Abençoar — Enciclopédia da Bíblia Online
ABENÇOAR
O verbo “abençoar” na Bíblia designa um ato de palavra que comunica bem real sobre alguém: quando Deus abençoa, não é um simples voto, mas a concessão eficaz do seu favor — vida, fecundidade, proteção, direção e paz — de modo que pessoas, famílias, tempos e coisas são destinados ao florescimento sob a sua presença; por isso as bênçãos divinas aparecem como declarações ou promessas que produzem aquilo que anunciam. Quando pessoas “abençoam” a Deus, o verbo assume o sentido de falar bem dele, reconhecendo e louvando quem Ele é e o que faz; quando pessoas abençoam outras pessoas, trata-se de uma invocação ou proclamação diante de Deus para que o seu bem se manifeste concretamente no caminho de quem recebe, muitas vezes em contextos de culto, refeições, envios e encargos. Em todas as direções, “abençoar” é relacional e pactuai: vincula doador e destinatário ao propósito de Deus, e tem como contraponto o “amaldiçoar”, isto é, desejar ou declarar o oposto do bem que conduz à vida.
I. Etimologia e Línguas Semitas
No Antigo Testamento, “abençoar” corresponde sobretudo ao verbo bārak (raiz brk). A raiz hebraica brk, que forma esta palavra, encontra paralelos claros em outras línguas semíticas, revelando como o campo semântico da bênção e da prosperidade está profundamente enraizado na tradição comum dessas culturas. No hebraico bíblico, bārak pode significar tanto a ação de abençoar quanto o estado de ser abençoado, e esse duplo valor já indica uma rede lexical mais ampla no mundo semítico.
No ugarítico, a raiz 𐎁𐎗𐎋 (brk) aparece em textos religiosos e mitológicos, ligada a contextos de prosperidade e, possivelmente, a gestos de submissão ou reverência diante da divindade. Assim como no hebraico, essa raiz ugarítica conserva a ambiguidade entre ação ritual de conceder favor e atitude humana de reverência.
No acádio, a correspondência encontra-se no termo 𒁀𒊒𒆪 (barāku), que também pode carregar o sentido de abençoar ou invocar benefício. Em textos legais e literários da Mesopotâmia, esse verbo se relaciona tanto a concessões divinas quanto a fórmulas rituais que visam assegurar proteção, riqueza ou fertilidade.
No árabe clássico, temos حكم (baraka), que significa “bênção”, “graça” ou “prosperidade”, e cuja raiz básica brk também assume o sentido físico de “ajoelhar-se” (como o camelo que se abaixa). Essa duplicidade — entre gesto de submissão e ideia de bênção — ecoa as nuances encontradas no hebraico e no ugarítico, sugerindo que, no fundo, a semântica da raiz está ligada à atitude corporal de curvar-se ou inclinar-se diante do sagrado, da qual se desenvolveu a noção espiritual de favor concedido.
Da 𐎁𐎗𐎋 ugarítica (brk) ao 𒁀𒊒𒆪 acadiano (barāku), passando pelo árabe بركة (baraka), a raiz comum brk testemunha a profundidade de uma concepção pan-semítica de bênção. O hebraico bārak preserva e amplia esse campo, transformando um gesto físico em uma categoria teológica central, em que tanto Deus abençoa o ser humano quanto o ser humano, em resposta, pode abençoar a Deus.
A tradição lexicográfica registra duas esferas de sentido relacionadas a raiz hebraica brk: (1) o campo de “joelho” (bērek)/“ajoelhar” e (2) o campo de “abençoar” (verbo bārak, particípio bārûk). Já no século XIX, Gesenius relacionou “ajoelhar” e “abençoar” por meio da ideia de dobrar o “ponto onde a perna ‘quebra’ (o joelho)” e, a partir do gesto de homenagem/ação de graças de joelhos, explicou o desenvolvimento para “abençoar”; leituras mais recentes reconhecem a força dessa ligação gestual, mas salientam que o uso bíblico de bārak como concessão eficaz do bem divino exige ir além de uma simples derivação a partir de “dar graças” ou “ajoelhar” (pois bārak é, de modo proeminente, Deus → homem). Em termos comparativos, a raiz brk é amplamente semítica: BDB observa paralelos no árabe, siríaco e etiópico, atesta o aramaico brēk (“louvar”) e registra a fórmula palmirena “brīḵ šmō l-‘almā” (“bendito seja o seu nome para sempre”); também menciona paralelos no egípcio. No próprio hebraico, o particípio passivo bārûk (“bendito...”) é altamente produtivo e a literatura registra tanto o valor de “ajoelhar” (p. ex., 2 Crônicas 6:13; Salmo 95:6) quanto o de “abençoar” em fórmulas cultuais e narrativas (p. ex., “Bendito seja o Senhor...”). Propostas de ligação semântica adicional incluem a associação tradicional com a fecundidade/família (crianças “nascidas sobre os joelhos”, cf. Gênesis 30:3; 48), como ponte cultural entre “joelho” e “bênção” na história de Israel.
Embora em outras línguas semíticas do noroeste encontremos construções com sujeitos e objetos semelhantes, os estudiosos reconhecem que, no hebraico, esse emprego assume características peculiares. Conforme Encyclopedia of Religion (ELIADE, 1987, vol. 2, p. 251), o uso hebraico pode ser considerado único em comparação com os paralelos das línguas vizinhas. Além disso, MITCHELL (1987, The Meaning of BRK “To Bless” in the Old Testament, p. 10) observa que sua aplicação se mostra mais extensa e variada, abrangendo contextos de maior amplitude. Assim, o hebraico não apenas compartilha elementos comuns com outros idiomas da família semítica, mas também os ultrapassa em originalidade e alcance.
Há consenso quase unânime de que, à parte as etimologias populares — que tendem a aproximar significados por associação devocional (sobretudo a conexão religiosa aparente entre ajoelhar e orar/louvar/abençoar) — não existe, em nenhuma língua semítica, base etimológica que vincule esses sentidos entre si. Em outras palavras, a proximidade semântica em contexto cultual não prova parentesco lexical: trata-se de contágio de uso e não de derivação histórica da mesma raiz (MITCHELL, Ibid., 1987, p. 16; TDNT, vol. 2, p. 284).
Na tradução grega (LXX) e no Novo Testamento, o verbo de referência é eulogéō, formado de eu- (“bem, bom”) + lógos (“palavra, razão”), com o sentido básico de “falar bem de”, “louvar”, e — no uso bíblico — “invocar/derramar benefício, consagrar com oração” (aplica-se a Deus como objeto, a pessoas/coisas, e ao ato eucarístico). Léxicos de uso indicam esse duplo alcance: louvor/ação de graças e concessão do bem (consagração/benefício; cf. CONEN; BROWN, Dicionário Internacional do Novo Testamento, vol. 1, pp. 209-210). É justamente essa polissemia que tornou eulogéō o equivalente grego habitual de bārak na LXX, reforçando a ponte semântica entre “palavra de bem” e “eficácia do bem” na tradição bíblica grego-cristã.
Na tradição latina, a Vulgata verte bārak/eulogéō com o verbo composto benedīcere (bene + dīcere), “dizer bem de, louvar, abençoar”, cujo particípio benedictus e formas correlatas se tornaram padrão no latim eclesiástico. Dicionários latinos registram precisamente esse campo (“abençoar; louvar; falar bem de”), o que explica a estabilidade de benedīcere como calque semântico de eulogéō. A própria Bíblia latina confirma o uso desde as primeiras páginas: “Benedixitque illis Deus, et ait: Crescite et multiplicamini...” (Gênesis 1:28).
Em síntese etimológica. No hebraico bíblico, bārak (raiz brk) movimenta-se entre “ajoelhar” e “abençoar” (com ampla atestação semítica e produtiva fórmula bārûk), enquanto o grego eulogéō explicita a dimensão verbal/relacional do “falar bem” que confere benefício; o latim benedīcere calca essa mesma ideia, consolidando o eixo semântico “dizer bem de → comunicar bem” na recepção bíblica. Esses três vetores — bārak, eulogéō, benedīcere — explicam por que “abençoar”, na Bíblia, é ao mesmo tempo gesto de reverência, palavra de louvor e ato eficaz de concessão do bem.
