal que vê no contato com o impuro não apenas um erro, mas uma transgressão ontológica do espaço sacro.
Com os profetas, šēqets e šiqqûṣ ultrapassam a esfera do alimentício e passam a designar os próprios deuses estrangeiros, suas imagens, e os ritos que os acompanham. A idolatria é reconfigurada como uma forma de impureza tangível, encarnada nas formas zoomórficas dos ídolos e em sua presença no templo. A abominação deixa de ser apenas um erro doutrinário ou uma falha moral, para tornar-se uma corrupção material — uma espécie de corpo estranho no espaço da santidade. YHWH torna-se o sujeito ativo da repulsa: Ele mesmo “abomina” aquilo que é šēqets, definindo a abominação não apenas como objeto de rejeição ritual, mas como uma ameaça teológica à própria presença divina. O resultado é uma doutrina em que a idolatria contamina como se fosse lepra: espalha-se, desfigura e exige erradicação.
A. Forma, Etimologia e Distinção Terminológica
O substantivo שֶׁקֶץ (šeqets, Strong H8263), de raiz provavelmente relacionada a שָׁקַץ (shāqats, “ser repugnante, detestar, tornar-se impuro”), indica aquilo que é ritualmente imundo, especialmente com base em sua aparência, natureza ou associação cultual. É classificado como substantivo masculino e aparece principalmente em textos legais de Levítico, com especial foco nas leis de impureza alimentar. Sua forma intensiva (piel) e o cognato verbal denotam uma ação deliberada de rejeição cultual. O termo שִׁקּוּץ (šiqqûṣ, Strong H8251), derivado ou paralelo semântico, intensifica o valor idolátrico e aparece como sinônimo de objeto de culto proibido, sendo aplicado a deuses estrangeiros e suas imagens.
B. Uso Cultual e Jurisprudencial: O Šeqets no Sistema de Pureza
1. Impureza Alimentar em Levítico 11
A principal função de šeqets é classificar animais como impróprios para consumo e, portanto, fontes de impureza para o povo consagrado. As ocorrências em Levítico 11 são fundamentais:
Lv 11:10-12: criaturas aquáticas sem nadadeiras ou escamas são “abominação” (שֶׁקֶץ, šeqets).
Lv 11:13, 20, 23, 41-42: certos répteis, insetos e aves carniceiras são igualmente considerados šeqets.
A terminologia assume um caráter quase técnico, estabelecendo o vocabulário legal da impureza cerimonial e sua função pedagógica para a separação entre o sagrado e o profano.
2. Condição de Contaminação Pessoal
Em Levítico 7:21, quem tocar em “alguma coisa abominável” (šeqets) e comer do sacrifício de comunhão torna-se ritualmente contaminado e passível de ser cortado (karet). O termo implica que o contato com šeqets compromete a integridade do culto e rompe o vínculo da aliança.
3. Reiteração do Verbo שָׁקַץ (shāqats)
O verbo associado, shāqats, é empregado para ordenar que os israelitas “não se tornem abomináveis” (וְלֹא תְשַׁקְּצוּ — wĕlōʾ tešaqqĕṣû, Lv 11:43), mostrando que o sujeito pode tornar-se ele próprio abominável por associação com o objeto impuro — uma contaminação por afinidade ou contato.
C. O Šeqets como Categoria Idolátrica
1. Idolatria Zoomórfica: Imagens de Bestas e Rastejantes
Em Ezequiel 8:10, durante a visão do profeta, o templo está cheio de “formas de répteis e bestas abomináveis (שֶׁקֶץ, šeqets)” — um retorno aos temas de impureza levítica, agora aplicados a imagens idolátricas. O repúdio ritual assume forma política: o templo foi violado por um culto sincrético que mistura imagens animais com representações de divindades estrangeiras (gilulim).
2. Paralelismo com תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh).
Em textos como Jeremias 4:1; 7:30; 13:27; Ezequiel 11:18; 20:7-8, šeqets e tôʿēbāh aparecem lado a lado como sinônimos funcionais: “suas abominações e seus ídolos”. Em 1 Reis 11:5, 7 e 2 Reis 23:13, šiqqûṣ é utilizado para designar diretamente deuses pagãos: Ashtoret, Quemosh, Milcom — identificados não apenas como errôneos, mas como repugnantes. Em Deuteronômio 29:17, os deuses estrangeiros são chamados de shiqquṣîm, destacando sua vileza espiritual.
