Apocalipse 6 — Comentário Literário da Bíblia
Apocalipse 6
Cristo começa a remover o selo do livro, e cenas de um juízo devastador (inclusive os famosos “quatro cavaleiros do Apocalipse”) começam a se desdobrar na terra. As cenas culminam com uma descrição do dia da ira de Deus, enquanto os céus se recolhem como um rolo e os montes e as ilhas são “removidos de seus lugares” (sobre a natureza predominantemente simbólica das visões dos selos, v. Beale 1999a, p. 50-5).O contexto mais óbvio dos quatro cavaleiros é Zacarias 6.1-8 (cf. 1.8-15). Ali quatro grupos de cavalos de cores diferentes são comissionados por Deus para patrulhar a terra e punir as nações que oprimem seu povo (6.5-8). Por analogia, os cavalos de Apocalipse 6.1-8 podem significar que os desastres naturais e políticos em todo o mundo são causados por Cristo para julgar os incrédulos que perseguem os cristãos e vindicar seu povo. As cores dos cavalos, em Zacarias e em Apocalipse, são praticamente idênticas (v. Charles 1920, 1:168-9). As cores em Apocalipse, no entanto, são claramente metafóricas e representam as pragas executadas pelos cavaleiros (v. Mounce 1977, p. 152; Haapa 1968, p. 217- 8): branco (vitória); vermelho (derramamento de sangue [e.g., 2Rs 3.22,23]); preto (fome [cf. Tg. de Jr 14.2]); amarelo [esverdeado] (morte). A diferença mais evidente entre os textos é que Apocalipse 6 descreve os quatro cavalos e os cavaleiros individualmente, enquanto Zacarias 1 registra quatro grupos de cavalos, e Zacarias 6, quatro grupos de cavalos puxando carruagens. No entanto, tal diferença é insignificante, uma vez que João pode ter deduzido por implicação de Zacarias 6 que os quatro cavaleiros estavam em carruagens. A sumarização de Zacarias dos quatro conjuntos de cavalos como “os quatro ventos do céu” pode ser outro motivo para João retratar apenas quatro cavalos (tb. Ez 14.12-23 influenciou essa seção [cf. Dt 32.23-25]; sobre o qual v. comentário de 6.7,8 adiante).
Apocalipse 6.5 — No mundo antigo, o alimento era distribuído em quantidade racionada por meio de escalas quando ficava escasso (v. tb. o uso metafórico de escalas como indicação de fome em Lv 26.26; 2Rs 7.1; Ez 4.10,16). Uma severa escassez de alimentos está em vista.
Apocalipse 6.6 — I. T. Beckwith (1919, p. 521-2) corretamente argumenta que não se pode especificar o contexto histórico de 6.5,6. Grãos, vinho e azeite não eram artigos de luxo, mas gêneros alimentícios básicos normalmente disponíveis nas épocas em que não havia fome (v. Dt 7.13; 11.14; 28.51; 2Cr 32.28; Ne 5.11; Sl 104.14,15; Jr 31.12; Os 2.8,22; J1 1.10; 2.19; Mq 6.15; Ag 2.12; v. outras referências em Burchard 1983, p. 212, n. 8i).
Apocalipse 6.7-8 — Existe aqui um possível eco de Oseias 13.8,14 LXX, em que “Hades [Ἅιδης]”, “Morte [θάνατος]” e “animais selvagens” são juízos divinos que virão sobre Israel por causa da idolatria, da qual Deus mais tarde os resgatará (cf. Is 28.15). O Hades é a esfera que aprisiona os mortos. Com referência à região dos mortos, a LXX utiliza os termos “Morte” e “Hades” em combinação quase sinonímica (e.g., Sl 6.6 [6.5 TP]; 48.15,16 [49.14,15 TP]; Pv 2.18; 5.5; Ct 8.6; Jó 17.13-16; 33.22). Uma vez que os quatro juízos são formas específicas pelas quais a sentença de morte é executada, em 6.8b o termo θάνατος refere-se à “praga” (ou “doença”), não à morte no sentido geral (v. I. T. Beckwith 1919, p. 523). De fato, na LXX θάνατος traduz o hebraico deber (“praga”; “peste”) mais de trinta vezes (v. Court 1979, p. 64; Mayer 1978). É surpreendente que ocorram duas traduções de deber em Ezequiel 14.19-21 e uma em Levítico 26.25, dois contextos que servem de modelo para Apocalipse 6.1-8. Faz-se uma alusão direta ao capítulo 14 de Ezequiel em 6.8. Em 6.8a, a mesma palavra, θάνατος, tem sentido mais geral, embora sem dúvida inclua a nuança de “peste”.
