Hebreus 1: Significado, Teologia e Exegese

Hebreus 1

Hebreus 1 se inicia com um dos prólogos mais elevados do Novo Testamento, combinando densidade teológica, sofisticação retórica e profunda intertextualidade veterotestamentária. Trata-se de uma abertura que não apenas estabelece o argumento central da epístola — a supremacia do Filho sobre todas as formas anteriores de revelação divina —, mas também funciona como uma introdução cristológica e hermenêutica ao Antigo Testamento reinterpretado à luz da encarnação. Ao declarar que Deus falou “muitas vezes e de muitas maneiras” no passado, mas agora “neste fim dos tempos” falou por meio do Filho, o autor delimita uma nova economia da revelação. Hebreus 1, portanto, não é apenas introdutório: é uma alta declaração da cristologia exaltada, articulada a partir da linguagem cultual, sapiencial e profética do cânon hebraico. O Filho é apresentado como mediador da criação, reflexo da glória divina e sustentador do universo — imagens profundamente ancoradas em tradições judaicas, agora reinterpretadas cristologicamente. Esse capítulo estabelece a base doutrinal que sustentará os argumentos posteriores da epístola, especialmente a superioridade de Cristo em relação aos anjos, à Lei mosaica, ao sacerdócio levítico e ao culto do templo.

II. Estrutura e Estilo Literário

Diferentemente do estilo apocalíptico e visionário de obras como Apocalipse, o capítulo 1 de Hebreus se distingue por um estilo literário elevado, quase hínico, que combina prosa argumentativa com elementos de poesia e exaltação litúrgica. O autor demonstra domínio do grego koiné refinado, com períodos longos e sofisticadamente estruturados, revelando formação retórica e filosófica apurada. O versículo 1:1–4, por exemplo, é uma única frase no original grego, cuidadosamente equilibrada, contendo paralelismos semânticos e ritmo cadenciado que lembra os prólogos filosóficos helenísticos ou os hinos da tradição cristã primitiva (cf. João 1:1–18; Colossenses 1:15–20).

O uso de partículas contrastivas, como πολυμερῶς καὶ πολυτρόπως (“muitas vezes e de muitas maneiras”), e o jogo entre os tempos verbais (passado e presente escatológico) revelam uma linguagem proposicional, teologicamente densa, mas literariamente bela. Após o prólogo, o estilo se torna mais assertivo e expositivo, com uma sequência de citações bíblicas (vv. 5–14) extraídas principalmente dos Salmos e dos Profetas. Essas citações são justapostas sem interlúdios longos, num estilo midráshico concentrado, o que leva muitos estudiosos a considerarem essa seção como um catena — uma cadeia de textos veterotestamentários justapostos com propósito argumentativo e homilético.

A construção do capítulo lembra um discurso exordial (exordium) da retórica antiga, onde o autor conquista a atenção do leitor/ouvinte com uma tese grandiosa, que será demonstrada ao longo da epístola. A linguagem é marcadamente litúrgica, com uso de títulos messiânicos (“Filho”, “Senhor”), imagens cósmicas (“sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder”) e uma cristologia funcional e ontológica entrelaçadas. Em sua estrutura interna, o capítulo divide-se em duas partes principais: (1) os vv. 1–4 apresentam a revelação final em Cristo; (2) os vv. 5–14 demonstram, por meio da Escritura, a superioridade do Filho sobre os anjos. O estilo é, portanto, simultaneamente teológico, exegético e litúrgico.

III. Hebraísmos no Texto Grego

Apesar de redigido em um grego polido e elegante, o texto de Hebreus 1 está profundamente imerso em estruturas semíticas, tanto na forma quanto no conteúdo. O vocabulário e a sintaxe frequentemente refletem o hebraico subjacente da Septuaginta, o que revela que o autor pensa com categorias hebraicas mesmo ao escrever em grego.

O próprio início — “Πολυμερῶς καὶ πολυτρόπως πάλαι ὁ θεὸς λαλήσας” — é uma tradução estilizada do hebraico múltiplo da expressão דִּבֶּר אֱלֹהִים בְּיַד הַנְּבִיאִים (“falou Deus pela mão dos profetas”), recorrente nos livros históricos e proféticos. A ideia de Deus falar “de muitas maneiras” (πολυτρόπως) remete ao modo polifônico da revelação veterotestamentária, com sonhos, visões, oráculos, sinais — categoria hebraica expressa no pluralismo dos modos divinos de comunicação (ver Números 12:6).

Além disso, a expressão “ἐν υἱῷ” (v. 2) — “por meio do Filho” — reflete o hebraico בֵּן (ben), mas com ausência do artigo grego, o que cria uma ênfase semítica típica: trata-se não de um Filho genérico, mas do Filho por excelência, como ocorre nos salmos régios (Salmo 2:7) e nos textos sapienciais (Provérbios 30:4).

A sequência do v. 3, “ὃς ὢν ἀπαύγασμα τῆς δόξης” (“sendo o resplendor da glória”), é uma tradução direta do conceito hebraico de כְּבוֹד־יְהוָה (kĕvôd YHWH), cuja manifestação é frequentemente associada à luz (Êxodo 24:17; Ezequiel 1:28). A imagem é intensificada pelo termo χαρακτήρ (“impressão” ou “marca”), traduzindo de modo semítico a ideia de tselem (צֶלֶם), “imagem”, presente em Gênesis 1:26, agora aplicada ao Filho em relação ao Pai.

A catena de citações (vv. 5–14) segue o modelo rabínico de prova por textos, com clara dependência da LXX. A fórmula “λέγει” (“ele diz”) sem sujeito explícito remete à forma hebraica נאם יהוה (“diz o Senhor”), indicando autoridade profética. Também a expressão “καὶ πάλιν” (“e outra vez”) é usada como conjunção rabínica introdutória, comum na literatura midráshica e targúmica.

IV. Versículo-Chave

Hebreus 1:3 – “Ele é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder. Depois de realizar a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas.”

Este versículo condensa a cristologia mais elevada do capítulo. Ele une a preexistência (“resplendor da glória”), a identidade divina (“expressão exata do ser de Deus”), a mediação cósmica (“sustenta todas as coisas”), a obra salvífica (“purificação dos pecados”) e a exaltação (“assentou-se à direita”). O versículo não apenas descreve quem Cristo é, mas o que Ele fez e faz, servindo como síntese da cristologia de Hebreus. É um versículo denso, que combina linguagem sapiencial (reminiscente de Sabedoria 7:25–26), cultual (purificação) e entronizadora (Salmo 110), funcionando como eixo doutrinário do capítulo e da epístola como um todo.

V. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

Hebreus 1 é construído inteiramente sobre a intertextualidade com o Antigo Testamento. Cada citação nos vv. 5–14 provém do Tanakh, especialmente dos Salmos (Salmo 2:7; 45:6–7; 102:25–27; 104:4; 110:1), e estabelece a superioridade do Filho sobre os anjos. O Salmo 2:7 (“Tu és meu Filho, hoje te gerei”) serve como prova da filiação divina exclusiva. Já o Salmo 110:1, com sua célebre entronização à direita de Deus, é o vértice cristológico e escatológico do capítulo.

Além disso, a referência a “sustentar todas as coisas pela palavra do seu poder” ecoa a criação por meio da Palavra, como em Gênesis 1, reinterpretado à luz de Provérbios 8:22ss e Sabedoria 9:1–2, onde a Sabedoria divina é o agente mediador da criação. Essa imagem será retomada em Colossenses 1:16–17 e João 1:3. A teologia do Filho como herdeiro de todas as coisas (v. 2) se conecta com Salmo 2:8 e Romanos 8:17.

No Novo Testamento, o paralelismo com João 1 é inevitável: ambos apresentam o Filho como preexistente, criador e revelador. Em Colossenses 1:15–20, o “Filho amado” é “imagem do Deus invisível” — a mesma teologia de Hebreus 1:3. A ênfase na entronização após a obra redentora ecoa Atos 2:33 e Filipenses 2:9–11, confirmando a teologia da exaltação como cumprimento da missão salvífica.

VI. Lição Teológica Geral

Hebreus 1 proclama que a revelação definitiva de Deus se dá no Filho, que é simultaneamente criador, redentor, herdeiro e soberano. Contra qualquer nostalgia do Antigo Pacto ou fascínio com mediações angélicas, o autor estabelece de início que Cristo é incomparavelmente superior a tudo que o precedeu. Não se trata de um mero profeta ou de um mensageiro celestial, mas do próprio reflexo da glória de Deus, entronizado acima de todos. A teologia do capítulo é trinitária em embrião, cristológica em essência, escatológica em orientação e exegética em método. Ao retomar o Antigo Testamento como Escritura viva, o autor de Hebreus revela Cristo como sua chave hermenêutica última. Teologicamente, o capítulo desafia o leitor a ver na história de Israel não uma preparação apenas moral, mas uma economia de revelação que culmina em Cristo. Em termos doutrinários, o capítulo sustenta uma alta cristologia que será o fundamento de todo o argumento sacerdotal e cúltico dos capítulos seguintes. Cristo é Palavra, Sabedoria, Imagem, Rei e Sacerdote — tudo em um só.

VII. Comentário de Hebreus 1

Nesta exposição, apresentamos uma explicação sobre Hebreus 1 que apresenta Cristo como a revelação final e suprema de Deus, superior tanto aos profetas do Antigo Testamento quanto aos anjos celestiais. Veremos que o capítulo começa destacando a maneira progressiva e fragmentada como Deus falou no passado, mas afirma que agora, nos “últimos dias”, Ele falou de forma plena e definitiva por meio do Filho — aquele que é o resplendor da glória divina, a imagem exata do ser de Deus, o Criador e Sustentador de todas as coisas. Cristo não apenas realizou a purificação dos pecados, mas foi entronizado à direita da Majestade nas alturas, em posição de autoridade absoluta. A epístola mostra que, enquanto os anjos são mensageiros e servos, enviados para ministrar a favor dos que hão de herdar a salvação, o Filho é o único que recebe adoração, o único que tem trono eterno, cetro de justiça e domínio incontestável. Toda a criação é transitória, mas Ele permanece o mesmo, imutável e glorioso, assentado como Rei sobre tudo e todos.

A. A Revelação de Deus e a Supremacia de Cristo como Filho (Hebreus 1:1-4)

Hebreus 1:1 Havendo Deus antigamente falado muitas vezes... (O texto começa com Deus como sujeito: é Ele quem fala, quem toma a iniciativa. O verbo “falado” traduz o grego lalēsas [de laleō], que enfatiza o ato de comunicar pessoalmente — não apenas inspirar, mas falar de fato. A expressão “muitas vezes” traduz a palavra polumerōs, que significa “em muitas partes”, como se Deus fosse construindo um edifício revelacional tijolo por tijolo. Foi assim desde Adão – Gênesis 3:15, passando por Noé, Abraão, Moisés, os profetas. Cada revelação era parcial, um vislumbre. Nenhuma era definitiva em si mesma.) ...e de muitas maneiras... (Aqui o grego é polutrōpōs, que indica variedade de métodos: sonhos – Gênesis 37:5; visões – Isaías 6:1; voz audível – Êxodo 3:4; atos simbólicos – Jeremias 13:1–11. Deus usou diferentes estratégias para falar, pois o povo não podia suportar toda a luz de uma vez – João 16:12.) ...aos pais... (Refere-se aos antepassados da fé: os patriarcas, profetas e líderes de Israel. Veja Romanos 9:4–5, onde Paulo afirma que a adoção, as alianças e as promessas pertenciam aos “pais”.) ...pelos profetas,... (Esses foram os portadores da mensagem divina. O autor está declarando que todo o Antigo Testamento tem autoridade divina. Profetas como Moisés – Deuteronômio 34:10; Elias – 1 Reis 18:36; Isaías – Isaías 6:8; todos foram instrumentos de Deus. Mas nenhum deles era o Filho.)

Hebreus 1:2 a nós falou-nos nestes últimos dias... (Agora há uma mudança decisiva. A expressão “últimos dias” indica o tempo escatológico iniciado com Cristo – veja Atos 2:17 e Gálatas 4:4. É o tempo da plenitude, o clímax da história da salvação. O que era fragmentado antes, agora é revelado por inteiro.) ...pelo Filho... (Aqui está o ponto mais alto. A palavra “Filho” no grego não vem com artigo definido: huios, indicando que Ele é Filho por natureza, não apenas por função. Deus falou agora não por mais um mensageiro, mas pelo próprio Herdeiro, aquele que é da mesma essência que o Pai – João 1:18. Não há mais porções, há plenitude – Colossenses 2:9.) ...a quem constituiu herdeiro de tudo... (O verbo aqui indica decreto eterno. Tudo pertence ao Filho – veja Salmo 2:8: “Pede-me, e eu te darei os gentios por herança”. Ele é o dono legítimo de todas as coisas – João 3:35; Colossenses 1:16.) ...por quem fez também o mundo;... (Literalmente, “os séculos” – aiōnas –, o que inclui tempo, espaço e criação. O Filho não começou em Belém; Ele já existia na eternidade. Veja João 1:3 – “Todas as coisas foram feitas por ele”. Ele é o Criador junto do Pai.)

