Interpretação de Tiago 2

Tiago 2

Tiago 2 continua os ensinamentos práticos e éticos da carta, concentrando-se nos temas da fé, das obras e do perigo do favoritismo ou parcialidade dentro da comunidade cristã. Este capítulo enfatiza a necessidade de uma fé viva e ativa que se expresse através de boas ações. Aqui está uma interpretação dos pontos-chave em Tiago 2:

1. Advertência contra o favoritismo: Tiago começa abordando a questão do favoritismo dentro da igreja. Ele ilustra este ponto com um cenário hipotético em que um homem rico recebe tratamento preferencial em relação a um homem pobre. Tiago condena tal parcialidade, lembrando aos leitores que Deus escolheu os pobres para serem ricos na fé e herdeiros do reino (Tiago 2:1-7).

2. A Lei Real do Amor: Tiago introduz o conceito da “lei real” encontrada nas Escrituras: “Ame o seu próximo como a si mesmo”. Ele explica que mostrar favoritismo é uma violação desta lei e tem o mesmo peso que violar toda a lei. Tiago sublinha a importância do amor imparcial e da misericórdia como expressões de fé genuína (Tiago 2:8-13).

3. Fé e Obras: Tiago aborda a relação entre fé e obras, um tema chave neste capítulo. Ele desafia aqueles que afirmam ter fé, mas não a demonstram através das suas ações. Tiago argumenta que a fé sem obras é morta, como um corpo sem espírito. Ele fornece o exemplo de Abraão, cuja fé foi creditada como justiça porque ele agiu de acordo com a ordem de Deus de oferecer Isaque como sacrifício. Da mesma forma, a fé de Raabe foi demonstrada através das suas ações na proteção dos espiões (Tiago 2:14-26).

4. Justificação pelas Obras e pela Fé: Tiago usa o exemplo de Abraão para ilustrar que a fé e as obras estão interligadas. Ele afirma que Abraão foi justificado pelas obras quando ofereceu Isaque, mas também foi justificado pela fé diante de Deus. O argumento de Tiago não é que as obras por si só justificam uma pessoa, mas que a fé genuína produz inevitavelmente boas obras. Fé e obras são aspectos complementares de uma fé viva (Tiago 2:21-24).

5. A Fé e a Língua: Tiago aborda brevemente o poder da língua e a necessidade dos crentes controlarem a sua fala. Ele enfatiza que tanto as bênçãos quanto as maldições não devem vir da mesma boca, pois esta inconsistência revela falta de sabedoria e entendimento (Tiago 2:26-3:12).

Em Tiago 2, o autor aborda as questões do favoritismo, da relação entre fé e obras e do poder da língua. Ele enfatiza que a verdadeira fé não é apenas uma crença intelectual, mas uma fé viva e ativa que se expressa através de boas ações. Tiago argumenta que a fé e as obras estão interligadas, e a fé genuína produzirá naturalmente ações justas. O capítulo destaca a importância de amar o próximo com imparcialidade e de viver a lei real do amor. Em última análise, Tiago encoraja os crentes a demonstrarem a sua fé através das suas ações e a evitarem a hipocrisia e o favoritismo dentro da comunidade cristã.

Interpretação

2:1 A ênfase colocada sobre a importância da conduta continua neste parágrafo. Aqui se aplica à parcialidade. Meus irmãos marca a transição para um novo assunto (cons. 1:2,19; 2:14; 3:1; 5:1). A E.R.A, e E.R.C, traduz corretamente o verbo no imperativo (a outra possibilidade é o indicativo) combinando com a maneira direta de Tiago escrever. Não se sabe ao certo como o genitivo Senhor Jesus Cristo qualifica fé. G. Rendall sugere a possibilidade de considerarmos o genitivo como qualitativo, “como se definisse o caráter particular da sua fé em Deus. A fé em Deus que tem por apoio e conteúdo nosso Senhor Jesus Cristo', que é o tipo cristão da fé em Deus” (The Epistle of St. James and Judaic Christianity, pág. 46). Entretanto, provavelmente é mais fácil considerar o genitivo como objetivo – “sua fé em nosso Senhor Jesus Cristo”. Seja como for, a fé é fé dinâmica, confiança dirigida para o Senhor Jesus Cristo. Nada tem a ver com a ideia posterior de fé como um corpo de doutrinas a serem cridas. A última parte do versículo diz Senhor da, o que não aparece no original. Jesus foi simplesmente chamado de “a glória”, uma referência óbvia ao Shekinah (cons. Jo. 1:14; II Co. 4:6; Hb. 1:3). O ponto principal deste versículo é que toma-se inconsistente apegar-se à fé cristã e ao mesmo tempo demonstrar parcialidade.

