Estudo sobre Filipenses 2:13
Filipenses 2:13
Causa, porém, grande surpresa a solicitação: “com temor e tremor desenvolvei a vossa salvação”. Mais surpreendente ainda é sua justificativa: “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar.”
Nossa primeira impressão é um extasiante contraste com a linha básica da proclamação bíblica protestante que conhecemos. Porventura não dizemos e ouvimos com toda a clareza, e de forma bem unânime, independentemente de sermos “luteranos”, “reformados” ou “pietistas”: “Você não pode fazer mais nada, Jesus já realizou tudo; está consumado, está consumado”? Você não pode contribuir nem mesmo com o menor gesto para a sua salvação, só é possível aceitá-la como presente soberano da sempre eficiente graça. Sim, até mesmo esse “aceitar”, esse “poder crer” não é sua realização, mas obra de Deus pelo Espírito Santo! Será que é sobre isso que repousa toda a certeza de nossa salvação? Pois de repente surge a afirmação: “Desenvolvei a vossa salvação”. A forma literal é ainda mais forte: “Efetuai, produzi vossa salvação”? Seria isso tão sério, tão gravemente decisivo que precisa acontecer “com temor e tremor”? Paulo, como és capaz de afirmar isso? Assim não estás derrubando tudo o que ensinaste antes? Que pretendes dizer com isso? Como, afinal, faríamos isso?
Ficamos quase mais perplexos ainda quando Paulo, no mesmo instante, adiciona bruscamente a concepção que nos é familiar: “Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar.” Muito bem, Paulo, retornaste novamente ao trilho habitual, essa é a mensagem salvadora da Reforma. Contudo – como podes dizer simultaneamente e colocar lado a lado ambas as coisas?! Afinal, somente uma ou outra pode prevalecer! Ou é Deus quem efetua tudo, a salvação (de forma objetiva) e também o “querer” (de forma subjetiva) - e então não temos mais nada a fazer, então é tudo pura graça. Então posso no máximo admitir o agir de Deus e (como diziam os antigos dogmáticos) “não lhe colocar uma tramela”. Ou tenho de pessoalmente “produzir minha salvação”, ação e assunto meus, e os velhos teólogos judaicos terão razão por terem considerado Deus apenas como juiz daquilo que nós humanos fazemos ou deixamos de fazer. Então igualmente entenderemos o “com temor e tremor”, que faz parte da “lei”, porém não do “evangelho”.
A teologia muitas vezes entrou nesses trilhos da lógica clara, e evidentemente é esse o seu grande equívoco. Dessa forma ela representa uma theologia irregenitorum típica, uma “teologia de não-renascidos”, uma teologia que observa Deus e o ser humano de fora, como “objetos” de suas pesquisas e dissecações (mas, de um ou outro modo, também é “teólogo” todo o “leigo” que reflete sobre essas questões e lê a Bíblia atentamente). Do ponto de vista de quem está envolvido, a partir da experiência real no Espírito Santo a figura é bem diferente. Ou seja, igual à imagem que Paulo deixa explícita neste versículo, quando as duas afirmações na verdade não são sobrepostas, mas relacionadas por meio de um “porque”, mais precisamente de forma a estabelecer na atuação de Deus o fundamento de nossa prática com temor e tremor. Por ser o próprio Deus aquele que causa em nós tanto o querer como o realizar,[35] justamente por isso desenvolvei vossa salvação com temor e tremor. Aqui nossa “lógica” fracassa porque se trata de processos vitais que transcendem qualquer lógica. No entanto, é de suma relevância para nossa vida pessoal de fé e para nosso serviço a outras pessoas que captemos esses processos vitais de forma correta e compreendamos sua estranha “lógica” própria. Conseqüentemente, o presente texto torna-se um teste decisivo para nós. Quem ainda tropeça em alguma parte dele, quem ainda não concorda íntima e totalmente com isto, quem ainda vê alguma “contradição” aqui, esse precisa perguntar a si mesmo se não está de fato também contemplando o evangelho “de fora para dentro”, tendo refletido apenas teoricamente sobre sua mensagem mas não vivenciado os processos reais da experiência da salvação. Afinal, não somente a presente passagem o deixará perplexo, pois todo o NT o confrontará com o fato de que a grande linha “da Reforma” (“Só Deus realiza tudo, tudo é pura graça, o ser humano não é nada!”) é permeada pelo mais intenso apelo à ação decisiva do ser humano. É óbvio que, diante do conjunto do NT, não se pode buscar uma solução que involuntariamente não leve as passagens do segundo tipo tão a sério, colocando-as de lado, entendendo-as apenas “pedagogicamente” como caminho rumo ao desespero do ser humano consigo mesmo, ou até mesmo depreciando-as como porção não plenamente “evangélica” do NT. Só aquilo que o NT ensina sobre a atuação exclusiva de Deus e a passividade total do ser humano é a verdadeira palavra de Deus, com base na qual todo o restante precisa ser aquilatado. Contudo – dessa forma não conseguimos chegar a uma solução no presente texto. De forma muito nítida e inequívoca consta aqui: só Deus atua e concede o querer e o realizar, mas justamente por isso o ser humano não é passivo, irrelevante, mas convocado para a máxima atividade responsável![36]