3. O Šeqets e a Repulsa Humana
Embora šeqets seja predominantemente um conceito ritual, há ocasiões em que transmite a repulsa humana, como em Isaías 66:17, onde os que comem carne de porco, ratos e “abominações” (šeqets) são consumidos no juízo divino. O termo funciona aqui como denúncia de sincretismo cultual — ritos pagãos camuflados sob a aparência de consagração.
D. Implicações Semânticas e Teológicas
1. Abominação como Contágio Espiritual
Ao contrário de תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh), que assume frequentemente um peso ético e judicial, šeqets concentra-se na dimensão corpórea e contagiadora da impureza. Ele não exige apenas aversão subjetiva, mas separação física: aquilo que é šeqets não pode ser tocado, comido, aceito nem tolerado no espaço sacro.
2. A Impureza como Idolatria Corporificada
Ao aplicar šeqets a ídolos e imagens, os profetas denunciam o corpo da idolatria: suas imagens tangíveis, seus símbolos animistas, suas figuras híbridas. A idolatria não é apenas uma ideia errada — ela é visceralmente repulsiva, corporificada, podre, contaminante.
3. Deus como Sujeito da Repulsa
A retórica profética transfere o verbo shāqats a Deus: é YHWH quem se abomina daquilo que é šeqets, tornando a rejeição divina o critério máximo de santidade. Em Ezequiel 11:21, YHWH punirá aqueles cujo coração segue “seus abomináveis e suas abominações”, confirmando o julgamento não apenas do ato, mas do afeto interior.
III. פִּגּוּל (piggûl): A carne rejeitada como metáfora da impureza do culto corrompido
A análise dos termos šēqets e šiqqûṣ revela uma dimensão distinta da abominação bíblica, centrada na impureza corpórea e na idolatria materializada. Enquanto tôʿēbāh foca mais nos aspectos éticos e judiciais, šēqets emerge predominantemente no contexto levítico como rótulo técnico para tudo o que é cerimonialmente impuro — animais impróprios para o consumo, carcaças, répteis, contato físico com elementos imundos — tudo isso visto como violação do espaço sagrado. A impureza, aqui, é um contágio real e físico, que desqualifica o corpo humano para a presença divina. Entretanto, os profetas extrapolam esse vocabulário ritual para o campo idolátrico: imagens zoomórficas, répteis cultuais e divindades sincréticas são agora chamadas de šēqets ou šiqqûṣ, enfatizando que a idolatria não é apenas uma ofensa teológica, mas uma profanação corpórea e visceral. A retórica profética transfere o ato de abominar a Deus — é o próprio YHWH quem se desgosta das imagens idolátricas, indicando que o abominável não é apenas o que ofende ao homem religioso, mas aquilo que o próprio Deus rejeita em sua santidade absoluta. O resultado é uma teologia em que a impureza não é mais neutra: ela é personificada, encarnada nos ídolos, e carrega em si o poder de exclusão, profanação e juízo.
A. Forma, Raiz e Classificação
O substantivo masculino פִּגּוּל (piggûl, Strong H6292) designa aquilo que é “fétido”, “impróprio”, “rejeitado”, particularmente no contexto das ofertas sacrificiais. De origem hebraica arcaica, provavelmente relacionada a uma raiz extinta com o sentido de “exalar mau cheiro” ou “estar corrompido”, o termo aparece apenas quatro vezes no texto massorético, todas em contextos legais ou proféticos com ênfase cultual.
Diferente de תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) ou שֶׁקֶץ (šeqets), piggûl não se refere a comportamentos ou crenças, mas a uma substância concreta deteriorada, especificamente carne sacrificial que ultrapassou o limite prescrito para o consumo litúrgico. A impureza de piggûl não é subjetiva, mas objetiva: seu estado físico rompe a santidade do sacrifício.
B. Ocorrências e Contextos Bíblicos
1. Legislação Sacrificial em Levítico
Levítico 7:18 — “Se da carne do sacrifício da oferta pacífica se comer ao terceiro dia... será piggûl (abominação); não será aceito.”
Levítico 19:7 — Repete-se a proibição do consumo tardio da carne sacrificada: “se for comido ao terceiro dia, será coisa abominável (piggûl)”.
A lógica do termo repousa sobre o princípio de que o sacrifício é um ato sagrado com tempo determinado. A ultrapassagem do tempo é entendida como quebra de santidade. A carne, ao corromper-se fisicamente, simboliza o desvio espiritual do ofertante. Como observa Driver, trata-se de uma designação técnica que deveria talvez ser traduzida por “carne impura” ou “imprestável”, dada a especificidade do uso.
