Efésios 4: Significado, Devocional e Exegese

Efésios 4

Efésios 4 inaugura a seção parenética da carta e opera a passagem do hino do desígnio eterno (caps. 1–3) para a vida concreta da comunidade, condensando a teologia em vocação e caminho. O imperativo que abre o capítulo — “andar de modo digno da vocação” (peripatēsai axiōs tēs klēseōs, “caminhar de modo digno da vocação”) — transforma o louvor e a oração anteriores em estilo de vida marcado por humildade, mansidão e longanimidade, com o objetivo explícito de “guardar a unidade do Espírito” (tērein tēn henotēta tou pneumatos, “preservar a unidade do Espírito”) no vínculo da paz. O credo setenário que segue (“um corpo, um Espírito, uma esperança, um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai de todos”) funciona como eixo confessional que sustenta a ética da comunhão: a unidade não é produto sociológico, mas consequência da economia trinitária celebrada no início da carta.

A unidade, porém, não suprime a diversidade; ela a ordena. Por isso, o capítulo passa da confissão comum aos dons distribuídos por Cristo exaltado: “a cada um foi dada graça” e, dessa graça, emergem ministros dados à Igreja “para o aperfeiçoamento dos santos” (pros ton katartismon tōn hagiōn, “para o ajuste/aperfeiçoamento dos santos”), “para a obra do ministério” e “para edificação do corpo de Cristo”. O alvo é maturidade: “até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao homem maduro” (andra teleion, “homem maduro”), “à medida da estatura da plenitude de Cristo” (metron hēlikias tou plērōmatos tou Christou, “medida da estatura da plenitude de Cristo”). Aqui, a linguagem de crescimento e plenitude retoma e aplica, em chave comunitária, a cristologia elevada do capítulo 1: a Cabeça comunica vida, estrutura e objetivo ao corpo, e a Igreja se edifica “na verdade em amor” (alētheuein en agapē, “praticar/verdadear a verdade em amor”), evitando a infância doutrinária e a inconstância.

Do horizonte da comunhão, Paulo desce ao guarda-roupa moral do novo povo. O chamado “não andeis como os gentios” introduz a grande troca identitária: “despojar o velho homem” (apothesthai ton palaion anthrōpon, “deixar o homem velho”), “renovar-se no espírito da mente” (ananeousthai tō pneumati tou noos, “ser renovado no espírito da mente”) e “revestir o novo homem” (endusasthai ton kainon anthrōpon, “vestir o homem novo”) “criado segundo Deus em justiça e santidade da verdade”. A ética que se segue — verdade em lugar da mentira, ira sem pecado, trabalho que substitui furto, palavra que edifica em vez de corromper, benevolência e perdão “como Deus em Cristo perdoou” — não é código moral avulso, mas a prática coerente da nova criação narrada em 2:10 e do corpo vivo descrito em 4:12–16. Efésios 4, portanto, apresenta o mapa da vida cristã como resposta grata ao dom: a unidade guardada, a diversidade ordenada, a maturidade buscada e o caráter transformado, tudo sob a Cabeça, para que a comunidade seja o espaço visível onde a verdade se realiza no amor.

I. Estrutura e Estilo Literário

Efésios 4 exibe uma composição parenética de alta coesão que converte a teologia dos capítulos 1–3 em ethos comunitário por meio de uma arquitetura em quatro movimentos progressivos. O primeiro (4:1–6) abre com o imperativo-mote “andar de modo digno da vocação” (peripatēsai axiōs tēs klēseōs, “caminhar de modo digno da vocação”), cuja cadência de virtudes—humildade, mansidão, longanimidade, suportar-se em amor—serve à meta explícita: “guardar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (tērein tēn henotēta tou pneumatos en tō syndesmō tēs eirēnēs, “preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz”). O estilo marca a memória com o credo setenário por anáfora de “um”: hen sōma, hen pneuma, mia elpis… heis kyrios, mia pistis, hen baptisma, heis theos kai patēr pantōn (“um corpo, um Espírito, uma esperança… um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai de todos”). A repetição ritmada fixa a unidade como fundamento do restante do capítulo.