2:2 Agora o escritor cita uma ilustração para reforçar a ideia. Um homem rico com anéis de ouro e muito bem vestido e um homem pobre andrajoso (maltrapilho) entram na assembleia (synagoge). O uso desta palavra para o lugar de reunião dos cristãos tem dado lugar a muitas conjeturas sobre o autor e leitores da epístola; mas como diz Blackman, “deve-se lembrar que as duas palavras synagoge e ekklesia são sinônimos aproximados, e pode-se imaginar que synagoge e não ekklesia é que deve ter se transformado no termo regular para a igreja propriamente dita. Assim é possível que a palavra fosse usada por Tiago aqui como sobrevivência dos tempos quando o seu uso era normal” (The Epistle of James, pág. 77). O autor usa ekklesia em 5:14.

2:3 O homem rico recebe tratamento preferencial. Recebe o melhor lugar (kalos). Há uma possibilidade de que kalos possa ser traduzido para “por favor”. Em qualquer um dos casos o rico recebe tratamento especial, enquanto o pobre recebe ordem abrupta para ficar de pé, ou na melhor das hipóteses, assentar-se no chão abaixo do estrado, isto é, em um lugar humilde.

2:4 O verbo traduzido, não fizestes distinção...? está na voz passiva e deveria ser traduzido, “vocês não estão impondo linhas divisórias?” A divisão está “entre a profissão e a prática, entre a profissão da igualdade cristã e a deferência prestada à posição e à riqueza” (Richard Knowling, The Epistle of St. James, pág. 44). Por meio de tal atitude revelam-se juízes tomados (não de) de perversos pensamentos, isto é, juízes com falsos valores.

2:5 Aqueles que concedem tratamento especial ao rico deixam de considerar que escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé, e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam.

2:6 Outro motivo porque é inconsistência mostrar favor especial aos ricos é que foram justamente eles que perseguiram os cristãos. Tribunais é uma referência às cortes judias que eram autorizadas e reconhecidas pela lei romana.

2:7 O ponto alto do argumento de Tiago contra o favorecimento dos ricos é que blasfemam o bom nome. Não é o nome de “cristão” que eles blasfemam mas o nome de Jesus Cristo, o bom nome que sobre vós foi invocado.

2:8 A lei régia está ligada à declaração de 2:5, onde Tiago lembra seus leitores de que Deus escolheu os pobres para serem os herdeiros do reino. A lei régia, então, é para os que pertencem ao reino de Deus. Traduzindo o particípio grego mentoi para “realmente”, destaca exatamente que Tiago acha que os seus leitores, demonstrando parcialidade para com os ricos, não estão cumprindo esta lei.

2:9 Pois o amor não faz acepção de pessoas. Na verdade, a parcialidade é pecado. A lei aqui não é a lei do V.T. (embora Lv,19:15 trate da parcialidade), mas o didake, todo o espírito daquilo que é contrário à parcialidade.

2:10 A ideia da solidariedade da lei encontra-se nos escritos rabínicos (cons. SBK, III, 755). Tiago adota esta ideia mas a batiza em Cristo. A. Cadoux escreve: “Tiago olha para a lei, não como se fosse um número de injunções, mas como um relacionamento pessoal... não como um exame, onde nove respostas certas garantem a aprovação, apesar da errada, mas como uma amizade, onde cem atos de lealdade não podem ser colocados contra uma traição” (The Thought of St. James, pág. 72). Esta ideia está intimamente associada com o conceito cristão da comunhão com Cristo. Transgressão de um preceito da regra cristã de fé é uma brecha no todo, porque interrompe a comunhão com o objeto da fé.

2:11 A ordem dos dois mandamentos citados (o sétimo antes do sexto) deve-se provavelmente à ordem da LXX no Códex Alexandrino. Se este é o motivo, então interpretações sutis deste versículo ficam excluídas. Ele simplesmente reforça com exemplo específico o que o autor disse através de um princípio geral no versículo anterior.

2:12 Agora Tiago chega ao resumo de sua exortação. Os crentes devem falar e agir (com referência especial ao comportamento em relação aos pobres) como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade. Há um juízo para o cristão, e será com base no seu relacionamento tom o padrão ético cristão, a lei que liberta os homens, aceita sem compulsão (cons. Rm. 14:10; II Co. 5:10).

2:13 Este versículo é uma advertência que Deus não mostra misericórdia para com aqueles que não são misericordiosos (cons. Mt. 18:21-35). E, inversamente, a misericórdia triunfa sobre o juízo, isto é, o juízo de Deus é impedido por meio de atos de misericórdia.

2:14-26 Esta é a mais conhecida e mais debatida passagem da epístola. Estes versículos, mais do que quaisquer outros, levaram Martinho Lutero a descrever este livro como “urna epístola que não passa de palha”. A maior pane das dificuldades na interpretação de 2:14-26 surgiram por não se entender que: 1) Tiago não estava refutando a doutrina paulina da justificação pela fé, mas antes uma perversão dela. 2) Paulo e Tiago usaram as palavras obras e justificação em sentidos diferentes. Estes serão discutidos no comentário.

2:14 A resposta que as duas perguntas deste versículo aguardam é um “não!” sonoro. É importante que se note que a fé em discussão é a fé nominal ou espúria. Isto fica claro através de 1) a declaração, se alguém disser que tem fé, e 2) o uso do artigo definido com a palavra fé na última cláusula (Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?). É apenas uma falsa fé que não resulta em obras e que é incapaz de salvar. Por obras Tiago não tem em mente a doutrina judia das obras como meio de salvação, mas antes obras da fé, o resultado ético da verdadeira piedade e especialmente a “obra do amor” (cons. 2:8).