2. Aplicação Profética
Em Isaías 65:4 se denuncia os que comem carne de porco e “caldo de coisas piggûl está em seus vasos”. Aqui, piggûl se estende a uma alimentação associada a práticas pagãs e funerárias, destacando-se como símbolo da decadência religiosa. A menção ao “caldo” (מרק) indica o uso ritual ou supersticioso dessas carnes, possivelmente em ritos necromânticos.
Em Ezequiel 4:14, Quando Deus manda o profeta comer um pão profanado como sinal de julgamento, ele responde: “desde a minha mocidade... nunca entrou carne piggûl na minha boca.” A recusa do profeta enfatiza sua consagração e obediência, contrastando com a corrupção do povo. O termo funciona como marcador de identidade sacerdotal e ética.
C. Valor Teológico e Representativo
1. Do sacrifício à rejeição divina
O termo piggûl simboliza o culto deformado, não por intenção perversa, mas por negligência, descaso ou formalismo. Ele não evoca repulsa por si mesmo, mas o efeito da corrupção do tempo e da forma sobre o que era sagrado. O sacrifício que deveria ser um memorial de comunhão torna-se, pela deterioração, um escândalo ritual.
2. Metáfora da hipocrisia litúrgica
O uso profético de piggûl sugere um movimento simbólico: da carne corrompida ao coração corrompido. Isaías, ao acusar os que consomem caldo de piggûl, denuncia não apenas costumes impuros, mas a substituição do culto legítimo por práticas supersticiosas e contaminadas. Em Ezequiel, a carne piggûl é tudo aquilo que o servo de Deus não pode permitir que entre em si — nem no corpo, nem na alma.
3. Comparação com tôʿēbāh e šeqets
Enquanto תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) se refere à impiedade ativa, e שֶׁקֶץ (šeqets) à impureza passiva, פִּגּוּל (piggûl) é a abominação pela decadência: o que já foi santo, mas tornou-se inaceitável. É o sinal do culto que, embora externamente correto, foi vencido pela decomposição do tempo, da intenção ou da vigilância.
IV. A Teologia da Abominação no AT: Da Pureza ao Juízo
A concepção de “abominação” no Antigo Testamento não é monolítica, mas se desenvolve em camadas sucessivas de significação, partindo de uma lógica cultual concreta para assumir dimensões éticas, sociais, teológicas e escatológicas. A inter-relação entre os quatro principais vocábulos hebraicos analisados — תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh), שֶׁקֶץ (šeqets), שִׁקּוּץ (šiqqûṣ) e פִּגּוּל (piggûl) — permite perceber que a linguagem da abominação no Tanakh articula uma gramática da exclusão do sagrado: o que é abominável é aquilo que deve ser rejeitado, removido, banido, porque está em conflito direto com o caráter de Deus e com a santidade que Ele exige de seu povo.
No plano ritual, a abominação surge como marcador de impureza. Animais impróprios, cadáveres, restos sacrificiais vencidos e práticas sincréticas são assim nomeados para reforçar a distinção radical entre o puro e o impuro, o santo e o profano, o permitido e o proibido. O termo piggûl é especialmente ilustrativo desse ponto: sua função é indicar que até mesmo uma oferta formalmente legítima, ao ser consumida fora do tempo prescrito, torna-se inaceitável, símbolo da corrupção sutil que nasce da negligência. Da mesma forma, šeqets estabelece uma série de categorias zoológicas que não devem ser ingeridas nem tocadas, não por apresentarem mal intrínseco, mas porque sua ingestão ou manipulação perturba a integridade da comunidade consagrada. Tais normas operam como pedagogia simbólica: ensinam o povo a discernir, classificar, excluir — preparando o coração para distinguir entre o bem e o mal em nível moral e espiritual.
Contudo, à medida que os textos avançam da Torá para os Profetas e Escritos, a linguagem da abominação se desloca do campo cerimonial para o campo ético e teológico. A palavra tôʿēbāh, presente de forma marcante no Deuteronômio, Provérbios, Ezequiel e Jeremias, começa a designar não apenas objetos ou atos impuros, mas disposições do coração, decisões judiciais, estruturas sociais e sistemas de culto contaminados. Uma balança desonesta, um coração soberbo, um juiz corrupto, uma oração vinda de quem rejeita a Torá — tudo isso é chamado abominação. A abominação deixa de ser uma impureza acidental ou externa para tornar-se um retrato do estado moral do indivíduo e da nação. Não apenas os ídolos e os seus ritos são abominação, mas o orgulho que leva alguém a justificar o ímpio e condenar o justo. O conceito se expande para capturar o âmago da injustiça: aquilo que subverte a ordem de Deus e proclama, com palavras ou gestos, que a aliança pode ser manipulada ou ignorada.