II. Morfologia e formas verbais (hebraico, grego, latim)
No hebraico bíblico, o verbo que verte “abençoar” corresponde à raiz brk, cujo uso para “abençoar” se realiza sobretudo no padrão Piel em todas as conjugações usuais (perfeito, imperfeito, imperativo, infinitivos e particípio), inclusive com o particípio passivo bārûk amplamente produtivo em fórmulas cultuais. Em Qal, a raiz exprime “ajoelhar(-se)”, ocorrendo em contextos de postura reverente; em Nifal e Pual aparecem valores passivos ou estativos (“ser abençoado”); o Hitpael registra nuance reflexiva (“abençoar-se”), e o Hifil é raro e com sentido de “fazer ajoelhar”. Em alguns contextos, por convenção reverencial, a mesma raiz funciona como eufemismo antitético (“amaldiçoar”), leitura determinada pelo contexto literário. No total, o verbo correspondente a “abençoar” no Antigo Testamento ocorre por volta de trezentas e tantas vezes, com forte concentração no uso Piel quando a direção é Deus → homens, mas também com emprego homens → Deus (“bendizer”) e homens → homens em saudação, envio e encargo.No grego bíblico, o verbo nuclear é eulogéō, regular em -éō, com as partes principais usuais (presente eulogéō, futuro eulogēsō, aoristo eulogēsa), apresentando aumento nos tempos secundários. A voz ativa exprime “abençoar, falar bem de, invocar benefício”, enquanto o passivo aparece em formas como o particípio eulogēmenos (“bendito”), e o adjetivo verbal eulogētós é típico para referir-se a Deus. Compostos como eneulogéō aparecem em citações e desenvolvimentos teológicos que conectam a promessa veterotestamentária aos povos, preservando o vínculo entre palavra proferida e concessão do bem. As ocorrências no Novo Testamento somam algumas dezenas, incluindo imperativos de exortação comunitária que correspondem, na tradição latina, aos benedicite litúrgicos.
No latim bíblico, a Vulgata verte sistematicamente com benedīcere (bene + dīcere), cujos principais são benedico, benedicere, benedixi, benedictus. O perfeito narrativo (por exemplo, benedixit), o particípio com função adjetival (benedictus) e os imperativos (benedicite) cobrem os mesmos campos de uso atestados no grego koiné, espelhando as exortações, as fórmulas cultuais e os relatos históricos. Dessa forma, as três tradições — bārak no hebraico, eulogéō no grego e benedīcere no latim — exibem correspondência funcional estável: o hebraico organiza o sentido por raiz e padrão verbal (com predominância do Piel para “abençoar”), o grego o expressa por um verbo regular que une “falar bem” e “conceder benefício”, e o latim calcifica esse mesmo eixo em formas sintéticas claramente reconhecíveis no uso bíblico e litúrgico.
III. Sujeitos do verbo: quem “abençoa”
Yahweh (Deus) — Como Criador e Senhor da aliança, é o principal sujeito que “abençoa”. Ele abençoa a criação e a humanidade no princípio (Gênesis 1:28, Vulg.: “Benedixitque illis Deus...”). A bênção divina recai sobre famílias e povos (Noé e sua descendência; a promessa feita a Abraão, com alcance universal), e está associada ao favor, proteção, fecundidade e prosperidade para cumprir Seus propósitos. (Gênesis 9:1; Gênesis 12:2-3; Gênesis 22:16-18; Gálatas 3:8, 14; Atos 3:25-26). Yahweh abençoa soberanamente, mas também em resposta à fidelidade do Seu povo e à observância da aliança, chegando a “derramar bênção até que não haja mais necessidade” (Malaquias 3:10).
Cristo — No Novo Testamento, Jesus abençoa ativamente pessoas: impõe as mãos sobre as crianças e as abençoa (Marcos 10:16, Vulg.: “et benedicebat illis”), e, ao ascender, ergue as mãos e abençoa os discípulos (Lucas 24:50-51). Além disso, Cristo é bendito e louvado pelos humanos (por exemplo, “bendito o fruto do teu ventre” — referência ao Messias ainda por nascer em Lucas 1:42, Vulg.: “benedictus fructus ventris tui”) e é digno de “eulogia” universal (Apocalipse 5:12-13).
Sacerdotes — No culto de Israel, os sacerdotes abençoam o povo “em nome de Yahweh”. A bênção aarônica é o modelo paradigmático (Números 6:23-27, Vulg.: “Sic benedicetis filiis Israël... Benedicat tibi Dominus...”) e está ligada ao colocar o Nome de Deus sobre a congregação; o gesto de erguer as mãos aparece em cenas sacerdotais (Levítico 9:22).
Reis ungidos — A autoridade real também pode abençoar o povo. Davi “abençoa o povo em nome de Yahweh” (2 Samuel 6:18, Vulg.) e Salomão se volta à assembleia e a abençoa por ocasião da dedicação do templo (1 Reis 8:14-15, 55).
Patriarcas e chefes de família — Pais e anciãos abençoam seus filhos e descendentes, muitas vezes com imposição de mãos e palavras proféticas: Isaque abençoa Jacó (Gênesis 27:28-29), Jacó abençoa Efraim e Manassés cruzando as mãos (Gênesis 48:14-20) e depois pronuncia bênçãos proféticas sobre as tribos (Gênesis 49).
Sacerdotes-reis e profetas — Melquisedeque, “sacerdote do Deus Altíssimo”, abençoa Abraão (Gênesis 14:19-20, Vulg.: “benedixit ei... Benedictus Abram Deo excelso”). Profetas também podem pronunciar bênçãos; Balaão, constrangido pelo propósito divino, termina por abençoar Israel (Números 23:20; Números 24:1,10).
Humanos bendizem a Yahweh — O povo de Deus “bendiz” o Senhor em adoração, isto é, proclama Sua excelência e dá graças: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor” (Salmo 103:1, Vulg.: “Benedic, anima mea, Domino”). Após a ascensão de Jesus, os discípulos permanecem “no templo, louvando e bendizendo a Deus” (Lucas 24:53, Vulg.).
Crentes abençoam pessoas — A comunidade cristã é convocada a ser agente de bênção por meio da palavra e da intercessão, inclusive para com adversários: “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Romanos 12:14); “não retribuindo mal por mal... mas, pelo contrário, abençoando” (1 Pedro 3:9), ambos em latim com o imperativo benedicite.
Usos sociais: saudações e votos — Abençoar também aparece em saudações e votos piedosos, evidenciando uma prática devocional do cotidiano: Boaz cumprimenta os ceifeiros com “O Senhor seja convosco”, e eles respondem: “O Senhor te abençoe” (Rute 2:4, Vulg.: “Dominus vobiscum... Benedicat tibi Dominus”).
Na Bíblia, “abençoar” tem um sujeito primário (Yahweh) que comunica vida, proteção e prosperidade conforme Seu propósito; um mediador supremo (Cristo), que abençoa e é bendito; e uma rede de agentes humanos — sacerdotes, reis, patriarcas, profetas e fiéis — que, em nome de Deus, pronunciam bênçãos, intercedem e bendizem o próprio Deus em louvor (TENNEY, Enciclopédia da Bíblia, 2018, vol. 1, p. 41). Essa trama mostra que a bênção é, ao mesmo tempo, ato soberano de Deus e vocação do Seu povo para falar bem, desejar o bem e fazer o bem sob a aliança.
IV. Objetos do Verbo: quem/que é “abençoado”
O verbo “abençoar” na Bíblia tem como objetos tanto pessoas quanto realidades criadas e elementos rituais. No AT, Deus abençoa seres vivos (peixes e aves: “benedixitque eis dicens: ‘Crescite et multiplicamini’”) (Gênesis 1:22), a humanidade (“Benedixitque illis Deus”) (Gênesis 1:28), e até o tempo, quando “benedixit diei septimo” (o sétimo dia) (Gênesis 2:3). Deus também abençoa famílias e indivíduos (Noé e seus filhos; Abraão, Sara e sua descendência) (Gênesis 9:1; 12:3; 22:18; 24:60; 48:15–16), por meio dos quais a bênção se estende a “todas as famílias/nações da terra” (Gênesis 12:3; 22:18). No plano social, casas, trabalhos e recursos podem ser objetos da bênção (por exemplo, a casa de Obede-Edom; “opera manuum” de Jó; as colheitas, rebanhos e celeiros nas promessas de Deuteronômio) (2 Samuel 6:11; 2 Samuel 6:20; Jó 1:10; Deuteronômio 28:3–6; Deuterônimo 7:13). Entre pessoas, reis, patriarcas e filhos recebem bênção explícita (o povo “abençoa” o rei; Jacó “abençoa” os filhos de José) (1 Reis 8:66; Rute 2:4; Gênesis 48:15–16). No NT, além de pessoas (crianças e discípulos) (Marcos 10:16; Lucas 24:50–51), o alimento e os elementos de refeição sagrada são diretamente “abençoados” (pão, peixes, cálice) (Mateus 26:26; Marcos 8:7; Lucas 9:16; 1 Coríntios 10:16), indicando consagração/ação de graças sobre coisas concretas. Finalmente, Deus mesmo é objeto do verbo quando os fiéis “abençoam o Senhor” e “o nome do Senhor”, isto é, dirigem-lhe louvor (Jó 1:21; Salmos 96:2; Salmo 103:1; Salmo 134:1–2).
