Estudo sobre Filipenses 2:7

Filipenses 2:7


O “pensar” que habitava o coração do Filho não permaneceu oculto ali, mas manifestou-se como ação, uma série de ações. Ele “a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de escravo”. O começo de tudo foi a obra do arqui-inimigo, que levou para o mundo sua rebelião satânica contra Deus, que fez com que o ser humano caísse, arrastando assim toda a criação para uma nefasta miséria. Neste trecho, porém, Paulo não diz nada disso. Seu olhar dirige-se exclusiva e integralmente para o agir de Jesus em si, que é visto unicamente em sua relação com Deus. Isso é muito salutar para nós, que, por natureza e egoistamente, consideramos Jesus apenas como “nosso” Salvador, sempre aquilatando somente o que seu agir renderá para nós, esquecendo-nos por isso que ele era o “Filho” cujo amor foi devotado primeiro ao Pai e tinha em vista primeiramente o direito de Deus, a honra de Deus e a causa de Deus. Também nesse aspecto deixemo-nos envolver pelo pensamento que havia em Jesus Cristo, acompanhando o raciocínio de Paulo, com a ajuda iluminadora do Espírito Santo!

Entretanto – será que um pobre pecador seria capaz de ler tudo isso sem ao mesmo tempo ouvir nas profundezas de seu coração quebrantado e admiravelmente ditoso em tudo o “Por tua causa!”, “Por tua culpa!”, “Por ti!”? O exemplo de Jesus não se torna eficaz somente pelo fato de que nós, miseráveis, orgulhosos, desobedientes, estamos envolvidos nessa história de Jesus, porque ele a sofreu por nós? Porém, com toda a certeza Paulo não pretende nos lembrar disso. Ele não é um teólogo de abstração, que ao mencionar a morte de Jesus na cruz seria capaz de repentinamente se esquecer de tudo o que sempre anunciara sobre o significado salvador dessa morte. Um pecador na verdade somente é capaz de ler esses versículos da carta aos Filipenses de joelhos, agradecendo àquele que trilhou esse caminho para sua salvação. Mas justamente então podemos nos alegrar em adoração pelo fato de que nosso Redentor é o Filho de Deus, cujo relacionamento com Deus, conforme mostrado aqui por Paulo, constitui o fundamento imprescindível de nossa redenção.

Em nós pode haver um profundo abismo entre o que pensamos e como agimos. É essa a nossa miséria que Paulo descreveu em Rm 7.14 ss. Não vemos nada desse abismo em Jesus. Seu pensamento torna-se ação integral. Ao abrir mão de tudo, comprova que não considera nada do que o amor de Deus lhe concedeu como “roubo”; ele abre mão de tudo de forma tão completa que adquire a “figura de um escravo”, a quem não pertence nada, nem mesmo seu próprio corpo e sua própria vida. Não deixa de ser relevante notar que Paulo não tenha escrito “assumiu figura de escravo esvaziando-se”, mas: “esvaziou-se, assumindo forma de escravo”. O “despojar-se” é o processo fundamental e decisivo que tornou realidade o “não considerar um roubo”. Aceitar a figura de escravo apenas caracteriza a profundidade à qual o esvaziamento chegou. Talvez devêssemos dar preferência à tradução literal e rude “tornou-se vazio” ou “tornou-se em nada” em lugar da expressão “ele se esvaziou”, que já se tornou “bela” e “edificante” pelo longo costume cultual. É assim, portanto, que precisamos ver Jesus, o ser humano Jesus na terra! “Homem-Deus” não é a mesma coisa que “metade humano, metade Deus”. Jesus na verdade não é um filho de deuses disfarçado, que “na realidade” esconde puro ouro e prata debaixo de seu precário invólucro. Sem dúvida persiste o fato incrível sem o qual não haveria salvação para nós e o mundo: esse ser humano Jesus é Deus! Embora a expressão grega “morphé de Deus” e “morphé de um escravo” sugira essa associação no nosso idioma, não há nenhuma “metamorfose” nesse processo. Não se trata de “transformação” de “substâncias”. A tradução “embora tenha estado em forma divina” não nos deve levar a equívocos. “Existir em forma de Deus” é algo eterno e imperdível em si mesmo. Mesmo sobre o ser humano Jesus na caminhada da paixão, e justamente ali, paira a afirmação divina “Este é meu Filho amado, no qual me comprazo”.


