Agathós (“bom”, “excelente”, “virtuoso”) – Dicionário Teológico Grego do Novo Testamento

ἀγαθός

(agathós – “bom”, “excelente”, “virtuoso”)

Καὶ µὴν τό γε ἀγαθόν, τοῦτο τῆς θύσεως πάσης τῷ ἀγαστῷ βούλεται τὸ ὄνοµα ἐπικεῖσθαι (Kaì mḕn tò ge agathón, toûto tês thýseōs pásēs tôi agastôi boúlētai tò ónoma epikeîsthai) — “E com efeito, o nome ‘bom’ é aquele que a natureza inteira deseja que seja atribuído ao admirável” (Platão, Crátilo 412c).

A palavra grega ἀγαθός (agathós), tanto como adjetivo quanto como substantivo (τὸ ἀγαθόν, tò agathón – “o bem”), expressa valor, excelência e qualidade moral ou prática de algo ou alguém. Platão, ao tratar do tema, chega a propor uma etimologia simbólica para explicar essa conexão com o que é digno de admiração. Assim, podemos observar que:

1. Quando funciona como adjetivo, agathós significa “excelente”, “bom” ou “virtuoso”. É uma ideia formal, cujo significado exato depende do substantivo que acompanha. Quando associado a pessoas, descreve sua competência ou excelência em determinada função. Por exemplo: ἀγαθοὺς τέκτονας, χαλκέας ἀγαθούς, ζωγράφους ἀγαθούς, ἀνδριαντοποιούς, καὶ τὰ ἄλλα τὰ τοιαῦτα [agathoùs téktonas, chalkéas agathoús, zōgráphous agathoús, andriantopoiοús, kaì tà álla tà toiaûta] — “bons carpinteiros, bons ferreiros, bons pintores, bons escultores e outros semelhantes” (Xenofonte, Oeconomicus 6.13). Um exemplo semelhante aparece no Novo Testamento: δοῦλε ἀγαθέ (doûle agathé – “servo bom”, Mateus 25:21).

2. Aplicado a coisas, esse adjetivo indica a qualidade positiva do objeto mencionado. Exemplos disso incluem ἀγαθὴ γῆ (agathḕ gê – “boa terra”), termo usado com frequência na Septuaginta para descrever a terra dada a Israel; δένδρον ἀγαθόν (déndron agathón – “árvore boa”, Mateus 7:17); ou ainda δόµατα ἀγαθά (dómata agathá – “bons dons”, Mateus 7:11).

3. Essa excelência pode ser especificada por um acusativo que indique a área ou relação à qual se refere, como na frase: ἐγένοντο καὶ τέχνας καὶ λόγους καὶ πολέµους ἀγαθοί [egénonto kaì téchnas kaì lógous kaì polémous agathoí] — “tornaram-se bons em artes, discursos e batalhas” (Xenofonte, Venationes 1.14).

4. Quando usado como substantivo, τὸ ἀγαθόν ou τὰ ἀγαθά (tò agathón, tà agathá – “o bem”, “os bens”) designa aquilo que está ligado ao bem-estar humano. O conteúdo desse conceito depende da compreensão que se tem da vida. Em Lucas 12:18, por exemplo, vemos o uso de τὰ ἀγαθά (tà agathá) referindo-se a bens materiais, a partir de uma visão mais voltada às posses. Um paralelo aparece em Xenofonte: χώρα … µεστὴ … οἰῶν καὶ αἰγῶν καὶ βοῶν καὶ ἵππων καὶ σίτου καὶ πάντων ἀγαθῶν [chṓra... mestḗ... oíōn kaì aigṓn kaì boṓn kaì híppōn kaì sítou kaì pántōn agathṓn] — “uma terra cheia de ovelhas, cabras, bois, cavalos, trigo e todos os bens” (Cyropaedia IV.4.4).

A filosofia grega mais espiritualizada, no entanto, rejeita essa definição materialista. Os céticos, por exemplo, afirmam: τὸ γένος τῶν περὶ σῶµα ἀγαθῶν ὡς µὴ ἀγαθῶν (tò génos tṓn perì sôma agathṓn hōs mḕ agathṓn) — “as coisas boas relativas ao corpo não são realmente boas” (Sexto Empírico, Adversus Mathematicos XI.46). Nessa perspectiva, o bem passa a se referir mais à esfera moral e espiritual. Tanto nos escritos religiosos do helenismo quanto nos textos bíblicos, os termos ἀγαθός e τὸ ἀγαθόν ganham o significado de “salvação”.

Com esse conjunto de sentidos fundamentais, as palavras ἀγαθός (agathós) e τὸ ἀγαθόν (tò agathón) se espalharam por todo o mundo de fala grega.

Significado da palavra grega AGATHOS, traduzida por "bom", "virtuoso" e "excelente" na Septuaginta e Novo Testamento.

A. ἀγαθός na filosofia grega

No campo da filosofia grega, marcada por uma visão essencialmente humanista da vida, o conceito de ἀγαθόν (agathón – “bem”) ocupa uma posição de destaque. O esforço filosófico concentra-se em compreender essa noção como o elemento fundamental que confere sentido à existência humana.

Demócrito, por exemplo, declarou: ἀνθρώποις πᾶσι τωὐτὸν ἀγαθὸν καὶ ἀληθές· ἡδὺ δὲ ἄλλωι ἄλλο (anthrṓpois pâsi tô autòn agathòn kaì alēthés; hēdù dè állōi állo) — “para todos os homens, o bem e a verdade são os mesmos; o que é prazeroso, porém, varia de pessoa para pessoa” (Diels, II, 77,1). Essa intuição é retomada por Platão, que em sua oposição aos sofistas — os quais igualavam o bem ao prazer — desenvolve a ideia do bem como sendo a ideia suprema, a mais elevada de todas.

