Estudo sobre Filipenses 2:5-6

Filipenses 2:5-6


Está em jogo o “exemplo” de Jesus. “Tende consideração em vós por aquilo que também (havia) em Jesus Cristo”! Mas não se trata do exemplo de uma “pessoa nobre” à qual devotamos “admiração” sem que nós mesmos sejamos mudados. Aqui somos confrontados com uma história extraordinária. Evidentemente ninguém pode provar que isso é “história”, e não “mito”. Cada indivíduo, porém, deveria conscientizar-se com toda a simplicidade de que todo esse testemunho perderia o valor e a força se fosse apenas “mitologia”, e não história. As ações e as experiências de um personagem mitológico deixam-me completamente indiferente. Na verdade não tem nada a ver comigo. Se o caminho aqui descrito tiver realmente sido trilhado por Jesus, o Jesus a quem conheço, a quem amo, a quem pertenço, porque ele é “meu” Jesus, meu Redentor, minha “vida”, somente então o aqui relatado mexerá com todo o meu ser. Então receberei algo que nenhuma filosofia existencial é capaz de me proporcionar, mas que todos aqueles que leram essas palavras de coração aberto na longa história da igreja de Jesus receberam. Paulo evidentemente não faz nenhuma tentativa para “demonstrar” a veracidade de todas essas afirmações. Não é possível provar - somente é possível ouvir e captar pela fé mediante o Espírito Santo.

Essas informações não se referem a um ser humano, por mais nobre e eminente que tenha sido, mas sobre aquele de quem é preciso afirmar: “Ele, existindo em forma de Deus, não considerou roubo o ser igual a Deus.” Existindo em forma de Deus – ouvimos esse límpido testemunho de inúmeras maneiras no NT: ele é o “Verbo” que “estava com Deus” e era “Deus por natureza”, diz João. Ele “é a réplica exata do ser de Deus, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder”, diz a carta aos Hebreus. Ele é a “imagem do Deus invisível”, “por meio dele e em direção dele foram criadas todas as coisas”, diz a epístola aos Colossenses [1.15s]. Jesus participa da divindade de Deus, Jesus possuía a “imagem de Deus” pelo fato de que o próprio Deus se expressou nele, de Deus ter apresentado nele uma réplica de seu ser, sua imagem diante de si, de que por meio dele Deus proporcionou origem e alvo ao universo e à riqueza que abrange coisas visíveis e invisíveis. Obviamente ninguém é capaz de “entender” isso. Quem ousaria captar os mistérios últimos de Deus! Mas na realidade todo o evangelho repousa sobre o fato de que em Jesus está conosco aquele que veio do coração do Pai. Para Paulo esse mistério é tão inteiramente verdadeiro que ele não o explica nem interpreta, somente dizendo uma breve palavra acerca dele: “existindo em forma de Deus”. No entanto não cabe compreender a “forma” como oposta ao “ser”. O termo grego morphé expressa justamente a “essência”. Jesus era partícipe do “jeito” de Deus. Bela é a formulação de Lutero: “O Filho do Pai, Deus por natureza…”

Agora, porém, Paulo se torna eloquente! Não cabe penetrar nos insondáveis mistérios do ser de Deus, mas no coração, no “pensar” de Jesus. Maravilhoso: enquanto toda a doutrina da Trindade da igreja só consegue fazer tentativas de delinear (e no máximo com termos negativos) os mistérios da natureza de Deus, mas sem aproximá-la de nosso entendimento – aqui podemos compreender! O que constatamos no coração do Filho de Deus? Como ele se apercebe de sua existência divina? Todos conhecemos em nós mesmos o doce sentimento de enlevo com o qual nos damos conta de nossos dons e capacidades, de nossa posição e nossa influência. Sabemos que consideramos tudo como nossa propriedade, agarrando-a a defendendo-a com tenacidade. Sendo o Filho, a partir de Deus, fundamento e alvo de todas as coisas, como ele deve refestelar-se nisso, como ele deve desfrutá-lo, exercendo seus direitos de soberania! Sim, temos uma noção do que significa o fato de que o olhar para dentro do coração do Filho revela algo completamente diferente: “Ele, existindo em forma de Deus não considerou um roubo ser igual a Deus.”