Hebreus 1:3 O qual, sendo o resplendor da sua glória... (Aqui o grego é apaugasma, que significa o “brilho que emana de uma fonte luminosa”. O Filho é a irradiação visível da glória invisível do Pai. Assim como a luz do sol chega até nós sem que toquemos o sol, assim também conhecemos o Pai vendo o Filho – João 14:9. Compare com João 1:14 – “Vimos a sua glória”.) ...e a expressa imagem da sua pessoa... (O termo “imagem”, no original charaktēr é uma palavra forte: indica marca exata, como o selo que deixa uma impressão na cera. Cristo é a representação exata da substância (hypostasis) do Pai. Ele não é uma cópia menor; Ele é a essência visível do Deus invisível – Colossenses 1:15.) ...e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder... (O verbo aqui é pherōn, “carregar, sustentar continuamente”. Cristo não é apenas o Criador, mas o Conservador do universo – como diz Colossenses 1:17: “nele subsistem todas as coisas”. Ele governa não por esforço físico, mas pela “palavra do seu poder” – ou seja, pela sua voz soberana.) ...havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados... (A palavra “purificação”, no original grego é katharismon, que vem de katharizō, significa “purificar”, “limpar completamente”. Ele não precisou de ajuda, nem de rituais do templo: sozinho, Ele fez o que nenhum sacerdote do Antigo Testamento pôde fazer – Hebreus 9:26. Foi pelo sacrifício de si mesmo – veja também Isaías 53:5: “Ele foi ferido pelas nossas transgressões”.) ...assentou-se à destra da majestade nas alturas;... (Assentar-se é sinal de missão cumprida – diferente dos sacerdotes do Antigo Testamento, que “permaneciam de pé” porque o trabalho nunca acabava – Hebreus 10:11–12. Ele sentou-se porque o sacrifício foi definitivo. A “destra da majestade” é posição de honra e governo. Ele reina agora – Salmo 110:1, citado diretamente em Hebreus 1:13.)

Jesus Cristo: A revelação final de Deus, superior a anjos e profetas, sustentando o universo.

B. Cristo é Superior aos Anjos: Provas das Escrituras (Hebreus 1:5-12)

Hebreus 1:5 Porque a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho... (Essa pergunta é retórica, e a resposta é: “A nenhum.” O autor cita o Salmo 2:7, onde Deus diz ao Messias: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei.” A palavra grega para “Filho” é huios, e neste contexto carrega o sentido exclusivo de filiação divina eterna, não uma filiação por criação, adoção ou missão. Nenhum anjo jamais recebeu esse título de forma essencial e eterna.) ...hoje te gerei?... (Esse “hoje” não indica um momento temporal, mas sim a manifestação visível da filiação eterna. Em Atos 13:33, Paulo aplica este versículo à ressurreição de Jesus, quando Ele é declarado publicamente como Filho de Deus com poder – Romanos 1:4. A palavra “gerei” vem do grego gennēka, de gennaō, que implica origem, mas aqui tem um sentido teológico profundo: o Filho não foi criado, mas gerado eternamente.) E outra vez: Eu lhe serei por Pai, e ele me será por Filho? (Aqui se cita 2 Samuel 7:14, parte da promessa feita a Davi sobre o seu descendente. Embora inicialmente referida a Salomão, o Novo Testamento aplica este versículo a Cristo, o verdadeiro Filho de Davi – veja Lucas 1:32. A beleza do texto está no modo como Deus se compromete com o Filho: não apenas como Rei, mas como Pai, num relacionamento eterno e único, que nenhum anjo compartilha.)

Hebreus 1:6 E, quando outra vez introduz no mundo o primogênito, diz: E todos os anjos de Deus o adorem. (O termo “primogênito” é prōtotokos, que significa “aquele que tem o direito de herança” – veja Colossenses 1:15. Ele é o Primogênito não porque foi o primeiro criado, mas porque tem a posição suprema entre todos. Aqui, o texto remete à encarnação, quando o Filho é introduzido no mundo. E qual é a ordem de Deus? Que todos os anjos o adorem. A citação vem do Salmo 97:7 na Septuaginta – “Adorai-o, todos os deuses” –, que o autor interpreta legitimamente como “anjos de Deus”. Isso mostra que Jesus, mesmo em sua humilhação, é digno de adoração celestial. Veja também Apocalipse 5:11–12, onde miríades de anjos adoram o Cordeiro. Nenhum anjo jamais recebeu adoração; o Filho, sim.)

Hebreus 1:7 E quanto aos anjos, diz: O que de seus anjos faz ventos, e de seus ministros labareda de fogo. (Citação do Salmo 104:4. A ideia é mostrar que os anjos são servos, mensageiros que Deus envia como o vento – rápidos, invisíveis, impessoais. A palavra grega para “anjos” aqui é angelous, que significa mensageiros. Deus os faz como “ventos” (pneumata) – forças impessoais a serviço dEle, e como “labaredas de fogo” – phloga puros –, ou seja, intensos, velozes e consumadores. Mas veja o contraste: enquanto os anjos são criados e enviados, o Filho é entronizado e adorado. Eles são ministros; Ele é o Senhor.)

Hebreus 1:8 Mas, do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono subsiste pelos séculos dos séculos... (Aqui não há dúvida sobre a identidade do Filho: Ele é chamado de “Deus”. A citação vem do Salmo 45:6, e o autor de Hebreus aplica diretamente a Jesus. Isso é decisivo para demonstrar sua divindade. O “teu trono” é símbolo de soberania e autoridade eterna. O verbo “subsiste” traduz a ideia de estabilidade contínua — não é um reino passageiro como os dos homens, mas eterno — veja Apocalipse 11:15.) ...cetro de equidade é o cetro do teu reino. (O cetro é o bastão real, sinal do governo. A palavra “equidade” traduz o grego euthytēs, que significa retidão, justiça absoluta. O reino de Cristo não se estabelece pela força ou engano, mas pela justiça e verdade — veja Isaías 9:7: “ao seu reino não haverá fim” e Romanos 14:17.)

Hebreus 1:9 Amaste a justiça e odiaste a iniquidade... (Essa é uma descrição do caráter moral do Filho. Ele não apenas pratica a justiça, Ele a ama. E, por contraste, odeia a maldade — a palavra usada no Salmo 45:7 e refletida aqui implica aversão ativa. Essa perfeição ética é que o qualifica como rei e juiz — veja Isaías 11:4–5.) ...por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros. (O verbo “ungir” aqui é echrisen — raiz de onde vem a palavra “Cristo” (christos, o Ungido). O “óleo de alegria” é uma figura para o derramamento do Espírito de forma plena e singular sobre o Filho — Isaías 61:1; Lucas 4:18. Os “companheiros” são os profetas, reis e sacerdotes ungidos no passado, mas nenhum como Ele. Veja João 3:34: “Deus não lhe dá o Espírito por medida”.)

Hebreus 1:10 E: Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra... (Aqui o autor cita o Salmo 102:25–27, que no original hebraico se refere a Deus. Hebreus aplica esse texto diretamente ao Filho. Isso mostra que o autor via Cristo não apenas como enviado de Deus, mas como o próprio Criador. O “fundaste” implica estabelecer com firmeza, como um edifício — veja João 1:3 e Colossenses 1:16.) ...e os céus são obra de tuas mãos;... (Ou seja, toda a criação — tanto a visível quanto a invisível — foi feita por Ele. A expressão “obras de tuas mãos” é um hebraísmo que indica autoria direta. Isso confirma que o Filho é anterior à criação e distinto dela.)

Hebreus 1:11 Eles perecerão... (A criação material, por mais imensa que seja, é temporária. Pedro confirma isso: “os céus passarão com grande estrondo” – 2 Pedro 3:10. Céus e terra terão fim; mas Cristo, não.) ...mas tu permanecerás... (Aqui está o contraste: a criação é transitória; Cristo é eterno. O verbo grego traduzido como “permanecerás” é diamenō, que carrega a ideia de estabilidade absoluta e imutável — veja Hebreus 13:8: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e eternamente”.) ...e todos eles, como roupa, envelhecerão,... (Até os céus, tão sublimes, são como uma vestimenta gasta diante dEle. Isaías 51:6 diz: “os céus se desfarão como fumaça, e a terra se envelhecerá como roupa”.)

Hebreus 1:12 E como um manto os enrolarás, e serão mudados... (Aqui a criação é comparada a um manto que Deus dobra e guarda. A expressão grega para “enrolarás” é helixeis, indicando que Cristo tem autoridade para recolher e renovar os céus como quem troca de roupa. Isso aponta para a renovação escatológica — veja Apocalipse 21:1: “vi novo céu e nova terra”.) ...mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão. (Essa é uma das afirmações mais belas da imutabilidade de Cristo. Ele é ho autos — “o mesmo”. Isso significa que Seu caráter, Seu poder, Seu amor e Sua promessa não mudam com o tempo. Veja também Malaquias 3:6: “Porque eu, o Senhor, não mudo”.)

D. Cristo é Superior aos Anjos: Sua Posição e Missão (Hebreus 1:13-14)

Hebreus 1:13 Mas a qual dos anjos disse jamais: Assenta-te à minha direita... (Mais uma vez, o autor usa uma pergunta retórica com resposta negativa: a nenhum anjo Deus jamais disse isso. A citação é do Salmo 110:1, o texto do Antigo Testamento mais citado em todo o Novo Testamento. A ordem “Assenta-te” é uma entronização. No grego kathou ek dexion mou, Cristo está assentado à destra de Deus, lugar de honra, autoridade e glória — veja Marcos 16:19 e Efésios 1:20–21.) ...até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés? (Essa figura do “escabelo” ou “estrado” indica vitória absoluta. O Senhor não apenas reina, Ele submete tudo sob seus pés — veja 1 Coríntios 15:25: “É necessário que Ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés.” Essa promessa não foi feita a nenhum anjo, mas exclusivamente ao Filho. Os anjos servem; o Filho reina.)

Hebreus 1:14 Não são porventura todos eles espíritos ministradores... (O autor agora conclui com a natureza e função dos anjos. Eles são pneumata leitourgika — “espíritos de serviço”, ou seja, seres criados para servir. Isso não os diminui, mas os coloca em contraste com o Filho: enquanto o Filho é adorado, os anjos ministram.) ...enviados para servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação? (Os anjos não são para si mesmos, mas para a igreja. São enviados — apostellomena — como mensageiros e agentes de socorro. Veja Salmo 34:7: “O anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que o temem”. E ainda Mateus 18:10, onde Jesus fala dos anjos que assistem diante do Pai em favor dos pequeninos. Mas repare: eles servem, mas é o Filho quem salva; eles ministram, mas é o Filho quem reina.)

VIII. Teologia de Hebreus 1

O capítulo 1 da Epístola aos Hebreus estabelece, com precisão teológica e densidade cristológica, a superioridade absoluta de Jesus Cristo como o ápice da revelação divina. A teologia da revelação, exposta nos versículos iniciais, contrasta a multiforme comunicação de Deus por meio dos profetas no Antigo Testamento (polumerōs kai polutrōpōs) com a revelação final e suficiente realizada “no Filho” (en huiō), sem artigo definido, indicando sua identidade essencial como o próprio conteúdo e meio da fala divina. O autor apresenta Cristo como herdeiro de todas as coisas, mediador da criação (di’ hou), resplendor da glória de Deus (apaugasma tēs doxēs), expressão exata do seu ser (charaktēr tēs hypostaseōs), sustentador do universo e purificador dos pecados, exaltado à destra da Majestade nas alturas. Cada termo e título reforça a consubstancialidade do Filho com o Pai e sua atuação simultaneamente cósmica, redentora e escatológica.

A segunda metade do capítulo desenvolve uma cristologia comparativa que demonstra a superioridade ontológica e funcional de Cristo em relação aos anjos. Utilizando sete citações da Septuaginta, o autor mostra que Jesus recebeu um nome mais excelente (kreittōn onoma), foi chamado “Filho” em sentido único (Sl 2.7), recebe adoração dos anjos (Dt 32.43 LXX), possui um trono eterno (Sl 44.7–8), é ungido como Rei justo, é o Criador imutável (Sl 101.26–28), e assenta-se à direita de Deus (Sl 109.1), enquanto os anjos, ainda que gloriosos, são espíritos ministradores (leitourgika pneumata) enviados para servir os herdeiros da salvação. A angelologia aqui está deliberadamente subordinada à cristologia: os anjos são funcionais, Cristo é soberano; eles são criados e mutáveis, Ele é eterno e entronizado. Assim, Hebreus 1 fundamenta toda a teologia posterior da epístola em uma afirmação inaugural e incontestável: Cristo é superior em essência, em missão e em glória.

A. A Natureza Progressiva e Final da Revelação Divina (Hebreus 1.1–2a)

A abertura do tratado aos Hebreus estabelece de imediato um marco hermenêutico fundamental para toda sua teologia: a maneira pela qual Deus se revelou à humanidade ao longo da história redentora. O autor traça um arco contrastivo entre a multiplicidade de formas de revelação do Antigo Testamento e a singularidade absoluta da revelação final em Jesus Cristo. A teologia da revelação em Hebreus 1.1–2a articula uma transição da pluralidade profética à plenitude cristológica, constituindo uma ponte entre a economia da antiga aliança e o advento da nova e definitiva manifestação divina.

