Provérbios 10 — Análise Bíblica
Provérbios 10
10:1—22:16 O título dessa seção, Provérbios de Salomão (10:1), é mais sucinto que o título em 1:1, como também o são as instruções fornecidas nessa parte do livro. Enquanto Provérbios 1— 9 registra dez discursos extensos, encontramos aqui uma seção que traz cerca de 370 ditos proverbiais típicos, a maioria deles com apenas duas linhas: “Eis, por fim, os ditos que conhecemos como provérbios: breves, independentes, apresentados de modo aparentemente aleatório” (TOT). Como entender o sortimento de provérbios? Estudiosos propõem abordagens diversas. Alguns consideram a sequência dos versículos totalmente aleatória e, portanto, sentem-se à vontade para organizá-los por tópicos a fim de compreender sua mensagem. Outros, contudo, acreditam que a ordem em que os ditos se encontram é intencional e preferem interpretá-los na sequência em que chegaram até nós nas Escrituras. Hubbard é um dos estudiosos que segue a primeira linha e cuja “abordagem básica consiste em tratar de dois ou três tópicos em cada capítulo usando seus versículos relevantes, bem como ditos pertinentes de outros capítulos”. Ele reconhece que “não há parâmetros fixos para decidir como organizá-los” e que vários provérbios “se encaixam em mais de uma das cerca de trinta categorias de assunto que identifiquei” (CC). Farmer adota a segunda abordagem. Admite que “as unidades de significado raramente são constituídas de mais de um versículo”, mas afirma que “é possível identificar algumas características de coletâneas” (ITC). Explica essa declaração da seguinte forma: “Apesar de não haver meios de definir uma linha de raciocínio coesa ao longo de um capítulo inteiro, em algumas ocasiões é possível discernir intencionalidade da parte de quem coletou, organizou ou registrou os ditos na presente ordem” (ITC). Para exemplificar essa intencionalidade, cita 10:2-5 e 10:18-21, passagens nas quais encontramos grupos de provérbios que abordam o mesmo assunto. A primeira trata de riqueza e pobreza, e a segunda, da fala. Farmer corrobora sua argumentação, ainda, com uma análise de 18:11 (cf. comentário). Outra evidência de intencionalidade é o tipo de paralelismo observado nesses provérbios. Nos capítulos 10— 15, por exemplo, a segunda linha afirma o oposto da primeira. Também é fato que o conteúdo dos capítulos 1— 9 fornece um contexto interpretativo para essa seção do livro e permite “ao leitor [...] nortear-se no emaranhado de ditos individuais pelo qual se encontra cercado ao entrar na Seção II (10:1— 22:16) e ver em cada aforismo ponderado e objetivo uma miniatura e uma aplicação particular da sabedoria e loucura cujos caminhos foram traçados diante dele na Seção I” (TOT). Nada impede de nos beneficiarmos do uso de uma mistura das duas abordagens descritas anteriormente. Podemos começar com uma ênfase sobre a intencionalidade, sem nos sentir impedidos de organizar os provérbios tematicamente a fim de extrair sua mensagem e teologia.10:1-32 A existência de uma forte ligação entre o primeiro provérbio dessa coleção (10:1) e o conteúdo anterior a ele não pode ser acidental. Sua referência ao pai e à mãe lembra de forma inequívoca a instrução dos pais transmitida em 1:8; 4:3; 6:20. Um vínculo ainda mais próximo é fornecido pelo contraste entre a sabedoria e a loucura, especialmente quando os versículos subsequentes contrastam a justiça e a perversidade. A intenção dos compiladores parece ser de enfatizar o fato de que os capítulos 1 a 9 e 10 a 22 são relacionados e que a justiça e a perversidade são outros termos para os dois caminhos, o da sabedoria e o da loucura, retratados com clareza na seção introdutória do livro. Tudo indica que os versículos seguintes (10:2-5) formam um conjunto sobre a riqueza e a pobreza. Antes de comentá-los, porém, devemos observar que, no contexto de Provérbios, “riqueza [...] pode não significar uma quantidade exorbitante de bens, mas apenas o suficiente para