O segundo movimento (4:7–16) articula unidade com diversidade carismática sob a régua da ascensão do Cristo doxológico. A citação em forma de catena do Salmo 68 é vertida com antítese ascender/descer e clímax do doador: anabas eis hypsos… edōken domata tois anthrōpois (“tendo subido ao alto… deu dons aos homens”), seguida do par explanatório to de anebē… ei mē hoti kai katebē (“ora, o que é subir… se não que também desceu”). O período acumula participiais e relativos para descrever o efeito eclesial: Cristo concede pessoas-dons “para o aperfeiçoamento dos santos” (pros ton katartismon tōn hagiōn, “para o ajuste/aperfeiçoamento dos santos”), “para a obra do ministério”, “para a edificação do corpo”. A progressão teleológica é marcada por pares e tríades até o alvo: andra teleion, metron hēlikias tou plērōmatos tou Christou (“homem maduro”, “medida da estatura da plenitude de Cristo”), contrapondo “infância agitada” a “crescimento na verdade e amor”, este formulado pelo neologismo semítico-helênico alētheuein en agapē (“praticar/verdadear a verdade em amor”). A imagem orgânica do corpo, costurada por preposições (ek, dia, eis) e pelo presente durativo de “crescer” e “edificar-se”, imprime um dinamismo contínuo: a Cabeça comunica coesão e finalidade às juntas.

O terceiro movimento (4:17–24) encena a grande troca identitária em três verbos que funcionam como macro-imperativos de vestir: apothesthai ton palaion anthrōpon (“despojar o velho homem”), ananeousthai tō pneumati tou noos (“renovar-se no espírito da mente”) e endusasthai ton kainon anthrōpon (“revestir o novo homem”). A retórica contrasta escuridão cognitiva e insensibilidade com criação segundo Deus “em justiça e santidade da verdade”, mantendo a metáfora do “andar” como fio condutor. O estilo alterna descrições sólidas (participiais e genitivos de qualidade) e mandatos concisos, preparando o casuísmo ético final.

O quarto movimento (4:25–32) desdobra a “roupa nova” em pares antitéticos de forte ritmo: não mentira, mas verdade; ira sem pecado; não furto, mas trabalho útil; não palavra “podre”, mas discurso que edifica; não amargura/ira/gritaria/maledicência, mas bondade, compaixão e perdão “como Deus, em Cristo, vos perdoou”. Cada par segue o molde negativo–positivo–razão, amarrado por fórmulas memoráveis (mē lupete to pneuma to hagion tou theou, “não entristeçais o Espírito Santo de Deus”), que reconectam com o selo escatológico do capítulo 1 e mantêm a parênese dentro da economia trinitária. Em conjunto, o capítulo combina anáforas, antíteses, inclusões e períodos periódicos para catequizar pela forma: da unidade confessada à diversidade ordenada, da cabeça que dá medida ao corpo que cresce, do despojar ao revestir, o estilo faz da doutrina um caminho—e do caminho, uma liturgia de maturidade sob a Cabeça.

II. Hebraísmos e o Texto Grego

Efésios 4 escreve grego com alma hebraica: a ética da “caminhada” nasce da tradução, para o vocabulário helênico, do verbo bíblico de viver diante de Deus. O imperativo que governa o capítulo, “andar de modo digno da vocação”, está ancorado tanto no grego peripatēsai (peripatēsai, “caminhar/andar”) quanto no hebraico subjacente de hālak (hālak, “andar/conduzir a vida”), eixo sapiente-litúrgico pelo qual a Torá descreve o estilo do justo. A “vocação” (klēsis, “chamado”) ecoa a teologia veterotestamentária de qārāʾ (qārāʾ, “chamar/convocar”) e o nomear criador de Deus, de modo que a unidade que Paulo exorta não é sociológica, mas sacramental: ela flui do ato divino que chama e forma um povo. Por isso, o credo setenário (um corpo, um Espírito, uma esperança, um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai) ressoa como midraxe cristológico do Shemaʿ: “o Senhor é um” (YHWH ʾeḥād, “o Senhor é um”, Deuteronômio 6:4) encontra seu desdobramento na confissão “um Senhor” (heis kyrios, “um Senhor”) e “um Deus e Pai de todos”, enquanto “um corpo” e “um Espírito” transcrevem em linguagem eclesial a unidade que o hebraico chama de šālōm (šālōm, “paz/integridade”). Mesmo o “vínculo da paz” aparece com sabor semítico: syndesmos tēs eirēnēs (syndesmos tēs eirēnēs, “ligame da paz”) exprime a coesão que o Antigo Testamento canta como “paz e verdade” lado a lado (ʾĕmet wĕšālōm, “verdade e paz”, Zacarias 8:19).

