Provérbios 8 — Análise Bíblica

Provérbios 8

Provérbios 8 fornece um retrato vívido e convincente da sabedoria como uma figura personificada que clama pela humanidade, oferecendo orientação e discernimento inestimáveis. Ele sublinha o valor imensurável da sabedoria e o seu papel central numa vida significativa e justa. O capítulo também destaca a natureza divina da sabedoria e sua conexão com a criação de Deus. Ele incentiva os leitores a buscar e abraçar a sabedoria como um caminho para uma vida abençoada e plena.

Análise

8:1-36 Pode-se ouvir o suspiro de alívio do leitor ao deixar para trás a descrição dos ataques mortais da mulher insensata do capítulo 7 e passar para o capítulo 8, que focaliza os atributos e a excelência da sabedoria que conferem plenitude de vida. Tendo em vista a relevância teológica do discurso, especialmente de 8:22-31, trataremos dele de maneira mais detalhada.

8:1-5 Os três primeiros versículos são semelhantes a 1:20-21, exceto pela pergunta retórica que inicia o capítulo 8. Aqui, a sabedoria não apenas clama, mas também faz ouvir a sua voz (ou “ergue a sua voz”, NVI; 8:1). Está decidida a ser ouvida acima do vozerio dos malfeitores gananciosos (1:10-19), dos trapaceiros mentirosos (2:12-15), dos lisonjeadores (2:16-19), dos homens corruptos (4:14-17) e dos perturbadores da ordem (6:12-15). “Na hora de entrar em combate, um toque incerto da trombeta não basta para reunir os pelotões. A sabedoria não deixa dúvidas acerca da importância e significado de sua conclamação” (CC). Observe os lugares de onde a sabedoria clama: No cimo das alturas, junto ao caminho, nas encruzilhadas das veredas [...] junto às portas, à entrada da cidade, à entrada das portas (8:2-3), ou seja, todos os locais onde o povo se reúne. “Um capítulo que transcende tempo e espaço começa nas ruas, deixando claro que a sabedoria de Deus é tão relevante nos centros comerciais (8:2-3) quanto no próprio céu (8:22)” (TOT). O chamado da sabedoria é, ao mesmo tempo, público e pessoal. Apesar de começar com o indivíduo, “é a sabedoria no domínio público que molda toda a vida da comunidade” (CC).

8:6-21 Em sua descrição minuciosa da excelência da sabedoria, o autor focaliza a superioridade de sua instrução moral e seu valor inestimável. A fim de motivar os ouvintes a atentar para suas palavras, a sabedoria informa: Falarei coisas excelentes; os meus lábios proferirão coisas retas (8:6). E prossegue: A minha boca proclamará a verdade; os meus lábios abominam a impiedade. São justas todas as palavras da minha boca; não há nelas nenhuma coisa torta, nem perversa (8:7-8). Tudo isso pode ser experimentado pelos que têm entendimento (8:9). Depois de exortar os ouvintes a escolher o seu ensino, e não a prata, e o conhecimento, antes do que o ouro escolhido (8:10), o sábio afirma: Melhor é a sabedoria do que joias, e de tudo o que se deseja, nada se pode comparar com ela (8:11), uma ideia expressa anteriormente (cf. tb. Jó 28). A sabedoria começa a relacionar suas qualidades: Eu, a Sabedoria, habito com a prudência e disponho de conhecimentos e de conselhos. O temor do Senhor consiste em aborrecer o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa, eu os aborreço (8:12-13). Kidner comenta: “Os dois versículos precisam andar juntos. A verdadeira sabedoria é perspicaz e engenhosa [...] e, no entanto, pelo fato de ser arraigada no temor do Senhor [...] não apresenta as deficiências da sabedoria do mundo” (TOT). Depois de afirmar que o conselho e a [...] fortaleza lhe pertencem (8:14), a sabedoria relaciona alguns de seus beneficiários mais eminentes e poderosos (8:15-16). A sabedoria tem afeição por seus seguidores: Eu amo os que me amam; os que me procuram me acham (8:17). A segunda metade do versículo lembra as palavras do Senhor em Jeremias 29:13 e a promessa de Jesus em Mateus 7:7-8: Quem pede recebe; quem busca encontra; a quem bate, abre-se a porta (cf. tb. Tg 1:5). Além de amar seus seguidores, como foi dito anteriormente, a sabedoria lhes concede riquezas e os toma sábios (8:18-21).