No diálogo República, Platão afirma:

ἐν τῷ γνωστῷ τελευταία ἡ τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα καὶ µόγις ὁρᾶσθαι, ὀφθεῖσα δὲ συλλογιστέα εἶναι ὡς ἄρα πᾶσι πάντων αὕτη ὀρθῶν τε καὶ καλῶν αἰτία, ἔν τε ὁρατῷ φῶς καὶ τὸν τούτου κύριον τεκοῦσα, ἔν τε νοητῷ αὐτὴ κυρία ἀλήθειαν καὶ νοῦν παρασχοµένη, καὶ ὅτι δεῖ ταύτην ἰδεῖν τὸν µέλλοντα ἐµφρόνως πράξειν ἢ ἰδίᾳ ἢ δηµοσίᾳ

(en tôi gnōstôi teleutaía hē toû agathoû idéa kaì mó̱gis horâsthai, ophtheîsa dè syllogistéa eînai hōs ára pâsi pántōn haútē orthṓn te kaì kalṓn aitía, én te horatôi phôs kaì tòn toútou kýrion tekousa, én te noētôi autḗ kyría alḗtheian kaì noûn paraschoménē, kaì hóti deî taútēn ideîn tòn méllonta emphrónōs prâxein ḕ idíāi ḕ dēmosíāi)

“no mundo do conhecimento, a última ideia a ser percebida é a do bem, e é difícil enxergá-la; mas, uma vez vista, compreende-se que ela é a causa de tudo o que é correto e belo; no mundo visível, ela produz a luz e o senhor da luz, e no mundo inteligível ela é soberana, fornecendo verdade e entendimento. Aquele que deseja agir com sabedoria — em público ou em particular — deve contemplá-la” (República VII, 517bc).

Platão retoma esse pensamento em outro texto, afirmando: Οὐκοῦν εἰ µὴ µιᾷ δυνάµεθα ἰδέᾳ τὸ ἀγαθὸν θηρεῦσαι, σὺν τρισὶ λαβόντες, κάλλει καὶ εὐµετρίᾳ καὶ ἀληθείᾳ (Oukoûn ei mḕ miâi dynámetha idéāi tò agathòn thēreûsai, sún trisi labóntes, kállei kaì eumetríāi kaì alētheíāi) — “se não conseguimos alcançar o bem por uma única ideia, então que o busquemos por meio de três: beleza, proporção e verdade” (Filebo 65a).

Aristóteles, contudo, contesta a concepção platônica do bem como uma única e suprema ideia. Com base em sua teoria das categorias, ele argumenta que tanto o ser quanto o bem são conceitos múltiplos, e não únicos. Assim, dependendo da categoria, o “bem” assume significados diferentes: na categoria da substância, é a divindade ou o pensamento racional; na da qualidade, é a virtude; na da quantidade, é a medida; na da relação, é o que é necessário; e na do tempo, é o momento oportuno (Ethica Nicomachea I.4, 1096a, 11ss).

A partir dessa crítica, Aristóteles reconhece que o bem é um conceito formal, que exige conteúdo específico segundo a aplicação. Ao abandonar a noção de um bem único e universal, ele reforça a visão humanista da existência. Desse modo, desaparece a tonalidade religiosa ainda preservada por Platão, e o bem supremo é redefinido a partir da experiência humana. O fim último da vida, segundo Aristóteles, é a eudaimonía (εὐδαιµονία, eudaimonía – “felicidade”), e esta, por sua vez, é identificada com uma vida plena e bem-sucedida: τέλος τῶν ἀγαθῶν καὶ τελειότατον εἶναι, ἡ εὐδαιµονία, καὶ τοῦτο ταὐτό φαµεν εἶναι τῷ εὖ πράττειν καὶ εὖ ζῆν (télos tôn agathôn kaì teleiótaton eînai, hē eudaimonía, kaì toûto tautò phámen eînai tôi eu práttein kaì eu zē̂n) — “o fim e o mais completo entre os bens é a felicidade, que afirmamos ser o mesmo que agir bem e viver bem” (Ethica Eudemia I.3, 1148b, 7ss) [1].

Além disso, ele observa: Πᾶσα τέχνη καὶ πᾶσα µέθοδος, ὁµοίως δὲ πρᾶξίς τε καὶ προαίρεσις, ἀγαθοῦ τινος ἐφίεσθαι δοκεῖ· διὸ καλῶς ἀπεφήναντο τἀγαθὸν οὗ πάντ᾽ ἐφίεται (Pāsa téchnē kaì pāsa méthodos, homoiōs dè prâxis te kaì proaíresis, agathoû tinos ephíesthai dokeî; dió kalôs apephḗnanto tagathòn hoû pánt’ ephíetai) — “toda arte, toda investigação, toda ação e toda escolha visam algum bem; por isso, definiram corretamente o bem como aquilo para o qual todas as coisas tendem” (Ethica Nicomachea I.1, 1094a, 1ss; também em Ethica Eudemia I.1, 1182a, 32ss) [2].

O estoicismo, por sua vez, compartilha essa tendência humanista. Segundo Sexto Empírico, os estóicos definiam o bem assim: ἀγαθὸν δὲ κοινῶς µὲν τὸ τὶ ὄφελος, ἰδίως δὲ ἤτοι ταὐτὸν ἢ οὐχ ἕτερον ὠφελείας (agathòn dè koinôs mèn tò ti óphelos, idíōs dè ḗtoi tautòn ḕ oukh héteron ōpheleías) — “o bem, em termos gerais, é aquilo que é útil; de modo específico, é o mesmo que, ou não diferente de, utilidade” (Adversus Mathematicos XI.30). Diogenes Laércio repete a mesma definição (VII.94) [3].

A partir dessa concepção, surge a doutrina dos “bens” (ta agathá – “as coisas boas”). No estoicismo, esses bens são divididos em três categorias principais:

  • Os relacionados à alma: virtudes e ações nobres, como φρόνησις (phrónesis – sabedoria), σωφροσύνη (sōphrosýnē – autocontrole), δικαιοσύνη (dikaiosýnē – justiça), ἀνδρεία (andreía – coragem), e tudo o que seja virtude ou participe da virtude (Stobaeus, Eclogae II.57.19 W);
  • Os externos: amigos, homens nobres, filhos virtuosos, bons pais e coisas semelhantes;
  • Os neutros: o próprio homem sábio em relação a si mesmo (Sexto Empírico, Adversus Mathematicos XI.46) [4].