Em 1Co 2.1-6 oferece-se um importante paralelo com o presente texto, só que transportado da vida de fé pessoal para o serviço de proclamação. Lá aparece o mesmo “temor e tremor”.[37] A fé dos coríntios não se deve alicerçar “sobre sabedoria humana, mas sobre a força de Deus”. Por isso a própria atuação de Deus está em jogo em Corinto, a “demonstração de Espírito e poder”. Pois bem, nesse caso Paulo certamente poderá dirigir-se calma e serenamente para Corinto. Ou Deus age, gerando fé pelo Espírito e pelo poder de Deus (e então tudo estará bem mesmo sem a colaboração de Paulo), ou Deus não age (e então Paulo igualmente não poderá fazer nada). Não, usando a mesma “lógica” da presente passagem, Paulo realiza seu trabalho em Corinto “com temor e tremor”, justamente porque ali o próprio Deus vem operando. Encontra-se em Corinto com temor e tremor, não por lhe faltar a demonstração de Espírito e poder, mas porque está presente nesse local, como sempre está em seu trabalho evangelizador (inclusive em Atenas!).
No fundo a solução da questão é bastante simples, tão logo nos distanciemos integralmente do conceito romano da gratia infusa, da “graça infundida” (derramada para dentro), que faz de nós meras vasilhas mortas, e da graça divina, uma espécie de substância. Em sua atuação Deus nos valoriza como pessoas vivas! Por isso ele não gera em nós quaisquer qualidades imóveis mas, como a presente passagem declara com tanta clareza, o “querer”. Para quê, porém, existe o “querer”? Justamente para que agora de fato também “se queira” seriamente! No âmbito da graça e do Espírito Santo, nada ocorre de forma diferente do que na criação. Não somos nós que fazemos olhos para nós mesmos, produzindo visão. O olho que vê é unicamente dádiva maravilhosa de Deus. No entanto, uma vez que temos essa dádiva, vejamos de fato, utilizemos nosso olhos! A forma de lidar com os olhos, o que e como vemos, é nossa máxima responsabilidade pessoal! Isso ocorre ainda mais no caso do mais glorioso e supremo presente de Deus ao redimir o ser humano. A atual passagem mostra quanto Paulo distava de mera “justificação forense”. Deus não traslada um ser humano não-mudado simplesmente para um “estado da graça”, mas Deus agracia de tal forma que cria um novo querer no ser humano. Realmente, nenhum de nós poderá ter no coração o menor anseio por salvação se Deus não nos despertar previamente da condição de “mortos em pecados e transgressões” (Ef 2.1) e nos atrair para a salvação. A cada um, porém, em quem Deus realizou isso, cumpre dizer agora com máxima seriedade: não brinque com essa salvação, siga-a realmente, não deixe escapar essa hora da graça, justamente porque ela não é apenas seu próprio “estado de ânimo”, sua própria “ideia”, mas a atuação decididamente divina em seu coração. O querer gerado por Deus – que responsabilidade isso traz para nós! Realmente só podemos aproveitar esse querer “com temor e tremor”, em sagrada seriedade! Isso se repete em todos os estágios da vida de fé, do “querer” até o pleno “realizar” (Cf. F. Rienecker, Biblische Kritik am Pietismus [1952], p. 72ss).
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Justamente porque Deus realizou tanto nos filipenses, porque sua atual situação de fé demonstra tanta graça viva e gloriosa de Deus, porque essa situação não é obra deles mesmos, mas do próprio Deus, por isso eles não devem lidar com ela negligentemente, não devem destruir a obra de Deus, mas precisam investir em sua salvação um agir pleno e resoluto, vivendo constante e plenamente nessa graça; precisam de fato e com persistência “querer” com essa vontade gerada por Deus, executar obedientemente o agir com que Deus os presenteou. A imagem de Jesus que Paulo acaba de delinear para os filipenses com certeza ainda está diante dele próprio. Mesmo o Filho só possui tudo o que é e tem por tê-lo recebido do Pai como dádiva de graça e amor. Isso, porém, não fez com que o Filho se tornasse inativo, fruindo belas e agradáveis dádivas de sua propriedade, mas trilhou com elas a grandiosa trajetória de serviço e obediência, não para se tornar “Filho” por meio dessas “realizações”, mas porque já o era. É assim que Paulo vê o caminho de seus “amados” em Filipos. A soberana graça atuante de Deus, que havia redimido pecadores perdidos sem qualquer obra e mérito pessoais, não pode seduzir os filipenses a agirem com negligência, mas deve conduzi-los ao empenho máximo: porque Deus deu o querer, queiram com toda a força; porque Deus concedeu o realizar, também realizem com obediência total![38]
Quando voltaremos a dizer isso às igrejas (e a nós mesmos!), ao invés de consolá-las (e a nós!) mortalmente com uma falsa doutrina da graça baseada em uma teologia equivocada?