ser independente e capaz de ajudar outros” (CC). Em última análise, a riqueza obtida por meios injustos “não tem nenhum valor”, enquanto a justiça é mais valiosa porque o Senhor provê ao justo em tempos de fome e o livra da morte (10:2-3; cf. tb. 14:32). O segredo para adquirir riqueza é a diligência sob a orientação de Deus; o preguiçoso, por outro lado, se encaminha para uma vida de pobreza e envergonha os que vivem ao seu redor (10:4-5). Um provérbio ewe, de Gana, apresenta um princípio semelhante: “O gato preguiçoso come ratos mortos”. O gato diligente tem carne fresca para comer. Em outras palavras, o trabalho árduo traz recompensas, e é necessário aprender a trabalhar com afinco a fim de evitar as consequências da preguiça. Em 10:6-7, o autor contrasta a vida do justo e do perverso: Sobre a cabeça do justo há bênção, ou seja, sua recompensa é visível (10:6a). Até mesmo a memória do justo é abençoada (10:7a). Por outro lado, na boca dos perversos mora a violência (10:6b cf. tb. 10:11), e seu nome cai em podridão (10:7b). Pode causar surpresa a bênção em 10:6 não ser contrastada com uma maldição na segunda parte do versículo. “A ênfase, porém, é sobre o fato de que, por trás das palavras dos perversos, encontra-se ‘violência’ agressiva [...], uma vez que ele não é digno de confiança” (EBC). Como Kidner explica, o contraste é entre a coroa na cabeça do justo e “a perversidade do homem [...] estampada em seu rosto” (TOT). O contraste em 10:8 é entre o sábio e o insensato. O sábio (termo singular no hebraico, traduzido no plural em algumas versões, p. ex., NVI) obedece às ordens de seus superiores, enquanto o insensato está tão ocupado conversando que não presta atenção às instruções que recebe. No versículo seguinte, o contraste é entre quem anda em integridade e o que perverte os seus caminhos. O primeiro anda seguro, enquanto o outro será conhecido, ou seja, seu estilo de vida corrompido virá à tona (10:9; cf. tb. 28:18, descrito por Kidner como “irmão deste versículo”; TOT). Até aqui, todos os provérbios são antitéticos, isto é, contrastam dois estilos de vida diferentes. Em 10:10, porém, encontramos um exemplo de paralelismo sintético, no qual a segunda linha desenvolve a ideia da primeira. Ao repetir a segunda linha de 10:8, o autor coloca lado a lado a pessoa que acena com os olhos e o insensato de lábios; ambos no campo oposto ao da sabedoria. O primeiro traz desgosto, e o segundo vem a arruinar-se. O grupo seguinte de provérbios é registrado em 10:11-14 e focaliza a fala. Trata-se de um tópico que é tão importante nos dias de hoje quanto o era na Antiguidade. Os dois estilos de vida são representados de várias maneiras — justo; perversos (10:11), ódio e amor (10:12), prudente e falto de senso (10:13), sábios e néscio (10:14) — , mas o assunto é o mesmo. O termo “boca” ocorre três vezes na passagem (10:11,14), juntamente com palavras relacionadas como “contendas” (10:12) e “lábios” (10:13). Os provérbios afirmam que a boca do justo é manancial de vida (10:11), o amor cobre todas as transgressões (10:12), nos lábios do prudente, se acha sabedoria (10:13) e os sábios entesouram o conhecimento (ao que Ross acrescenta: “em vez de cometerem a tolice de falar prematuramente”; EBC) (10:14). Num contraste nítido, vemos que na boca dos perversos mora a violência (10:11), o ódio excita contendas (10:12), a vara é para as costas do falto de senso (ou, como Kidner expressa: “o homem: porta-voz de Deus ou mula de Deus”; TOT) (10:13) e a boca do néscio é ruína iminente (10:14). Na sequência, o autor trata da questão da riqueza: Os bens do rico são a sua cidade forte; a pobreza dos pobres é a sua ruína (10:15). A primeira metade deste versículo é repetida em 18:11, em que o paralelismo é sintético (cf 14:20; 18:23; 19:7 e 22:7, que também menciona o rico e o pobre). De acordo com esse versículo, assim como uma cidade fortificada protege seus habitantes, a riqueza protege quem a