Os bens da primeira classe são considerados indispensáveis para alcançar a eudaimonía: καὶ τῶν ἀγαθῶν τὰ µὲν ἀναγκαῖα εἶναι πρὸς εὐδαιµονίαν, τὰ δὲ µή. καὶ ἀναγκαῖα µὲν τάς τε ἀρετὰς πάσας καὶ τὰς ἐνεργείας τὰς χρηστικὰς αὐτῶν (kaì tôn agathôn tà mèn anankaîa eînai pròs eudaimonían, tà dè mḗ. kaì anankaîa mèn tás te aretàs pásas kaì tàs energeías tàs chrēstikàs autôn) — “e entre os bens, alguns são necessários para a felicidade e outros não; os necessários são todas as virtudes e as ações úteis que decorrem delas” (Stobaeus, Eclogae II.77.6).

Quem possui tais bens é, por definição, uma pessoa boa: ἀγαθὸν … οὗ παρόντος ἀγαθοί ἐσµεν … Ἀλλὰ µὴν ἀγαθοί γε ἐσµὲν καὶ ἡµεῖς καὶ τἆλλα πάντα ὅσα ἀγαθά ἐστιν, ἀρετῆς τινος παραγενοµένης (agathòn... hoû paróntos agathoí esmèn... Allà mḕn agathoí ge esmèn kaì hēmeîs kaì tálla pánta hósa agathá estin, aretês tinos paragenoménēs) — “bom é aquilo cuja presença nos torna bons... e de fato somos bons, nós e todas as outras coisas boas, quando alguma virtude se faz presente” (Platão, Górgias 506cd).

O caminho até essa condição de bondade é a educação, cujo objetivo é mediar a φρόνησις (phrónesis – sabedoria prática), a partir da qual a ação correta flui naturalmente. No entendimento humanista da vida, aquele que conhece o ἀγαθόν (agathón – o bem) se torna ἀγαθός (agathós – bom). Somente essa pessoa pode ser verdadeiramente chamada de feliz.

Como Platão afirma: τὸν µὲν γὰρ καλὸν κἀγαθὸν ἄνδρα καὶ γυναῖκα εὐδαίµονα εἶναί φηµι, τὸν δὲ ἄδικον καὶ πονηρὸν ἄθλιον (tòn mèn gàr kalòn kἀgathòn ándra kaì gynaîka eudaímona eînaí phēmi, tòn dè ádikon kaì ponēròn áthlion) — “afirmo que o homem e a mulher que são belos e bons são felizes, mas o injusto e mau é miserável” (Górgias 470e).

Essa visão humanista, porém, sofre resistência de uma perspectiva mais aristocrática presente na cultura grega, como a expressa por Heráclito: … οὐκ εἰδότες ὅτι οἱ πολλοὶ κακοί, ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί (ouk eidótes hóti hoi polloì kakoí, olígoi dè agathoí) — “não percebem que a maioria é má, e apenas poucos são bons” (Diels I, 98, 8ss).

Também a noção de heimarménē (εἱμαρμένη – destino imutável) desafia essa visão, conforme observamos nesta citação influente sobre o estoicismo: οἱ δὲ φάσκοντες ἐξ ἀνάγκης ἡµᾶς εἶναί τε καὶ γίνεσθαι τοιούτους (sc. ἀγαθοὺς ἢ κακούς) καὶ µὴ καταλιπόντες ἡµῖν τὴν ἐξουσίαν τοῦ ταῦτα πράττειν τε καὶ µή, δι᾽ ὧν ἂν τοιοῦτοι γενοίµεθα (hoi dè pháskōntes ex anágkēs hēmâs eînaí te kaì gínesthai toioútous [sc. agathoùs ḕ kakoús] kaì mḕ katalipóntes hēmîn tēn exousían toû taûta práttein te kaì mḕ, di’ hōn àn toioûtōi genoímetha) — “os que afirmam que nos tornamos bons ou maus por necessidade e que não temos liberdade para escolher nossas ações, por meio das quais nos tornamos o que somos” (Alexandre de Afrodísias, De fato 28, p. 199, 7ss, ed. Bruns).

B. ἀγαθός no Helenismo

Com o colapso da cosmovisão clássica antiga e o avanço do sincretismo religioso-cultural, a noção de ἀγαθός (agathós – “bom”) no período helenístico adquire uma coloração marcadamente religiosa. O termo passa a se relacionar diretamente com a ideia de “salvação”, e ἀγαθός quando aplicado ao homem significa “agradável a Deus”, enquanto quando aplicado à divindade, comunica os sentidos de “bondoso”, “generoso” ou “misericordioso” [5]. O modo como essa bondade ou salvação é percebida depende do objeto ou meio através do qual ela é buscada.

Nos textos herméticos, que representam um dos principais legados literários do helenismo religioso, a salvação é entendida como divinização. Assim lemos: τοῦτο ἔστι τὸ ἀγαθόν, ‹τοῦτο τὸ› τέλος τοῖς γνῶσιν ἐσχηκόσι, [θεωθῆναι] (toûto ésti tò agathón, ‹toûto tò› télos toîs gnôsin eschēkósi, [theōthēnai]) — “isso é o bem, este é o fim para aqueles que alcançaram o conhecimento: tornar-se deiforme” (Corpus Hermeticum I, 26). O papel do νοῦς (noûs – “intelecto”, “razão”) é essencial nesse processo: ὁ γὰρ νοῦς ψυχῶν ἐστιν εὐεργέτης ἀνθρώπων· ἐργάζεται γὰρ αὐταῖς [εἰς] τὸ ἀγαθόν· νόσος δὲ µεγάλη ψυχῆς ἀθεότης· ἐπεί ταῖς τῶν ἀθέων δόξαις πάντα τὰ κακὰ ἐπακολουθεῖ, καὶ ἀγαθὸν οὐδέν. ἆρ᾽ οὖν ὁ νοῦς, ἀντιπράσσων αὐτῇ, τὸ ἀγαθὸν περιποιεῖται τῇ ψυχῇ (ho gàr noûs psȳchôn estin euergetēs anthrṓpōn; ergázetai gàr autaîs [eis] tò agathón; nósos dè megálē psȳchês atheótēs; epeì taîs tōn athéōn dóxais pánta tà kakà epakoloutheî, kaì agathòn oudén. ár’ oûn ho noûs, antiprássōn autê, tò agathòn peripoieîtai tē̂ psȳchê̂) — “o intelecto é benfeitor das almas humanas, pois opera nelas para o bem... A maior doença da alma é a ausência de Deus, pois segundo as opiniões dos ímpios seguem-se todos os males, e nenhum bem. Logo, o intelecto, ao se opor a tais opiniões, proporciona o bem à alma” (Corpus Hermeticum XII, 2ss) [6].

