VII.
Distinções Sociais e “A Lei Real”. 2:1-13.
1. A ênfase colocada sobre a importância da conduta continua neste
parágrafo. Aqui se aplica à parcialidade. Meus irmãos marca a transição
para um novo assunto (cons. 1:2,19; 2:14; 3:1; 5:1). A E.R.A, e E.R.C, traduz
corretamente o verbo no imperativo (a outra possibilidade é o indicativo)
combinando com a maneira direta de Tiago escrever. Não se sabe ao certo como o
genitivo Senhor Jesus Cristo qualifica fé. G. Rendall sugere a
possibilidade de considerarmos o genitivo como qualitativo, “como se definisse
o caráter particular da sua fé em Deus. A fé em Deus que tem por apoio e
conteúdo nosso Senhor Jesus Cristo', que é o tipo cristão da fé em Deus” (The
Epistle of St. James and Judaic Christianity, pág. 46). Entretanto,
provavelmente é mais fácil considerar o genitivo como objetivo – “sua fé em
nosso Senhor Jesus Cristo”. Seja como for, a fé é fé dinâmica, confiança
dirigida para o Senhor Jesus Cristo. Nada tem a ver com a idéia posterior de fé
como um corpo de doutrinas a serem cridas. A última parte do versículo diz Senhor
da, o que não aparece no original. Jesus foi simplesmente chamado de “a
glória”, uma referência óbvia ao Shekinah (cons. Jo. 1:14; II Co. 4:6; Hb.
1:3). O ponto principal deste versículo é que toma-se inconsistente apegar-se à
fé cristã e ao mesmo tempo demonstrar parcialidade.
2. Agora o escritor cita uma ilustração para reforçar a idéia. Um homem
rico com anéis de ouro e muito bem vestido e um homem pobre andrajoso
(maltrapilho) entram na assembléia (synagoge). O uso desta
palavra para o lugar de reunião dos cristãos tem dado lugar a muitas conjeturas
sobre o autor e leitores da epístola; mas como diz Blackman, “deve-se lembrar
que as duas palavras synagoge e ekklesia são sinônimos aproximados, e
pode-se imaginar que synagoge e não ekklesia é que deve ter se transformado no
termo regular para a igreja propriamente dita. Assim é possível que a palavra
fosse usada por Tiago aqui como sobrevivência dos tempos quando o seu uso era
normal” (The Epistle of James, pág. 77). O autor usa ekklesia em 5:14.
3. O homem rico recebe tratamento preferencial. Recebe o melhor lugar (kalos).
Há uma possibilidade de que kalos possa ser traduzido para “por favor”.
Em qualquer um dos casos o rico recebe tratamento especial, enquanto o pobre
recebe ordem abrupta para ficar de pé, ou na melhor das hipóteses, assentar-se
no chão abaixo do estrado, isto é, em um lugar humilde.
4. O verbo traduzido, não fizestes distinção . . . ? está na voz
passiva e deveria ser traduzido, “vocês não estão impondo linhas divisórias?” A
divisão está “entre a profissão e a prática, entre a profissão da igualdade
cristã e a deferência prestada à posição e à riqueza” (Richard Knowling, The
Epistle of St. James, pág. 44). Por meio de tal atitude revelam-se juízes tomados
(não de) de perversos pensamentos, isto é, juízes com falsos
valores.
5. Aqueles que concedem tratamento especial ao rico deixam de considerar
que escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé, e
herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam.
6. Outro motivo porque é inconsistência mostrar favor especial aos ricos é
que foram justamente eles que perseguiram os cristãos. Tribunais é uma
referência às cortes judias que eram autorizadas e reconhecidas pela lei
romana.
7. O ponto alto do argumento de Tiago contra o favorecimento dos ricos é
que blasfemam o bom nome. Não é o nome de “cristão” que eles blasfemam
mas o nome de Jesus Cristo, o bom nome que sobre vós foi invocado.
8. A lei régia está ligada à declaração de 2:5, onde Tiago lembra
seus leitores de que Deus escolheu os pobres para serem os herdeiros do
reino. A lei régia, então, é para os que pertencem ao reino de Deus.