Essa ampliação do conceito culmina em Ezequiel, onde o termo tôʿēbāh aparece com maior frequência do que em qualquer outro livro da Escritura hebraica. Ali, a abominação é a chave hermenêutica do colapso de Jerusalém: o templo está poluído por imagens animais, por ritos secretos, por prostituição espiritual, por violência cultual. A cidade se torna uma réplica profana da idolatria estrangeira, uma “casa cheia de abominações”, um corpo doente cuja infecção se espalha pelo altar, pelo trono e pelo povo. O julgamento divino é justificado não apenas pela idolatria, mas pela obstinação em manter essas práticas sob a aparência da piedade. O profeta recorre à linguagem da visão e da metáfora para descrever as abominações como imagens grotescas, comportamentos sacrílegos e transgressões que perfuram a terra com a mesma violência que profanam o céu. Deus, que se retirou do templo por causa dessas abominações, promete retornar apenas depois que o povo reconhecer, confessar e remover cada uma delas — como quem purifica uma casa invadida por lepra.
É nesse mesmo espírito que o livro de Provérbios, ainda que inserido em um contexto sapiencial, recupera e aprofunda a teologia da abominação, não em termos de culto ou visão profética, mas em aforismos morais. A abominação é aqui internalizada: já não se trata apenas de objetos ou práticas externas, mas de valores distorcidos e paixões corruptas. O mentiroso, o violento, o caluniador, o cínico, o orgulhoso, todos estes são classificados como abomináveis aos olhos do Senhor. Esse deslocamento da abominação do campo do ritual para o campo do caráter revela uma intensificação ética da santidade. Deus não apenas rejeita imagens e ritos impuros, mas também detesta aquilo que o ser humano se torna ao tolerar a injustiça, praticar a mentira, manipular o juízo, ou promover o mal. A abominação passa a ser, portanto, a medida inversa da justiça divina: o grau de incompatibilidade entre a santidade de Deus e os caminhos do homem.
Em síntese, a teologia da abominação no Antigo Testamento oferece uma lente singular pela qual se pode ler a tensão entre santidade e corrupção, entre comunhão e exclusão, entre o culto verdadeiro e sua perversão. O que começa como um conceito técnico de pureza sacrificial — carne vencida, répteis, oferendas impuras — transforma-se, nas mãos dos profetas e sábios, numa denúncia abrangente do pecado como rebelião moral contra o Deus santo. A abominação é o nome que a Escritura dá àquilo que deve ser rejeitado porque rejeita a Deus. É o signo do pecado endurecido, do culto pervertido, da justiça profanada. É o espelho daquilo que o homem se torna quando se recusa a amar o que Deus ama e a odiar o que Deus odeia. E, por fim, é também o prenúncio do juízo: onde há abominação não pode haver permanência da glória.
V. βδέλυγμα (bdélygma) e seus derivados: A abominação no NT como idolatria interior e juízo escatológico
A transição do Antigo para o Novo Testamento no uso da linguagem da abominação é marcada por uma continuidade terminológica e ao mesmo tempo por uma transposição semântica. O termo grego mais recorrente que traduz e herda o campo semântico da abominação veterotestamentária é βδέλυγμα (bdélygma, Strong G946), substantivo neutro derivado do verbo βδελύσσομαι (bdelyssomai, Strong G948), “odiar com repulsa, sentir asco”, e do adjetivo correlato βδελυκτός (bdelyktós, Strong G947), “detestável, repulsivo”. A base fonética dessas palavras contém já um som dissonante e duro, refletindo fonologicamente a violência afetiva do termo: a abominação no grego do Novo Testamento é aquilo que é nojento à vista, intragável ao tato e odioso à consciência de Deus. Assim como suas correspondentes hebraicas, as palavras do grupo bdelygma remetem àquilo que é diametralmente oposto à santidade e à verdade.