Essa nova perspectiva derruba a antiga ideia humanista de que o bem é algo natural ao ser humano. Agora, entende-se que a salvação e a condição de agradar a Deus não são intrínsecas ao homem. Como está dito: µόνον οὖν … τὸ ὄνοµα τοῦ ἀγαθοῦ ἐν ἀνθρώποις, τὸ δὲ ἔργον οὐδαµοῦ· ὁ γὰρ κόσµος πλήρωµά ἐστι τῆς κακίας, ὁ δὲ θεὸς τοῦ ἀγαθοῦ (mónon oûn... tò ónoma toû agathoû en anthrṓpois, tò dè érgon oudamoû· ho gàr kósmos plḗrōmá estin tês kakías, ho dè theòs toû agathoû) — “entre os homens só existe o nome do bem, não a realidade; pois o mundo está cheio de maldade, e Deus é o [único] do bem” (Corpus Hermeticum VI, 3f). O bem, nesse sentido, pertence exclusivamente à divindade: ὁ οὖν θεὸς ‹τὸ› ἀγαθόν, καὶ τὸ ἀγαθὸν ὁ θεός (ho oûn theòs ‹tò› agathón, kaì tò agathòn ho theós) — “Deus é o bem, e o bem é Deus” (Corpus Hermeticum II, 16). E também: … οὐδὲ ὁ θεὸς δύναται µὴ ποιῶν τὸ ἀγαθόν (oudè ho theòs dýnatai mḕ poiôn tò agathón) — “nem mesmo Deus pode deixar de fazer o bem” (Corpus Hermeticum XI, 17c). Em outras palavras, aquele que mortifica as obras da matéria é o verdadeiro ἀγαθός (agathós – “bom”).

Essa substituição da ótica humanista por uma visão religiosa nasce de um dualismo cósmico. O helenismo apresenta um universo povoado por divindades e espíritos, aos quais o ser humano está sujeito. Essas entidades, das quais o homem espera ser salvo, recebem o epíteto de ἀγαθός. Daí expressões como: ἀγαθὸς θεός (agathòs theós – “Deus bom”) — como aparece em inscrições, por exemplo em Dittenberger, W. Sylloge inscriptionum Graecarum [3], 526, 1; 685, 1; ou em Acta Andreae et Matthiae 6, onde Jesus é chamado ἀγαθὸς θεός (agathòs theós – “Deus bom”); ἀγαθὸς δαίµων (agathòs daímon – “espírito bom”), encontrado em Dittenberger, W. Sylloge inscriptionum Graecarum 3, 985, 10; 1044, 35; e em Corpus Hermeticum XII, 1, 8 como divindade reveladora [7]; ou ainda ἀγαθὴ τύχη (agathḕ týchē – “boa sorte”), como em Ditt. Or. 214, 30.

Por trás dessas fórmulas, percebe-se o anseio humano por salvação diante de uma existência ameaçada. Filon de Alexandria partilha essa visão helenística, mas a enriquece com elementos do judaísmo. Para ele, a divindade é o supremo bem. Assim, quando o Senhor diz “Eu sou o Senhor”, isso quer dizer: ἐγὼ τὸ τέλειον καὶ ἄφθαρτον καὶ πρὸς ἀλήθειαν ἀγαθόν (egṑ tò téleion kaì áphtharton kaì pròs alḗtheian agathón) — “eu sou o perfeito, o incorruptível e o verdadeiramente bom” (De Gigantibus 45). Ao lado da expressão neutra e impessoal grega, encontra-se em Filon a forma pessoal judaica: ἀγαθὸς γὰρ ὢν ὁ θεός (agathòs gàr ṓn ho theós) — “pois Deus é bom” (Legum Allegoriae I, 47; Somnia I, 149).

A atividade condizente com esse entendimento do bem se manifesta na posse de determinados bens ligados ao bem supremo, tais como: ἐγκράτεια (enkráteia – “autocontrole”), que é o bem mais alto e completo que o ser humano pode alcançar (De Specialibus Legibus I, 149) [8]; εὐσέβεια (eusébeia – “piedade”), considerada causa dos maiores bens, pois conduz ao conhecimento do serviço a Deus (De Specialibus Legibus IV, 147); πίστις πρὸς θεόν (pístis pròs theón – “fé em Deus”), vista como o bem infalível e certo (De Abrahamo 268); και σοφία (sophía – “sabedoria”), que é o bem que eleva a alma da terra até seu Senhor e Pai (Quis rerum divinarum heres sit 98).

A possibilidade de alcançar esse bem, em Filon, é sustentada por sua confiança no auxílio divino.

C. ἀγαθός no Antigo Testamento e no Judaísmo

Tanto o Antigo Testamento quanto o Judaísmo pós-bíblico compartilham com o helenismo uma atitude religiosa em relação à vida. No entanto, a estrutura dessa religiosidade é radicalmente distinta. O ponto de partida não é uma ideia abstrata do bem, mas sim o conhecimento de um Deus pessoal, que se revela a seu povo ao longo da história e que o escolheu mediante essa revelação.

Nesse contexto, as palavras ἀγαθός (agathós – “bom”) e τὸ ἀγαθόν (tò agathón – “o bem”) — que na Septuaginta aparecem como traduções regulares da raiz hebraica בּוֹט (ṭôb – “bom”) — assumem um significado profundamente diferente daquele encontrado no pensamento grego e helenístico. A noção abstrata do bem, como algo ideal ou filosófico, simplesmente não aparece no pensamento hebraico. Em seu lugar, prevalece uma confissão contínua e repetida que revela o caráter pessoal e relacional de Deus, como na fórmula litúrgica:

ח֭וֹדוּ לַֽיהוָ֣ה כִּי־ט֑וֹב (Hôdû laYHWH kî ṭôb) — “Dai graças ao Senhor, porque ele é bom”, traduzida na Septuaginta como: ἐξομολογεῖσθε τῷ κυρίῳ ὅτι ἀγαθόν (exomologeîsthe tôi kyríōi hóti agathón) — “rendei graças ao Senhor, porque ele é bom” (1 Crônicas 16:34; 2 Crônicas 5:13; 2 Esdras 3:11s; Salmo 118 [117]:1ss) [9].