V. Usos característicos no AT (ênfase em bārak)
No Antigo Testamento, o verbo “abençoar” aparece inicialmente na narrativa da criação como ato eficaz de Deus que determina vida e fecundidade: “E Deus os abençoou” — wayĕvārek ʾōtām (Gênesis 1:28) — dirigido à humanidade, e também às aves e aos peixes (Gênesis 1:22); além disso, Deus “abençoou o sétimo dia” (Gênesis 2:3), estendendo a bênção ao tempo sagrado (Gênesis 1:22; 1:28; 2:3). Após o dilúvio, a mesma palavra criadora de bem é renovada sobre Noé e seus filhos (Gênesis 9:1). No ciclo patriarcal, a bênção assume amplitude histórica e missionária: “em ti serão benditas todas as famílias/nações da terra” (Gênesis 12:3) e “em tua descendência serão benditas todas as nações” (Gênesis 22:18), fórmula que a LXX verte com eneulogēthēsontai, reforçando a leitura de uma palavra de bem com alcance universal (Gênesis 12:3; 22:18; LXX Gênesis 22:18).No culto, bārak estrutura tanto a bênção sacerdotal quanto as aclamações litúrgicas. A bênção aarônica (“Que o Senhor te abençoe e te guarde...”) aparece como mandato e texto fixo — yĕbāreḵkā YHWH wĕyišmĕrekā — e na LXX como eulogēsai se kyrios... (Números 6:24–26; LXX Números 6:24), enquanto o sacerdote ergue as mãos para abençoar, gesto já exemplificado quando Arão “levantou as mãos... e os abençoou” (Levítico 9:22). A bênção também acompanha atos régios e sacerdotais no templo: Salomão abençoa a assembleia (2 Crônicas 6:3) e se ajoelha em oração, com o Qal de brk no sentido de “ajoelhar” (2 Crônicas 6:13; LXX 2 Crônicas 6).
Nas relações interpessoais, bārak aparece como saudação e voto piedoso. Boaz saúda os ceifeiros — “O Senhor seja convosco” — e recebe a resposta: “O Senhor te abençoe” (Rute 2:4); mais adiante diz a Rute: “Bendita sejas do Senhor” — bĕrûkāh ʾat lā-YHWH (Rute 3:10). Saul, por sua vez, declara aos zifeus: “Benditos sejais do Senhor” — bĕrûkîm ʾattem lā-YHWH (1 Samuel 23:21). Ao lado disso, “bendito seja o Senhor” é fórmula frequente de louvor, como no relato do servo de Abraão: waʾăbārek ʾet-YHWH (“e bendisse ao Senhor”, Gênesis 24:27).
O emprego de bārak também contempla a bênção como proclamação teológica: Melquisedeque abençoa Abraão — “Bendito seja Abrão do Deus Altíssimo” — e bendiz o próprio Deus Altíssimo, unindo reconhecimento e gratidão (Gênesis 14:19–20). O campo semântico inclui ainda o valor de “ajoelhar”, particularmente em chamadas ao culto: “Vinde, prostremo-nos e inclina-mo-nos; ajoelhemos [nibrĕḵāh] perante o Senhor que nos fez” (Salmos 95:6), mostrando a flexão do Qal com o gesto de reverência (Salmos 95:6).
Por convenção reverencial, há contextos em que bārak se lê como eufemismo antitético (“amaldiçoar”): “Talvez meus filhos... ‘abençoaram’ Deus em seu coração” (Jó 1:5) e a fala da esposa: “’abençoa’ a Deus e morre” (Jó 2:9), passagens tradicionalmente entendidas como “blasfemar” ou “amaldiçoar”, não como louvor (Jó 1:5; 2:9). Em conjunto, o uso veterotestamentário de bārak perfila três direções estáveis: Deus abençoa pessoas, tempos e realidades criadas de modo eficaz (Gênesis 1:22; 1:28; 2:3; 9:1); seres humanos abençoam a Deus em louvor (Gênesis 24:27); e abençoam uns aos outros em fórmulas cultuais, régias e cotidianas (Levítico 9:22; 2 Crônicas 6:3, 13; Rute 2:4; 3:10; 1 Samuel 23:21), com a tradução grega consolidando o eixo semântico por eulogéō e eulogētós, e a LXX destacando, no horizonte abraâmico, o alcance universal da bênção (LXX Gênesis 22:18).
VI. Sintaxe do verbo
No hebraico bíblico, o emprego normal de bārak (forma intensiva piel) é transitivo com objeto direto expresso por sufixo pronominal ou pela partícula do acusativo ʾet: “o SENHOR abençoou ʾet-Abraão em tudo” (Gênesis 24:1). Em bênçãos litúrgicas e fórmulas de reconhecimento/pedido, a direção do ato aparece com l- (“para, a”) — “sejas abençoada do SENHOR” (Rute 3:10) e “abençoados do SENHOR” (1 Samuel 23:21) — marcando o destinatário da invocação (o doador, no caso Deus). Na bênção sacerdotal, o verbo ocorre com pronominal de 2ª pessoa (“yĕvārēḵ-ḵā... ‘Ele te abençoe’”), ilustrando a estrutura típica “Sujeito divino + bārak + objeto humano” (Números 6:24–26). Em registro doxológico, é frequente a fórmula com particípio passivo bārûk (“Bendito [seja]”), que funciona como predicado diante do nome divino — conhecida como “fórmula bārûk” (Êxodo 18:10; Salmos 119:12).
A Septuaginta revela dois desenhos sintáticos recorrentes que influenciam o grego do Novo Testamento. (1) Para “abençoar alguém”, eulogéō rege tipicamente o acusativo: Zacarias “falava, bendizendo a Deus” (Lucas 1:64; cf. Lucas 2:28). Léxicos antigos já notam essa regência predominante do acusativo. (2) Para a bênção prometida no pacto abraâmico, a LXX usa o passivo médio eneulogēthēsontai com en + dativo (“neles/em tua descendência serão abençoadas...”), preservando a preposição hebraica b- (“em”) — “eneulogēthēsontai en tō spermati sou” (Gênesis 22:18). Esse mesmo padrão é a base do uso lucano em Atos (citação do pacto) e demonstra como a sintaxe da LXX molda a semântica do NT (VINE, Dicionário Expositivo, 2016, pp. 25-26)
No NT, os dois eixos sintáticos aparecem de modo estável. Quando humanos “abençoam/põem-se a louvar” a Deus, o verbo vem no ativo com acusativo de pessoa: eulogōn ton Theon (Lucas 1:64) e eulogēsen ton Theon (Lucas 2:28). Quando Deus é o agente que abençoa humanos, tem-se acusativo de pessoa com adjuntos que definem o âmbito (en + dativo): “o Deus e Pai... ho eulogēsas hēmas en toda bênção espiritual” (Efésios 1:3). Em contexto eucarístico, a construção transitiva com objeto direto da coisa consagrada confirma a regência: “o cálice de bênção que abençoamos” (1 Coríntios 10:16). A literatura cristã primitiva fora do NT reproduz a mesma sintaxe: “eulogeite tous katarōmenous hymin” — “abençoai os que vos amaldiçoam” (Didachê 1.3), com objeto direto no acusativo.
Textos gregos deuterocanônicos e apócrifos também são esclarecedores quanto à construção imperativa de louvor: no “Cântico dos Três” (Daniel 3 LXX), a série repetida “eulogeitē ton kyrion” ilustra o imperativo de eulogéō com acusativo de pessoa (o Senhor) em convocação coral de bênção/praise.