As calamidades infligidas pela Morte e pelo Hades são descritas por meio de uma citação de Ezequiel 14.21. O quarto cavaleiro, de modo geral, resume as três calamidades anteriores (a conquista, a espada e a fome, todas incluem “morte”) e acrescenta mais uma (praga de mais animais selvagens). Os quatro juízos de Ezequiel 14 são encontrados em outras passagens dos Profetas, geralmente em construções quádruplas e desenvolvimentos das fórmulas de maldição da aliança de Levítico 26.18-28 e Deuteronômio 32.24-26 (sobre o quádruplo desenvolvimento dessas fórmulas, v. Jr 15.1-4; 16.4,5; 34.17,20; Ez 5.16,17; Tg. Frg. Dt 32.22- 26; S l S aí. 13.1-3; Eo 39.28-31 cf. 40.8-10], v. tb. Sl. Sal. 15.8-11; Pirq e 'Abot 5.11; S ip re de Dt Piska 43, três dos juízos são registrados com vocabulário repetido em Jr 14.12-18; 21.7,9; 24.10; 29.17,18; 42.17; 43.11; Ez 5.12; 6.11,12; 7.15; 12.16; 33.27; Br 2.25; 4Q171 III). A fórmula de maldição no contexto de Ezequiel 14 (v. 13-23) indica juízo sobre os incrédulos dentro e fora da comunidade da aliança e sofrimento para o remanescente fiel, e os mesmos grupos estão em evidência aqui, embora o foco esteja direcionado para o segundo, como confirma a visão seguinte.
Apocalipse 6.9 — A menção do “altar” em associação com os que haviam sido mortos evoca a natureza sacrifical do sofrimento deles. O altar é uma alusão ao altar do incenso, feito de ouro, que ficava próximo do lugar santíssimo (ao qual sem dúvida 8.3-5 se refere; o desenvolvimento dessas referências nos capítulos 8 e 9 é visto em 9.13; 11.1; 14.18; 16.7). Sobre esse altar o sangue do sacrifício era derramado no Dia da Expiação, quando o incenso era queimado (Êx 30.1-10; Lv 4.7; cf. Hb 9.4).
Apocalipse 6.10 — A expressão “até quando?” (heõspote) é normalmente usada no AT grego ao se indagar sobre quando Deus punirá os perseguidores e vindicará os oprimidos (v. Sl 6.4 [6.3 TP]; 12.2 [13.1 TP]; 73.10 [74.10 TP]; 78.5 [79.5 TP]; 79.5 [80.4 TP]; 88.47 [89.46 TP]; 89.13 [90.13 TP]; 93.3 [94.3 TP]; Dn 8.13 0 ; 12.6-13 0 ) . A ênfase de João no fato de Deus defender a própria reputação ao julgar os pecadores que perseguiram os justos também é evocada pela expressão “e vingar o nosso sangue”, que é uma alusão a Salmos 78.10 LXX (79.10 TP): “Mostra às nações a vingança do sangue derramado dos teus servos”. No salmo, o desejo de vingança é precedido da pergunta sobre quanto Deus ainda demoraria para agir contra o inimigo (78.5,6 LXX). Em 78.9,10 LXX, há um apelo para que Deus defenda seu nome glorioso e demonstre a verdade de sua existência ao julgar os pecadores, porque eles não invocaram seu nome e maldosamente oprimiram seu povo (v. 78.6,7 LXX). Além disso, 78.2 LXX menciona que, como resultado de perseguição por parte das nações, os corpos dos santos foram dados como alimento “para os animais selvagens da terra” [tois thêriois tês gês), expressão quase idêntica à de Apocalipse 6.8b. Os que perseguiram os santos fizeram isso porque rejeitaram o testemunho destes acerca da verdade de Deus. Portanto, parte do apelo é para que Deus julgue esses perseguidores e assim demonstre que ele é o único Deus verdadeiro. Observe também (com Court 1979, p. 58) que a mesma pergunta (“Até quando?”) é feita em Zacarias 1.12 após os quatro grupos de cavalos terem patrulhado a terra e informado que as nações que perseguiram Israel estavam desfrutando de paz. Em resposta, Deus anuncia que removerá aquela paz e julgará as nações perseguidoras (Zc 1.13-16), e os próprios cavalos se tomam os agentes desse juízo (Zc 6.1-8).