Entre os rabinos, esta fórmula aparece de forma recorrente: מה טיבו של זה – בוט ה (mah ṭîvô shel zeh – ṭôb hū) — “qual é a bondade deste? Ele é bom mesmo!” (por exemplo, Berachot 9.2). Essa declaração expressa a essência de Deus: ele é bom porque é bondade. Não se trata de uma propriedade abstrata, mas de sua natureza atuante no tempo e na história.

Essa revelação molda a compreensão da existência para os hebreus. A vida adquire sentido a partir da salvação experimentada historicamente (como o Êxodo do Egito), caminha com a esperança de uma salvação futura, e orienta sua conduta conforme essa salvação, mediada pela Torá, entendida como expressão da vontade de Deus.

A libertação do Egito, a entrada na terra prometida, bem como outras ações de preservação e cuidado divino são frequentemente descritas com as palavras בּוֹט (ṭôb) ou הַטּוֹבָה (haṭṭôvâh – “a bondade”). Por exemplo: Êxodo 18:9, Números 10:29ss, Oseias 8:3; 14:3. O uso do termo se intensifica especialmente no profeta Jeremias, que emprega בּוֹט para falar tanto da salvação nacional quanto da individual, em relação a Yahweh: Jeremias 8:15; 14:11, 19; 17:6, etc. É também Jeremias quem dá ao termo uma tonalidade escatológica. Ao anunciar a nova aliança prometida, Deus diz:

וְנָתַתִּי לָהֶם לֵב אֶחָד וְדֶרֶךְ אֶחָת לְיִרְאָה אֹתִי כָּל־הַיָּמִים לְטוֹב לָהֶם וְלִבְנֵיהֶם אַחֲרֵיהֶם

(wenāṯattî lāhem lēv eḥāḏ wĕḏereḵ eḥāṯ leyirʾāh ʾōṯî kol-hayyāmîm leṭôḇ lāhem wĕlibnêhem ʾaḥărêhem)

“e lhes darei um só coração e um só caminho, para que me temam todos os dias, para o bem deles e dos seus filhos depois deles”
(Jeremias 32:39).

E em seguida, a promessa solene: “Farei vir sobre eles todo o bem que lhes prometi” (32:42). Aqui, ṭôb é mais do que benefício terreno — trata-se de salvação definitiva.

Passagens como Isaías 52:7 utilizam a expressão מְבַשֵּׂר טוֹב (meḇaśśēr ṭôḇ – “mensageiro do bem”) para falar da proclamação da salvação. Tanto essa quanto a citação de Jeremias foram entendidas de modo messiânico: בּוֹט (ṭôb) = ἀγαθόν (agathón) como sinônimo de redenção messiânica.

Entre esses dois polos — o bem já manifestado na história e o bem ainda aguardado — situa-se a prática cotidiana. A vontade de Deus, expressa na Torá, serve de orientação. Miquéias resume isso com clareza: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom”, ou seja, o que Deus requer: agir com justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com o Senhor (Miqueias 6:8). A Torá, como expressão da vontade divina, é aquilo que conduz à salvação, conforme Deuteronômio 30:15. Os rabinos, por sua vez, vão além, identificando a própria Lei como “o bem” absoluto: “Os retos herdarão o bem” (Provérbios 28:10). “O bem significa a Torá” (Avot 6.3, etc.) [11].

Essa ética resultante é simples: aqueles que obedecem à vontade de Deus conforme revelada na Lei praticam o bem, são bons e, por isso, recebem a bênção e a salvação do Senhor (Salmo 34:14s; 37:27; 2 Crônicas 19:11). Pressupõe-se, portanto, que é possível cumprir a Lei. No entanto, havia debate entre os grupos judaicos sobre se essa obediência exigia auxílio divino. O Antigo Testamento e os fariseus acreditavam que sim, ao passo que os saduceus negavam essa necessidade (Josefo, Bellum Judaicum 2.163–165) [12].

A literatura sapiencial, onde as expressões ἀγαθός (agathós), τὸ ἀγαθόν (tò agathón) e τὰ ἀγαθά (tà agathá) aparecem com maior frequência lexicográfica, introduz elementos do pensamento grego dentro do horizonte judaico, funcionando como uma ponte para o pensamento de Filon. É nesse corpus que surgem com força as perguntas: o que é o bem? o que é o mal? o que é verdadeiramente bom para o ser humano?

No livro de Eclesiastes, que desmantela todas as ilusões humanas, aparece a percepção de que não há outro bem para o homem senão לִשְׂמוֹחַ וְלַעֲשׂוֹת טוֹב (lismōaḥ wĕlaʿăśōṯ ṭôḇ – “alegrar-se com o que tem e fazer o bem”), como em 3:13; 5:17; 8:15. Contudo, o mesmo livro também traz uma conclusão devastadora, semelhante à dos céticos gregos: “Não há justo sobre a terra que faça o bem e não peque” (Eclesiastes 7:20).

A teologia rabínica posterior aprofunda ainda mais os dilemas éticos. Ela descreve o ser humano como um campo de batalha entre duas tendências internas: o impulso bom (yetzer haṭôḇ) e o impulso mau (yetzer haráʿ). O objetivo da vida é dominar o segundo pelo primeiro. Essa vitória é o pré-requisito para ter parte no mundo vindouro. O impulso bom é a consciência do judeu, vinculada à vontade de Deus, manifestada nos mandamentos da Torá. [13]

Esse modelo ético revela a visão judaica da existência, completamente moldada pela Torá [14]. Além disso, a teologia rabínica desenvolve uma doutrina de “boas obras” (מַעֲשֵׂי טוֹבִים, maʿăśê ṭôḇîm) como prática paralela à obediência formal dos mandamentos [15]. Essas ações, feitas com amor ao próximo, têm enorme valor. Apenas aqueles que as praticam podem ser chamados verdadeiramente de bons [16].