Traduzindo o particípio grego mentoi para “realmente”, destaca exatamente
que Tiago acha que os seus leitores, demonstrando parcialidade para com os
ricos, não estão cumprindo esta lei.
9. Pois o amor não faz acepção de pessoas. Na verdade, a
parcialidade é pecado. A lei aqui não é a lei do V.T. (embora
Lv,19:15 trate da parcialidade), mas o didake, todo o espírito daquilo
que é contrário à parcialidade.
10. A idéia da solidariedade da lei encontra-se nos escritos rabínicos
(cons. SBK, III, 755). Tiago adota esta idéia mas a batiza em Cristo. A. Cadoux
escreve: “Tiago olha para a lei, não como se fosse um número de injunções, mas
como um relacionamento pessoal. . . não como um exame, onde nove respostas
certas garantem a aprovação, apesar da errada, mas como uma amizade, onde cem
atos de lealdade não podem ser colocados contra uma traição” (The Thought of
St. James, pág. 72). Esta idéia está intimamente associada com o conceito
cristão da comunhão com Cristo. Transgressão de um preceito da regra cristã de
fé é uma brecha no todo, porque interrompe a comunhão com o objeto da fé.
11. A ordem dos dois mandamentos citados (o sétimo antes do sexto) deve-se
provavelmente à ordem da LXX no Códex Alexandrino. Se este é o motivo, então
interpretações sutis deste versículo ficam excluídas. Ele simplesmente reforça
com exemplo específico o que o autor disse através de um princípio geral no
versículo anterior.
12. Agora Tiago chega ao resumo de sua exortação. Os crentes devem falar e
agir (com referência especial ao comportamento em relação aos pobres) como
aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade. Há um juízo para o
cristão, e será com base no seu relacionamento tom o padrão ético cristão, a
lei que liberta os homens, aceita sem compulsão (cons. Rm. 14:10; II Co. 5:10).
13. Este versículo é uma advertência que Deus não mostra misericórdia para
com aqueles que não são misericordiosos (cons. Mt. 18:21-35). E, inversamente, a
misericórdia triunfa sobre o juízo, isto é, o juízo de Deus é impedido por
meio de atos de misericórdia.
VIII.
Fé e Obras. 2:14 -26.
Esta é a mais conhecida e mais debatida passagem da
epístola. Estes versículos, mais do que quaisquer outros, levaram Martinho
Lutero a descrever este livro como “urna epístola que não passa de palha”. A
maior pane das dificuldades na interpretação de 2:14-26 surgiram por não se
entender que: 1) Tiago não estava refutando a doutrina paulina da justificação
pela fé, mas antes uma perversão dela. 2) Paulo e Tiago usaram as palavras obras
e justificação em sentidos diferentes. Estes serão discutidos no
comentário.
14. A resposta que as duas perguntas deste versículo aguardam é um “não!”
sonoro. É importante que se note que a fé em discussão é a fé nominal ou
espúria. Isto fica claro através de 1) a declaração, se alguém disser que
tem fé, e 2) o uso do artigo definido com a palavra fé na última cláusula (Pode,
acaso, semelhante fé salvá-lo?). É apenas uma falsa fé que não resulta em
obras e que é incapaz de salvar. Por obras Tiago não tem em mente a
doutrina judia das obras como meio de salvação, mas antes obras da fé, o
resultado ético da verdadeira piedade e especialmente a “obra do amor” (cons.
2:8).
15,16. Cita-se agora um exemplo. O “mal-vestido” e o faminto é um irmão ou
irmã, isto é, um membro da comunidade cristã. O irmão necessitado é despedido
com estas palavras vazias, Ide em paz, aquecei-vos, e fartai-vos, sem ao
menos levantar a mão para atender às suas urgentes necessidades. Tiago pergunta
com indignação: “De que adianta isso?” (Phillips). O movimento do singular para
o plural (vós) pode indicar que “Tiago considera todos os membros da irmandade
responsáveis por essas observações insensíveis ainda que uma só pessoa as tenha
pronunciado” (Tasker, op. cit., pág. 64).
17. A fé sob discussão, que não é fé afinal de contas, além de
ser inútil e inaceitável, é morta. A fé que não se preocupa, através de
participação ativa, com as necessidades dos outros não é fé nenhuma.