1. A Revelação Diversificada e Fragmentada do Antigo Testamento

O autor de Hebreus inicia com a afirmação de que “havendo Deus antigamente falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais, pelos profetas…” (πολυμερῶς καὶ πολυτρόπως πάλαι ὁ θεὸς λαλήσας τοῖς πατράσιν ἐν τοῖς προφήταις, polumerōs kai polutrōpōs palai ho theos lalēsas tois patrasin en tois prophētais). As duas expressões adverbiais — polumerōs (“de muitas partes”) e polutrōpōs (“de muitas maneiras”) — apontam para a natureza fracionada e multiforme da revelação veterotestamentária. Esta linguagem ecoa a percepção hebraica da revelação como um processo progressivo e dialógico, centrado na aliança e adaptado às condições de tempo, cultura e maturação espiritual do povo. A referência aos “pais” (τοῖς πατράσιν, tois patrasin) e “profetas” (τοῖς προφήταις, tois prophētais) evoca o corpo de revelação que compreende desde os patriarcas até os profetas literários e não-literários, funcionando como testemunhas e instrumentos do discurso divino.

No campo da teologia bíblica, essa multiplicidade corresponde à economia pedagógica de Deus, que ao longo da história “foi falando” (λαλήσας, lalēsas, aoristo ativo de λαλέω, laleō, enfatizando o início e continuidade da ação) mediante visões, sonhos, leis, narrativas e oráculos. Cada uma dessas manifestações constituía uma parte (μέρος, meros) de um todo ainda por vir, e nunca uma revelação final ou total. Como destaca a tradição rabínica (cf. b. Berakhot 5a), a palavra divina era recebida “segundo a medida” de quem a ouvia, o que revela a dimensão dialógica e condescendente da revelação na história de Israel.

2. A Revelação Final e Completa em Jesus Cristo

O contraste se intensifica quando o autor afirma que “nestas últimas [ἔσχατος] dias, nos falou [ἐλάλησεν] pelo Filho” (ἐπ᾽ ἐσχάτου τῶν ἡμερῶν τούτων ἐλάλησεν ἡμῖν ἐν υἱῷ, ep’ eschatou tōn hēmerōn toutōn elalēsen hēmin en huiō). A expressão “últimos dias” não é apenas cronológica, mas escatológica, remetendo à plenitude dos tempos e à consumação da revelação profética (cf. Joel 2.28; At 2.17). Ao dizer que Deus falou “pelo Filho” (ἐν υἱῷ, en huiō), o autor evita o artigo definido, o que pode indicar aqui não um título estático, mas uma identificação essencial: o Filho é o meio e o conteúdo da revelação. Não se trata mais de portadores parciais da Palavra, mas do próprio Logos encarnado (cf. Jo 1.14), que é simultaneamente o comunicador e a comunicação.

O verbo ἐλάλησεν (elalēsen), embora também esteja no aoristo como λαλήσας (lalēsas, 1.1), não se refere meramente a uma continuidade, mas a uma culminação. A revelação em Cristo é não apenas superior, mas suficiente e definitiva. Ao contrário da multiplicidade anterior, agora há unidade; em lugar de mediações humanas, temos o Filho eterno. A cristologia implícita nesse versículo já carrega tons de elevada sofisticação teológica: o Filho é o ápice da autorrevelação divina e o critério hermenêutico para toda leitura da Escritura anterior. Em Cristo, a Palavra se faz carne, e a teologia da revelação atinge seu telos.

A teologia reformada, por exemplo, enfatiza esse ponto ao reconhecer em Cristo o “profeta supremo” (cf. Catecismo de Heidelberg, Q. 31), aquele que revela perfeitamente a vontade de Deus para a salvação dos eleitos. Tal perspectiva não nega o valor da revelação anterior, mas a vê como preparação tipológica e profética. A suficiência da revelação em Cristo, portanto, torna qualquer expectativa de uma nova palavra pública divina não apenas desnecessária, mas teologicamente ilegítima. A revelação está encerrada, porque o Filho é a plenitude.

B. A Pessoa do Filho — Sua Natureza e Glória (Hebreus 1.2b–3)

Após estabelecer a supremacia da revelação em Cristo, o autor da epístola mergulha profundamente na identidade ontológica e funcional do Filho, articulando uma cristologia elevada em apenas dois versículos densos de conteúdo teológico. Hebreus 1.2b–3 constitui um dos mais concentrados retratos da divindade de Cristo no Novo Testamento, reunindo aspectos do seu relacionamento com o Pai, sua mediação cósmica, sua obra redentora e sua exaltação celestial. Trata-se de uma seção que opera tanto como confissão cristológica quanto como prólogo doutrinário ao restante da epístola.

1. O Filho Como Herdeiro de Todas as Coisas

O texto declara que o Filho é “a quem constituiu herdeiro de tudo” (ὃν ἔθηκεν κληρονόμον πάντων, hon ethēken klēronomon pantōn). A designação de Cristo como “herdeiro” (κληρονόμος, klēronomos) sugere primazia legal, domínio escatológico e autoridade messiânica. No contexto veterotestamentário, a herança pertence ao primogênito por direito (cf. Sl 2.8), e aqui Cristo é elevado à condição de herdeiro universal, não por sucessão, mas por preexistência e eleição divina. Esse aspecto ecoa tanto o Salmo 2 quanto tradições apocalípticas judaicas que atribuíam ao Messias o domínio final sobre toda a criação.

2. O Filho Como Criador do Universo

Imediatamente, o texto prossegue: “por quem também fez o mundo” (δι’ οὗ καὶ ἐποίησεν τοὺς αἰῶνας, di’ hou kai epoiēsen tous aiōnas). A expressão “os séculos” (τοὺς αἰῶνας, tous aiōnas) é um hebraísmo característico que denota não apenas o tempo, mas o universo criado no tempo. A preposição δι’ (por meio de) seguida do pronome relativo οὗ (de quem) indica mediação instrumental na criação — ou seja, o Filho é o agente pelo qual o Pai criou tudo o que existe. Esta doutrina ecoa o prólogo joanino (“sem ele nada do que foi feito se fez”, Jo 1.3) e as afirmações paulinas em Colossenses 1.16. Aqui, o Filho não é apenas o herdeiro escatológico, mas também o autor original da criação, o que implica sua preexistência eterna e participação ativa na obra criadora de Deus.

3. O Filho Como Resplendor da Glória de Deus

A seguir, o texto descreve o Filho como sendo “o resplendor da glória” (ἀπαύγασμα τῆς δόξης, apaugasma tēs doxēs). O termo ἀπαύγασμα (apaugasma) é raro e complexo, podendo significar “emanação” ou “irradiamento”. Ele não denota uma simples reflexão, como num espelho, mas sim uma emissão da própria fonte. A metáfora da luz não é meramente estética: é ontológica. Assim como o raio de sol é consubstancial ao sol, o Filho é da mesma natureza que a glória (δόξα, doxa) divina. Ele manifesta de forma visível a realidade invisível de Deus, sem ser inferior a ela. A linguagem aproxima-se da tradição sapiencial (cf. Sabedoria 7.25-26), em que a Sabedoria é “reflexo da luz eterna” — o que demonstra que o autor de Hebreus está reinterpretando categorias judaicas à luz da cristologia exaltada.

4. O Filho Como Expressão Exata do Ser de Deus

A frase seguinte aprofunda essa identidade ontológica ao declarar que o Filho é a “expressão exata do seu ser” (χαρακτὴρ τῆς ὑποστάσεως αὐτοῦ, charaktēr tēs hypostaseōs autou). O termo χαρακτὴρ (charaktēr), originalmente usado para descrever o cunho que imprime a marca de uma imagem numa moeda ou selo, aqui representa a ideia de que o Filho é a exata impressão da realidade substancial do Pai. A palavra ὑπόστασις (hypostasis) refere-se à essência, substância ou realidade concreta do ser de Deus. Logo, o Filho não é apenas semelhante a Deus, mas é a manifestação exata de sua essência. Trata-se de uma das afirmações mais explícitas da consubstancialidade entre o Pai e o Filho no Novo Testamento.

5. O Filho Como Sustentador de Todas as Coisas

A cristologia de Hebreus segue afirmando que o Filho sustenta “todas as coisas pela palavra do seu poder” (φέρων τε τὰ πάντα τῷ ῥήματι τῆς δυνάμεως αὐτοῦ, pherōn te ta panta tō rhēmati tēs dynameōs autou). O verbo φέρων (pherōn), particípio presente de φέρω, indica ação contínua: Cristo não apenas criou, mas sustenta o universo em operação. O termo ῥῆμα (rhēma), “palavra”, enfatiza a eficácia da fala divina, tal como em Gênesis 1. A expressão δυναμις (dynamis), “poder”, reforça sua autoridade cósmica. Em contraste com o deísmo, que concebe Deus como criador ausente, aqui Cristo é apresentado como sustentador presente e ativo, continuamente mantendo a coesão do cosmos.

6. O Filho Como Purificador dos Pecados

Ainda no versículo 3, afirma-se que o Filho, “havendo feito por si mesmo a purificação dos pecados” (καθαρισμὸν τῶν ἁμαρτιῶν ποιησάμενος, katharismon tōn hamartiōn poiēsamenos), introduz-se uma dimensão soteriológica. A obra purificadora de Cristo é aqui colocada como evento realizado (aoristo médio), indicando sua completude. O uso de καθαρισμός (katharismos), termo cultual, sugere que a redenção operada por Cristo é apresentada nos moldes sacerdotais — antecipando o desenvolvimento posterior da doutrina do sumo sacerdócio. Ao dizer “por si mesmo” (heautō), o autor enfatiza a suficiência e eficácia do sacrifício singular do Filho.

6.1 O Filho Como Exaltado à Destra da Majestade

A culminação da cristologia ocorre na última cláusula do versículo 3: “assentou-se à destra da Majestade nas alturas” (ἐκάθισεν ἐν δεξιᾷ τῆς μεγαλωσύνης ἐν ὑψηλοῖς, ekathisen en dexiā tēs megalōsynēs en hypsēlois). O aoristo ἐκάθισεν (ekathisen) marca a consumação de um processo: após a purificação, o Filho é exaltado. Assentar-se à destra (ἐν δεξιᾷ, en dexiā) é imagem régia que simboliza autoridade, honra e compartilhamento do trono divino (cf. Sl 110.1). A expressão μεγαλωσύνη (megalōsynē), “majestade”, aparece raramente e é usada como periphrase reverente para o nome de Deus. A linguagem cultual e real se fundem aqui numa teologia do Cristo exaltado, cuja obra redentora é completa e cuja autoridade é absoluta.

C. A Superioridade de Cristo Sobre os Anjos (Hebreus 1.4–14)


A transição entre a cristologia ontológica (1.2b–3) e a argumentação escriturística (1.4–14) é marcada por uma mudança estratégica do autor, que abandona momentaneamente o estilo de afirmações teológicas compactas para adotar uma abordagem midráshica baseada em citações do Antigo Testamento. Essa seção constitui um exemplo refinado de “cristologia comparativa”, em que Cristo é contrastado com os anjos — não para meramente desvalorizá-los, mas para evidenciar que sua dignidade é derivada e funcional, enquanto a de Cristo é essencial e absoluta. O argumento avança por meio de sete citações veterotestamentárias, funcionando como testemunhos intertextuais da supremacia do Filho.

1. A Herança de um Nome Mais Excelente (Hebreus 1.4–5)


O versículo 4 afirma que Cristo “tornou-se tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles” (τοσούτῳ κρείττων γενόμενος τῶν ἀγγέλων ὅσῳ διαφορώτερον παρ᾽ αὐτοὺς κεκληρονόμηκεν ὄνομα, tosoutō kreittōn genomenos tōn angelōn hosō diaphorōteron par’ autous keklēronomēken onoma). A superioridade do Filho (κρείττων, kreittōn) não é apenas moral ou funcional, mas estrutural, e se evidencia por sua posse de um nome herdado — uma referência ao título “Filho”, que carrega consigo prerrogativas messiânicas, divinas e escatológicas.

A base escriturística dessa afirmação encontra-se em duas passagens citadas em sequência: Salmo 2:7 (“Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”[LXX]) e 2 Samuel 7:14 (“Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho” [LXX]). A primeira (Hebreus 1.5a) é citada como: σὺ εἶ ὁ υἱός μου, ἐγὼ σήμερον γεγέννηκά σε (sy ei ho huios mou, egō sēmeron gegennēka se). A forma verbal γεγέννηκα (gegennēka), perfeito de γεννάω (gennaō), indica um ato completo e decisivo: o Filho foi constituído em sua posição singular por um decreto divino eterno. O Salmo 2, com forte conotação régia e messiânica, era tradicionalmente aplicado ao Messias escatológico, e aqui o autor de Hebreus o interpreta à luz da ressurreição e exaltação de Cristo, como o fazem também Paulo (cf. At 13.33).