Meditou-se muito sobre a curiosa expressão “não considerou um roubo”. O termo em si pode referir-se tanto ao ato de roubar quanto ao produto do roubo, os despojos, ou ainda, em sentido mais brando, também a um presente do acaso, a um achado de sorte. Os dois últimos significados resultariam no seguinte sentido nesta passagem: Jesus não considerava o “ser igual a Deus”, a existência em forma de Deus, como algo que tivesse de ser segurado e aproveitado como um roubo ou como uma coincidência. Essa acepção já é suficiente para nos atingir de forma poderosa: agarramos, dilapidamos e usufruímos nossa vida e nossa sorte realmente como um “roubo”. No entanto, será que esse texto e a estranha escolha da expressão não são também iluminados por uma luz muito diferente se levarmos em conta que Paulo conhecia bem o sedutor que havia tentado os humanos no paraíso com o “ser igual a Deus”, pois esse desejo violento e rebelde ardia também em seu próprio coração? Satanás de fato considerava um roubo ser igual a Deus! Sob essa ótica a primeira frase deste texto já teria em vista a história da salvação no tocante à primeira queda e ao arqui-inimigo. Afinal, toda a trajetória de Jesus descrita por Paulo tornou-se necessária somente por causa da queda do ser humano e por sua profunda miséria. O causador dessa queda, que foi enfrentado pelo próprio Miguel com um “Quem é como Deus?!”, o arqui-inimigo que tentou roubar para si e usurpar o “ser igual a Deus”, é combatido pelo anulador da queda, o Filho, que era legítimo proprietário da forma de Deus e não a transformou em “roubo”, contrastando radicalmente com o pensamento mais íntimo do inimigo. Para ele, ser igual a Deus é puro presente do amor. A cada instante ele encara este presente como dádiva maravilhosa de forma tão pura e integral, que o seu próprio desejo é possui-la somente nessa mais íntima das liberdades, que não levanta a menor “reivindicação” por ela e não procura apegar-se a ela com todas as forças. Deve-se, porém, ponderar seriamente também a interpretação da passagem que não entende que “ser igual a Deus” é igual a “existência em forma de Deus”, mas uma igualdade de dignidade e poder que o Filho possuía mesmo naquele tempo, porém da qual ele também não tentava apoderar-se pela violência. “Considerar um roubo” passa a ter, então, seu pleno significado original. Nessa interpretação Jesus é, de forma ainda mais marcante, o oposto de Satanás. Em seu coração não há a pergunta invejosa que impelia Satanás: “Por que eu, supremo ser divino, não deveria possuir igualdade plena de poder e dignidade?”! Pelo contrário, envereda pelo caminho oposto: em lugar de tentar agarrar a igualdade com Deus ele escolhe despojamento e obediência e torna-se “Javé-Jesus”, diante do qual se dobram todos os joelhos. Ó íntima mentalidade do coração do Filho de Deus, como te admiramos! Prostramo-nos diante de ti! De ti brotou tudo o que vemos diante de nós em tua obra temporal. Essa mentalidade é a luz julgadora sob a qual nos compete colocar nosso próprio coração. E mais: a obra do Filho é exatamente que sejamos purificados da mentalidade satânica, que nos infesta, e inseridos nesse pensamento de Jesus. “Tende consideração em vós por aquilo que também (havia) em Jesus Cristo!” É assim que eles, os “santos em Cristo Jesus” em Filipos, podem conviver uns com os outros, de modo que ninguém mais, em seu coração, considere como roubo a posição, a capacidade ou a propriedade que tem, de maneira medrosa ou impertinente.