18. As dificuldades neste versículo surgem do fato de o manuscrito grego
antigo não conter sinais de pontuação. Apresenta-se o objetante com mas
alguém dirá, uma forma muitas vezes encontrada em sermões pregados nas
antigas sinagogas (cons. A. Marmorstein, “The Background of the Haggadah” Hebrew
Union College Annual, VI (1929), pág. 192). Quantas palavras do versículo
devem ser consideradas como parte da objeção fica em aberto, mas provavelmente
é melhor apenas incluir, Tu tens fé e eu tenho obras. Tiago refuta esta
tentativa de separar a fé e as obras com o desafio: Mostra-me essa tua fé
sem as obras. Certamente ele crê que isto é impossível.
19. Crença na unidade de Deus (que Deus é um só) era artigo
fundamental do credo dos judeus. Tiago assegura que tal crença é boa.
Entretanto, se tal crença estiver carente de feitos, não ultrapassa a fé dos
demônios. Eles, também, são monoteístas, mas isto apenas os faz estremecer (tremem),
presumivelmente à vista do juízo de Deus (cons. Mc. 5:7; Mt. 8:29).
20. Tiago atinge um novo ponto em sua argumentação com as palavras, Queres
. . . ficar certo. Agora ele está pronto a acrescentar argumentos
escriturísticos para apoiar seu exemplo de fé operante. Moffatt traduz ó
homem vão (E.R.C.) mais incisivamente, Você, sujeito insensato.
A E.R.A. segue a tradução inoperante em vez de morta da E.R.C., e
com razão, porque a última é o resultado da harmonização com 2:26. Arge (inoperante)
neste contexto, provavelmente seria melhor compreendida como significando “que
não produz salvação”.
21. O exemplo escriturístico apresentado é o nosso pai Abraão. Que
ele foi considerado o antepassado de todos os cristãos verdadeiros está claro
em Gl. 3:6-29. O uso da palavra justificado aqui não deve ser confundido
com o uso que Paulo faz do termo em relação a Abraão (cons. Rm. 4:1-5). Paulo
aponta para a justificação inicial de Abraão quando ele “creu em Deus, e isto
lhe foi imputado por justiça” (cons. Gn. 15:6). Tiago está se referindo a um
acontecimento que teve lugar muitos anos mais tarde, quando Abraão foi
instruído a oferecer o seu filho Isaque. Através desse ato ele demonstra a
realidade da experiência de Gênesis 15.
22. A vida de Abraão assim exemplifica notavelmente a impossibilidade de
separar a fé das obras, ou vice-versa (cons. 2:18). No seu caso as duas andam
de mãos dadas. As obras produzem o aperfeiçoamento da fé.
23. No ato de obediência de Abraão se cumpriu a Escritura (Gn.
15:6). Amigo de Deus era um título geralmente aplicado a Abraão (cons.
Is. 41:8; II Cr. 20:7; também o extra-canônico dos Jubileus 19:9; 30:20;
Testamento de Abraão, diversos lugares).
24. Este versículo é a resposta conclusiva à pergunta do versículo 14. Uma
fé estéril, improdutiva, não pode salvar um homem. A verdadeira fé há de se
demonstrar nas obras, e só uma fé assim produz justificação.
25. O segundo exemplo escriturístico de Tiago contrasta notavelmente com
Abraão. Raabe era mulher, gentia e prostituta. Foi escolhida para
mostrar que o argumento de Tiago abrangia uma vasta escala de possibilidades
(por isso o uso de kai com he porne, “mesmo sendo prostituta”).
Ela, tal como Abraão, evidenciou sua justificação através da ação (cons. Js.
2:1-21).
26. A declaração que conclui os ensinamentos de 2:14-26 mostra que a
relação entre a fé e as obras é tão íntima quanto a do corpo como espírito. A
vida é o resultado da união em ambos os exemplos. Quando os dois elementos
estão separados, resulta a morte. “A fé falsa é virtualmente um cadáver” (F.
J.A. Hort, The Epistle of St. James, pág. 45).
Um comentário:
Fé e obras, juntas.
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