A seção dos dons (4:7–16) expõe um hebraísmo exegético notável ao citar o Salmo 68. O texto hebraico diz: “Subiste ao alto, levaste cativo o cativeiro; recebeste dádivas” (qābalta mattānōt, “recebeste dádivas”, Salmo 68:18), enquanto Paulo, seguindo uma trilha interpretativa judaica conhecida, verte: “subiu ao alto… deu dons aos homens” (anabas… edōken domata, “deu dons”). A inversão “recebeu/deu” não é descuido, mas leitura cristológica do rei-vencedor que reparte despojos; por trás está também a versão targúmica do salmo, que já lê a cena como distribuição de dádivas. O par “subir/descer” (anabainō/katebainō, “subir/descer”) opera como merismo semítico, abrangendo a totalidade da missão do Messias: o que ascende é o mesmo que desceu “às partes inferiores da terra”, imagem que costura Êxodo, Sinai e teofania régia. O fruto disso é uma eclesiologia orgânica: “aperfeiçoamento” (katartismos, “ajuste/restauração”), termo técnico de conserto (como alinhar ossos ou redes), “edificação” (oikodomē, “edificar/casa”), léxico que bebe no templo veterotestamentário; e “até que cheguemos ao homem maduro”, “à medida da estatura da plenitude de Cristo”, onde plērōma (plērōma, “plenitude”) retoma o campo semântico bíblico de mĕlōʾ (mĕlōʾ, “plenitude/cheio”) e a ideia de que Deus enche o seu povo.

Quando Paulo manda “praticar a verdade em amor”, usa o raro verbo alētheuein (alētheuein, “fazer/agir a verdade”), mais hebraico do que grego em sua força, porque verte o substantivo “verdade” (ʾĕmet, “fidelidade/verdade”) em comportamento pactuai: amar e dizer a verdade são faces de uma mesma lealdade ao Deus da aliança. O bloco de 4:17–24 encena a grande mudança de vestes com imagens que respiram profetas: “despojar o velho homem” (apothesthai ton palaion anthrōpon, “tirar o velho homem”), “renovar-se no espírito da mente” (ananeousthai tō pneumati tou noos, “renovar-se no espírito da mente”) e “revestir o novo homem” (endusasthai ton kainon anthrōpon, “vestir o novo homem”) dialogam com a troca de roupas do sumo sacerdote (Zacarias 3) e com a alegria de “vestes de salvação” (Isaías 61:10). A cláusula “criado segundo Deus em justiça e santidade da verdade” mantém o hebraísmo de criação à imagem: kata theon (kata theon, “segundo Deus”) evoca a criação “à imagem” (Gênesis 1), e o par dikaiosynē/hosiotēs (dikaiosynē/hosiotēs, “justiça/ santidade”) conjuga a retidão relacional da ṣĕdāqāh (ṣĕdāqāh, “justiça”) com a santidade cultual de qōdeš (qōdeš, “santo”), qualificadas pela alētheia (alētheia, “verdade”) que, em chave hebraica, significa ʾĕmet, fidelidade que sustenta.

Na casuística final (4:25–32), a trama intertextual com o hebraico fica explícita. “Falai a verdade cada um com o seu próximo” cita Zacarias 8:16 (hebraico: dabbĕrû ʾĕmet ʾîš ʾet-rēʿēhû, “falem verdade cada um ao seu próximo”), e “irai-vos e não pequeis” traz o Salmo 4:4, onde o hebraico manda “tremei e não pequeis” (rigzû weʾal teḥetāʾû, “tremei e não pequeis”), enquanto a tradição grega lê “irai-vos” (orgizesthe, “irai-vos”), preservando a advertência ética: a emoção não deve ganhar o pôr do sol. O “não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção” recolhe Isaías 63:10 (“entristeceram o seu Espírito santo”: wĕʿiṣṣĕbû ʾet-rûaḥ qodšô, “entristeceram o seu Espírito santo”) e reativa o campo jurídico-litúrgico do “selo” hebraico ḥōtām (ḥōtām, “selo”), que no grego de Paulo é sphragizō/sphragis (sphragis, “selar/selo”), marca de pertença e garantia escatológica. A proibição ao furto e o chamado ao trabalho útil retomam diretamente o Decálogo (Êxodo 20:15), enquanto a “palavra podre” contraposta ao “edificar” devolve o leitor ao léxico do templo: falar deve “dar graça” (charis, “graça/favor”), termo que, no horizonte semítico, faz eco a ḥēn (ḥēn, “favor/graça”). O fecho “sede bondosos, compassivos, perdoando-vos… como também Deus, em Cristo, vos perdoou” guarda o timbre de Êxodo 34:6-7, onde Deus se revela “compassivo e misericordioso” (raḥûm weḥannûn, “compassivo e benigno”); o grego eusplanchnoi (eusplanchnoi, “compassivos”) capta a visceralidade de raḥămîm (raḥămîm, “misericórdias/vísceras de compaixão”), e o perdão “como” Deus perdoou traduz o padrão da aliança em prática comunitária.