Sobre o contexto em que Deus vinga o sangue dos santos contra os perseguidores, identificados como “os habitantes da terra”, compare Oseias 1.4 (“visitarei [vingarei] o sangue”, ACF) com Oseias 4.1,2: “O Senhor tem uma acusação contra os habitantes da terra”, em parte porque eles acumulam “homicídios sobre homicídios” (cf., mais amplamente, Is 26.21).
Apocalipse 6.12-14 — O quadro do julgamento do mundo é pintado com as mesmas cores fortes do AT que retratam a dissolução do cosmo. Os textos mais importantes que formam uma parte do arsenal de passagens apocalípticas que influenciam o cenário dramático de 6.12-14 são: Isaías 13.10- 13; 24.1-6,19-23; 34.4; Ezequiel 32.6-8; Joel 2.10,30,31; 3.15,16; Hebreus 3.6-11 (v. tb. Sl 68.7,8; Jr 4.23-28; Am 8.8,9). Os mesmos textos do AT influenciam também as imagens de Mateus 24.29, Marcos 13.24,25 e Atos 2.19,20 ( = J12.30,31) (na mesma tradição do AT, estão T.Mois. 10.3-6; 4EdSA -8 [cf. 7.39-40]). Todos os textos mencionam pelo menos quatro dos seguintes elementos, também encontrados no texto de Apocalipse: tremor de terra (que afetam até as montanhas); escurecimento ou comoção dos céus, do Sol, da Lua e das estrelas; derramamento de sangue. A influência mais formativa entre esses textos é Isaías 34.4: “as estrelas do céu serão todas dissolvidas, e os céus se enrolarão como um pergaminho; todo o exército celeste cairá como folhas secas da videira e da figueira” (NVI).
Em Isaías 34.3,4, o “sangue” tem relação direta com o fato de que “as estrelas do céu serão todas dissolvidas” (NVI), e 34.5,6 faz referência à espada de Deus, que “se embriagou” com sangue “no céu”, o que pode apontar para a Lua convertida em sangue de Apocalipse 6.12b. Também está incluída no texto de Isaías a menção, em 34.12 LXX, de que o juízo recairá sobre “os príncipes [...], os reis e os nobres”, expressão quase idêntica à dos primeiros três grupos julgados em Apocalipse 6.15a: “os reis da terra, os nobres, os chefes militares” (cf. Sl 2.2).
Joel 2.31 (3.4 LXX = At 2.20) também está relacionado com o retrato de 6.12b, a imagem do Sol que escurece e da Lua que se torna como sangue (embora para o quadro anterior, v. tb. J1 2.10; 3.15; Is 13.10 [cf. MT 24.29; Mc 13.25]). A comparação do escurecimento do céu com um “saco de silício” foi sugerida por Isaías 50.3: “Eu visto os céus de escuridão e lhes dou pano de saco como roupa [LXX: sakkon]
É debatido se o texto retrata uma dissolução real do cosmo (dando espaço à linguagem metafórica para descrever a dissolução) ou se temos aqui uma descrição meramente figurativa da queda dos reinos ímpios. O AT, em várias ocasiões, utiliza expressões de forma hiperbólica para retratar a queda de reinos: observe a derrota da Babilônia (Is 13.10-13), de Edom (Is 34.4), do Egito (Ez 32.6-8), das nações inimigas de Israel (Hc 3.6-11) e do próprio Israel (J1 2.10,30,31 [cf. Or. Sib. 3.75-90]). Outros exemplos de linguagem figurativa da perturbação cósmica no AT são: 2Samuel 22.8-16 (= Sl 18.7-15), referindo-se à vitória de Davi sobre os inimigos; Eclesiastes 12.1-7, referindo-se de modo figurado à morte humana; Isaías 2.19-21; 5.25,30; Jeremias 4.23-28; Ezequiel 30.3,4,18; Amós 8.7-10; Miqueias 1.4-6 [Midr. de Sl 104.25 diz: “Onde o termo ‘terremoto’ ocorre na Escritura, ele denota o caos entre [a queda de] um reino e [o surgimento] de outro”). O próprio texto de Apocalipse 6 destaca o juízo sobre “os reis da terra” (6.15), só então seguido pelo de outros representantes da humanidade.