O substantivo bdélygma ocorre apenas seis vezes no Novo Testamento, mas sua densidade teológica e simbólica supera em muito sua frequência numérica. A primeira aparição ocorre em Mateus 24:15, na célebre profecia escatológica em que Jesus declara: “Quando, pois, virdes a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, estar no lugar santo (quem lê, entenda)...”. O paralelo imediato está em Marcos 13:14, com formulação quase idêntica. Trata-se de uma citação deliberada de Daniel 9:27; 11:31 e 12:11, onde a expressão hebraica shiqqûṣ šōmēm (“abominação desoladora”) designa um ato idólatra supremo — provavelmente a profanação do templo por Antíoco IV Epifânio —, mas que, nos lábios de Jesus, adquire dimensão escatológica. O termo bdélygma aqui não é apenas uma prática ou imagem detestável, mas um sinal apocalíptico: a instalação do que é absolutamente profano no centro do que é absolutamente santo. A abominação torna-se o marcador simbólico da crise final, do rompimento derradeiro entre Deus e o mundo, da manifestação visível da oposição ao Reino. O templo — espaço de glória — se torna o palco da profanação — a abominação no lugar santo é o anticulto absoluto, o contra-evangelho institucionalizado. (Veja ABOMINAÇÃO DA DESOLAÇÃO)
No evangelho de Lucas, o termo aparece uma única vez, em 16:15, de forma radicalmente distinta: “o que é elevado entre os homens é abominação diante de Deus”. Aqui, bdélygma não designa ídolos ou ações rituais externas, mas a estrutura do coração humano e seus critérios falsificados de valor. Aquilo que os homens aplaudem, promovem e idolatram — riquezas, status, vanglória — é, aos olhos de Deus, detestável. A abominação torna-se aqui uma categoria de discernimento teológico e antropológico: revela o abismo entre os valores do Reino e os valores da carne. O que se vê nos homens como glória, Deus vê como deformação espiritual. Assim, a abominação já não é um objeto ou uma prática externa, mas uma idolatria interna, travestida de sucesso social ou prestígio religioso.
O livro do Apocalipse retoma e intensifica o vocabulário da abominação, associando-o a dois núcleos simbólicos: a figura da grande prostituta e o juízo final. Em Apocalipse 17:4-5, a mulher embriagada com o sangue dos santos segura uma taça de ouro cheia de “abominações e das imundícies da sua prostituição”, sendo identificada como “Babilônia, a grande, a mãe das prostituições e das abominações da terra”. A imagem é carregada de ironia teológica: a taça é de ouro, símbolo cultual, mas está cheia de repulsa; o nome escrito é um mistério, mas manifesta o sistema mundial oposto a Deus. A abominação aqui designa o conteúdo ideológico, econômico e moral do império anticrístico: uma síntese de idolatria, perversão, sedução e violência. Babilônia não é apenas uma cidade ou um regime: é uma teologia perversa, uma liturgia satânica que consagra a injustiça como culto e faz da fornicação espiritual um sacramento da besta.
Finalmente, em Apocalipse 21:27, a abominação aparece como barreira escatológica à entrada na Nova Jerusalém: “Nela jamais entrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira, mas somente os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro.” A abominação, agora, não é apenas um símbolo teológico, mas um critério escatológico: ela define os que não pertencem ao povo de Deus, os que não serão admitidos à comunhão definitiva com o Cordeiro. A menção à mentira, como companheira da abominação, reforça o caráter moral e espiritual do termo: o que é abominável é o que distorce a verdade, deturpa a justiça, violenta o bem. A abominação, em sua última ocorrência neotestamentária, é o selo de exclusão perpétua da cidade santa — não por capricho divino, mas porque o abominável não suporta a presença da glória.
O adjetivo bdelyktós, derivado direto do mesmo radical, aparece em Tito 1:16: “Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis (bdelyktoí), desobedientes e reprovados para toda boa obra.” A abominação aqui é aplicada aos falsos mestres e hipócritas religiosos, mostrando que a repulsa divina não se volta apenas contra o erro doutrinário, mas contra a contradição moral entre a profissão de fé e a prática de vida. O verbo bdelyssomai também se encontra duas vezes, em passagens que reforçam esse sentido de repulsa visceral: em Romanos 2:22, Paulo denuncia os que proíbem o adultério, mas cometem sacrilégio, perguntando: “Tu que abominas os ídolos, cometes sacrilégio?”; e em Apocalipse 21:8, o verbo aparece entre os que terão parte no lago de fogo: os “abomináveis” (bdelygmenoi) serão excluídos da vida eterna.