O adendo “por causa do aprazimento” é mantido na tradução literal porque não há como fazer uma interpretação unívoca. A preposição grega hyper = “por” pode expressar tanto o alvo como a causa de algo. Portanto, a intenção Paulo pode ter sido dizer: ajam de tal maneira que alcanceis o beneplácito divino.[39] No entanto, o “aprazimento” de Deus certamente deve ser entendido apenas como “deliberação da sua graça”, seu desígnio soberano, fundamentado unicamente em seu próprio agrado, e então referido à atuação de Deus em dar o querer e o realizar. Logo Paulo visa recordar – como faz com frequência – o mistério que sempre paira sobre o agir gracioso de Deus. Por ser “graça”, não pode estar alicerçado sobre a excelência, qualquer que seja, dos que a recebem. Por que essa graça de querer e realizar foi proporcionada justamente aos filipenses, justamente a esse pequeno grupo em Filipos? Mais uma vez não podemos usar a nossa “lógica” e constatar o reverso desta medalha: que Deus negou este “querer” aos demais, ou seja, destinou-os à condenação. Contudo, olhando para o estado vivo da graça em nós ou em outros só podemos afirmar, em adoração: isso de maneira alguma aconteceu por causa de algum privilégio que nós mesmos apresentamos, mas “por causa do aprazimento”, porque assim agradou a Deus, porque sua soberana graça o quis assim. Precisamente isso aumenta nossa responsabilidade, justamente isso nos leva a aplicar com pleno engajamento e ainda maior “temor e tremor” aquilo que Deus nos concedeu segundo o eterno desígnio de sua graça. Que juízo cairia sobre nós se perdêssemos e não aproveitássemos corretamente o que Deus despertou e criou em nós com uma bondade tão franca! É disso que Paulo quer preservar seus amados filipenses.
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Filipenses 2:13
Notas:
35. Dessa “atuação” (em grego, enérgeia e energein, de onde se origina nosso termo “energia”) de Deus (mas também de Satanás) falam, p. ex., também 1Co 12.6; 2Co 4.12; Gl 2.8;3.5; 5.6; Ef 1.19s; 2.2; 3.20; Cl 1.29; 2.12; 1Ts 2.13; 2Ts 2.7,9. Em todas essas passagens fica imediatamente explícito que a “atuação” de Deus (e de Satanás) não nos deixa passivos, mas nos lança na atividade própria.
36. Na pessoa do próprio Paulo, 1Co 15.10 nos concede uma visão dessa “lógica”!
37. A expressão “com temor e tremor”, que também ocorre em 2Co 7.15 e Ef 6.5, representa uma formulação um tanto fixa que se associava facilmente ao conceito da obediência, ou remonta intencionalmente em Paulo a declarações como Dt 2.25; 11.25; Sl 2.11; Sl 55.5; Is 19.16, nesse caso recordando que “temor” e “tremor” constituem a reação involuntária e necessária do ser humano no encontro com a realidade de Deus. Nesse caso caberia aproveitar também textos como Is 6.5; Lc 2.9; Mc 16.8. Os escravos precisariam de “temor e tremor” frente aos senhores, porque também no caso deles se trata de uma obediência “perante Deus”. Essa interpretação demonstraria de forma explícita que justamente pelo fato de a atuação de Deus não ser uma teoria dogmática, mas uma realidade vivenciada em Filipos, é que o zelo cheio de “temor e tremor” torna-se a única reação possível.
38. Pelo fato de Deus também conceder o “realizar” a situação dos cristãos em Filipos (e nossa!) é fundamentalmente diferente do que a situação de Rm 7.18! Por isso tampouco podemos nos reportar a Rm 7 para fugir do “realizar”, visando nos proteger contra a demanda de ação por meio das declarações deste texto.
39. Aliás, eudokia também pode designar a “boa vontade”, cf., p. ex., na presente carta Fp 1.15 e Rm 10.1; talvez também 2Ts 1.11. Até mesmo a conhecida passagem de Lc 2.14 é entendida nesse sentido por alguns pesquisadores: “pessoas de boa vontade”. O importante dicionário de Bauer corrobora esse entendimento da palavra e propõe a seguinte interpretação para o presente versículo: “para além da boa vontade”. Contudo, essa seria uma utilização muito incomum de hyper com o genitivo, e o sentido obtido nem mesmo seria tão bom. Nesta passagem a eudokia deverá ser vista na linha de Mt 11.26 e Ef 1.5,9, na qual se insere, a nosso ver, também Lc 2.14.