O Talmude afirma: “Somente o homem que é bom tanto para com Deus quanto para com as criaturas é um justo bom. O que é bom para Deus, mas não para as pessoas, é justo, mas não é bom...” (b. Qiddushin 40a).

D. ἀγαθός no Novo Testamento

O Novo Testamento, assim como o helenismo e o judaísmo, adota uma postura fundamentalmente religiosa diante da vida. Mas essa atitude é agora determinada de maneira definitiva pela relação com Deus, a quem Jesus associa diretamente a mais importante declaração do Antigo Testamento: εἷς ἐστιν ὁ ἀγαθός (heîs estin ho agathós – “um só é bom”, Mateus 19:17), ou, nas versões de Marcos e Lucas: οὐδεὶς ἀγαθὸς εἰ µὴ εἷς ὁ θεός (oudeìs agathòs ei mḕ heîs ho theós – “ninguém é bom senão um: Deus”). A compreensão pessoal de Deus elimina aqui qualquer uso neutro ou abstrato do termo. O adjetivo ἀγαθός (agathós) descreve a bondade essencial de Deus, que se expressa em sua generosidade e benevolência.

É desse Deus que procede a salvação, que ocupa o centro do pensamento neotestamentário — a revelação do propósito salvador de Deus em Jesus Cristo. Em Hebreus 9:11, o termo aparece assim: Χριστὸς παραγενόµενος ἀρχιερεὺς τῶν µελλόντων ἀγαθῶν (Christòs paragenómenos archiereùs tôn mellóntōn agathôn) — “Cristo, tendo vindo como sumo sacerdote dos bens futuros” [17]. E em Hebreus 10:1: σκιὰν γὰρ ἔχων ὁ νόµος τῶν µελλόντων ἀγαθῶν (skiàn gàr échōn ho nómos tôn mellóntōn agathôn) — “porque a Lei possui apenas uma sombra dos bens vindouros”.

Esses μέλλοντα ἀγαθά (mellonta agathá – “bens futuros”) referem-se à realidade da nova aliança, em contraste com os tipos e sombras do Antigo Testamento. Esses bens são agora dados à comunidade por meio de Cristo: redenção eterna (aiōníā lýtrōsis) e a possibilidade de servir ao Deus vivo (latreúein theō̂i zônti), ou seja, de ser libertado do domínio do pecado e da morte e conduzido à comunhão e ao serviço a Deus.

Romanos 10:15 retoma a profecia de Isaías sobre o מְבַשֵּׂר טוֹב (mevaśśēr ṭôḇ – “o mensageiro de boas novas”) e a aplica diretamente à missão apostólica: a proclamação feita pelos apóstolos consiste na salvação messiânica.

A muito debatida questão sobre a impecabilidade de Jesus também aparece em Mateus 19:17 e seus paralelos [18]. Enquanto Marcos e Lucas apresentam a pergunta: “Por que me chamas bom?” (Tí me légeis agathón?), Mateus registra: “Por que perguntas a respeito do bem?” (Tí me erōtâis perì toû agathoû?). A forma em Mateus altera a tradição mantida pelos outros dois evangelhos, o que sugere que o evangelista procurou evitar que o leitor entendesse que Jesus estivesse negando sua própria bondade em comparação com Deus. Mesmo modificando a redação, Mateus provavelmente capta com precisão a intenção de Jesus: não é a impecabilidade de Cristo que está em questão, mas a glória de Deus. O foco da resposta de Jesus é o senhorio divino: o interlocutor deve ser direcionado a Deus, único que é verdadeiramente bom, e a ele deve render honra.

A união das duas declarações — 1. que somente Deus é ἀγαθός (agathós) e 2. que os bens futuros (μέλλοντα ἀγαθά, mellonta agathá) são os únicos verdadeiros bens, pois com eles desaparecem o pecado e a morte — conduz a uma compreensão profunda: neste mundo, nada merece verdadeiramente o título de ἀγαθόν, e ninguém pode ser chamado com justiça de ἀγαθός. Essa conclusão é reforçada por uma afirmação de Paulo, que desconstrói toda concepção humanista ou religiosa baseada na capacidade humana:

οἶδα γὰρ ὅτι οὐκ οἰκεῖ ἐν ἐµοί, τοῦτ᾽ ἔστιν ἐν τῇ σαρκί µου, ἀγαθόν … οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν, ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω

(oîda gàr hóti ouk oikeî en emói, toût’ éstin en tē̂ sarkí mou, agathón… ou gàr ho thélo poiô agathón, allà ho ou thélo kakòn toûto prássō)

sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum... pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico (Romanos 7:18–19).

A existência humana natural está, portanto, excluída do bem; por mais que o ser humano o deseje, ele não pode alcançá-lo. Em vez disso, o que consegue realizar é o mal (kakón – “mal”), cujo resultado é a morte (thánatos – “morte”). É certo que, segundo Paulo, a Lei oferece ao homem um ἀγαθόν (agathón – “bem”): ἡ ἐντολὴ … ἀγαθή (hē entolḗ… agathḗ – “o mandamento é bom”) — e nesse ponto ele está de acordo com o Judaísmo (Romanos 7:12ss). No entanto, o pecado (hamartía), que habita e domina o ser humano, transforma a Lei em instrumento de condenação. Ela acaba por produzir thánatos (morte), mesmo sendo agathḗ (boa).

O Novo Testamento reconhece, então, que o homem está irremediavelmente entregue ao pecado e à morte, preso em uma esfera onde não há possibilidade real de bem ou salvação. Mas esse dualismo, diferente do dualismo cósmico helenístico, não é filosófico ou metafísico — é teológico e ético, nascido da revelação de Deus em Cristo.

Essa visão não ignora que ainda existam distinções morais dentro da criação. Jesus reconhece que Deus faz o sol nascer sobre bons e maus (Mateus 5:45), distingue o bem do mal (Mateus 12:34 e paralelos), e valoriza a obediência aos mandamentos como um ἀγαθόν (agathón – “bem”), pois neles se revela a vontade boa de Deus. Paulo também confere às autoridades o papel de serem θεοῦ διάκονος εἰς τὸ ἀγαθόν (theoû diákonos eis tò agathón – “ministros de Deus para o bem”, Romanos 13:4).