A segunda citação, ἐγὼ ἔσομαι αὐτῷ εἰς πατέρα καὶ αὐτὸς ἔσται μοι εἰς υἱόν (egō esomai autō eis patera kai autos estai moi eis huion), retira-se da promessa davídica de 2 Samuel 7.14, mas aqui é lida cristologicamente como testemunho da relação eterna entre Deus e seu Filho. Nenhum anjo, por mais exaltado que seja, jamais foi declarado “Filho” nesse sentido essencial. O termo ὄνομα (onoma, “nome”) no pensamento hebraico implica identidade, natureza e autoridade. O Filho não apenas possui um título superior — Ele é a expressão perfeita do ser de Deus, como já fora estabelecido em Hebreus 1.3. A filiação de Cristo, portanto, é ontológica, exclusiva e constitutiva de sua glória. Os anjos, por contraste, são criaturas exaltadas, mensageiros fiéis e ministros do Altíssimo, mas não partilham da mesma natureza divina.

2. Os Anjos Adoram o Filho (Hebreus 1.6)


Em sequência, versículo 6, o autor apresenta mais um argumento de supremacia: “E novamente, quando introduz o Primogênito no mundo, diz: E todos os anjos de Deus o adorem” (ὅταν δὲ πάλιν εἰσαγάγῃ τὸν πρωτότοκον εἰς τὴν οἰκουμένην λέγει· καὶ προσκυνησάτωσαν αὐτῷ πάντες ἄγγελοι θεοῦ, hotan de palin eisagagē ton prōtotokon eis tēn oikoumenēn legei: kai proskynēsatōsan autō pantes angeloi theou). A referência à introdução do “Primogênito” (πρωτότοκος, prōtotokos) “no mundo” (τὴν οἰκουμένην, tēn oikoumenēn) pode ser entendida tanto como encarnação quanto parousia (segunda vinda), mas o mais provável é que o autor tenha em mente o momento da exaltação celeste do Filho ressurreto, introduzido como Rei e Senhor no trono do universo.

A expressão καὶ προσκυνησάτωσαν αὐτῷ πάντες ἄγγελοι θεοῦ (kai proskynēsatōsan autō pantes angeloi theou) é retirada da versão grega de Deuteronômio 32.43 segundo a LXX, que contém uma cláusula ausente do texto massorético: “Alegrai-vos, ó céus, com ele... e que todos os anjos de Deus o adorem”. O uso desta citação na epístola evidencia a autoridade da Septuaginta como Escritura válida e inspirada na comunidade dos destinatários. A ordem divina de que os anjos adorem (προσκυνέω, proskyneō) o Filho equivale a uma confissão implícita de Sua divindade, já que, em toda a tradição judaica, a adoração é devida apenas ao Deus único de Israel (cf. Ex 34.14; Mt 4.10).

A adoração angelical confirma a identidade do Filho como objeto legítimo do culto celestial, e não como um ser entre outros seres espirituais. Esta afirmação é teologicamente radical: o Filho, não os anjos, ocupa o centro do trono e da adoração divina. Em contraste com o culto reverente prestado pelos anjos a Deus (cf. Is 6; Ap 4), agora são esses mesmos anjos que se prostram diante do Filho entronizado. Não se trata de um mero símbolo de honra, mas de reconhecimento ontológico — Cristo compartilha a mesma glória do Pai (cf. Jo 17.5). O uso do termo “Primogênito” reforça a linguagem da preeminência: Ele é o primeiro em autoridade, o soberano da criação e o cabeça de todos os redimidos (cf. Cl 1.15,18).

3. A Natureza Mutável dos Anjos vs. a Eternidade de Cristo (Hebreus 1.7–12)

Nesta terceira argumentação, o autor de Hebreus aprofunda a comparação entre os anjos e o Filho, destacando a mutabilidade dos primeiros em contraste com a eternidade, divindade e imutabilidade do segundo. A estrutura exegética permanece fundamentada em citações do Antigo Testamento, mas agora com uma alternância deliberada entre o que é dito dos anjos e o que é afirmado sobre o Cristo, com a finalidade de reforçar a distância ontológica intransponível entre as duas naturezas.

O versículo 7 estabelece o ponto de partida com uma citação do Salmo 104.4 LXX: “Dos anjos, diz: Aquele que a seus anjos faz ventos, e a seus ministros labaredas de fogo” (καὶ πρὸς μὲν τοὺς ἀγγέλους λέγει· ὁ ποιῶν τοὺς ἀγγέλους αὐτοῦ πνεύματα καὶ τοὺς λειτουργοὺς αὐτοῦ πυρὸς φλόγα, kai pros men tous angelous legei: ho poiōn tous angelous autou pneumata kai tous leitourgous autou pyros phloga). A estrutura paralelística do salmo poético hebraico é preservada na citação, e o autor realça que os anjos são apresentados como pneumata (“ventos” ou “espíritos”) e leitourgoi (“ministros”, no sentido cultual). O uso de termos como πνεύματα (pneumata) e φλόγα (phloga, “chama”) evidencia a natureza impessoal, transitória e funcional dos anjos. São forças elementares criadas, fluídas, que executam os propósitos de Deus como agentes de sua providência, mas não possuem eternidade própria.

Por contraste, os versículos 8 a 12 se dirigem diretamente ao Filho, com base em duas grandes passagens do Saltério: Salmo 45.6–7 (vv. 8–9) e Salmo 102.25–27 (vv. 10–12). Primeiro, Hebreus 1.8–9 declara: “Mas acerca do Filho: O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre, e cetro de equidade é o cetro do teu reino. Amaste a justiça e odiaste a iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros” 

A atribuição do trono eterno (no original, ὁ θρόνος σου ὁ θεὸς, ho thronos sou ho theos) ao Filho equivale a uma declaração explícita de sua divindade. Trata-se de uma rara instância em que o próprio título “Deus” (θεός, theos) é aplicado ao Messias em uma construção direta, sem mediação. O cetro (ῥάβδος, rhabdos) da sua realeza é descrito como cetro de justiça, revelando que seu governo é marcado pela retidão moral e fidelidade à vontade de Deus. A unção (ἔχρισεν, echrisen) com óleo de alegria mais do que os “companheiros” (μετόχους, metochous) alude à entronização régia e sacerdotal do Filho, como figura suprema entre todos os participantes do plano redentor — sejam anjos, profetas ou redimidos.

Em seguida, os versículos 10–12 citam o Salmo 102.25–27 (LXX) como discurso dirigido ao Filho: “Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra, e os céus são obra das tuas mãos; eles perecerão, tu, porém, permaneces; todos eles envelhecerão como veste; como manto os enrolarás, e serão mudados. Tu, porém, és o mesmo, e os teus anos não acabarão” 

O contraste é intenso: os céus e a terra são apresentados como criados e, portanto, perecíveis; o Filho, em contrapartida, é eterno, imutável e contínuo. O uso do vocativo “Senhor” (κύριε, kyrie) confirma que o Salmo, originalmente dirigido a YHWH, é aqui aplicado ao Filho — mais uma forte prova da identificação de Jesus com o Deus criador de Israel. Os verbos ἀπολοῦνται (apolountai, “perecerão”), παλαιωθήσονται (palaiōthēsontai, “envelhecerão”), e ἀλλαγήσονται (allagēsontai, “serão mudados”) reforçam a transitoriedade da criação em contraste com a permanência do Filho, que é descrito com o predicado absoluto: σὺ δὲ ὁ αὐτὸς εἶ (sy de ho autos ei, “tu és o mesmo”). Essa declaração remete ao conceito teológico da imutabilidade divina, fundamental na tradição hebraica (cf. Ml 3.6) e no pensamento cristão posterior.

A implicação teológica é clara: os anjos, ainda que espirituais e gloriosos, fazem parte da criação mutável; o Filho, por outro lado, é o fundamento da criação, anterior a ela e absolutamente imutável em sua identidade divina. Assim, a comparação se resolve numa disparidade ontológica intransponível — Cristo é eterno, os anjos são efêmeros.

4. Os Anjos São Servos, Cristo é Rei (Hebreus 1.13–14)

A argumentação culmina com uma sétima e decisiva citação, proveniente do Salmo 110.1 (LXX), um dos textos mais citados em todo o Novo Testamento. Hebreus 1.13 pergunta retoricamente: “A qual dos anjos jamais disse: Assenta-te à minha destra, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés?” A fórmula interrogativa com o advérbio de tempo ποτε (pote, “alguma vez”) implica a resposta negativa evidente: a nenhum anjo tal palavra jamais foi dirigida. Trata-se de uma distinção exclusiva, absolutamente reservada ao Filho.

O Salmo 110.1 é uma peça chave na teologia messiânica neotestamentária. A ordem “Assenta-te à minha destra” (κάθου ἐκ δεξιῶν μου, kathou ek dexiōn mou) simboliza entronização, autoridade coigual e partilha da soberania divina. Ao aplicar esse salmo ao Filho, o autor de Hebreus não apenas sublinha a exaltação de Cristo, mas afirma que Ele é o soberano ativo na história, aquele a quem todos os inimigos — incluindo a morte (cf. 1Co 15.25–26) — serão subjugados. Essa imagem é regencial, escatológica e profundamente trinitária, pois envolve a ação do Pai em favor do Filho como Rei absoluto.

Em contraste com essa posição de honra e governo, os anjos são novamente descritos em termos funcionais e subordinados no versículo 14: “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?” O uso de οὐχὶ (ouchi, “não são...?”) como partícula enfática retórica indica que essa é uma verdade comum e aceita. Os anjos são definidos como leitourgika pneumata — “espíritos ministradores”, agentes que atuam sob mandato divino em favor dos que herdarão a salvação (τοὺς μέλλοντας κληρονομεῖν σωτηρίαν, tous mellontas klēronomein sōtērian).

Essa definição angelológica, embora exalte o papel dos anjos como instrumentos do plano salvífico de Deus, os coloca inequivocamente em função de serviço e não de soberania. Os anjos são enviados (apostellomena, particípio presente passivo de apostellō), enquanto o Filho é entronizado. Os anjos servem aos redimidos, mas o Filho reina sobre todas as coisas. Essa distinção entre realeza e ministério, entre autoridade eterna e função temporal, estabelece a doutrina da angelologia subordinada à cristologia: os anjos são celestes, mas criados; gloriosos, mas servos; eficazes, mas não soberanos.

O autor de Hebreus, com esse fechamento, não apenas põe fim ao primeiro capítulo com uma argumentação escalonada e intertextual, mas estabelece as bases para toda sua teologia posterior: Jesus é superior aos anjos não apenas por função, mas por essência; não apenas por nome, mas por natureza; não apenas por status, mas por missão consumada. O Filho é Deus, entronizado e adorado; os anjos são servos, enviados e submissos. Toda a economia da nova aliança se fundamenta nessa assimetria gloriosa.

IX. Contexto Histórico-Social de Hebreus 1

Hebreus 1 apresenta uma das mais sofisticadas sínteses teológicas do Novo Testamento, combinando elementos da exegese judaica, da retórica greco-romana e da teologia cristã primitiva. O autor inicia com um proêmio retoricamente refinado, utilizando aliteração, paralelismo e ritmo para introduzir os temas centrais: a revelação de Deus no passado por meio dos profetas e sua plenitude presente no Filho. Essa introdução remete aos modelos de Sirácida e Sabedoria de Salomão, onde a Sabedoria é mediadora da criação e da revelação, mas agora superada pelo próprio Cristo, o resplendor da glória de Deus e imagem exata de seu ser. O Filho é apresentado como herdeiro de todas as coisas, agente da criação, sustentador do universo, redentor sacerdotal e rei entronizado à direita da Majestade, com um nome superior a todos os anjos. Essa cristologia elevada é construída a partir de uma série de citações veterotestamentárias (Salmos 2, 45, 102, 110, entre outros), interpretadas com técnicas rabínicas como o charaz e a analogia verbal.

O capítulo responde a um contexto em que a identidade de Jesus poderia estar sendo diluída, talvez por pressões judaicas que sugeriam sua reinterpretação como um anjo exaltado. Em resposta, o autor demonstra que os anjos, por mais gloriosos, são apenas servos e mensageiros, enquanto o Filho é adorado, eterno, criador e soberano. Essa distinção se ancora em tradições judaicas sobre a mediação angelical da Lei, em visões escatológicas apocalípticas, e em representações imperiais greco-romanas de herança, trono e nome. Ao reinterpretar essas categorias à luz da revelação em Cristo, Hebreus 1 estabelece um novo paradigma: ouvir o Filho é ouvir o próprio Deus em sua forma final de fala. A cristologia ali proclamada é o fundamento de toda a exortação subsequente — e o critério pelo qual a fidelidade da comunidade cristã será medida.

A. A Estrutura Retórica e o Gênero Literário de Hebreus 1:1–4

O trecho introdutório de Hebreus 1:1–4 constitui uma das mais sofisticadas composições retóricas de todo o Novo Testamento, tanto em sua forma quanto em sua função. Longe de servir apenas como uma abertura formal, essa seção funciona como um proêmio (προοίμιον), um recurso clássico da retórica greco-romana e da tradição homilética judaica helenística, cuja função era duplamente estruturante: captar a atenção do ouvinte e antecipar os temas centrais do discurso. Como reconhecido por Aristóteles, o exórdio em um discurso deveria funcionar como o prelúdio de uma apresentação musical, preparando o espírito do ouvinte para a mensagem que se seguiria — e é exatamente esse o papel do início de Hebreus.