Quanto ao latim bíblico, a Vulgata confirma paralelos de governo: benedicens Deum (Lucas 1:64), benedixit Deum (Lucas 2:28) e calix benedictionis cui benedicimus (1 Coríntios 10:16) mantêm a transitividade direta (objeto de pessoa/coisa) à semelhança do grego, embora o latim clássico admita também o dativo com benedīcere.
Por fim, cabe notar o uso eufemístico de bārak em poucas passagens, onde a “bênção” dita contra Deus significa, por convenção reverencial, “amaldiçoar”: “Abençoa a Deus e morre” (Jó 2:9) e a acusação contra Nabote (“bārak Deus e o rei”) em 1 Reis 21:13. Tais ocorrências não mudam a regência do verbo, mas alertam para o valor pragmático em contextos jurídicos e narrativos.
No AT hebraico, bārak comporta-se como verbo transitivo com marcação direta do objeto (ʾet/sufixos) e, em fórmulas litúrgicas, recorre à “fórmula bārûk” e a complementos com l-; na LXX e no NT, eulogéō governa usualmente o acusativo (pessoa/coisa) e associa-se a adjuntos preposicionais que delimitam esfera e meio (en + dativo), enquanto o passivo/médio ([en]eulogéomai) com en + dativo transmite a ideia de “ser abençoado em” — uma herança direta da sintaxe hebraica do pacto abraâmico.
VII. Usos característicos no NT (ênfase no verbo eulogéō)
O verbo eulogéō (“abençoar; falar bem de; invocar/dispensar favor divino”) ocorre cerca de quarenta e quatro vezes no Novo Testamento (por ex., Mateus 14:19; 26:26; Marcos 6:41; Marcos 8:7; 10:16; Lucas 1:64; 2:28; 6:28; 9:16; 24:50–51; João 12:13; Atos 3:26; Romanos 12:14; 1 Coríntios 4:12; 1 Coríntios 10:16; 2 Coríntios 9:5; Gálatas 3:8–9; Efésios 1:3; Hebreus 6:14; Hebreus 7:1, 6–7; Hebreus 11:20–21; Tiago 3:9; 1 Pedro 3:9). Esses usos se distribuem em quatro movimentos principais, que cobrem a totalidade do emprego do verbo no NT e se coadunam com a tradição grega bíblica (LXX) e com a linguagem cristã primitiva.
A. Abençoar a Deus (louvor/doxologia)
Crentes “abençoam” Deus, isto é, dirigem-lhe louvor público: Zacarias “abençoa a Deus” após recuperar a fala (Lucas 1:64), e Simeão “abençoa a Deus” ao tomar o Menino nos braços (Lucas 2:28). A comunidade conclui o evangelho de Lucas “abençoando a Deus” continuamente (Lucas 24:53). A doxologia apostólica também aparece no eixo desse campo semântico: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Efésios 1:3), ainda que aí a forma mais frequente seja o adjetivo correlato (eulogētos). Para controle do texto grego de Lucas 1:64; 2:28; 24:53 e de Efésios 1:3, ver as edições críticas e paralelos apresentados em Bible Hub (texto grego com variantes).
B. Abençoar pessoas (invocar/dispensar favor).
Jesus abençoa crianças ao impor-lhes as mãos (kateulogéō, forma intensiva do verbo; Marcos 10:16) e abençoa os discípulos na ascensão (Lucas 24:50–51). Tais atos são gestos performativos de cuidado e envio. O grego de Marcos 10:16 (composto kateulogéō) e de Lucas 24:50–51 evidencia a função ritual dessa bênção.
C. Abençoar alimentos/mesa do Senhor (consagração/ação ritual).
Jesus toma pão e “abençoa” (Mateus 26:26; cf. também Mateus 14:19; Marcos 6:41; 8:7; Lucas 9:16), inaugurando um uso cultual do verbo aplicado a dons materiais. A igreja, por sua vez, “abençoa o cálice” na Ceia (1 Coríntios 10:16), linguagem que mostra eulogéō como pedido de favor e reconhecimento da bondade de Deus sobre o que se oferece e partilha. Sobre o grego dessas passagens (incl. o particípio “tendo abençoado” e o relativo “o cálice ... que abençoamos”), ver os textos apresentados.
D. Abençoar inimigos e responder com bênção (ética do Reino).
O ensino de Jesus ordena: “abençoai os que vos amaldiçoam” (Lucas 6:28; cf. a leitura tradicional em Mateus 5:44), e Paulo ecoa: “abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Romanos 12:14). Pedro reforça a mesma ética: não retribuir mal por mal, “mas, pelo contrário, abençoar” (1 Pedro 3:9). Em 1 Coríntios 4:12, os apóstolos descrevem essa prática na própria pele: “quando somos difamados, abençoamos”. O imperativo “abençoai” em Lucas 6:28 e o paralelo paulino mostram eulogéō como fala transformadora que busca o bem do outro. Consulte o texto grego de Lucas 6:28 em edições críticas paralelas.
E. Deus abençoa (doação eficaz de bem).
O Novo Testamento explicita que Deus “nos abençoou com toda bênção espiritual” em Cristo (Efésios 1:3) e que “enviou o seu Servo para vos abençoar, desviando cada um de vós das vossas maldades” (Atos 3:26). A Carta aos Hebreus relembra que “o inferior é abençoado pelo superior” (Hebreus 7:7) e cita a fórmula promissória da LXX, “abençoando, te abençoarei” (Hebreus 6:14), conectando a bênção de Deus à promessa feita a Abraão (cf. Gênesis 22:18 LXX: “em tua descendência serão abençoadas todas as nações”). Ver o grego de Gênesis 22:18 na LXX e sua recepção paulina em Gálatas 3:8, onde Paulo cita a forma composta eneulogéō para universalizar a bênção abraâmica.
F. Aclamações messiânicas (uso litúrgico/comunitário).
A saudação “Bendito o que vem em nome do Senhor” (Mateus 21:9; paralelos) retoma a fórmula da LXX em Salmos 118:26, transferindo ao Messias a aclamação cúltica dirigida ao peregrino que chega ao templo. A matriz veterotestamentária molda o emprego neotestamentário do verbo e de seus derivados. Ver o grego de Salmos 118:26 LXX.
G. Convergência com a LXX e a literatura grega do judaísmo e do cristianismo primitivo.
Na LXX, eulogéō é o verbo clássico de louvor/convite litúrgico (“Bendizei o Senhor...”), como se vê no Cântico dos Três (adições gregas de Daniel 3), cuja série de imperativos “bendizei” constitui um pano de fundo decisivo para o uso cristão do termo no NT (compare Lucas 24:53). Consulte o texto grego da LXX (Daniel 3) em edições públicas.Nos Pais Apostólicos, a Didachê reproduz o imperativo de Jesus: “abençoai os que vos amaldiçoam” (Didachê 1.3), mostrando a continuidade ética do eulogéō na instrução cristã mais antiga; observar o texto grego ajuda a perceber a mesma forma verbal e o mesmo enunciado de Lucas 6:28.
Em paralelos deuterocanônicos e apócrifos gregos, eulogéō estrutura hinos de louvor e exortações cultuais (p.ex., Sirácida e o Cântico dos Três), oferecendo o ambiente linguístico-religioso no qual o NT foi escrito e lido; esse pano de fundo confirma que “abençoar” tanto pode ser louvar a Deus quanto invocar/estender o bem sobre pessoas e realidades concretas (cf. Daniel 3 LXX).
(i) Notas de semântica e variação textual. O campo semântico abarca: (a) louvar a Deus (doxologia); (b) invocar/dispensar favor sobre pessoas; (c) consagrar dons (alimentos/mesa do Senhor); (d) resposta ética aos inimigos. O NT também usa o adjetivo correlato (eulogētos) em doxologias e, com menor relevo aqui, o substantivo (eulogia); o foco, porém, permanece no verbo. Em Mateus 5:44, a presença de eulogéō depende da tradição textual (conservada em linhas menores), enquanto Lucas 6:28 atesta de modo estável o imperativo “abençoai”. Para os gregos correspondentes, veja as colunas de variantes.