Assim, o “hebraísmo” de Efésios 4 não é uma curiosidade estilística, mas o nervo do texto: a ética do “andar” pactuai, a unidade confessada à maneira do Shemaʿ, o rei que sobe para dar dons (lendo o Salmo 68 pela lente messiânica), as vestes trocadas dos profetas, o falar verdadeiro de Zacarias, a ira vigiada do Salmo 4 e a advertência de Isaías sobre entristecer o Espírito—tudo isso passa para o grego de Paulo com precisão semântica e cadência catequética. O resultado é uma parênese em que cada partícula grega (en–dia–eis, “em/por/para”; kata, “segundo”; compostos em syn-, “com/ juntos”) serve a uma teologia bíblica de origem, meio e fim: a Igreja guarda a unidade que Deus deu, cresce sob a Cabeça com dons repartidos, despe o velho e veste o novo, e fala a verdade que ama—porque o Deus do Shemaʿ selou o seu povo para o dia da redenção.

III. Esboço de Efésios 4

A. Vocação e unidade do Espírito (4:1–6)
a. Andar digno da vocação: humildade, mansidão, longanimidade, suporte mútuo em amor (4:1–2)
b. Guardar a unidade do Espírito no vínculo da paz (4:3)
c. Credo setenário da unidade: um corpo, um Espírito, uma esperança; um Senhor, uma fé, um batismo; um Deus e Pai de todos (4:4–6)

B. Dons do Cristo exaltado e maturidade do corpo (4:7–16)
a. Graça dada a cada um segundo a medida de Cristo (4:7)
b. Ascensão e distribuição de dons (Salmo 68 relido): subiu/ desceu (4:8–10)
c. Pessoas-dons: apóstolos, profetas, evangelistas, pastores-mestres (4:11)
d. Finalidade tripla: ajuste dos santos, obra do ministério, edificação do corpo (4:12)
e. Meta: unidade da fé e do conhecimento do Filho, homem maduro, medida da plenitude de Cristo (4:13)
f. Contraste: infância instável vs. “praticar a verdade em amor” (4:14–15)
g. Corpo que cresce sob a Cabeça, cooperação de cada parte (4:16)

C. Da vaidade dos gentios ao novo homem (4:17–24)
a. Não andar como os gentios: vaidade da mente, trevas, dureza, impureza (4:17–19)
b. “Aprender Cristo”: verdade em Jesus (4:20–21)
c. Triplo movimento: despojar o velho homem, renovar o espírito da mente, revestir o novo homem criado segundo Deus em justiça e santidade da verdade (4:22–24)

D. Casuística da nova vida comunitária (4:25–32)
a. Abandonar a mentira; falar a verdade, porque somos membros uns dos outros (4:25)
b. Ira sem pecado e limite do pôr do sol; não dar lugar ao diabo (4:26–27)
c. Do furto ao trabalho útil e generoso para com o necessitado (4:28)
d. Palavra que edifica e ministra graça, em vez de palavra corrupta (4:29)
e. Não entristecer o Espírito Santo, selo para o dia da redenção (4:30)
f. Troca de afetos: remover amargura/ira/maledicência; vestir bondade, compaixão e perdão “como Deus, em Cristo, vos perdoou” (4:31–32)

IV. Versículo-Chave

Efésios 4:1

Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação com que fostes chamados.