Diversos estudiosos notaram a convergência de tradições que se unem neste prólogo. O autor de Hebreus, profundamente enraizado na tradição exegética judaica, mas treinado no estilo elevado do grego ático tardio, emprega técnicas características tanto da retórica helenística quanto dos sermões sinagogais do período do Segundo Templo. Uma das marcas mais visíveis dessa sofisticação é a aliteração: em Hebreus 1:1, o autor introduz cinco palavras gregas consecutivas que começam com a letra pi (π) — polymerōs, polytropōs, palai, pros, patrasin — o que não apenas demonstra perícia estilística, mas também confere solenidade e ritmo litúrgico ao texto. Essa cadência ajuda a fixar a atenção do ouvinte e a gravar a mensagem na memória, como era esperado dos bons proêmios na arte retórica do mundo greco-romano.

Esse uso estilizado da linguagem remete diretamente a modelos disponíveis à época, como a introdução do livro de Sirácida (Eclesiástico), cuja circulação no mundo judaico helenístico é atestada tanto pela LXX quanto pela tradição de leitura em sinagogas da Diáspora. Sirácida 24, por exemplo, apresenta a Sabedoria personificada como preexistente, mediadora da criação e reveladora da vontade divina — temas que ressoam de forma inequívoca no prólogo de Hebreus. Também o livro da Sabedoria de Salomão 7:26 descreve a sabedoria como “o reflexo da luz eterna e o espelho sem mancha da atividade de Deus”, utilizando o termo apaugasma (ἀπαύγασμα), exatamente o mesmo que Hebreus aplica a Cristo em 1:3. O autor parece, portanto, inscrever deliberadamente seu discurso num gênero teológico-literário já conhecido por seus leitores, adaptando e ultrapassando os limites da sabedoria personificada para apresentar Cristo como a plena encarnação da glória divina.

No plano do gênero, há hoje consenso majoritário de que Hebreus não é uma epístola no sentido paulino tradicional, mas sim um sermão expositivo ou homilia escrita. O que reforça essa leitura é justamente a estruturação retórica do capítulo 1:1–4, que funciona como exórdio homilético nos moldes praticados nas sinagogas helenizadas da Diáspora. O autor introduz os temas que serão desenvolvidos ao longo de toda a obra: a revelação divina, a superioridade do Filho, sua função sacerdotal, sua entronização e sua relação com a criação e com os anjos. William Lane observa que o autor estrutura seu argumento com flair, utilizando paralelismo e uma composição simétrica entre os tempos antigos e os “últimos dias”, entre a palavra dos profetas e a palavra do Filho, entre a figura do herdeiro e a ação criadora do Logos.

Nesse contexto, o uso da fórmula “Deus falou” (Hebreus 1:1) deve ser lido à luz da tradição exegética judaica helenística, em que a voz divina era frequentemente invocada para dar autoridade ao texto das Escrituras. Filo de Alexandria, contemporâneo do autor de Hebreus, chega a comentar que o exórdio do Gênesis (“No princípio...”) desperta a mais alta admiração exatamente por introduzir Deus como sujeito agente da fala criadora. Assim também, o autor de Hebreus inicia seu discurso com a declaração teológica de que Deus falou “de muitas maneiras e em muitos tempos” — ou seja, em variedade de meios, mediações e momentos históricos. Isso inclui as visões, sonhos, milagres, aparições e promessas, como exemplificado no comentário do texto: “Deus falou por meio dos profetas” (en tois prophētais), o que remete não apenas aos profetas escritores (Isaías, Jeremias, etc.), mas também a figuras como Abraão (Gênesis 20:7), Moisés (Deuteronômio 34:10), Arão (Êxodo 7:1) e Miriam (Êxodo 15:20) — todos classificados no Antigo Testamento como navi’, “profetas”. A noção de revelação contínua e fragmentária contrasta fortemente com a unidade e plenitude da revelação em Cristo nos “últimos dias”.

A expressão “nestes últimos dias” (ἐπ’ ἐσχάτου τῶν ἡμερῶν τούτων), longe de ser uma simples referência cronológica, pertence ao vocabulário técnico do apocalipticismo judaico. A tradição judaica — tanto canônica (Isaías 2:2; Ezequiel 38:16; Oséias 3:5; Miqueias 4:1) quanto intertestamentária (por exemplo, em Qumran e nos apócrifos) — dividia a história em dois grandes períodos: o tempo antigo e os “últimos dias”, nos quais Deus executaria seu juízo e traria a salvação definitiva. O uso dessa fórmula em Hebreus 1:2 indica que o autor vê a encarnação, exaltação e reinado de Cristo como o início dessa fase final da história. Como em Atos 2:17, onde Pedro cita Joel 2:28 para justificar o Pentecostes como cumprimento escatológico, também aqui o autor identifica o tempo de Cristo como o clímax da revelação — uma leitura escatológica que já se encontrava em grupos como a comunidade de Qumran.

Por fim, é crucial notar que o autor, ao afirmar que Deus “falou pelo Filho”, não está apenas contrastando com os profetas, mas aplicando uma categoria exclusiva e teológica: o Filho é apresentado como o herdeiro de todas as coisas (κληρονόμον πάντων), o que remete diretamente ao Salmo 2:8 — “pede-me, e eu te darei as nações por herança” — interpretado messianicamente já no judaísmo pré-cristão e reutilizado no versículo 5 do próprio capítulo. Essa linguagem de herança, além de suas raízes veterotestamentárias (como em Gênesis 12; Deuteronômio 21), também ecoa práticas e códigos do direito greco-romano, embora com distinções: no mundo romano, o herdeiro recebia sua parte após a morte do testador, o que torna problemática a aplicação direta da metáfora a Deus Pai. Assim, o autor se distancia de uma analogia jurídica plena e se ancora numa tradição mais teológica: Cristo como herdeiro messiânico segundo o pacto com Davi, agora entronizado como Rei e revelador definitivo.

Esse proêmio, portanto, não apenas prepara o leitor para os grandes temas do tratado — revelação, herança, glória, redenção e entronização — mas o faz com um aparato retórico e literário que reflete um refinamento intelectual notável. Ele evidencia uma síntese sofisticada entre os códigos exegéticos judaicos, a linguagem da sabedoria helenista, e a teologia cristológica emergente, oferecendo não um simples prefácio, mas uma exposição condensada de todo o argumento que será desenvolvido.

B. A Cristologia de Herdeiro, Criador e Glória de Hebreus 1:2–3

A segunda seção do proêmio de Hebreus (1:2–3) apresenta uma das mais densas formulações cristológicas de todo o Novo Testamento. Neste bloco, o autor constrói uma alta cristologia que não emerge de forma especulativa ou abstrata, mas enraizada profundamente na teologia veterotestamentária, nas tradições sapienciais judaicas, na linguagem cultual e na metafísica judaico-helenística. Seu objetivo é estabelecer que o Filho é o clímax e a plenitude da revelação divina, superando qualitativamente todos os mediadores anteriores, incluindo os profetas, a Sabedoria personificada e os anjos.

Ao declarar que Deus, “neste últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, por quem também fez o universo” (Hebreus 1:2), o autor já articula dois títulos teológicos fundamentais: herdeiro e agente criador. O primeiro, “herdeiro de todas as coisas” (klēronomon pantōn), retoma diretamente o Salmo 2:8 — “Pede-me, e eu te darei as nações por herança” — uma passagem reconhecidamente messiânica tanto no judaísmo intertestamentário quanto na cristologia primitiva (cf. Atos 13:33). A relação entre filiação e herança, aqui, tem raízes não apenas em tradições legais (nas quais o herdeiro assume a posse após a morte do testador, o que já se torna problemático para o caso de Deus), mas principalmente no imaginário real-davídico, no qual o Messias seria o receptor das promessas eternas feitas a Davi, inclusive o domínio sobre todas as nações (cf. 2 Samuel 7:14; Isaías 9:6–7). Além disso, o termo “herança” é de importância estrutural dentro da carta, aparecendo novamente em Hebreus 1:4; 6:12; 9:15; 11:7–8; 12:17, entre outros, sempre com o sentido de posse escatológica do reino.

O segundo título, criador do universo (di’ hou kai epoiēsen tous aiōnas), leva o leitor a uma concepção cósmica e metafísica do Filho, como mediador da criação. A expressão “fez os mundos” ou “os séculos” (tous aiōnas) é deliberadamente ambígua, podendo indicar tanto o cosmos físico quanto as eras temporais — ou, mais provavelmente, ambos, num sentido apocalíptico unificado, conforme uso semelhante em Hebreus 11:3. A criação por meio da Palavra ou Sabedoria de Deus é um conceito bem estabelecido na literatura bíblica e intertestamentária: Salmo 33:6 afirma que “pela palavra do Senhor foram feitos os céus”, enquanto Provérbios 8:22–31 descreve a Sabedoria como presente na fundação do mundo. Textos sapienciais posteriores reforçam essa mediação: Sabedoria de Salomão 9:1–2 e 7:26, além do prólogo do Sirácida, declaram que a Sabedoria é a imagem e instrumento da criação. Filo de Alexandria, em De Opificio Mundi 146, afirma que o Logos é o arquétipo da criação, e a mesma ideia transparece em João 1:3 (“Todas as coisas foram feitas por ele”) e Colossenses 1:16. Hebreus se alinha a essa tradição, mas com um salto qualitativo: aqui, a mediação da criação é atribuída diretamente ao Filho, cuja identidade ultrapassa as personificações da Palavra ou da Sabedoria para firmar-se como sujeito pessoal e soberano da história.

Essa cristologia é aprofundada no versículo seguinte, que descreve o Filho como “o resplendor da glória de Deus” (apaugasma tēs doxēs) e a “impressão exata do seu ser” (charaktēr tēs hypostaseōs). Ambos os termos são de densidade metafísica notável. O primeiro, apaugasma, aparece apenas aqui no Novo Testamento, mas ocorre em Sabedoria de Salomão 7:26, que descreve a Sabedoria como “um reflexo da luz eterna”. Essa linguagem não é meramente metafórica: trata-se de uma afirmação de que o Filho participa da própria luz divina, sendo inseparável dela, como o brilho é inseparável da luz. Essa interpretação está também presente em Filo, que afirma que a alma racional é como um raio (apaugasma) da razão divina (logos). Mas enquanto Filo mantém a distinção entre Deus e o Logos, o autor de Hebreus afirma uma identidade ontológica entre o Filho e a glória de Deus. A metáfora implica que ver o Filho é contemplar a própria presença divina — tema retomado em João 14:9: “Quem me vê, vê o Pai”.

O segundo termo, charaktēr, também único no Novo Testamento, designava originalmente o instrumento usado para gravar marcas em objetos, e depois passou a significar a própria marca deixada — como o cunho impresso numa moeda. Com o tempo, assumiu também o sentido metafórico de “expressão exata”, “característica distintiva”. No contexto de Hebreus, esse termo é qualificado pela expressão tēs hypostaseōs, que designa a realidade fundamental ou substância de Deus. Assim, a frase significa que o Filho é a impressão exata da substância divina, possuindo plenamente tudo o que constitui a identidade ontológica de Deus. Como observou a fonte, essa concepção era conhecida nos círculos judaico-helenistas, especialmente na obra de Filo, mas em Hebreus ela é reinterpretada à luz de uma teologia cristológica robusta e não apenas especulativa.

A afirmação seguinte — que o Filho “sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder” — introduz um terceiro eixo: o da governança cósmica. O termo usado para “sustentar” (pherōn) sugere não apenas manter algo em existência, mas conduzir algo em direção a um fim — como um navegador que guia um barco ao seu destino. A referência é, portanto, não apenas estática, mas teleológica: Cristo não apenas preserva o cosmos, mas o guia para o cumprimento do propósito divino. Esse conceito tem raízes no Antigo Oriente, onde as palavras dos deuses eram vistas como forças criadoras, e é plenamente desenvolvido na teologia bíblica — por exemplo, em Salmo 33:6–11, onde a Palavra de Deus tanto cria quanto dirige as nações.

Finalmente, a menção de que o Filho “fez a purificação dos pecados e se assentou à direita da Majestade nas alturas” evoca diretamente os temas cultuais e régios. A expressão “purificação dos pecados” (katharismon tōn hamartiōn) remete à liturgia do Yom Kippur, o Dia da Expiação, especialmente como descrito em Levítico 16 e reinterpretado na LXX de Jó 7:21. Mas, ao contrário dos sacerdotes levíticos, que permaneciam de pé continuamente ministrando (cf. Hebreus 10:11), Cristo, tendo completado sua obra redentora, “se assentou”. Essa entronização à direita de Deus é uma alusão direta ao Salmo 110:1, frequentemente citado no Novo Testamento para fundamentar a exaltação do Messias. O “assentar-se” é símbolo de autoridade, honra e domínio, como o atestam exemplos literários e iconográficos do mundo antigo: na mitologia grega, Atena senta-se à direita de Zeus (Píndaro); no poema de Baal, o arquiteto divino Koshar se senta à direita de Baal; e no Egito, os faraós são frequentemente representados sentados à direita dos deuses. No Antigo Testamento, o assentar-se à direita simboliza proximidade com Deus e autoridade delegada (cf. 1 Reis 2:19; Salmo 45:9; 80:17; 110:1).