8:22-31 A segunda parte do discurso da sabedoria trata do motivo pelo qual devemos seguir sua instrução para rejeitar grande parte daquilo que os outros nos dizem. “Como os profetas clássicos que relatam seu chamado profético aos ouvintes incrédulos, a Sabedoria revela sua procedência ao público-alvo e, com efeito, aponta para o Senhor como sua origem e fonte de autoridade” (ITC). A passagem a seguir é, de longa data, considerada extremamente controversa. 0 problema é que Paulo parece aplicar essa personificação a Cristo quando se refere a ele como “sabedoria de Deus” (ICo 1:24) e “primogênito de toda a criação” (Cl 1:15). O papel de Cristo na criação também parece ser paralelo ao papel atribuído à sabedoria nesses versículos. Como entender, porém, a declaração de que o Senhor possuía a sabedoria “no início de suas obras” (8:22; ou a tradução mais aproximada da NVI, “o Senhor me criou como o princípio de seu caminho”)? Significa, como dizem alguns, que Cristo é um ser criado, e não o próprio Deus? As respostas a essa pergunta exigem o estudo minucioso do significado exato dos verbos empregados em relação à sabedoria em 8:22-25. A sabedoria diz: O Senhor me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas (8:22). No original, “me possuía” ou “me criou” é um termo único que significa “obter, adquirir”. Quando usado em rela­ção a Deus, pode significar “originar, criar” ou “redimir seu povo de forma vitoriosa”. A tradução da RA, “possuía”, parece mais próxima do significado do termo nesta passagem (TOT). T. T. Perowne comenta acertadamente sobre a controvérsia que envolve o significado exato do termo: “É impossível entender a palavra [...] como uma indicação de que a sabedoria teve um início ou foi, por assim dizer, criada. A sabedoria é inseparável de todo conceito digno daquele que é o ‘único Deus sábio’ (Rm 16:27, NVI) e, portanto, como ele, é ‘de eternidade a eternidade’ (Sl 90:2)” (CBSC). Em 8:23, a Sabedoria diz: Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. 0 termo hebraico traduzido por “fui estabelecida” pode ter três significados: o primeiro é “despejar, derramar uma libação ou fundir imagens de metal”; o segundo é “tecer”; e o terceiro, “indicar, nomear ou estabelecer”. O último significado é o mais adequado ao contexto de Provérbios (cf. tb. Sl 2:6). A descrição prossegue em 8:24: Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. O termo hebraico traduzido por “eu nasci” é originário de uma raiz que pode significar “dançar” ou “contorcer-se de dores (de parto ou agonia intensa), de contrição ou de anseio”, ou “girar, rodopiar”. O significado é “ser levado a contorcer-se” ou “ser gerado” (tradução seguida pela RC). Esta forma do verbo ocorre apenas em Salmos 51:5; Jó 15:7 e aqui, em Provérbios 8:24-25.