2:15, 16 Cita-se agora um exemplo. O “mal-vestido” e o faminto é um irmão ou irmã, isto é, um membro da comunidade cristã. O irmão necessitado é despedido com estas palavras vazias, Ide em paz, aquecei-vos, e fartai-vos, sem ao menos levantar a mão para atender às suas urgentes necessidades. Tiago pergunta com indignação: “De que adianta isso?” (Phillips). O movimento do singular para o plural (vós) pode indicar que “Tiago considera todos os membros da irmandade responsáveis por essas observações insensíveis ainda que uma só pessoa as tenha pronunciado” (Tasker, op. cit., pág. 64).

2:17 A fé sob discussão, que não é fé afinal de contas, além de ser inútil e inaceitável, é morta. A fé que não se preocupa, através de participação ativa, com as necessidades dos outros não é fé nenhuma.
2:18. As dificuldades neste versículo surgem do fato de o manuscrito grego antigo não conter sinais de pontuação. Apresenta-se o objetante com mas alguém dirá, uma forma muitas vezes encontrada em sermões pregados nas antigas sinagogas (cons. A. Marmorstein, “The Background of the Haggadah” Hebrew Union College Annual, VI (1929), pág. 192). Quantas palavras do versículo devem ser consideradas como parte da objeção fica em aberto, mas provavelmente é melhor apenas incluir, Tu tens fé e eu tenho obras. Tiago refuta esta tentativa de separar a fé e as obras com o desafio: Mostra-me essa tua fé sem as obras. Certamente ele crê que isto é impossível.

2:19 Crença na unidade de Deus (que Deus é um só) era artigo fundamental do credo dos judeus. Tiago assegura que tal crença é boa. Entretanto, se tal crença estiver carente de feitos, não ultrapassa a fé dos demônios. Eles, também, são monoteístas, mas isto apenas os faz estremecer (tremem), presumivelmente à vista do juízo de Deus (cons. Mc. 5:7; Mt. 8:29).

2:20 Tiago atinge um novo ponto em sua argumentação com as palavras, Queres... ficar certo. Agora ele está pronto a acrescentar argumentos escriturísticos para apoiar seu exemplo de fé operante. Moffatt traduz ó homem vão (E.R.C.) mais incisivamente, Você, sujeito insensato. A E.R.A. segue a tradução inoperante em vez de morta da E.R.C., e com razão, porque a última é o resultado da harmonização com 2:26. Arge (inoperante) neste contexto, provavelmente seria melhor compreendida como significando “que não produz salvação”.

2:21 O exemplo escriturístico apresentado é o nosso pai Abraão. Que ele foi considerado o antepassado de todos os cristãos verdadeiros está claro em Gl. 3:6-29. O uso da palavra justificado aqui não deve ser confundido com o uso que Paulo faz do termo em relação a Abraão (cons. Rm. 4:1-5). Paulo aponta para a justificação inicial de Abraão quando ele “creu em Deus, e isto lhe foi imputado por justiça” (cons. Gn. 15:6). Tiago está se referindo a um acontecimento que teve lugar muitos anos mais tarde, quando Abraão foi instruído a oferecer o seu filho Isaque. Através desse ato ele demonstra a realidade da experiência de Gênesis 15.

2:22 A vida de Abraão assim exemplifica notavelmente a impossibilidade de separar a fé das obras, ou vice-versa (cons. 2:18). No seu caso as duas andam de mãos dadas. As obras produzem o aperfeiçoamento da fé.

2:23 No ato de obediência de Abraão se cumpriu a Escritura (Gn. 15:6). Amigo de Deus era um título geralmente aplicado a Abraão (cons. Is. 41:8; II Cr. 20:7; também o extra-canônico dos Jubileus 19:9; 30:20; Testamento de Abraão, diversos lugares).

2:24 Este versículo é a resposta conclusiva à pergunta do versículo 14. Uma fé estéril, improdutiva, não pode salvar um homem. A verdadeira fé há de se demonstrar nas obras, e só uma fé assim produz justificação.

2:25 O segundo exemplo escriturístico de Tiago contrasta notavelmente com Abraão. Raabe era mulher, gentia e prostituta. Foi escolhida para mostrar que o argumento de Tiago abrangia uma vasta escala de possibilidades (por isso o uso de kai com he porne, “mesmo sendo prostituta”). Ela, tal como Abraão, evidenciou sua justificação através da ação (cons. Js. 2:1-21).

2:26 A declaração que conclui os ensinamentos de 2:14-26 mostra que a relação entre a fé e as obras é tão íntima quanto a do corpo como espírito. A vida é o resultado da união em ambos os exemplos. Quando os dois elementos estão separados, resulta a morte. “A fé falsa é virtualmente um cadáver” (F. J.A. Hort, The Epistle of St. James, pág. 45).


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