Este versículo funciona como o eixo que gira todo o capítulo. O imperativo “andar” (peripatein) retoma o verbo bíblico de viver diante de Deus e transforma a alta teologia dos caps. 1–3 em ethos concreto; o advérbio “de modo digno” (axiōs) não sugere mérito, mas correspondência: a vida deve espelhar o chamamento recebido. E “vocação” (klēsis) reconecta com o decreto gracioso (1:4–6) e com a nova humanidade (2:15), indicando que a identidade dada pelo Pai, em Cristo, no Espírito, pede um caminho compatível.

Tudo o que segue em Efésios 4 desdobra esse “andar”: guardar “a unidade do Espírito” (4:3) e confessar o credo setenário do “um” (4:4–6) é o conteúdo comunitário do caminhar digno; os dons distribuídos pelo Cristo exaltado (4:7–12) são o meio pelo qual esse caminhar se torna maturidade — “até à medida da estatura da plenitude de Cristo” (4:13–16) —, sintetizada na regra “praticar a verdade em amor” (4:15). Em seguida, o “andar digno” assume a forma de troca identitária: despir o velho, renovar a mente e revestir o novo homem “segundo Deus” (4:17–24). Por fim, ele se traduz em gestos cotidianos: verdade em vez de mentira, ira vigiada, trabalho que partilha, palavra que edifica e perdão “como Deus, em Cristo, vos perdoou”, sem “entristecer o Espírito” que selou a Igreja (4:25–32). Por concentrar, orientar e integrar unidade, dons, maturidade e ética, 4:1 é a tese parenética do capítulo — a ponte viva entre a graça recebida e a vida que a corresponde.

V. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

Efésios 4 reescreve o monoteísmo bíblico do Shemaʿ em chave cristológica e eclesial. O credo setenário — “um corpo, um Espírito, uma esperança; um Senhor, uma fé, um batismo; um Deus e Pai de todos” (4:4–6) — ecoa Deuteronômio 6:4 (“o SENHOR é um”) e o amplia: o “um Senhor” identifica Cristo com o Kyrios da fé apostólica, enquanto “um Deus e Pai de todos” reafirma a fonte única da criação e da redenção (cf. Malaquias 2:10). A unidade confessada desdobra-se sacramentalmente em “um batismo” (em diálogo com Mateus 28:19) e pneumaticamente em “um Espírito” que incorpora o povo (1 Coríntios 12:13), ancorando a “uma esperança” que Efésios 1:18 e Romanos 8:24 descrevem como horizonte da vocação. Assim, a parênese de 4:1–6 transforma a teologia dos caps. 1–3 em ética de comunhão: a unidade não é um arranjo sociológico, mas o resultado do chamado divino (klēsis) que cria um povo “digno de andar” (peripatēsai) conforme a graça — uma tradução grega do hebraico hālak (“andar/viver”), verbo clássico da sabedoria bíblica.

Esse horizonte confessional molda a leitura cristológica do Salmo 68 no centro do capítulo (4:7–10). Paulo cita “subiu ao alto… deu dons aos homens” onde o hebraico diz “recebeste dádivas” (Salmos 68:18), sinal de uma releitura régia: o vencedor que recebe do Pai reparte aos seus. O par “subir/descer” (anabainō/katebainō) funciona como merismo semítico que abrange a missão inteira do Messias — o que desceu às “partes inferiores da terra” é o mesmo que subiu acima de todos os céus (cf. Salmos 110:1; Jo 3:13). Dessa ascensão doadora brotam não apenas “dons”, mas “pessoas-dons” (apóstolos, profetas, evangelistas, pastores-mestres) “para o katartismós dos santos” (4:12): o termo remete ao conserto/ajuste de redes em Marcos 1:19 (katartízō) e sugere a restauração funcional do corpo. A intertextualidade com Romanos 12 e 1 Coríntios 12 é evidente: diversidade carismática posta a serviço do único corpo sob a Cabeça.

No desenvolvimento de 4:11–16, Efésios costura a eclesiologia do corpo de 1Coríntios com a cristologia de Colossenses (Colossenses 1:18; 2:19): Cristo-Cabeça faz o corpo crescer “pela justa cooperação de cada parte”, até a “medida da estatura da plenitude de Cristo”. O neologismo “praticar a verdade em amor” (alētheuein en agapē, 4:15) verte a ’emet hebraica (verdade como fidelidade) em ética relacional, em diálogo com Zacarias 8:16 (“falai a verdade cada um com o seu próximo”) e com a sabedoria que une palavra e vida (Provérbios). A cadência teleológica (“até que todos cheguemos…”) substitui a infância doutrinária — “agitados de um lado para outro” — por maturidade que combina ortodoxia e caridade.