H. Panorama de ocorrências no NT (amostras representativas). Entre as passagens com o verbo eulogéō contam-se: Mateus 14:19; 26:26; 21:9; 23:39; 25:34; Marcos 6:41; 8:7; 10:16; Lucas 1:64; 2:28; 6:28; 9:16; 24:50–51, 53; João 12:13; Atos 3:26; Romanos 12:14; 1 Coríntios 4:12; 10:16; 2 Coríntios 9:5; Gálatas 3:8–9; Efésios 1:3; Hebreus 6:14; 7:1, 6–7; 11:20–21; Tiago 3:9; 1 Pedro 3:9 (para o texto grego de exemplares-chave, ver as referências acima).
(i) Síntese funcional. No NT, “abençoar” com eulogéō é, antes de tudo, linguagem que reconhece e propaga o bem: eleva louvor a Deus; pede e comunica benevolência sobre pessoas (inclusive inimigos); consagra os dons de Deus na mesa; e descreve a própria ação eficaz de Deus que alcança e transforma (Atos 3:26; Efésios 1:3). Essa rede semântica está enraizada na LXX (Salmo 118:26; Gênesis 22:18) e continua viva nos primeiros textos cristãos (Didachê 1.3), o que confirma que “abençoar” no NT conjuga confissão, rito e ética, sempre em chave de graça e serviço. (Blue Letter Bible)
(ii) Observação final sobre crítica textual e variações de forma. O NT registra ainda o composto kateulogéō (Marcos 10:16) e faz eco a compostos da LXX como eneulogéō (Gálatas 3:8 citando Gênesis 22:18 LXX), sem alterar o núcleo semântico: louvor, invocação e concessão de favor no âmbito da aliança. Consulte os textos gregos nas páginas indicadas.
VIII. Continuidade e transformação do AT para o NT
Do uso criacional e pactual do Antigo Testamento — em que bārak designa a palavra eficaz de Deus que comunica vida, fecundidade e direção — o Novo Testamento herda o núcleo performativo por meio da tradução e do repertório da Septuaginta, onde bārak é vertido regularmente por eulogéō e, na promessa abraâmica, pelo composto eneulogéō; daí Paulo citar a forma eneulogēthēsontai ao afirmar que “em ti serão abençoadas todas as nações” (Gênesis 22:18 LXX; Gálatas 3:8), explicitando que o alcance universal previsto no AT se cumpre agora em Cristo e na fé entre os gentios. Essa continuidade lexical e teológica acompanha uma transformação de horizonte: aquilo que no AT é dom que estrutura criação, sábado, linhagem e povo de aliança torna-se, no NT, dom escatológico “em Cristo”, quando Deus “nos abençoou com toda bênção espiritual... em Cristo” (ho eulogēsas hēmas... en Christō, Efésios 1:3), de modo que a bênção prometida se reconhece como realidade inaugurada no Messias e comunicada pelo Espírito.No nível da agência, o NT confirma e reordena os sujeitos da bênção: Jesus atua como o rei-sacerdote que abençoa o povo de Deus — impondo as mãos às crianças (kateulogéō) e, na ascensão, “erguendo as mãos, os abençoou”, gesto que sela a missão da comunidade (Marcos 10:16; Lucas 24:50–51). O mesmo eixo aparece na vida cúltica da Igreja: o “cálice da bênção que abençoamos” indica que a ação de graças sobre os dons (pão e cálice) é compreendida como ato verbal que consagra e participa do benefício de Cristo (1 Coríntios 10:16). Assim, a bênção passa do culto levítico — mediada por sacerdotes — ao culto cristão centrado no Cristo exaltado e celebrado pela assembleia.
A dimensão ética sofre igualmente uma transformação ao ser radicalizada no discipulado: não apenas se abençoa quem pertence ao povo, mas “abençoai os que vos amaldiçoam”, exortação que desloca a bênção para o terreno do inimigo e do perseguidor (Lucas 6:28). Essa ética do Reino retoma e amplia o contraste AT “bênção/maldição”, agora como prática contracultural que retribui o mal com o bem e manifesta, pela palavra, a graça recebida. O próprio querigma apostólico apresenta o Ressuscitado como o agente da bênção prometida a Abraão — “Deus enviou o seu Servo para vos abençoar, convertendo cada um de vós das vossas maldades” (Atos 3:26) —, vinculando a eficácia da bênção ao arrependimento e à transformação de vida.
A linguagem pós-neotestamentária ajuda a perceber a mesma malha semântica. Na oração e nos imperativos cultuais da literatura grega do judaísmo e do cristianismo primitivo, a forma verbal de eulogéō continua a convocar o povo ao louvor e à intercessão: o “Cântico dos Três” (adição grega de Daniel) repete a série litúrgica “eulogeitē ton Kyrion” (“bendizei o Senhor”), pano de fundo que ilumina o final de Lucas, quando os discípulos permanecem “abençoando a Deus”. Do lado cristão, a Didachê ecoa diretamente o mandamento de Jesus: “eulogeite tous katarōmenous hymin” (“abençoai os que vos amaldiçoam”, Didachê 1.3), mostrando que a Igreja primitiva entendeu eulogéō como ato performativo de louvor e como prática ética que alcança inclusive os opositores. Nesses textos extrabíblicos — embora não inspirados —, a continuidade de formas e usos (imperativos de bênção, bênção como resposta cultual e como resposta ética) confirma o que se lê no NT e ajuda a delimitar o campo semântico do verbo no koiné cristão.
Em síntese, a continuidade se observa no vínculo entre palavra e benefício: o mesmo Deus que “abençoa” no AT segue abençoando no NT, agora “em Cristo”, por meio do Espírito, e com horizonte universal; a transformação se nota no deslocamento do centro (do templo e da linhagem para o Cristo e sua mesa), na ampliação do alcance (de Israel a todas as nações) e na intensificação ética (abençoar inclusive inimigos). Essa passagem do bārak pactual à prática cristã de eulogéō não troca de essência, mas de escala e de cenário — do prenúncio ao cumprimento —, sem perder a natureza de ato de fala que, vindo de Deus e retornando a Deus, comunica e invoca o seu bem eficaz no mundo.
IX. Mediação latina: benedicere e sua recepção patrística
No latim eclesiástico e bíblico, benedicere torna-se o equivalente preferencial para verter o ato bíblico de “abençoar”, consolidando na tradição ocidental uma linguagem de louvor, ação de graças e comunicação eficaz do favor divino. A escolha se fixa na Bíblia latina, onde a criação é santificada pelo ato divino (“et benedixit Deus diei septimo”), estabelecendo o padrão teológico de bênção como palavra eficaz de Deus sobre o tempo e a realidade (Gênesis 2:3).
Essa preferência lexical estrutura refrães doxológicos e fórmulas litúrgicas. A antífona “Ecce nunc, benedicite Dominum” dá voz à convocação cultual dos servos do Senhor (Salmos 134:1-3), e o cântico evangélico Benedictus (“Benedictus Dominus, Deus Israel...”) inaugura, no Novo Testamento, a proclamação da visita redentora de Deus (Lucas 1:68). No corpus paulino, benedicere articula a lógica cristológica da bênção: “Benedictus Deus et Pater Domini nostri Iesu Christi, qui benedixit nos in omni benedictione spiritali...” (Efésios 1:3), fórmula que se tornará eixo da linguagem latina de louvor e soteriologia.
A mesma matriz informa a teologia eucarística: “Calix benedictionis, cui benedicimus” (1 Coríntios 10:16) une benção, comunhão e sacrifício em uma única economia de graça celebrada na assembleia.
Nos Padres latinos, benedicere/benedictio permeia exegese, catequese e liturgia. Agostinho, ao comentar “Ecce nunc, benedicite Dominum” (Salmos 134), interpreta o imperativo como convocação integral do corpo eclesial ao louvor noturno no santuário—leitura que amarra culto, caridade e unidade. Em outras enarrationes, o refrão “Benedictus es, Domine” (Salmos 118:12) serve de escola de oração, fazendo da benedictio um hábito de alma que molda afetos e vontade.
Ambrósio, em sua mistagogia, descreve a eficácia sacramental como fruto da benedictio pronunciada sobre os dons: não é “o que a natureza formou”, mas “o que a benedictio consagrou” que a Igreja recebe—um léxico que associa bênção, consagração e transformação no mistério eucarístico. A mesma teologia ressoa na tradição ambrosiana e no uso romano, em que a benedictio acompanha oblação e comunhão, inserindo benedicere no coração das grandes orações e ritos.