Mas a divindade tampouco foi revestida do invólucro irrelevante da humanidade. Há seriedade total na encarnação. Por isso Paulo acrescenta “tornando-se em semelhança de humanos” e “reconhecido em estatura como humano”. O termo grego para “tornar-se” possui múltiplos sentidos. Pode expressar simplesmente: “veio a ser um ser humano igual a outros” (Heinzelmann). Mas também tem a conotação de “vir, apresentar-se”, de forma que significaria: “apresentou-se em figura humana” (Weizsäcker). E por fim também se refere especificamente ao nascimento: “nascido à imagem dos humanos” (Schlatter)! As três traduções mostram como pode ser difícil captar e reproduzir corretamente as palavras gregas. Não é possível chegar a uma decisão meramente por razões linguísticas. Mas, independentemente da versão escolhida, precisamos enxergar o ser humano Jesus em toda a sua existência na terra dessa forma: esvaziado, “figura de Deus” em “figura de um escravo”. Isso não pode ser captado com a razão, aqui fracassam todas as categorias da “doutrina das duas naturezas”. A “figura de Deus” e a “figura do escravo humano” estão simultaneamente presentes em Jesus. Não do ponto de vista da “substância”; somente conseguiremos começar a entender isso usando figuras, p. ex., imaginando um pai que, ao lidar com o filho, “existindo na qualidade de adulto se esvazia e assume o modo de ser de uma criança”. Podemos declará-lo somente por meio da mais audaciosa contradição mental: a verdadeira divindade de Jesus é justamente despir-se de toda a “divindade” e escolher a figura de escravo. É justamente disso que é capaz somente quem é participante do poder criador de Deus: para qualquer outro isso seria um mero jogo de “disfarce”. Contudo, o que não pode ser “imaginado” apesar de tudo aparece diante de nós com toda a simplicidade e constantemente cativa o coração que adora e canta na igreja de todos os tempos. É assim que a criança jaz na manjedoura: ele, existindo em forma de Deus – uma indefesa e frágil criança como todos os filhos humanos, totalmente esvaziada de qualquer soberania e magnitude, precisando de fraldas. É assim que ele aparece na tentação: será que o Filho de Deus precisa sofrer fome? Sim, porque um escravo não se serve de pão, mas possui somente o que seu senhor lhe dá. É assim que ele se mostra em seu serviço: “O Filho não pode fazer nada por si mesmo” e “Essa é minha comida, que eu faça a vontade daquele que me enviou e conclua a obra dele”. Por isso não veio como “senhor” para que lhe servissem, mas para servir e render sua vida. Por isso realiza a pequena obra na terrinha da Palestina em meio ao obstinado povo de Israel, deixando que o sobrecarreguem com todos os fardos da miséria humana. Por isso pende da cruz, privado das roupas, mãos e pés pregados, totalmente esvaziado, totalmente escravo, a quem não pertence nem mesmo o próprio corpo, em impotência absoluta, presa indefesa das dores e da morte – ele, que detinha o poder e a glória de Deus. Contudo, somente por isso essa vida humana e essa morte são algo totalmente diferente dos inúmeros destinos sofridos que seres humanos suportam neste terrível mundo. Essa vida humana, essa existência de escravo e essa morte foram escolhidas livremente por aquele que dispunha do direito de ser igual a Deus. Por isso ela é a glorificação do Pai por meio do Filho, por isso ela é minha salvação e a redenção do mundo inteiro.

Diante disso, porém, será que haveria pessoas em Filipos que deveriam doar, ceder, tornar-se humildes, mas que declarariam: “Não se pode exigir isso de mim. Isso é demais para minha boa vontade!”? Será que qualquer um deles, Paulo ou os filipenses, ainda pode reivindicar quaisquer direitos no serviço a esse Jesus? “Esvaziar-se”, renunciar, tornar-se pequeno – será que ainda seria difícil agir assim depois de ouvir acerca desse Jesus e da forma com que ele abriu mão do que tinha: passando da forma divina para figura de escravo? Será que esse incrível salto para as profundezas poderia ser comparável ao salto de um pecador perdido e condenado para se tornar escravo desse Jesus? Se em algum momento houver problemas com a concórdia e comunhão dos irmãos porque alguma coisa ainda está sendo retida, então Jesus ainda não foi corretamente apreendido. É justamente por isso, não para escrever capítulos de uma obra doutrinária, que Paulo mostra Jesus aos filipenses.