A palavra ἀθέμιτος (athémitos, Strong G111), embora semanticamente distinta, aparece em Atos 10:28 e 1 Pedro 4:3 traduzida como “abominável” na KJV. Etimologicamente composta por α- (negação) e θέμιτος (“permitido, legal”), o termo significa aquilo que é “ilícito, ilegal, impróprio segundo a norma cultual”. Em Atos 10:28, Pedro reconhece que, embora fosse “athémiton” para um judeu associar-se a um gentio, Deus lhe mostrou que não chamasse impuro ao que Ele purificou. Em 1 Pedro 4:3, o termo refere-se à antiga vida dos gentios, cheia de lascívia, desejos, bebedices e “abomináveis idolatrias” (athémitois eidōlolatríais). Aqui, a abominação é descrita não apenas como transgressão da Torá, mas como estilo de vida oposto à santidade cristã. A palavra carrega, portanto, o eco da pureza cerimonial veterotestamentária, mas aplicada agora a uma vida de libertinagem moral e idolatria comportamental.
No conjunto do Novo Testamento, a abominação deixa de ser apenas um instrumento da separação cultual e torna-se, em definitivo, um marcador do juízo escatológico, da santidade ética e da verdade revelada. Os termos gregos bdélygma, bdelyktós, bdelyssomai e athémitos condensam o juízo divino sobre tudo aquilo que pretende perverter a aliança, corromper a adoração ou usurpar o lugar de Deus na alma humana e na ordem cósmica. A abominação, no Novo Testamento, é a face visível da idolatria interior e da falsificação escatológica. Ela é aquilo que será lançado fora, não por um ato arbitrário de exclusão, mas porque, em sua própria natureza, repele a luz e se alimenta das trevas.
VI. ἀθέμιτος (athémitos): A Abominação como Transgressão Cultual e Ética entre Judeus e Gentios
O adjetivo ἀθέμιτος (athémitos) é formado pela junção do prefixo privativo α- com a palavra θέμις (thémis, “costume, norma estabelecida, lei sagrada”), e expressa a ideia de algo que é “ilegal”, “impróprio”, “contrário à norma religiosa ou ética”. Trata-se de um termo que, embora ocorra apenas duas vezes no Novo Testamento, desempenha papel significativo na articulação entre a tradição judaica e a universalização da fé cristã. Na tradução da KJV, athémitos é vertido como “unlawful” (ilegal) em Atos 10:28 e “abominable” (abominável) em 1 Pedro 4:3, revelando como a tradição reformada entendeu o termo não apenas como violação legal, mas como transgressão moral e cultual de natureza abominável. O termo, portanto, pertence ao mesmo campo semântico da repulsa religiosa e da exclusão cultual presente nos vocábulos hebraicos תּוֹעֵבָה (tôʿēbāh) e שֶׁקֶץ (šēqets) e nos gregos βδέλυγμα (bdélygma) e βδελυκτός (bdelyktós).
No primeiro caso, em Atos 10:28, o termo aparece no discurso de Pedro diante da casa de Cornélio: “Vós sabeis que é ἀθέμιτον (athémiton) para um homem judeu associar-se ou aproximar-se de um estrangeiro; mas Deus me mostrou que a nenhum homem devo chamar comum ou impuro”. O uso de athémitos aqui reflete não uma proibição explícita da Torá escrita, mas uma norma consuetudinária do judaísmo do Segundo Templo, enraizada em tradições de pureza, separação e santidade ritual. A abominação nesse contexto é mais do que uma questão legal: é a marca da alteridade religiosa, da segregação entre puro e impuro, entre povo da aliança e gentios. Pedro reconhece que a norma foi superada por uma revelação divina, na qual Deus purificou aquilo que antes era considerado contaminante. Nesse sentido, a abominação deixa de ser um marcador étnico ou cerimonial e passa a ser reconceituada à luz da nova economia do Espírito: o que Deus purifica não pode mais ser abominado. A abominação como separação externa dá lugar à comunhão mediada pela fé e pelo Espírito.