O bloco seguinte (4:17–24) encena a grande troca de vestes com imagens proféticas e criacionais. “Despirdes o velho homem… renovardes o espírito da vossa mente… e vos revestirdes do novo homem” traduzem em chave pessoal os motivos de Zacarias 3:1–5 (troca das vestes do sacerdote) e Isaías 61:10 (as “vestes de salvação”), enquanto “criado segundo Deus” remete a Gênesis 1:26–27 (imagem/semelhança). A fórmula “em justiça e santidade da verdade” combina ṣĕdāqāh (justiça relacional) e qōdeš (santidade cultual) qualificadas pela ’emet (fidelidade/verdade), mostrando que o “novo” não é mera ética melhorada, mas nova criação que reflete o caráter do Deus da aliança (cf. Rm 6:6; 13:12–14; Cl 3:9–10).

Por fim, 4:25–32 aterrissa a teologia em casuística que cita e recria Lei, Salmos e Profetas. “Falai a verdade cada um com o seu próximo” é citação direta de Zacarias 8:16; “irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira” ecoa Salmos 4:4 (LXX), domesticando a emoção pelo limite do tempo. A passagem do furto ao trabalho generoso (4:28) dialoga com o Decálogo (Êxodo 20:15) e com a ética de partilha (At 20:35; Pv 19:17); a proibição da “palavra podre” em favor da que “edifica” convoca o léxico do templo (oikodomē), de Êxodo 2540 à metáfora eclesial de Efésios 2. O aviso “não entristeçais o Espírito Santo de Deus” recolhe Isaías 63:10 e reconecta com o “selo” de 1:13–14: a gramática afetiva do povo selado por Deus. O fecho — bondade, compaixão e perdão “como Deus, em Cristo, vos perdoou” — espelha a autorrevelação de Êxodo 34:6–7 e alinha Efésios com o Pai-Nosso (Mateus 6:12–15) e com Colossenses 3:13: a ética do “como” traduz a aliança em gesto cotidiano.

Em síntese, Efésios 4 encena a continuidade e a novidade bíblica num fio só: o Shemaʿ ganha corpo e forma na Igreja uma, o Salmo 68 é lido no Cristo que sobe para dar, a eclesiologia paulina do corpo amadurece sob a Cabeça, a nova criação veste o povo com justiça e santidade, e a Lei-Profetas-Salmos reaparecem como prática de verdade, trabalho, palavra que edifica e misericórdia. Toda a trama intertextual serve a um único verbo-programa — “andar” — pelo qual a doutrina se torna caminho e a unidade confessada se torna vida “na verdade, em amor”.

VI. Lição Teológica Geral

A teologia geral de Efésios 4 declara que a alta cristologia e a eclesiologia dos caps. 1–3 se tornam ethos comunitário: o que Deus realizou “em Cristo” é agora vocação a ser vivida como caminho. O imperativo-programa — “andar de modo digno da vocação” (peripatēsai axiōs tēs klēseōs, 4:1) — não exige mérito, mas correspondência entre graça e vida. Por isso, a unidade da Igreja não é construída de baixo para cima; é dom a ser guardado: “guardar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (tērein tēn henotēta tou pneumatos en tō syndesmō tēs eirēnēs, 4:3). O credo setenário (4:4–6) ancora essa unidade na economia trinitária: um corpo, um Espírito, uma esperança; um Senhor, uma fé, um batismo; um Deus e Pai de todos. Assim, a comunhão eclesial é a forma histórica do desígnio eterno.

O Cristo exaltado é o doador da vida e da forma do corpo. Tendo subido, “deu dons aos homens” (4:8) e, mais que capacidades, deu pessoas-dons (apóstolos, profetas, evangelistas, pastores-mestres) “para o katartismós dos santos” (4:12), isto é, para seu ajuste e habilitação. A finalidade é explicitamente teleológica: “até que todos cheguemos… ao homem maduro, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (andra teleion… metron hēlikias tou plērōmatos tou Christou, 4:13). Teologicamente, os carismas são meios de maturação sob a Cabeça; não fim em si. A imagem orgânica do corpo, “bem ajustado e consolidado pelo auxílio de todas as juntas”, traduz a mediação da Cabeça: de Cristo flui coesão, verdade e amor (alētheuein en agapē, 4:15), em contraposição à “infância” doutrinária e à oscilação por “todo vento de doutrina” (4:14).