Entre os primeiros latinos africanos, a reflexão sobre a oração assume naturalmente o vocabulário da benedictio. Tertuliano, ao expor o Pater Noster, fala da “benedictio” de Deus como atitude conveniente “omni loco ac tempore”, sinal de que a bênção (louvor agradecido) é forma abreviada do Evangelho rezado. (The Latin Library) Mesmo quando escreve sobre a vida doméstica, ele supõe a benedictio divina como qualidade própria do convívio cristão—nota que adensará mais tarde a linguagem da bênção nupcial. (Documenta Catholica Omnia)
Essa mediação latina sedimenta uma semântica bifronte, já pressuposta pela Escritura, mas agora com timbre próprio: benedicere designa (1) o louvor/doação de graças dirigido a Deus (Benedictus Deus..., Efésios 1:3; 2 Coríntios 1:3) e (2) a comunicação de favor—divino sobre pessoas, tempos e coisas (“benedixit...”, Gênesis 2:3; bênçãos apostólicas). Na recepção patrística e litúrgica, essa dupla se torna pedagógica: a Igreja benedicit a Deus em doxologia e, por mandato de Cristo, benedicit o povo e os elementos, como sinal eficaz do dom recebido e partilhado, especialmente no “calix benedictionis” (1 Coríntios 10:16).
Por fim, o latim eclesial preserva essa tessitura bíblica na oração pública da Igreja: salmos e antífonas “Benedictus/Benedicite”, leituras e prefácios que começam com Benedictus Deus..., e documentos magisteriais que mantêm a cadência paulina—indicando como benedicere permanece a língua franca ocidental para nomear a bênção como louvor e como dom.
Referências latinas citadas (texto original):
Gênesis 2:3 (“benedixit Deus diei septimo”), Nova Vulgata; Salmos 134:1-3 (“Ecce nunc, benedicite Dominum”), Nova Vulgata; Lucas 1:68 (“Benedictus Dominus, Deus Israel”), Nova Vulgata; Efésios 1:3 (“Benedictus Deus... qui benedixit nos...”), Nova Vulgata; 2 Coríntios 1:3 (“Benedictus Deus et Pater...”), Nova Vulgata; 1 Coríntios 10:16 (“Calix benedictionis, cui benedicimus”), Nova Vulgata; Agostinho, Enarrationes in Psalmos (Salmo 133/134; Salmo 118/119, 12); Ambrósio, De mysteriis; testemunhos litúrgicos romanos/ambrosianos.
X. Relação com o verbo “amaldiçoar” (polaridade bênção–maldição)
Na Bíblia hebraica, a bênção e a maldição formam um par antitético estrutural: ao lado de bārak (“abençoar”), o verbo ’ārar designa a imposição de uma maldição e o substantivo qĕlālāh a maldição proferida, frequentemente em fórmulas jurídico-pactuais (Deuteronômio 27–28). “Maldito” (’ārūr) ecoa como refrão nas proclamações de Ebal (“Maledictus...”, Vulg.) e na lista de sanções pactualmente assumidas pelo povo (Deuteronômio 27:24; Deuteronômio 28:16–19). Esse campo lexical é definido também por usos técnicos: ’ārar (Strong 779) descreve a maldição vinculante que coloca alguém sob juízo, enquanto qĕlālāh (Strong 7045) é a maldição declarada – termos em contraste programático com bĕrākāh (“bênção”). Na legislação cultual, a prova da água amarga fala de “águas que trazem maldição” com formas derivadas de ’ārar (Números 5), ilustrando a dimensão performativa do ato de amaldiçoar na esfera do santuário e da justiça.
A Septuaginta verte esse eixo com a família de katára/kataraomai (“maldição/amaldiçoar”) e com o adjetivo epikataratos (“maldito”), que se torna a forma-padrão nas proclamações de maldição (Deuteronômio 27:26 LXX: epikataratos pas anthropos). No Novo Testamento, Paulo cita a fórmula deuteronômica para articular sua tese: “Cristo nos resgatou da maldição (katára) da Lei... porque está escrito: ‘Epikataratos todo aquele que pendura no madeiro’” (Gálatas 3:13; cf. 3:10), preservando o vocabulário da LXX para mostrar a passagem da maldição pactual à bênção prometida a Abraão.
A ética cristã contrapõe explicitamente os dois verbos: “abençoai os que vos perseguem... e não amaldiçoeis” (Romanos 12:14), com o par eulogéō/kataraomai em construção imperativa (Vulg.: “Benedicite... nolite maledicere”). Tiago evidencia a incoerência de uma mesma boca “bendizendo o Senhor e Pai” e “amaldiçoando os homens feitos à semelhança de Deus” (Tiago 3:9), reforçando que o uso da língua decide entre a esfera da bênção e a da maldição. No material evangélico, o verbo kataraomai aparece, por exemplo, na narrativa da figueira (“a figueira que amaldiçoaste...”), mostrando o valor performativo da palavra de maldição em contraste com a palavra de bênção que múltiplas vezes acompanha refeições e curas.
Do lado hebraico, a tradição registra ainda o uso eufemístico de bārak (“abençoar”) com valor de “amaldiçoar/blasfemar” em contextos de tabu linguístico, como em Jó 1–2 e 1 Reis 21:10.13; a filologia nota que o leitor nativo não se confunde porque o valor pragmático é dado pela situação e pelo paralelismo semântico, e léxicos populares reconhecem explicitamente o emprego eufemístico no caso de Nabote. Esse expediente confirma que o par bênção–maldição não é mera oposição vocabular, mas um polo ético-teológico que ordena fala, culto e justiça: onde não há bênção, insinua-se sua antítese; onde a bênção é invocada de forma indevida, chama-se, na verdade, a maldição sobre si (cf. Deuteronômio 28).
No vocabulário grego do período, as entradas lexicais ajudam a delimitar o campo: kataraomai (Strong 2672) é “amaldiçoar, execrar”, verbo de ampla circulação no koiné; katára (Strong 2671) é o substantivo “maldição”; e epikataratos (Strong 1944) qualifica quem está “sob maldição”, categoria central para a leitura paulina de Deuteronômio. A teologia apostólica, portanto, não anula a linguagem de maldição: antes, reinterpreta-a cristologicamente, mostrando que o Messias assume a “maldição” para que a “bênção de Abraão” alcance as nações — a antítese serve, assim, para iluminar a natureza e o alcance da bênção no novo pacto.
A recepção latina mantém o par com transparência: a Vulgata usa maledicere/maledictus para a maldição (por exemplo, “Maledictus es...” à serpente, Gênesis 3:14; “Maledictus eris ingrediens...”, Deuteronômio 28:19), e conserva, nas exortações, a oposição performativa: “Benedicite... nolite maledicere” (Romanos 12:14). Na tradição patrística latina acessível em corpora católicos, ressoa o mandamento evangélico: “benedicite maledicentibus vobis” (Lucas 6:28 Vulg.) é frequentemente citado como regra de vida, ecoando a antítese bíblica e modelando a linguagem cristã (ex.: edições críticas e repositórios da Patrologia Latina).
Nota filológica e histórico-litúrgica. A oposição semântica é coerente em todo o arco canônico: no hebraico, ’ārar/qĕlālāh negam e excluem o espaço da bĕrākāh; na LXX/NT, katára/kataraomai e epikataratos contrapõem-se sistematicamente a eulogéō; no latim eclesial, maledicere/maledictus se opõem a benedicere/benedictus. Isso explica por que as passagens-chave do NT sobre mesa, oração e ética da palavra vêm acompanhadas de proibições de “amaldiçoar”: trata-se de vedar o contrário performativo da bênção e de preservar a coerência entre culto e vida (Romanos 12:14; Tiago 3:9)
XI. Problema de traduções para línguas modernas
A tensão “abençoar” × “louvar/elogiar/agradecer” em contextos de doxologia é um dos pontos mais visíveis. Em passagens onde o texto grego manda “abençoar a Deus”, várias traduções modernas preferem “louvar”. Assim, em Lucas 1:64 muitas versões em inglês trazem “praising God”, enquanto outras mantêm “blessing God”; é possível ver lado a lado “praising” (NIV, CSB, NET) e “blessing” (KJV, Douay-Rheims, YLT) numa mesma página comparativa. Em português ocorre o mesmo: a ACF conserva “bendizendo” em Lucas 24:53, ao passo que a NVI opta por “louvando”, evidenciando a tendência de evitar “abençoar a Deus” no uso contemporâneo. Essa opção também aparece em Lucas 1:64 em múltiplas versões modernas em inglês (praise em vez de bless), o que confirma o padrão editorial de muitas comissões tradutórias de verter o gesto humano para com Deus como “louvor”.