Kidner associa os três verbos usados em relação à sabedoria em 8:22-25, ao dizer: “Enquanto 8:22 recebeu a posição de destaque, os verbos adjacentes tratam da questão em termos da investidura da sabedoria em seu cargo (8:23a) e de seu nascimento (8:24-25). De fato, o segundo verbo é, por sua repetição, o predominante, e a passagem como um todo pode ter a intenção de lembrar o nascimento de um rei" (TOT). Os três verbos ressaltam a relação da sabedoria com Javé. Ele a possuía, a estabeleceu e a gerou. Resta, porém, a questão de o Senhor possuir a sabedoria “no início de sua obra” (8:22). A oração hebraica é constituída de duas palavras: a primeira pode indicar algo que ocupa primeiro lugar em importância ou numa sequência; a segunda, traduzida aqui por “obra”, significa “modo” ou “caminho” quando traz a indicação de terceira pessoa singular masculina. A tradução “obra", portanto, é equivocada. A frase da RC “no princípio de seus caminhos” é mais próxima do original. Kidner adverte corretamente de que ‘suas obras’ em 8:22; não deve ser confundido com ‘seus caminhos’ em 8:22a” (TOT), como faz a RA. É preciso distinguir entre a sabedoria como o “modo” de Javé fazer as coisas e as “suas obras” que resultam desse modo de agir. A relação da sabedoria com Javé e a criação também é sinalizada pelos indicadores de tempo empregados na passagem. Depois de afirmar que Javé a possuía no princípio de seus caminhos (8:22a), a sabedoria declara que ele também a possuía antes de suas obras mais antigas (8:226). O autor usa vários indicadores hebraicos para enfatizar que a sabedoria estava presente antes da primeira partícula do universo vir a existir. Na sequência, relaciona as obras de Javé: a terra (ou “mundo”), os abismos, as fontes, os montes, os outeiros, as amplidões, o pó, os céus, o horizonte, as nuvens, as fontes do abismo, o mar, os fundamentos da terra (8:23-29). Pertencente a Javé, estabelecida e gerada por ele, a sabedoria existia antes de todas as suas obras. Daí sua afirmação: Aí estava eu (8:27), não no sentido de fazer parte da criação, mas de já estar presente antes de qualquer uma das obras da criação de Deus se concretizar. A sabedoria também não foi apenas uma observadora passiva da obra criadora de Deus. Estava presente como meio ou instrumento usado por Deus para fazer a criação vir a existir (cf. 3:19-20). Kidner enfatiza que “nem sequer o princípio do pó do mundo (8:26), nenhum vestígio de ordem (8:29), veio a existir sem a sabedoria” (TOT). Para entender a origem desta interpretação, precisamos esclarecer o sentido das palavras eu estava com ele e era seu arquiteto (8:30). O significado exato do termo hebraico traduzido por “arquiteto” é controverso. Estudiosos propõem nada menos que cinco significados. A maioria concorda que pode haver duas acepções principais. O termo pode referir-se à sabedoria como arquiteto ou mestre de obras por meio do qual Javé executou a atividade criadora. Pode retratar, ainda, a sabedoria como uma criança pequena ainda não desmamada que se deleita e brinca na presença de Deus (8:31). Os dois versículos finais dessa seção sobre o papel da sabedoria na criação (8:30-31) formam um quiasmo em tomo das expressões regozijando-me e achando as minhas delícias. Essa forma de organização indica que as duas expressões ocorrem em cada versículo, mas em ordem invertida no segundo. O jogo de palavras tem por objetivo enfatizar a alegria intensa e a diversão da sabedoria em seu relacionamento com Javé e com a humanidade. “A Sabedoria, que encontrou motivo de alegria em todas as partes e estágios da criação à medida que a viu progredir, descobriu regozijo consumado na adaptação da obra completa para servir de lugar de habitação do homem e nos ‘filhos dos homens’ por amor dos quais ela havia criado o mundo” (CBSC).

8:32-36 O apelo da sabedoria em 8:32-36 adquire profundidade e intensidade diante do pano de fundo do seu papel na criação, sobre o qual tratamos anteriormente e, em particular, à luz do seu deleite com a humanidade. Enquanto suas palavras iniciais são dirigidas aos “simples”, aos “néscios”, aos “homens” e aos “filhos dos homens” (8:4-5), na conclusão ela os chama de meus filhos (8:32, NVI). É a primeira vez que a sabedoria personificada se dirige aos seus ouvintes dessa maneira. Insta-os a obedecer a fim de que possam ser abençoados (8:32-33): Feliz o homem que me dá ouvidos, velando dia a dia às minhas portas, esperando às ombreiras da minha entrada (8:34). O apelo se encerra com a recompensa suprema de vida para aqueles que encontram sabedoria e a ameaça mais severa de todas: morte para aqueles que pecam contra ela e a aborrecem (8:35-36).

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