No entanto, alguns textos do AT parecem usar a linguagem da catástrofe cósmica de maneira mais “literal” (v., e.g., Sl 102.25,26; Is 24.1-6,19-23; 51.6; 64.1; Ez 38.19,20; Ag 2.6,7). Uma renovação radical do cosmo sem dúvida é prevista em outras passagens de Apocalipse, mais notadamente em 20.11— 22.5. E, se o cenário de Apocalipse retrata o início do Juízo Final, como defendem muitos comentaristas, uma compreensão mais “literal” da imagem seria preferível, ou podemos interpretá-la como uma cena figurativa do início do juízo final literal. Seja qual for o caso, a linguagem da dissolução universal no AT é aplicada por analogia ao juízo definitivo do cosmo. Esses cenários do AT podem até ser prenúncios do Juízo Final.
Apocalipse 6.15 — O único texto do AT (LXX), em que ocorre a combinação de “príncipes”, “reis” e “nobres” é Isaías 34.12 LXX, que é quase idêntico aos três primeiros grupos mencionados em 6.15a (cf. Sl. 2.2), como já observamos. À semelhança de Isaías 34, também aqui os grupos são alvo do juízo divino porque participam de forma ativa do sistema mundial corrupto, que deve ser destruído. Em ambos os casos, o motivo específico do castigo é a perseguição ao povo de Deus (cf. Is 33.1—34.13; 35.1-4; Ap 6.9-12). Fica evidente também que eles serão julgados por causa da idolatria, a partir da menção de que “esconderam-se nas cavernas e nas rochas das montanhas [6.15b] [...] da face do que está assentado no trono e da ira do Cordeiro [6.16b]”, o que se baseia num entendimento tipológico do juízo de Deus sobre os israelitas idólatras, em Isaías 2.10,18-21 (uma descrição semelhante, de Jr 4.29, pode ser incluída nessa inferência tipológica [cf. Jr 4.23-28; 5.7]; v. tb. Is 24.21).
Apocalipse 6.16 — Os habitantes da terra, desesperados, apelam “aos montes e rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos”. Esse clamor é uma alusão a Oseias 10.8b, que, como Isaías 2, diz respeito ao juízo sobre os idólatras e os retrata buscando refúgio da ira divina em montanhas e rochedos: “Dirão aos montes: Cobri-nos! E às colinas: Caí sobre nós!” (cf. Os 10.1-3,8; 11.2). O quadro semelhante de Jeremias 4.29 também está incluído nessa alusão, o que reforça a ideia do juízo sobre os idólatras que tentam se esconder da ira de Deus em Apocalipse 6.16 (cf. Jr 4.23-30; 5.7). Subjaz a Apocalipse 6.16, e até mesmo aos textos de Oseias e de Jeremias, uma alusão a um incidente de Gênesis 3, quando Adão e Eva se esconderam “da presença do Senhor Deus” (3.8). Deus, portanto, planejou encerrar a história do mesmo modo em que ela começou.
Apocalipse 6.17 — Uma vez que a cena da conflagração cósmica de Joel 2.10,31 também está parcialmente por trás da imagem que introduz o segmento de 6.12-17 (6.12), é conveniente que a conclusão desse segmento seja uma alusão que também conclui a descrição de Joel 2.10: “O dia do Senhor é grande e terrível! Quem o suportará?” (J1 2.11). A descrição de Joel é complementada em 6.17 por uma expressão do oráculo de juízo contra Nínive, em Naum 1, encerrado também com um quadro simbólico da queda cataclísmica do mundo: “Os montes tremem diante dele, e [...] a terra fica devastada diante dele [...]. Quem pode resistir ao seu furor? Quem pode subsistir diante da fúria da sua ira?” (1.5,6 [cf. 1.4]). O juízo de Naum está ligado à idolatria da nação (Na 1.14; tb. Midr. Rab. de Êx 29.9). Essas alusões ao AT, em seus respectivos contextos, são representações simbólicas do juízo divino sobre Israel ou Nínive, ambos já cumpridos historicamente. Aqui eles são considerados prenúncios do Juízo Final (para o mesmo tipo de uso contextual, cf. Is 13.9; Sf 1.14,18; 2.2,3; Ml 4.5, que pode ser contexto adicional para a expressão “porque chegou o grande dia da ira deles”, em Ap 6.17a).
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