No segundo caso, em 1 Pedro 4:3, o termo aparece na forma plural feminina dativa ἀθεμίτοις (athemítois) e está ligado diretamente às “idolatrias” (εἰδωλολατρίαις, eidōlolatríais): “Basta que no tempo passado da vida se tenha cumprido a vontade dos gentios, andando em dissoluções, concupiscências, bebedices, orgias, bebedagens e idolatrias abomináveis (ἀθεμίτοις εἰδωλολατρίαις, athemítois eidōlolatríais)”. Aqui, o adjetivo é qualificativo da idolatria gentílica, e não se refere mais a costumes sociais ou separações raciais, mas à própria natureza moral e religiosa das práticas pagãs. As athémitoi eidōlolatríai não são apenas diferentes ou externas ao judaísmo, mas são repulsivas por definição: trata-se de formas religiosas que violam a santidade de Deus e que, por sua essência, corrompem e alienam o ser humano de sua vocação criacional. O uso de athémitos nesse contexto tem, portanto, valor teológico absoluto: aquilo que é athémiton não pode ser integrado ou tolerado, mas deve ser abandonado com urgência escatológica. A abominação, aqui, é um estado de vida do qual o convertido precisa se arrepender radicalmente.
Deste modo, athémitos conecta-se conceitualmente ao antigo conceito hebraico de abominação não tanto por sua frequência quanto por sua função: separar o que pertence ao culto de Deus daquilo que deve ser excluído por impureza, idolatria ou transgressão moral. Em Atos 10, o termo representa uma barreira que Deus remove para incluir os gentios na comunidade da aliança; em 1 Pedro 4, representa uma prática que os cristãos gentios devem rejeitar para ingressar plenamente na vida santa. Em ambos os casos, a abominação funciona como limiar teológico: o que separa o profano do sagrado, o passado do presente, o velho homem da nova criação. A noção de abominação, portanto, não desaparece no Novo Testamento — ela é reconvertida e redimensionada, mas continua sendo o termo que demarca aquilo que é, aos olhos de Deus, inconciliável com sua santidade.
VII. Conclusão Lexical e Teológica: O abominável como o incompatível com a glória
A progressão lexical e teológica do conceito de abominação nas Escrituras revela uma rede semântica profunda que articula, desde os primeiros livros da Torá até as visões do Apocalipse, a radical incompatibilidade entre a glória de Deus e tudo aquilo que a ofende, profana, subverte ou falsifica. Os diferentes vocábulos examinados — no hebraico, tôʿēbāh (תּוֹעֵבָה), šēqets (שֶׁקֶץ), šiqqûṣ (שִׁקּוּץ) e piggûl (פִּגּוּל); no grego, bdélygma (βδέλυγμα), bdelyktós (βδελυκτός), bdelyssomai (βδελύσσομαι) e athémitos (ἀθέμιτος) — expressam, em gradações variadas, essa repulsa divina, ora no nível cultual, ora no ético, ora no escatológico, mas sempre como expressão do mesmo juízo fundamental: o abominável é aquilo que não pode permanecer diante de Deus sem ser julgado, consumido ou expulso. Do ponto de vista lexical, o campo semântico da abominação inclui elementos concretos (carne corrompida, répteis impuros, ídolos físicos), abstratos (mentira, orgulho, injustiça), sociais (sacrifícios humanos, prostituição cultual), e escatológicos (a imagem da besta, a exclusão da Nova Jerusalém). A abominação, nesse sentido, não é um conceito meramente ritual, mas um princípio ontológico que regula a relação entre Deus e sua criação: o que é abominável é aquilo que desfigura o bem, distorce o verdadeiro e desacraliza o santo. A linguagem da abominação funciona, portanto, como índice de ruptura e diagnóstico da corrupção — seja ela moral, espiritual, litúrgica ou escatológica.
Teologicamente, a abominação ocupa um lugar de destaque na revelação bíblica porque delimita, com clareza intransigente, os limites da comunhão. A santidade de Deus não tolera o que é abominável, não por arbitrariedade, mas porque o abominável é, em sua natureza, o antípoda da presença divina. Em Gênesis, os egípcios abominam os hebreus por razões culturais; em Levítico, Deus abomina práticas que corrompem o corpo e o culto; em Deuteronômio e Provérbios, ele rejeita o perverso, o mentiroso, o injusto; nos Profetas, ele denuncia a idolatria institucionalizada como abominação no centro do templo; nos Evangelhos, Jesus revela que o que é exaltado entre os homens é abominável diante de Deus; no Apocalipse, a abominação assume sua forma última como sistema anticrístico, incompatível com a Nova Jerusalém.