A menção de que Cristo “herdou um nome mais excelente do que os anjos” (Hebreus 1:4) introduz a transição para a seção seguinte, mas já aponta para o tema da nomeação como status elevado, comum tanto nas Escrituras quanto nos textos helenistas. No Antigo Testamento, “o Nome” (ha-shem) é uma designação reverente para o próprio Deus (cf. Deuteronômio 12:5; 1 Reis 8:17). Na tradição cristã primitiva, o mesmo título passou a ser aplicado a Jesus, como em Efésios 1:21 e Filipenses 2:9. O nome herdado não é apenas um rótulo, mas um título de glória, poder e identidade divina.

A síntese cristológica de Hebreus 1:2–3 é, portanto, multiforme: o Filho é herdeiro régio, criador cósmico, reflexo da glória divina, impressão exata de Deus, sustentador da história, purificador dos pecados e entronizado à direita do Pai. Nenhuma dessas imagens é arbitrária: todas emergem de tradições veterotestamentárias e helenísticas, reinterpretadas numa moldura cristológica de alta densidade teológica. O autor de Hebreus não apenas declara a superioridade do Filho; ele a demonstra por meio de uma rede intertextual e cultural cuidadosamente entrelaçada, sustentando assim o argumento central do tratado desde seus primeiros versos.

C. A Superioridade do Filho em Relação aos Anjos de Hebreus 1:5–14

A partir do versículo 5, o autor de Hebreus inicia uma nova etapa de seu proêmio homilético: a demonstração da superioridade do Filho em relação aos anjos por meio de uma série cuidadosamente organizada de citações veterotestamentárias em cadeia, conhecidas na tradição judaica como charaz (“colares”) ou “string of pearls”. Essa técnica, amplamente utilizada por escribas, rabinos e pregadores judaicos do período do Segundo Templo, consistia na justaposição de passagens bíblicas unidas por palavras-chave ou temas comuns, a fim de construir um argumento teológico autoritativo com base na abundância textual. O autor de Hebreus aplica essa técnica com maestria, organizando sete citações do Antigo Testamento em três pares temáticos e um versículo final culminante, todos orientados a provar que o Filho ocupa um status singular que jamais foi atribuído a qualquer anjo.

A seção inicia-se com uma pergunta retórica: “Pois a qual dos anjos Deus jamais disse: ‘Tu és meu Filho, hoje te gerei?’” (Hebreus 1:5a). A forma interrogativa era comum nos sermões das sinagogas greco-judaicas, funcionando como instrumento enfático. Aqui, o autor cita o Salmo 2:7, já citado indiretamente no versículo 2 (“herdeiro de todas as coisas”) e, na tradição cristã primitiva, associado diretamente ao batismo de Jesus (cf. Mateus 3:17; Marcos 1:11; Lucas 3:22) e à sua exaltação (cf. Atos 13:33). Esse salmo real messiânico, originalmente usado em contextos de entronização davídica, passou a ser lido messianicamente antes mesmo da era cristã, como demonstra o manuscrito de Qumran 4Q174 (Florilégio), onde o versículo é interpretado em chave escatológica: o Messias será chamado “Filho de Deus” e “Filho do Altíssimo”.

A segunda citação da mesma frase (Hebreus 1:5b) provém de 2 Samuel 7:14 — “Eu serei para ele Pai, e ele será para mim Filho” — e também fazia parte da expectativa messiânica do judaísmo intertestamentário. É a promessa feita por meio do profeta Natã a Davi, segundo a qual um de seus descendentes reinaria para sempre. A união dessas duas passagens tem por base o termo comum “Filho” (huios), técnica conhecida como analogia verbal ou gezera shavah no método rabínico, em que dois textos são interpretados conjuntamente por compartilharem vocábulos idênticos. Essa sobreposição textual reforça a afirmação cristológica: Deus jamais disse a um anjo que ele seria seu Filho, mas disse-o ao Messias entronizado.

Em Hebreus 1:6, a terceira citação declara: “E outra vez, ao introduzir o primogênito no mundo, diz: ‘E todos os anjos de Deus o adorem’”. A passagem citada provém da versão grega (LXX) de Deuteronômio 32:43, cuja linha final — “Adorem-no, todos os anjos de Deus” — não está presente na versão massorética hebraica, mas aparece tanto na Septuaginta quanto em um manuscrito hebraico de Qumran (4QDeutq), o que atesta sua antiguidade. Na tradição judaica, essa passagem estava associada à adoração dos anjos por ocasião da criação do homem ou da entronização do Messias. Em algumas tradições rabínicas, Deus teria ordenado aos anjos que se curvassem diante de Adão por ser imagem divina — uma tradição que o autor de Hebreus parece reinterpretar cristologicamente. O termo “primogênito” (prōtotokos) carrega consigo o peso das tradições do Antigo Testamento em que o primogênito era o herdeiro por excelência (cf. Êxodo 4:22; Jeremias 31:9; Deuteronômio 21:17) e também o termo técnico aplicado ao rei davídico (cf. Salmo 89:27) e a Cristo em sua ressurreição e exaltação (cf. Colossenses 1:15,18; Romanos 8:29).

A quarta citação (Hebreus 1:7) é de Salmo 104:4 (LXX): “Faz dos seus anjos ventos, e de seus servos, chamas de fogo”. Enquanto a versão hebraica original sugere que Deus utiliza o vento e o fogo como mensageiros, a LXX — e o autor de Hebreus — entendem que os próprios anjos são constituídos de ventos e fogo. Essa interpretação encontra respaldo numa longa tradição judaica e apocalíptica segundo a qual os anjos são seres feitos de fogo: essa ideia aparece, por exemplo, em 1 Enoque 17:1; 2 Enoque 1:5; 3 Enoque 47:4; 4 Esdras 8:22, entre outros. Na filosofia estóica e na cosmologia grega, o fogo também era visto como substância espiritual — e, para muitos, a própria alma era feita de fogo ou ar, assim como os astros. Assim, ao afirmar que os anjos são “ventos” e “chamas”, o autor os coloca na esfera do efêmero e subordinado, em contraste com o Filho, cuja natureza é eterna e régia.

Esse contraste é explicitado nas duas citações seguintes (Hebreus 1:8–9), ambas retiradas de Salmo 45:6–7 (LXX): “O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre, e o cetro da justiça é o cetro do teu reino. Amaste a justiça e odiaste a iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros.” Originalmente, esse salmo celebrava o casamento real de um monarca davídico, mas a tradição judaica interpretava-o de modo literal e messiânico. A tradução grega citada por Hebreus interpreta o versículo 6 como endereçado diretamente a Deus — “o teu trono, ó Deus” — e o versículo 7 como dirigido a um rei ungido por Deus. A interpretação cristã afirma aqui uma distinção entre Deus Pai e Deus Filho, sendo o Filho chamado “Deus” (ho theos) e também distinguido de “teu Deus”, que o ungiu. Tal leitura teológica da entronização messiânica aponta para a divindade do Filho, mas também para sua unção e exaltação pós-ressurreição.

A sexta citação (Hebreus 1:10–12) provém de Salmo 102:25–27, um salmo penitencial no qual o salmista reconhece a transitoriedade da vida humana diante da permanência do Criador. O autor de Hebreus, ao aplicar esse texto ao Filho, transfere ao Cristo os atributos da eternidade, imutabilidade e poder criador que pertencem a Deus. Essa apropriação do salmo ocorre por meio de associação temática com o versículo anterior: assim como o trono do Filho é eterno, também o mundo que ele criou é transitório diante de sua imutável divindade. As metáforas utilizadas — “eles perecerão... como veste envelhecerão... como manto os enrolarás” — remetem ao costume de descartar roupas usadas, reforçando o contraste entre o mundo efêmero e o Filho eterno, que “permanece o mesmo” (su de ho autos ei), antecipando a fórmula conclusiva de Hebreus 13:8 (“Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente”).

A última citação da catena (Hebreus 1:13) fecha a estrutura com um poderoso argumento conclusivo: “A qual dos anjos jamais disse: ‘Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés?’”. Trata-se de Salmo 110:1, o texto veterotestamentário mais citado em todo o Novo Testamento, sempre em referência à entronização do Cristo ressuscitado. Aqui, o “sentar-se à direita” simboliza autoridade máxima e domínio sobre todos os inimigos. Na literatura judaica e nas culturas do Antigo Oriente, sentar-se à direita do rei era privilégio de altíssimo prestígio (cf. 1 Reis 2:19; Salmo 45:9). O texto também sugere a execução escatológica do juízo divino — tema que se desenvolverá em Hebreus 2 e seguintes.

A seção termina com um comentário homilético do autor (Hebreus 1:14): “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor dos que hão de herdar a salvação?”. Essa declaração retoma o conteúdo do versículo 7 (os anjos como servos) e estabelece uma dupla inferioridade: os anjos são servos tanto do Filho quanto dos seus herdeiros. Essa ideia encontra eco nas tradições judaicas sobre anjos tutores dos justos, como em Tobias 5:22, Pseudo-Filó 59:4, e Tosefta Avodá Zará 1:17, que falam da função protetora e intercessora dos anjos a serviço do povo de Deus. A afirmação final é uma aplicação do raciocínio rabínico do tipo qal vaḥomer: se a rejeição da lei mediada por anjos foi severamente punida (cf. Hebreus 2:2), quanto mais a rejeição da palavra mediada pelo Filho exaltado será imperdoável.

Assim, a catena de Hebreus 1:5–14 não é uma enumeração arbitrária de passagens, mas uma demonstração coesa da singularidade do Filho: ele é Filho e não servo; é adorado, não adorador; é eterno, não efêmero; é criador, não criatura; é Deus entronizado, e não mensageiro. A superioridade do Filho sobre os anjos, tão cuidadosamente construída com base nas Escrituras, serve de fundamento para a advertência que será desenvolvida nos capítulos seguintes: rejeitar o Filho é rejeitar o próprio Deus que falou por meio dele.

X. Chave-Linguística de Hebreus 1

Uma chave-linguística é uma ferramenta de auxílio exegético voltada especialmente ao estudo do texto grego (ou hebraico) da Bíblia, organizada versículo por versículo, que fornece explicações gramaticais, morfológicas e lexicais das palavras e construções mais relevantes do original, sem desenvolver comentários teológicos ou homiléticos. Sua finalidade é ajudar estudantes, exegetas e tradutores a entenderem as formas verbais, casos, preposições, partículas, estruturas sintáticas e vocabulário idiomático presentes no texto bíblico, economizando o tempo de consulta em gramáticas e léxicos técnicos. Ao utilizar uma chave-linguística, o leitor pode rapidamente identificar o significado e a função de expressões complexas no texto original, além de consultar breves referências a usos paralelos ou tradições interpretativas pertinentes, conforme presentes nas obras especializadas — como TDNT, BDAG, ou fontes judaicas — desde que citadas diretamente. Ela serve, portanto, como ponte entre o conhecimento linguístico especializado e a leitura fluente do texto sagrado em sua língua original.

Hebreus 1:1

πολυμερῶς (adv., #4495) — De πολύς (“muito”) + μέρος (“parte”): significa “de muitas partes”, “de forma fragmentada” ou “em muitos segmentos”. A palavra denota o caráter fragmentário da revelação antiga, dada por porções (Weiss; Attridge). É usada aqui em conjunto com πολυτρόπως como uma espécie de hendiadói (cf. Siebenthal [A378]). καὶ πολυτρόπως (adv., #4502) — De πολύς + τρόπος (“modo, maneira”): “de várias maneiras”, “em formas diversas”. Pode referir-se tanto à variedade geográfica da revelação quanto à diversidade de métodos — como visões, sonhos, palavras proféticas, teofanias, etc. (cf. Buchanan; Westcott; Michel; Attridge). A repetição do prefixo πολυ- serve como uma aliteração enfática, típica da retórica antiga (Attridge; Lane; Braun). πάλαι (adv., #4093) — “Outrora”, “antigamente”. Indica um tempo completo e fechado no passado, muitas vezes com o sentido de uma revelação selada no tempo (Westcott). Ὁ Θεὸς λαλήσας (aor. part. act., temporal, de λαλέω #3281) — “Tendo falado”. O aoristo participial indica uma ação anterior à ação principal do verbo no verso 2 (ἐλάλησεν), ou seja, “depois de ter falado…”. O uso do verbo λαλέω, em vez de λέγω, enfatiza o ato de comunicação efetiva com os destinatários (cf. padrão hebraico). τοῖς πατράσιν (dat. pl. de πατήρ, #4252) — “Aos pais”. Refere-se às gerações anteriores de israelitas, particularmente os antepassados espirituais e patriarcas, mas também os receptores proféticos das revelações antigas (Haubeck: A103; cf. B 1b). ἐν τοῖς προφήταις (prep. + dat., #1877; 4737) — “Nos profetas”. A preposição ἐν é aqui instrumental, e pode indicar tanto meio de revelação (como em “por meio dos profetas”), quanto uma ideia local-espiritual de Deus falando “nos profetas” como seus portadores autorizados (Michel; Weiss; Westcott). A leitura também comporta uma nuance inspiracional, como se os profetas fossem habitados pelo Espírito, conforme a concepção judaica da profecia (cf. Michel; Westcott).