Outro campo sensível é a mesa: em contextos de refeição cultual ou ordinária, o grego frequentemente emprega eulogéō (“abençoar”), mas várias traduções escolhem “dar graças”, alinhando a doxologia verbal à ação eucarística. Em Mateus 26:26, muitos painéis comparativos mostram versões que preferem “gave thanks” (NIV, NET) em lugar de “blessed” (KJV, ESV), apesar de o verbo do texto ser eulogéō — um caso clássico de equivalência funcional. A análise interlinear e léxica confirma que eulogéō pode significar tanto “louvar/elogiar” quanto “invocar bênção/consagrar”, o que explica a latitude tradutória nesse ambiente de oração à mesa. Em português, a mesma oscilação aparece no entorno eucarístico: em 1 Coríntios 10:16, versões como a NTLH preferem “o cálice pelo qual damos graças”, enquanto versões mais formais preservam “cálice da bênção que abençoamos” (ACF, NVI).
Quando o objeto direto é Deus, a escolha entre “abençoar/bendizer” e “louvar” ou “dar graças” costuma depender do público-alvo da tradução e da tradição confessional de estilo. Salmos 103:1 ilustra bem: no inglês, a KJV mantém “Bless the LORD, O my soul”, mas a NIV prefere “Praise the LORD, my soul”, mostrando que “bless the Lord” pode soar arcaico/idiomático a leitores modernos. Em português contemporâneo, a NVI conserva o calque tradicional “Bendiga ao SENHOR, ó minha alma”, enquanto outras edições Almeida mantêm “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR”, ambas preservando o registro devocional herdado do português bíblico clássico. Essas escolhas refletem um ponto que os léxicos destacam: eulogéō, no grego bíblico, abrange “louvar/celebrar” e “abençoar/consagrar”, e bārak, no hebraico, une o gesto verbal de louvor ao ato de conferir bem. Em suma, o tradutor moderno tende a selecionar “louvar” quando o sujeito é humano e o objeto é Deus, e “abençoar” quando o sujeito é Deus e o objeto são pessoas ou realidades. (Blue Letter Bible)
Outro foco de atenção está na ética cristã: o imperativo de retribuir o mal com bênção. Em Romanos 12:14, os paineis em inglês e em português mostram a regularidade de “bless ... and do not curse” / “abençoem ... e não amaldiçoem”, preservando o paralelismo antitético “abençoar/amaldiçoar”, que é central para a semântica do campo. O mesmo padrão aparece em Lucas 6:28 (“abençoem os que os amaldiçoam”), com variantes estilísticas (“bendizei”, “desejem o bem”) que tornam o imperativo acessível ao leitor contemporâneo sem romper o eixo semântico “bênção” × “maldição”. Em Tiago 3:9, muitas versões em inglês alternam entre “bless” e “praise” quando a língua humana se dirige a Deus, espelhando, de novo, a tensão glossológica entre a fórmula tradicional e a equivalência dinâmica.
No Antigo Testamento há um problema tradutório pontual, mas importante: o emprego de bārak como eufemismo para “amaldiçoar” em contextos que envolvem o nome de Deus ou da realeza. Várias obras de referência assinalam o fenômeno, e os painéis de traduções o tornam visível para o leitor: em Jó 1:5; 2:9 e 1 Reis 21:10, a maioria das versões verte o sentido como “amaldiçoar”/“blasfemar”, ainda que o vocábulo subjacente seja o mesmo de “abençoar” — um expediente reverencial do hebraico que o tradutor precisa desfazer no receptor para evitar contrassenso. Em Jó 2:9, por exemplo, o painel de traduções apresenta “curse God and die” (várias modernas) ao lado de “bless God and die” (algumas literais/arcaicas), sinalizando ao leitor o problema textual-semântico subjacente. Comentários e discussões técnicas mencionam explicitamente o eufemismo e a razão religiosa por trás dele, o que justifica a solução “amaldiçoar” no texto alvo.
Além desses casos, há cenários em que o objeto do verbo não é Deus nem pessoas, mas “coisas” do rito: pão e cálice. Aqui, a equivalência flutua entre “abençoar” e “dar graças”, porque, na prática litúrgica, abençoar o alimento era (e é) realizado por meio de uma ação de graças. Em Mateus 26:26, como já notado, versões tradicionais preferem “blessed” e versões de equivalência dinâmica preferem “gave thanks”, ecoando o uso lexical de eulogéō de “consagrar invocando bênção” por meio de louvor/agradecimento. Em 1 Coríntios 10:16, por sua vez, observa-se no português a convivência de “o cálice da bênção que abençoamos” (ACF/NVI) com a paráfrase comunicativa “o cálice pelo qual damos graças” (NTLH), sinal de que o receptor lusófono entende o ato de “abençoar o cálice” como “agradecer por ele”.
Os léxicos de referência ajudam a explicar por que essas oscilações são legítimas: eulogéō, no grego do NT e da LXX, abrange (1) louvar/celebrar a Deus, (2) invocar/comunicar benefício sobre pessoas, e (3) consagrar/coisas por uma invocação; bārak, no hebraico bíblico, move-se pelo mesmo campo, com a nota adicional do eufemismo em poucos contextos forenses. Essa polissemia explica por que “bless”, “praise”, “give thanks”, “bendizer”, “louvar” e “dar graças” podem todos ser escolhas corretas, desde que situadas pelo sujeito, objeto e gênero literário do texto.
Por fim, duas observações de estilo em português que impactam a tradução do verbo: (a) “abençoar a Deus” soa pouco natural no uso comum; por isso, traduções vertem ações humanas para com Deus como “louvar”/“bendizer” (Lucas 24:53, ACF “louvando e bendizendo”; NVI “louvando”). (b) “bendizer” permanece em fórmulas de salmos e doxologias por tradição literária (Salmos 103:1 em várias Almeidas), ao passo que “louvar” aparece como alternativa editorial em painéis modernos, inclusive no inglês (NIV “Praise the LORD, my soul”). Em todos esses casos, não há um “erro” de tradução, mas decisões de equivalência que ponderam inteligibilidade, registro devocional e continuidade com a tradição estilística.
XII. Problemas de tradução nas línguas modernas
Em textos do Novo Testamento em que o sujeito humano se dirige a Deus, muitas comissões optam por “louvar” em vez de “abençoar/bendizer”, ao passo que quando o sujeito é Deus (ou a comunidade sobre os elementos), “abençoar” tende a ser mantido. Essa tendência fica nítida em oito loci clássicos — aqui alinhados com comparações em inglês e português.
A. Lucas 1:64 (louvor humano dirigido a Deus).
Em inglês, versões de equivalência dinâmica registram “praising God” (NIV, CSB), enquanto outras preservam “blessing God” (NET, Weymouth); em texto comparativo, se exibe lado a lado “praising” e “blessing”, mostrando a divisão editorial contemporânea (a KJV tem “praised God”). Em português, a ACF verte “louvando a Deus”, sinalizando a mesma preferência estilística contemporânea por “louvar” quando o objeto é Deus.
B. Lucas 24:53 (doxologia comunitária contínua).
Em inglês, ESV, ISV, NET e outros mantêm “blessing God”, enquanto várias opções dinâmicas trazem “praising God”; o quadro paralelo evidencia as duas soluções convivendo no uso corrente. Em português, a ACF combina “louvando e bendizendo”, e a NVI simplifica para “louvando”, ilustrando como as famílias Almeida preservam “bendizer” no registro litúrgico, enquanto a NVI privilegia a fluência moderna.
C. Tiago 3:9 (polaridade ‘abençoar’ × ‘amaldiçoar’ na ética da língua).
Em inglês, temos “With the tongue we bless our Lord and Father” (NASB/CSB) versus “we praise” (algumas linhas dinâmicas), sempre seguido de “we curse men”, preservando o par antitético; o interlinear confirma a leitura com eulogoumen. Em português, tanto ACF quanto NVI mantêm “bendizemos ... e amaldiçoamos”, alinhadas ao paralelismo ético tradicional.