A chave hermenêutica que unifica essas diversas manifestações está na percepção de que a abominação, em última instância, é a inversão da glória. Onde Deus deveria ser adorado, encontra-se o ídolo; onde o justo deveria ser defendido, justifica-se o ímpio; onde a verdade deveria reinar, perpetua-se a mentira; onde o altar deveria ser santo, repousa a corrupção. A abominação é, assim, a antítese do culto verdadeiro, a caricatura do reino, o reflexo sombrio do que o homem se torna quando rejeita o Deus vivo. Ela aponta não apenas para atos individuais, mas para estruturas existenciais que encarnam a recusa da aliança, a paródia da adoração e a institucionalização da transgressão. É por isso que, na Bíblia, a abominação não é apenas condenável: ela é o sinal de que algo — ou alguém — está radicalmente fora da ordem da criação e da redenção.
A despeito disso, a Escritura nunca usa o conceito de abominação para anular a graça. O que é abominável pode ser purificado, se for submetido ao juízo e à misericórdia. Em Atos 10, Deus mostra a Pedro que não deve chamar de impuro aquele a quem Ele purificou. Em 1 Coríntios 6:11, Paulo afirma que muitos dos que viviam em práticas abomináveis foram lavados, santificados e justificados. A abominação não é sentença irrevogável, mas diagnóstico severo — sua função é apontar a gravidade do pecado e a urgência da restauração. A abominação é a linguagem do juízo, mas também é o prelúdio da graça para os que se arrependem.
Em suma, o conceito bíblico de abominação não deve ser entendido como um relíquias do legalismo ou da repulsa cultural antiga, mas como uma categoria teológica que permanece viva porque define, com precisão e verdade, tudo aquilo que é incompatível com a glória de Deus. O abominável é o oposto do santo, o adversário do justo, o inimigo da verdade. Reconhecê-lo, denunciá-lo e afastar-se dele é um ato de fidelidade; permanecer nele é escolher voluntariamente a exclusão da presença divina. É por isso que a Escritura fecha seu cânon com um juízo: “nela não entrará coisa alguma impura, nem o que pratica abominação e mentira, mas somente os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Apocalipse 21:27).
Notas de Rodapé
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A expressão “molk-sacrifício” refere-se a um tipo específico de ritual idolátrico e sacrificial do Antigo Oriente Próximo — particularmente associado ao culto do deus Moleque (מֹלֶךְ, Mōlek) — em que crianças eram oferecidas em holocausto. O termo “molk” (às vezes transliterado como mlk, mulk ou molek) vem de inscrições fenício-púnicas e é amplamente discutido na literatura acadêmica como um tipo de sacrifício humano.
Origem do termo
O termo “molk” foi reconstruído a partir de inscrições púnicas, especialmente aquelas encontradas em cartago, onde aparecem fórmulas como:
mlk ʾdm – “sacrifício molk de um ser humano”
mlk bʿl – “sacrifício molk a Baal”
Nessas fórmulas, mlk não significa “rei” (como em hebraico), mas refere-se ao tipo de oferta, enquanto o nome da divindade indica o destinatário. O termo foi então usado para designar o ritual de entrega de crianças por fogo ou outro método, em honra a deuses como Moleque, Baal-Hammon ou Kronos, dependendo da região.
Relação com o Antigo Testamento
A Bíblia condena duramente essa prática. Em passagens como:
Levítico 18:21 – “Não darás nenhum dos teus filhos para fazê-lo passar pelo fogo a Moleque...”
Levítico 20:2-5, Jeremias 32:35, 2 Reis 16:3; 21:6 – onde reis de Judá praticam esse culto.
Esses textos denunciam o sacrifício humano infantil como abominação (תּוֹעֵבָה, tôʿēbāh), associando-o diretamente à idolatria e à corrupção da aliança.
No contexto acadêmico
Autores como William F. Albright, Otto Eissfeldt e John Day discutem se o “molk” era sempre literal (sacrifício com morte real) ou se incluía formas simbólicas (como consagração sem morte). A maioria dos estudiosos aceita que em muitos casos era sim sacrifício real de crianças por fogo, como indicam também inscrições e evidências arqueológicas nos chamados “tophets” de Cartago.
Portanto, “molk-sacrifício” é um termo técnico moderno usado para designar a prática cultual proibida pela Torá, na qual se ofereciam filhos como sacrifício a uma divindade pagã — considerada uma das expressões mais extremas de abominação no Antigo Testamento.
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GALVÃO, Eduardo M. Abominação. In: ENCICLOPÉDIA BÍBLICA ONLINE. [S.l.]: [s.d.]. Disponível em: Biblioteca Bíblica. Disponível em: [cole o link aqui]. Acessado em: [coloque aqui a data que você acessou a página].