Hebreus 1:2

ἐπ’ ἐσχάτου τῶν ἡμερῶν τούτων (prep. + gen., #2093; 2274) — “Nos últimos dias destes”. Expressão escatológica padrão do judaísmo, equivalente ao hebraico בְּאַחֲרִית הַיָּמִים (bə’aḥărîṯ hayyāmîm) — “no fim dos dias” — usado no AT e no judaísmo antigo para designar a era mesiânica ideal (SB 3:617; Buchanan; Hughes; Lane; Attridge). A presença de τούτων (“destes”) especifica que o autor entende que esses dias escatológicos já chegaram. ἐλάλησεν (aor. ind. act. de λαλέω, #3281) — “Falou”. Reaparece o verbo do v. 1, agora com sujeito explícito e função verbal principal. O aoristo indica que Deus já falou plenamente — primeiro pelos profetas, agora por meio do Filho (Hughes). A ação está completa: não há mais fala superior. Cristo é a última Palavra de Deus (BBC; cf. DLNT 111–115). ἐν υἱῷ (prep. + dat. de υἱός, #1877; 5626) — “Por meio de Filho”. A ausência do artigo (ἐν υἱῷ, e não ἐν τῷ υἱῷ) é marcante e deliberada. Destaca não a pessoa individual, mas a qualidade ou essência da figura mediadora — ou seja, “em alguém que é Filho” (Westcott; GGBB, 245). Isso é confirmado pelo uso similar em Hebreus 3:6 e 5:8. Ὃν ἔθηκεν κληρονόμον πάντων (aor. ind. act. de τίθημι + κληρονόμος, #5502; #3101) — “A quem estabeleceu herdeiro de todas as coisas”. O verbo τίθημι é usado aqui no sentido de designar, ordenar. κληρονόμος deriva de κλῆρος (“sorte, porção”) e originalmente denotava alguém que recebia a herança por sorteio. Com o tempo, passou a designar o único herdeiro do pai, especialmente quando havia apenas um filho (Buchanan; Hughes; TDNT). δι’ οὗ καὶ ἐποίησεν τοὺς αἰῶνας (aor. ind. act. de ποιέω, + αἰών, #4472; #172) — “Por meio de quem também fez os séculos”. δι’ οὗ indica a mediação criadora do Filho. O termo αἰῶνας, segundo o uso rabínico, refere-se não apenas aos períodos temporais, mas também ao conteúdo ontológico do mundo criado, abrangendo inclusive o cosmos espiritual (Michel; SB 3:671f; Bruce). Haubeck destaca o uso espacial, “o universo”.

Hebreus 1:3

ὃς ὢν — part. pres. act. masc. nom. sg. de εἰμί (#1639), com função circunstancial (mod.). Indica existência contínua e atemporal (RWP). ἀπαύγασμα — nom. sg. neut. de ἀπαύγασμα (#575), “irradiação”, “resplendor”. Derivado de αὐγή (“luz, brilho”), pode ter sentido ativo: emissão de luz (não mero reflexo), como o sol que irradia (RWP; Hughes; Michel; Westcott; Attridge; Weiss; TDNT). τῆς δόξης — gen. sg. fem. de δόξα (#1518), “glória”. Gen. objetivo ou de conteúdo. Refere-se à radiação da glória divina (TDNT; NIDNTT; TLNT; DLNT, 396–98). καὶ χαρακτὴρ — nom. sg. masc. de χαρακτήρ (#5917), “impressão”, “marca”. Designa o cunho ou marca exata de algo, como o selo de uma moeda ou inscrição (Hughes; BAGD; MM; TDNT; GELTS, 513). τῆς ὑποστάσεως — gen. sg. fem. de ὑπόστασις (#5712), “substância”, “realidade”, “essência” (Grässer; cf. Hb 11:1; GELTS, 495). Gen. de descrição. φέρων — part. pres. act. masc. nom. sg. de φέρω (#5770), “sustentando”, “carregando”. Indica ação contínua. O Filho mantém e conduz ativamente todas as coisas (Hughes; Bruce; Michel; Attridge). τὰ πάντα — acc. pl. neut. de πᾶς (#4246), “todas as coisas”, o universo criado. τῷ ῥήματι — dat. sg. neut. de ῥῆμα (#4839), “palavra”, no dativo instrumental: “por meio da palavra”. τῆς δυνάμεως αὐτοῦ — gen. sg. fem. de δύναμις (#1411), “poder”. Gen. qualitativo: a palavra dotada de poder divino criador (cf. Attridge; cf. Siebenthal: gen. qualitatis [hebraica], A160). καθαρισμὸν — acc. sg. masc. de καθαρισμός (#2752), “purificação”, “remoção”. Refere-se à expiação dos pecados. ποιησάμενος — part. aor. mid. masc. nom. sg. de ποιέω (#4472), “tendo feito”. O médio sugere ação efetuada por iniciativa própria ou com envolvimento pessoal (Westcott; Siebenthal A216a). ἐκάθισεν — aor. ind. act. 3ª sg. de καθίζω (#2767), “assentou-se”. Aoristo pontual indica que a ação foi completada. Marca a exaltação do Filho. ἐν δεξιᾷ — dat. sg. fem. de δεξιά (#1288), “à direita”. Expressa posição de honra, cf. Ef 1:20; Hb 1:3. τῆς μεγαλωσύνης — gen. sg. fem. de μεγαλωσύνη (#3488), “majestade”, usada aqui como título de Deus. ἐν ὑψηλοῖς — dat. pl. neut. de ὑψηλός (#5734), “nas alturas”. Equivalente à expressão “nos céus” (Michel).

Hebreus 1:4

τοσούτῳ — dat. sg. neut. de τοσοῦτος (#5537), “tão grande”, “tão elevado”. Dativo de diferença (dat. differentiae, cf. RWP). κρείττων — comp. nom. sg. masc. de ἀγαθός (#3202), “melhor”, “superior”. Palavra característica da epístola (13 vezes). Refere-se a superioridade em dignidade, autoridade e poder (Westcott; Grässer). γενόμενος — part. aor. mid. masc. nom. sg. de γίνομαι (#1181), “tendo-se tornado”. Valor potencialmente causal (Haubeck: mod.). τῶν ἀγγέλων — gen. pl. masc. de ἄγγελος (#34), “dos anjos”. Genitivo de comparação. Anjos ocupavam papel central no judaísmo (AVB, 62–73; DDD, 81–96; Moore, Judaism, 1:401–13; TS, 135–83; TDNT; EDNT; NIDNTT; RAC, 5:53–258; TRE, 9:580–615; Attridge; Grässer; 1 Enoque 40; 64–69; Jubileus 2:2; 10:1–14; 1QS 3:20–21,24; 4:12; 1QSb 4:25–26; GCDSS, 397). ὅσῳ — dat. sg. neut. de ὅσος (#4012), usado correlativamente com τοσούτῳ e com valor comparativo: “na medida em que” (BAGD; RWP). διαφορώτερον — comp. acc. sg. neut. de διάφορος (#1427), “mais excelente”, “superior”. παρ’ αὐτούς — prep. παρά (#4123) com acc., após comparativo: “do que eles”. Forma padrão comparativa (MT, 251; IBG, 51). κεκληρονόμηκεν — perf. ind. act. 3ª sg. de κληρονομέω (#3099), “herdou”. O perfeito indica ação consumada com efeito contínuo: o Filho permanece como herdeiro (Buchanan; Michel; TDNT). ὄνομα — acc. sg. neut. de ὄνομα, “nome”. Refere-se ao status ou título que distingue o Filho dos anjos, especialmente relacionado à filiação divina (cf. Meier, “Structure and Theology in Heb. 1:1–14,” Biblica 66 [1985]: 168–89).

Hebreus 1:5

τίνι — dat. sg. masc./neut. de τίς, interrogativo; “a qual [dos anjos]?”. Forma dativa interrogativa. Verso introduz inclusio com 1:13, enquadrando as sete citações do AT (Haubeck; H-S §294t). εἶπέν — aor. ind. act. 3ª sg. de λέγω (#3306), “disse”. Cita o Salmo 2:7. ποτέ — adv. de tempo (#4537), “alguma vez”, “jamais”. Em contexto interrogativo, reforça a exclusividade: “alguma vez…?”. υἱός μου — nom. sg. masc. de υἱός + pron. gen. 1ª sg. (μου), “meu Filho”. Predicativo nominal, sem artigo, como ocorre com frequência no NT (Haubeck: A80). εἶ — pres. ind. act. 2ª sg. de εἰμί (#1639), “tu és”. ἐγὼ σήμερον γεγέννηκά σε — perf. ind. act. 1ª sg. de γεννάω (#1164), “hoje te gerei”. O uso do perfeito indica uma geração consumada com efeito contínuo. Interpretação comum associa à ressurreição e exaltação como um evento unitário (Hughes). ἐγὼ ἔσομαι αὐτῷ εἰς πατέρα — fut. ind. mid. 1ª sg. de εἰμί, + prep. εἰς (#1650): “eu lhe serei por pai”. A preposição εἰς com predicativo nominal reflete o hebraico (le, equivalência de identidade), cf. Haubeck: A81. καὶ αὐτὸς ἔσται μοι εἰς υἱόν — fut. ind. mid. 3ª sg. de εἰμί, + εἰς, “e ele me será por filho”. Reforça a reciprocidade da relação. Μοι, dat. commodi: “para mim” (Haubeck: A173f).

Hebreus 1:6

ὅταν — conj. temp. (+ subj.), “quando”. Introduz oração temporal subordinada. Dependente de λέγει ou de προσκυνήσατωσαν (ambas possíveis; cf. Haubeck: A235). Interpretações admitem referência à Encarnação ou entronização (Michel; Riggenbach). πάλιν — adv. “novamente”. Pode estar conectado a εἰσαγάγῃ (como em “trazendo novamente…”) ou a λέγει (“disse ainda”), cf. Haubeck. εἰσαγάγῃ — aor. subj. act. 3ª sg. de εἰσάγω (#1652), “introduzir”, “trazer para dentro”. Forma subjuntiva aorística de ação única no futuro. τὸν πρωτότοκον — acc. sg. masc. de πρωτότοκος (#4758), “primogênito”. Título de honra indicando precedência e supremacia (Lane; Michel; TDNT; Hughes; Weiss; TLNT; BBC). Cf. τίκτω (“dar à luz”). εἰς τὴν οἰκουμένην — acc. sg. fem. de οἰκουμένη (#3876), “mundo habitado”. Pode indicar o mundo celeste escatológico ao qual o Filho retorna na ascensão (Lane). Etim. οἰκέω + γῆ. λέγει — pres. ind. act. 3ª sg. de λέγω, “diz”. Introduz citação do AT (Deuteronômio 32:43, versão LXX). προσκυνησάτωσαν — aor. imp. act. 3ª pl. de προσκυνέω (#4686), “prostrem-se”, “adorem”. Imperativo aorístico com valor pontual. Com dat. αὐτῷ: “a ele”. A citação é da LXX (Dt 32:43), e ordena que todos os anjos de Deus adorem o Filho (TDNT; NIDNTT). αὐτῷ — dat. sg. masc. de αὐτός, dativo de interesse pessoal ou direção: “a ele”. πάντες ἄγγελοι Θεοῦ — πάντες, nom. pl. masc. de πᾶς, “todos”; ἄγγελοι, nom. pl. masc. de ἄγγελος (#34), “anjos”; Θεοῦ, gen. sg. masc. de θεός, gen. de posse: “de Deus”.

Hebreus 1:7

πρὸς μὲν τοὺς ἀγγέλους λέγει — prep. + acc., “quanto aos anjos, ele diz”. μὲν…δέ estrutura contraste: “quanto a… mas quanto a…”. Πρὸς expressa direção ou assunto (Haubeck: B III5a). ὁ ποιῶν — part. pres. act. nom. sg. masc. de ποιέω (#4472), “aquele que faz”. Particípio atributivo; pode ser traduzido como oração relativa: “aquele que faz…” τοὺς ἀγγέλους αὐτοῦ πνεύματα — acc. pl. de πνεῦμα (#4460), “ventos”, “espíritos”. Interpretação ambígua: ou refere-se aos anjos em forma de elementos naturais (vento/fogo), ou à personificação de fenômenos naturais como executores da vontade divina (Delitzsch; Hughes; SB 3:678–79). Cf. LXX. λειτουργοὺς αὐτοῦ — acc. pl. de λειτουργός (#3313), “ministros”, “servidores”, + φλόξ (#5825), “chama”. φλόγα πυρός — “chama de fogo”. Gen. qualitatis, possivelmente eco hebraico (Haubeck: A160). πυρ (# 4786) fogo, φλόγα acc. sing, φλόξ (# 5825) chama. O escritor apresenta dois pontos: (1) os anjos são mutáveis ​​e temporais, mas o Filho é eterno e imutável; (2) os anjos são servos, mas o Filho é o Mestre (Grasser). Na literatura judaica, “anjos” servem ao Criador; aqui, servem ao Filho (EJH, 225; BBC). 