D. 1 Pedro 3:9 (responder com bênção).
Em inglês, a maioria traduz “not returning evil... but giving a blessing”/“but with blessing”, tornando explícita a resposta cristã como concessão verbal de bem; o interlinear de 1 Pedro 3:9 exibe essa leitura consolidada. Em português, a ACF registra “antes, pelo contrário, bendizendo”, preservando o uso verbal clássico.
E. Mateus 26:26 (mesa: ‘abençoar’ × ‘dar graças’).
Em inglês, temos a bifurcação: “when he had given thanks” (NIV/NET) ao lado de “after blessing it” (ESV) e “blessed” (KJV); a página interlinear confirma a leitura com eulogésas e explica a opção editorial por “dar graças” como equivalência funcional em contexto eucarístico. Se compararmos rapidamente “blessed” (ESV/ASV) com “given thanks” (NIV/NASB), se evidencia a mesma flutuação. Em português, a ACF mantém “abençoando-o” para o pão e “dando graças” para o cálice no versículo seguinte, refletindo a prática devocional de “abençoar” por meio de ação de graças.
F. 1 Coríntios 10:16 (linguagem eucarística da Igreja).
Em inglês, muitas versões guardam “The cup of blessing that we bless”, mas outras fontes também exibem “The cup of blessing ... is it not a sharing/participation...”, e algumas linhas parafrásticas introduzem “thanksgiving” no primeiro membro; outra comparação mostra “The cup of blessing that we bless” (ESV/RSV/ASV) e em seguida “the cup of blessing that we bless”/“cup of blessing... a sharing”, enquanto a Douay-Rheims conserva “chalice of benediction”. Podemos agregar uma lista de versões (ESV, CSB, NASB, NET) onde o primeiro hemistíquio ora fica como “blessing that we bless”, ora se aproxima de “thanksgiving”, reforçando a equivalência litúrgica. Em português, a ACF cristaliza a fórmula “cálice de bênção, que abençoamos”, padrão que também aparece em painéis multilíngues de “Bíblia Online”.
G. Romanos 12:14 (imperativo ético concentrado).
Em inglês, há unanimidade expressiva: “Bless those who persecute you; bless and do not curse”, com pequenas variações de ritmo; outra comparação exibe a estabilidade do par “bless... do not curse”. Em português, ACF e NVI mantêm “Abençoai/Abençoem... não amaldiçoeis/ não os amaldiçoem”, e painéis de agregadores confirmam a padronização; a NTLH parafraseia (“Peçam que Deus abençoe...”), mas preserva o contraste semântico.
H. Lucas 6:28 (paralelo sinóptico do imperativo).
Em inglês, a constância é semelhante: “Bless those who curse you; pray for those who mistreat/abuse you”, com variações estilísticas (spitefully use/abuse/mistreat); interlineares e léxicos registram a linha de versões que mantém “bless”. Em português, os portais com coleções de versões seguem a mesma matriz; quando disponível, as linhas Almeida mantêm “bendizei/abençoai”, e equivalências dinâmicas aproximam de “desejem o bem”, sem perder o polo antitético com “amaldiçoar”. (Para Lucas 6 em português, ver painéis NVI/NTLH em agregadores — a formatação por capítulo varia segundo o site.)
I. Pontos editoriais observáveis à luz dos painéis comparativos.
(1) Quando o objeto é Deus, muitas equipes preferem “louvar” em vez de “abençoar/bendizer” por naturalidade de uso: Lucas 1:64 e 24:53 exibem “praising God” (NIV/CSB) e “blessing God” (ESV/NET); ACF e outras linhas lusófonas frequentemente combinam “louvar” e “bendizer” (Lucas 24:53 ACF; Lucas 24:53 NVI com “louvando”), mantendo a tessitura devocional tradicional. (2) Em refeição/rito, a oscilação entre “abençoar” e “dar graças” decorre do uso litúrgico de agradecer para abençoar: Mateus 26:26 alterna “blessed” (ESV/KJV) e “had given thanks” (NIV/NET), e a tradição portuguesa frequentemente conserva ambos na perícope (pão “abençoado”, cálice “com ação de graças”). (3) Onde a ética cristã é enfatizada, a fórmula “abençoar... e não amaldiçoar” tende a ser literal e estável (Romanos 12:14; Lucas 6:28), pois o contraste semântico precisa ficar nítido ao leitor moderno. (4) Em doxologias e hinos, “bendizer” permanece comum em tradições litúrgicas/católicas (p.ex., Douay/NAB em Lucas 24:53 e 1 Coríntios 10:16), mantendo a cadência “benedictus/benediction”.
J. Observações rápidas por versão (amostras controladas pelos painéis).
KJV e famílias literalistas mantêm “bless/blessed” nos contextos doxológicos (Lucas 24:53; Mateus 26:26), enquanto NIV/NET preferem “praise/give thanks” nesses mesmos pontos; a KJV mostra “praised” em Lucas 1:64 mas “blessing/blessing God” em Lucas 24:53 (varia conforme a linha), e a NIV com “praising” e “had given thanks”. Em português, a ACF retém “bendizer/abençoar” com frequência (1 Coríntios 10:16; 1 Pedro 3:9) e alterna “louvar” em Lucas 1:64; a NVI normalmente usa “louvando” quando o objeto é Deus e conserva “abençoem/abençoar” quando o objeto são pessoas, como Romanos 12:14.
L. Convergências entre portais (inglês/português).
Muitas obras de referência permitem ver, no mesmo verso, colunas de ESV/NASB/NET/KJV exibindo as escolhas “bless” × “give thanks” (Mateus 26:26; 1 Coríntios 10:16), enquanto outras expõem painéis paralelos com dezenas de versões, inclusive católicas (Douay/NAB) que preservam “blessing/benediction”. No ambiente lusófono, “Bíblia Online” (ACF/NVI/NTLH etc.) mostra a mesma variação controlada: Lucas 24:53 com “louvando” (NVI) versus “louvando e bendizendo” (ACF), Mateus 26:26 com “abençoando-o” (ACF), 1 Coríntios 10:16 com “cálice de bênção que abençoamos” (ACF).
Os dados comparativos indicam um padrão estável: (a) “louvar” substitui “abençoar” quando o objeto é Deus (particularmente em traduções modernas e equivalência dinâmica), (b) “abençoar” é preferido quando o sujeito é Deus ou quando se trata de mediação litúrgica sobre pessoas/elementos (com a alternativa “dar graças” em contexto de mesa), e (c) nos textos éticos, as comissões evitam paráfrases extensas para preservar o par antitético “abençoar/amaldiçoar”. Esses três vetores — confirmados pelos painéis de Lucas 1:64; 24:53; Tiago 3:9; 1 Pedro 3:9; Mateus 26:26; 1 Coríntios 10:16; Romanos 12:14; Lucas 6:28 — explicam, de modo técnico e verificável, por que “abençoar” nas traduções modernas oscila entre “bendizer”, “louvar” e “dar graças” sem trair o campo semântico bíblico.
Bibliografia
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C. Versões em português
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BÍBLIA. A Bíblia Sagrada traduzida em português segundo a Vulgata Latina, Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, 1950.
C.2. Baseadas no texto hebraico massorético (BHS) para o AT e ao texto grego crítico
BÍBLIA. Almeida Revista e Atualizada (ARA). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, eds. diversas.
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BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém (edição brasileira). São Paulo: Paulus, 2016 (reimpr. posteriores). (Base: originais hebraico/aramaico/greco; notas consideram LXX/Vulgata).
BÍBLIA. Nova Versão Internacional (NVI). São Paulo: Editora Vida/Bíblica Brasil, 2001– (tradução direta dos originais).
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C.3. LXX (Septuaginta) em português
BÍBLIA. Bíblia – Tradução do grego por Frederico Lourenço (coleção em múltiplos volumes: NT e AT segundo a LXX). São Paulo: Companhia das Letras; Lisboa: Quetzal, 2016–2019.C.4. Interlinear grego/português (SBB)
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Novo Testamento Interlinear Grego–Português. 2. ed. Barueri: SBB, 2017.C.5. Bíblias em inglês
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GALVÃO, Eduardo. Abençoar. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].