Ainda assim, o Novo Testamento vê essas distinções morais como relativas, limitadas ao presente mundo, e que perdem sua validade diante da presença de Deus.

Com a vinda da salvação em Cristo, surge uma nova possibilidade radical de existência. Como escreve Paulo: μεταμορφοῦσθε τῇ ἀνακαινώσει τοῦ νοὸς, εἰς τὸ δοκιμάζειν ὑμᾶς τί τὸ θέλημα τοῦ θεοῦ, τὸ ἀγαθὸν καὶ εὐάρεστον καὶ τέλειον (metamorphoûsthe tē̂ anakainṓsei toû noòs, eis tò dokimázein hymâs tí tò thélēma toû theoû, tò agathòn kaì euáreston kaì téleion) — “sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12:2).

O discernimento da vontade de Deus — que é agathón (boa) — conduz à sua realização prática. Paulo pode, então, afirmar que os cristãos foram criados em Cristo Jesus para boas obras: κτισθέντες ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ἐπὶ ἔργοις ἀγαθοῖς, οἷς προητοίμασεν ὁ θεὸς ἵνα ἐν αὐτοῖς περιπατήσωμεν (ktisthéntes en Christō̂ Iēsou epi érgois agathoîs, hoîs proētoímasen ho theòs hína en autoîs peripatḗsōmen) — “criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2:10).

O mesmo pensamento aparece em Colossenses 1:10: περιπατῆσαι … ἐν παντὶ ἔργῳ ἀγαθῷ καρποφοροῦντες (peripatḗsai… en pantì érgō agathō̂ karpophoroûntes) — “para andardes em toda boa obra, frutificando”. Por isso, Paulo exorta: πάντοτε τὸ ἀγαθὸν διώκετε εἰς ἀλλήλους καὶ εἰς πάντας (pántote tò agathòn diṓkete eis allḗlous kaì eis pásas) — “procurai sempre o bem uns para com os outros e para com todos” (1 Tessalonicenses 5:15).

Com essas palavras, Paulo define com clareza em que consiste o ἀγαθόν: trata-se do amor cristão ativo, possibilitado pela graça, e que é o propósito mais profundo da própria Lei. O bem se realiza em relações pessoais, concretas, entre o eu e o outro.

Essa nova possibilidade de existência se torna o objetivo da vida cristã, seu propósito a ser cumprido. Isso se expressa na afirmação de Paulo como princípio claro da Lei de Deus: δόξα … καὶ τιμὴ καὶ εἰρήνη παντὶ τῷ ἐργαζομένῳ τὸ ἀγαθόν (dóxa… kaì timḗ kaì eirḗnē pantì tôi ergazoménō tôi agathón) — “glória, honra e paz a todo aquele que pratica o bem” (Romanos 2:10).

O cristão que assume esse novo modo de vida pode ter o que Paulo chama de ἀγαθὴ συνείδησις (agathḕ syneídēsis – “boa consciência”). Ele mesmo declara: ἐγὼ πάσῃ συνειδήσει ἀγαθῇ πεπολίτευμαι τῷ θεῷ (egṑ pásē̄ syneidḗsei agathē̂ pepolíteumai tôi theṓ̂) — “eu tenho vivido diante de Deus com toda boa consciência” (Atos 23:1). Há referências também à boa consciência em 1 Timóteo 1:5, 19 e 1 Pedro 3:16, 21.

Ao mesmo tempo, o cristão possui a certeza de que a salvação é o fim e a realidade determinante da sua vida: οἴδαμεν δὲ ὅτι τοῖς ἀγαπῶσιν τὸν θεὸν πάντα συνεργεῖ [ὁ θεός] εἰς [τὸ] ἀγαθόν (oídamen dè hóti toîs agapôsin tòn theòn pánta synergêi [ho theós] eis [tò] agathón) — “sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Romanos 8:28). Essa convicção, que faz parte da espiritualidade judaica [19], alcança aqui sua plenitude por causa da ação salvadora de Deus.

É por isso que Paulo pode declarar com total confiança aos filipenses: ὁ ἐναρξάμενος ἐν ὑμῖν ἔργον ἀγαθὸν ἐπιτελέσει ἄχρι ἡμέρας Χριστοῦ Ἰησοῦ (ho enarxámenos en hymîn érgon agathòn epitelései áchri hēméras Christoû Iēsoû) — “aquele que começou em vós a boa obra há de completá-la até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6).


Notas

[1] A postura humanista se evidencia em afirmações como esta: “... deve-se falar do bem não em termos absolutos, mas do bem para nós; não do bem divino...” (λεκτέον ... ὑπὲρ ἀγαθοῦ οὐ τοῦ ἁπλῶς ἀλλὰ τοῦ ἡμῖν· οὐ γὰρ τοῦ θεῶν ἀγαθοῦ..., Ethica Eudemia I, 1, p. 1182b, 3ss). Essa distinção entre o domínio divino e o humano também aparece nos sinônimos gregos usados para o bem: τὸ καλόν (tò kalón – “o belo”), τὸ χρήσιμον (tò chrḗsimon – “o útil”) e τὸ ἡδύ (tò hēdý – “o agradável”).

[2] Ver especialmente Retórica I, 6, p. 1362a, 15ss, onde Aristóteles expõe as diferentes definições possíveis para ἀγαθόν (agathón – “bem”) e os tipos de ἀγαθά (agathá – “bens”) que delas decorrem.

[3] A compreensão humanista da existência também se manifesta na citação de Crísipo, transmitida por Plutarco: “… assim como é adequado a Zeus se exaltar por si mesmo, por sua vida e pensar em grandeza — se assim é permitido dizer, em levantar o pescoço, deixar o cabelo crescer e usar linguagem altiva, por viver de modo digno dessa altivez —, assim também é próprio de todos os bons (ἀγαθοί, agathoí) esses atributos, pois em nada ficam atrás de Zeus” (Stoicorum Repugnantiis 13). Ver também Stób. (Johannes Stobaeus, natural de Stoboi na Macedônia, autor de uma antologia de trechos de escritores gregos em verso e prosa, do século V d.C.), especialmente sua Eclogae (ed. C. Wachsmuth e O. Hense, 1884ss).