Hebreus 1:8

πρὸς δὲ τὸν υἱόν — prep. + acc., “mas quanto ao Filho”. O δέ contrasta com o μέν do v. 7. Πρός aqui indica assunto ou destinatário da fala (Haubeck: B III5a). ὁ θρόνος σου ὁ θεός — nom. + voc. com artigo. ὁ θεός aparece com artigo mesmo em vocativo, devido a influência semítica (BG, 11; MT, 34). Pode ser lido: “O teu trono, ó Deus”, ou “O teu trono é Deus”, embora a construção gramatical favoreça a leitura vocativa (EJH, 228; BTNT, 376). εἰς τὸν αἰῶνα τοῦ αἰῶνος — prep. εἰς + acc., expressão idiomática hebraica para “eternamente” (leʿôlām waʿed). Αἰών (#172) é usado com sentido temporal contínuo (TDNT). καὶ ῥάβδος εὐθύτητος — nom. sg. fem. de ῥάβδος (#4811), “cetro”. Metonímia: o cetro representa a autoridade real. εὐθύτης (#2319), “retidão”, “justiça”. Construto genitivo de qualidade: “cetro de retidão”. ῥάβδος τῆς βασιλείας σου — nom. sg. fem. com gen. de posse: “cetro do teu reino”. A ausência de artigo definido com βασιλείας é admissível e comum (Haubeck: A106c).

Hebreus 1:9

ἠγάπησας δικαιοσύνην — aor. ind. act. 2ª sg. de ἀγαπάω (#26), “amaste a justiça”. O aoristo pode descrever fatos pontuais ou resumidos, mas no hebraico pode equivaler a ações permanentes (Haubeck: A241c). καὶ ἐμίσησας ἀνομίαν — aor. ind. act. 2ª sg. de μισέω (#3631), “aborreceste a iniquidade”. O termo ἀνομία (#490) denota tanto o princípio de transgressão da lei, quanto as ações ilegítimas decorrentes. διὰ τοῦτο — conj. causal; “por isso”, “em razão disso”. ἔχρισέν σε ὁ θεός — aor. ind. act. 3ª sg. de χρίω (#5987), “ungiu”. Expressa ação oficial de investidura ou consagração. A unção com óleo simboliza concessão de autoridade e alegria (Westcott; TDNT). ὁ θεός σου — nom. com pron. possessivo; possivelmente vocativo como em v. 8. Reforça a relação entre o ungido e seu Deus. ἔλαιον ἀγαλλιάσεως — acc. sg. neut. de ἔλαιον (#1778) + ἀγαλλίασις (#21), “óleo de alegria”. Gen. de descrição: óleo usado em ocasiões festivas. Em contexto hebraico, geralmente acompanhado de danças ou banquetes. παρὰ τοὺς μετόχους σου — prep. παρά (#4123) com acc. após comparativo: “mais do que os teus companheiros”. μετόχους (#3581), “participante, companheiro”. Pode referir-se a reis (no contexto do Salmo), ou a anjos / irmãos (cf. Hb 2:11; 3:14). Ver Kent.

Hebreus 1:10

κατ’ ἀρχάς — prep. κατά com acc. (idiomática), “no princípio”. Reflete expressão hebraica berēʾšît. Cf. Haubeck: κατά II2a. σύ, κύριε, τὴν γῆν ἐθεμελίωσας — aor. ind. act. 2ª sg. de θεμελιόω (#2530), “fundaste”. A ação de colocar fundamentos; usada metaforicamente para “criar” ou “estabelecer” a terra. Endereçada ao “Senhor” (κύριε), interpretado cristologicamente. καὶ ἔργα τῶν χειρῶν σου εἰσίν οἱ οὐρανοί — pres. ind. act. 3ª pl. de εἰμί (#1639), “são”. ἔργα τῶν χειρῶν σου = “obras das tuas mãos”, expressão idiomática hebraica para criação artesanal divina. Οἱ οὐρανοί = sujeito da oração.

Hebreus 1:11

αὐτοὶ ἀπολοῦνται — fut. ind. mid. (dep.) 3ª pl. de ἀπόλλυμι (#660), “perecerão”. Refere-se aos céus e à terra: criação transitória. σὺ δὲ διαμένεις — pres. ind. act. 2ª sg. de διαμένω (#1373), “permaneces”. Contraste com ἀπολοῦνται. Expressa continuidade e imutabilidade. δια- enfatiza duração (Haubeck: MH 301f). παλαιωθήσονται — fut. ind. pass. 3ª pl. de παλαιόω (#4096), “envelhecerão”. Sentido de tornar-se gasto ou obsoleto. Ἱμάτιον (#2668), “roupa”, “vestimenta”, símbolo da criação usada e descartada.

Hebreus 1:12

ὡσεὶ — ὡσεὶ (#6059), conj. comparativa: “como um manto”. περιβόλαιον (#4316), acc. sg. neut., “manto”, “vestimenta envolvente”; sugere uma peça luxuosa ou uma cobertura envolvente (Westcott). ἑλίξεις — fut. ind. act. 2ª sg. de ἑλίσσω (#1813), “enrolarás”, “dobrarás”. Ação de dobrar ou enrolar como uma peça de roupa. ἀλλαγήσονται — fut. ind. pass. 3ª pl. de ἀλλάσσω (#248), “serão transformados”, “mudados”. Refere-se à criação que será substituída, como se muda uma roupa. A forma passiva expressa mudança involuntária ou externa. σὺ δὲ ὁ αὐτός — σὺ (pron. 2ª sg.) + ὁ αὐτός = “tu és o mesmo”. εἶ — pres. ind. act. 2ª sg. de εἰμί (#1639). Afirmação de imutabilidade ontológica do sujeito. ἔτη — nom. pl. neut. de ἔτος (#2291), “anos”. οὐκ ἐκλείψουσιν — fut. ind. act. 3ª pl. de ἐκλείπω (#1722), “não cessarão”, “não deixarão de existir”. A partícula οὐκ nega o verbo futuro. Ἐκλείπω em contexto composto exprime desaparecimento ou fim de duração (Haubeck: MH 309).

Hebreus 1:13

πρὸς — πρός + acc., “a qual dos anjos”. Inclusio com v. 5. ἀγγέλων — gen. pl. masc. de ἄγγελος (#34), “anjos”. Genitivo partitivo com τίνα na construção interrogativa πρὸς τίνα τῶν ἀγγέλων = “a qual dos anjos?”. Fórmula hebraizante. Para a importância dos anjos no judaísmo, cf. AVB, 62–73; DDD, 81–96; Moore, Judaism 1:401–13; TS, 135–83; TDNT; EDNT; NIDNTT; RAC 5:53–258; TRE 9:580–615; Attridge; Grässer; 1 Enoch 40; 64–69; Jub. 2:2; 10:1–14; IQS 3:20–21,24; 4:12; 1QSb 4:25–26; GCDSS, 397. εἴρηκέν — perf. ind. act. 3ª sg. de λέγω (#3306), “disse”, “tem dito”. Perfeito ativo de ação duradoura com efeito atual. ποτέ — adv. de tempo, “alguma vez”. Indica exclusividade. Citação do Salmo 110:1. κάθου — pres. imp. mid. (dep.) 2ª sg. de καθίζω (#2767), “senta-te”, como convite (cf. A32). δεξιῶν μου — locução prepositiva “à minha direita”. Posição de privilégio e autoridade (cf. Ef 1:20; Hb 1:3). ἕως ἂν θῶ — conj. temporal + aor. subj. 1ª sg. de τίθημι (#5502), “até que eu ponha”. τοὺς ἐχθρούς — acc. pl. de ἐχθρός (#2398), “inimigos”. ὑποπόδιον — acc. sg. neut. de ὑποπόδιον (#5711), “escabelo”, “estrado”. τῶν ποδῶν σου — gen. pl. de πούς (#4546), “teus pés”. A expressão é uma imagem típica oriental de subjugação completa do inimigo (cf. N. Lightfoot). A construção é dupla: verbo τίθημι com objeto direto + predicativo (Haubeck: A97,15).

Hebreus 1:14

οὐχὶ πάντες — partícula interrogativa negativa: “não são todos…?” λειτουργικὰ — adj. neut. pl. de λειτουργικός (#3312), “ministradores”, “a serviço”. Sufixo indica pertencente ao serviço sagrado (Haubeck: MH 378). πνεύματα — subst. neut. pl. de πνεῦμα, “espíritos”, aqui usado para designar os anjos em sua função de servidores. εἰς — εἰς + acc., “para serviço”. διακονίαν (#1355), “serviço”, “ministério”. Termo rabínico para “anjo de serviço” (TDNT). ἀποστελλόμενα — part. pres. pass. neut. pl. de ἀποστέλλω (#690), “enviados”. Pode ter valor atributivo ou modal; com aspecto iterativo (Haubeck: A226). διὰ + acc. = “em favor de”. τοὺς μέλλοντας — part. pres. act. masc. acc. pl. de μέλλω (#3516), “os que estão para”. Não é perífrase de futuro, mas designa aqueles que, por decreto divino, herdarão (Haubeck: A250; B 1cδ). κληρονομεῖν — inf. pres. act. de κληρονομέω (#3099), “herdar”. σωτηρίαν — acc. sg. fem. de σωτηρία (#5401), “salvação”. Aqui no sentido escatológico e total da salvação messiânica (Michel; TDNT; NIDNTT; NTW, 114f).

Índice: Hebreus 1 Hebreus 2 Hebreus 3 Hebreus 4 Hebreus 5 Hebreus 6 Hebreus 7 Hebreus 8 Hebreus 9 Hebreus 10 Hebreus 11 Hebreus 12 Hebreus 13

Bibliografia

ATTRIDGE, Harold W. The Epistle to the Hebrews. Philadelphia: Fortress Press, 1989. (Hermeneia).
ARNOLD, Clinton E. (Org.). Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary: New Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2020. Volume 4: Hebrews to Revelation.
ALLEN, David L. Hebrews: An Exegetical and Theological Exposition of Holy Scripture. Nashville. B&H Publishing Groung. (The New American Commentary), vol. 35, 2010.
BRUCE, Frederick F. The Epistle to the Hebrews. Grand Rapids: Eerdmans, 1990. (NICNT – New International Commentary on the New Testament).
BROWN, Colin (Ed.). The New International Dictionary of New Testament Theology. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1975. 3 v.
DUVALL, J. Scott; HAYS, J. Daniel. The Baker Illustrated Bible Background Commentary. Grand Rapids. Baker Publishing Group, 2020.
EVANS, Craig A.; PORTER, Stanley E. Dictionary of New Testament Background: A Compendium of Contemporary Biblical Scholarship. Illinois: IVP Academic, 2000.
ELLINGWORTH, Paul. The Epistle to the Hebrews: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1993. (NIGTC – New International Greek Testament Commentary).
GUTHRIE, George H. The Structure of Hebrews: A Text-Linguistic Analysis. Leiden: Brill, 1994. (Supplements to Novum Testamentum, v. 73).
KOESTER, Craig R. Hebrews: A New Translation with Introduction and Commentary. New Haven: Yale University Press, 2001. (Anchor Yale Bible, v. 36).
LAANSMA, Jon C. The Letter to the Hebrews: A Commentary for Preaching, Teaching, and Bible Study. Eugene: Cascade Books, 2017.
LANE, William L. Hebrews 1–8. Dallas: Word Books, 1991. (Word Biblical Commentary, v. 47a).
LUST, J.; EYNIKEL, E.; HAUSPIE, K. (Eds.). A Greek-English Lexicon of the Septuagint. Parts I & II. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1992-1996.
MACKIE, Scott D. Eschatology and Exhortation in the Epistle to the Hebrews. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007. (Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament II/223).
VANHOOZER, Kevin J. et al. Commentary on the New Testament Use of the Old Testament. Grand Rapids: Baker Academic, 2007.
HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich von. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. São Paulo, SP: Hagnos, 2009.
HORSLEY, G. H. R.; LLEWLYN, S. R. (Eds.). New Documents Illustrating Early Christianity. North Ryde, N.S.W.: Macquarie University; Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1981-1998. 8 v.
KITTEL, Gerhard; FRIEDRICH, Gerhard (Eds.). Theological Dictionary of the New Testament. Tradução de G. F. Bromiley. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1973. 10 v.
ROGERS, Cleon L. Jr. The New Linguistic and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1998.
SCHENCK, Kenneth. Understanding the Book of Hebrews: The Story Behind the Sermon. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003.
SPICQ, Ceslas. Theological Lexicon of the New Testament. Tradução e edição de James D. Ernest. Peabody, MA: Hendrickson, 1994. 3 v.
VANGEMEREM, Willem A. (Ed. geral). New International Dictionary of Old Testament Theology & Exegesis. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1997. 5 v.
WALLACE, Daniel B. Greek Grammar Beyond the Basics: An Exegetical Syntax of the New Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996.