possui. Mas a questão da riqueza apresenta várias facetas, como comentaremos em 18:11. Conforme Kidner nos lembra, porém, não devemos desprezar a riqueza nem romantizar a pobreza (TOT). Tudo depende de como a riqueza é adquirida, como o versículo seguinte mostra: A obra do justo conduz á vida, e o rendimento do perverso, ao pecado (10:16). O mesmo fato é ressaltado em 10:17, que fala da bênção da obediência e das consequências negativas da desobediência. Observe, porém, que o perverso prejudica não apenas a si mesmo, como indica a segunda parte do versículo, mas também a outros, como mostra a tradução alternativa “quem ignora a repreensão desencaminha outros” (NVI). Em 10:18-21, encontramos outro grupo de provérbios sobre a fala. As duas linhas de 10:18 são sinônimas e colocam lado a lado o que retém o ódio e o que difama. Como 10:19 deixa claro, o muito falar aumenta a probabilidade de pecar, daí o sábio ser econômico no uso das palavras. O contraste seguinte é entre a língua do justo e o coração dos perversos. A primeira é prata escolhida, e o último vale mui pouco (10:20). Os lábios do justo apascentam a muitos, enquanto os tolos (uma expressão que neste contraste parece representar suas palavras, pelas quais serão julgados) por falta de senso, morrem (10:21). A ênfase sobre o sustento provido pelas palavras dos justos contrabalança o comentário anterior de que o muito falar pode resultar em pecado (10:19). A riqueza proveniente do Senhor é uma bênção pura que não vem acompanhada de transtornos (10:22; cf. tb. Sl 127:1-3). O contraste em 10:23 é entre o insensato e o homem inteligente. Enquanto para o primeiro praticar a maldade é divertimento, o prazer do segundo é ser sábio. “A pessoa revela o seu caráter naquilo que lhe dá prazer” (EBC). Os dois versículos seguintes (10:24-25) formam uma unidade e apresentam resultados dramaticamente contrastantes. Aquilo que os perversos temem lhes sobrevêm, enquanto os justos terão seus desejos atendidos (10:24). Apesar de não ser dito de forma explícita, é evidente que o resultado deve ser dirigido pelo Senhor. Kidner acredita que, em última análise, aquilo que os perversos temem e aquilo pelo qual os justos anseiam é Deus; o provérbio se cumprirá quando os dois grupos estiverem diante do Senhor (TOT). Quando chegam as dificuldades, representadas pela tempestade [...] desaparece o perverso, mas o justo tem perpétuo fundamento (10:25). Encontramos em 10:26 uma comparação. 0 vinagre é incômodo para os dentes, e a fumaça irrita os olhos. O preguiçoso é igualmente irritante e desagradável para quem o envia numa missão ou o encarrega de uma tarefa. Ao que parece, o tema do livro, o temor do Senhor, representa o justo em 10:27, pois os “perversos” são mencionados na segunda parte do provérbio. A justiça prolonga os dias da vida, enquanto a ausência de justiça abrevia os dias dos perversos. Num contraste semelhante das duas classes de pessoas, 10:28 diz que a alegria está reservada para os justos, mas a expectação dos perversos perecerá (cf. tb. 11:7). A mesma coisa, a saber, o caminho do Senhor, é fortaleza para os íntegros, mas ruína aos que praticam a iniquidade (10:29). O motivo é o modo diferente pelo qual cada grupo age em relação a esse caminho: os justos lhe obedecem e andam por tal caminho, mas os perversos se rebelam contra ele. O justo jamais será abalado, pois está arraigado no Senhor, mas os perversos não habitarão a terra (10:30; cf. tb. 10:25). Quanto à conotação de “terra” na primeira seção e aqui, ver o comentário sobre 2:21-22. Os versículos 31-32 desse capítulo constituem mais uma unidade sobre a fala. A boca do justo produz sabedoria (10:31c), e os lábios do justo sabem o que agrada (10:32a), ou seja, sabem o que é apropriado dizer. Nos perversos, por outro lado, há somente o mal, inclusive nas palavras que eles proferem (10:316, 326). Como castigo, sua língua será cortada.
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