[4] Comparar também Platão (Leis I, 631bc), Aristóteles (Retórica I, 6, p. 1362b, 3ss), e o Górgias de Platão. Ver ainda Alexandre de Afrodísias (Alex. Aphr.), filósofo peripatético dos séculos II–III d.C., autor de comentários sobre Aristóteles e tratados independentes, especialmente o De Fato (Fat., ed. J. Bruns, Supplementum Aristotelicum, 1887).

[5] Em contextos onde o pensamento grego assume um caráter religioso, os termos ἀγαθόν e ἀγαθά também são usados com esse significado. Exemplo disso é: “… pareceu bom ao conselho que o povo recebesse os bens que os sacerdotes e os encarregados dos sacrifícios relataram terem ocorrido nos templos onde foram feitas as oferendas” (Ditt. Sylloge Inscriptionum Graecarum 3, 289, 11ss).

[6] Ver também o tratado XIII, 9 do Corpus Hermeticum, onde τὸ ἀγαθόν (tò agathón) é associado a ἀλήθεια (alḗtheia – “verdade”), conforme a tradição filosófica grega. Todo o tratado XIII trata do mistério da divinização. Cf. também Dittenberger (Ditt.), Sylloge Inscriptionum Graecarum vols. 2 (1898ss) e 3 (1915ss), e Acta Andreae et Matthiae (Atos de André e Mateus).

[7] Ver Reitzenstein, Iranische Erlösungsreligionen, p. 191, nota 2; p. 193, nota 1; Poimandres, índice; Roscher, vol. I, p. 98ss (Agathodaimon); Pauly-Wissowa, vol. I, p. 746ss (Agathodaimon), suplemento III, p. 37ss. Também Ditt. Orientis Graecae Inscriptiones (1902ss). Outros textos: De Gigantibus (Gig.), Legum Allegoriae (Leg.), De Somniis (Som.).

[8] A elevada valorização da ἐγκράτεια (enkráteia – “autodomínio”) revela o fundamento helenístico dessa postura, enraizada no dualismo cosmológico. Ver também De Abrahamo (Abr.), Quis Rerum Divinarum Heres sit (Rer. Div.).

[9] Com exceção do Salmo 117 (ψ 117), o adjetivo hebraico בּוֹט (ṭôb) é geralmente traduzido na LXX pelo substantivo ἀγαθόν (agathón). Essa escolha reflete o espírito grego e helenístico, no qual o “Senhor bom” (em hebraico, um adjetivo) se torna “o Senhor, o bem” (em grego, um substantivo).

[10] Ver também nota [16]. Cf. Abot (Pirqe Avot), tratado da Mishná, Tosefta e Talmude chamado “Ditos dos Pais” (ver Strack, Einleitung, p. 54).

[11] A relação entre a Lei e o bem, assim como entre a noção de Lei, sabedoria e poder, remonta a Provérbios 4:2. Cf. também Neemias 9:13: “mandamentos e preceitos bons” (προστάγματα καὶ ἐντολὰς ἀγαθάς); e Josefo, Antiguidades Judaicas 4.295: “leis que Deus, após julgá-las boas, entregou ao povo...” Cf. também Bellum Judaicum (Bell.).

[12] A conjunção “bem e mal” ocorre frequentemente nas Escrituras para indicar a totalidade das possibilidades humanas, em oposição ao nada. Cf. Gênesis 3:5; 31:24, 29; Números 14:23; 32:11 (estes dois apenas na LXX); Deuteronômio 1:39; Sofonias 1:12.

[13] Cf. Strack-Billerbeck (Str.-B.), vol. III, p. 92ss.

[14] Cf. o excursus em Str.-B., vol. IV, p. 466ss.

[15] Cf. o excursus em Str.-B., vol. IV, p. 536ss; e também pp. 559ss.

[16] Isso revela a compreensão fundamental de que a bondade inclui a prática do bem ao próximo. A verdadeira bondade se manifesta no relacionamento interpessoal. Essa percepção aparece em textos como: “É próprio dos homens bons não apenas aconselhar, mas também ajudar” (Jos. Vita, 288). Também está presente na literatura grega: “a maioria define os benfeitores como sendo homens bons” (Xenofonte, Cyropaedia VII.3.12). Cf. Lucas 23:50: ἀνὴρ ἀγαθός καὶ δίκαιος (anḗr agathós kaì díkaios – “homem bom e justo”). Ver também o tratado Qidduschin (Qid.) da Mishná, Tosefta e Talmude (Strack, Einleitung, p. 49).

[17] Essa leitura deve ser preferida em relação às variantes. Cf. os comentários críticos de Regge e outros sobre Hebreus nesse ponto.

[18] Cf. Weiss, Markus, p. 162; Klausner, Markus, p. 114; Heckel, Markus, p. 122; Dalman, Worte Jesu, vol. I, p. 277. Ver também W. Wagner, “Em que sentido Jesus rejeitou para si o predicado ἀγαθός?”, Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft (1907), vol. 8, p. 143ss; F. Spitta, “A recusa de Jesus em se deixar chamar de ‘bom’”, ZNW (1908), vol. 9, p. 12ss; e K. Bornhäuser, Das Wirken des Christus (1921), p. 147ss.

[19] Essa percepção também é encontrada no Antigo Testamento. José diz aos seus irmãos: “Não temais; acaso estou eu no lugar de Deus? Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem (הַטּוֹבָה, haṭṭôvâ)” (Gênesis 50:19–20). Na literatura rabínica, onde é comum a fórmula “Isto ou aquilo me aconteceu para o bem” (cf. Str.-B., III, p. 255), também lemos: “O homem deve sempre habituar-se a dizer: Tudo o que o Misericordioso faz, é para o bem” (b. Berachot 60b). Cf. também P. Lond., Greek Papyri in the British Museum, ed. F. G. Kenyon et al., 1893ss.

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GALVÃO, Eduardo M. ἀγαθός. In: DICIONÁRIO TEOLÓGICO GREGO DO NOVO TESTAMENTO (DTGNT). Biblioteca Bíblica. [S. l.]: [s. n.], 2025. Disponível em: [Cole o link aqui] Acesso em: [Coloque aqui a data que você acessou a página, sem os colchetes].

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