A santidade cristã é descrita como nova criação e não apenas como reforma moral. O tríplice movimento — “despojar o velho homem”, “renovar-se no espírito da mente” e “revestir o novo homem” (apothesthai… ananeousthai… endusasthai, 4:22–24) — afirma que o crente participa, pela graça, de uma realidade criada “segundo Deus, em justiça e santidade da verdade” (kata Theon… en dikaiosynē kai hosiotēti tēs alētheias). A conversão é tanto ontológica (uma nova condição) quanto noética (uma nova mente), e sua regra é cristológica: o “como” de Deus em Cristo define o “como” da Igreja (4:32).

O capítulo traduz essa ontologia em liturgia do cotidiano. Porque somos “membros uns dos outros” (4:25), a verdade substitui a mentira; a ira é limitada pelo tempo e não abre acesso ao Maligno (4:26–27); o furto dá lugar ao trabalho para partilhar (4:28); a palavra deixa de corromper para edificar, “ministrando graça aos que ouvem” (4:29). Tudo isso é moldado por uma consciência pneumatológica: “não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados (esphragisthēte) para o dia da redenção” (4:30). A ética fraterna é, portanto, resposta ao selo escatológico e participação no culto verdadeiro: benevolência, compaixão e perdão “como também Deus, em Cristo, vos perdoou” (4:32).

Do ponto de vista missional, Efésios 4 sustenta que a verdade em amor é o antídoto contra a imaturidade e o sectarismo. Unidade não é uniformidade: a diversidade carismática, ordenada pela Cabeça, gera edificação mútua e testemunho público. Os ministérios servem para que o corpo inteiro faça a obra do ministério; o objetivo não é clericalizar, mas corporalizar a missão. Assim, a Igreja torna visível, na sua forma de vida, a reconciliação que proclama.

VII. Comentário de Efésios 4

Efésios 4 marca a virada da carta da teologia para a vida. Depois de mostrar quem somos “em Cristo”, Paulo apela como “prisioneiro no Senhor” para que a igreja “ande de modo digno da vocação” recebida. Essa dignidade se reconhece por “toda humildade e mansidão, com longanimidade”, suportando-se “em amor” e se empenhando em “preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4:1–3). O fundamento não é frágil nem sentimental: há “um só corpo e um só Espírito”, “uma só esperança”, “um só Senhor, uma só fé, um só batismo”, e “um só Deus e Pai de todos”, cuja soberania e presença sustentam a comunhão (Ef 4:4–6).

Essa unidade, porém, não uniformiza. O Cristo que desceu e subiu “para encher todas as coisas” reparte graça a “cada um” segundo a “medida do seu dom” (Ef 4:7–10). Ele mesmo deu à igreja pessoas-dons — “apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres” — com uma finalidade clara: “aperfeiçoar os santos” para a obra do serviço e “edificar o corpo de Cristo” até “a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus”, à “medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4:11–13). Assim a comunidade deixa a infância espiritual, não se deixa levar por “todo vento de doutrina” nem por “artimanhas” e “astúcias” que enganam, mas cresce “seguindo a verdade em amor” para Aquele que é a Cabeça (Ef 4:14–16).

Com essas provisões, Paulo exige uma ruptura nítida com o velho padrão de vida. Não é mais possível “andar como os gentios”, na “vaidade dos pensamentos”, “entendimento obscurecido” e “alienação da vida de Deus”, que desembocam em insensibilidade moral e “toda sorte de impureza” (Ef 4:17–19). A escola cristã é outra: “aprender a Cristo”, ouvi-lo e ser instruído “na verdade em Jesus”, implica despir “o velho homem”, que “se corrompe segundo as concupiscências do engano”, ser “renovado no espírito da mente” e vestir “o novo homem, criado segundo Deus, em justiça e santidade da verdade” (Ef 4:20–24).

Por fim, Paulo desce ao chão da vida comum. Quem pertence ao novo homem abandona a falsidade — “deixando a mentira” — e fala a verdade porque “somos membros uns dos outros”; lida com a ira sem pecar e não deixa “o sol se pôr” sobre ela, para “não dar lugar ao diabo”; o que “furtava” agora “trabalha”, “faz o bem com as próprias mãos” e reparte com o necessitado; a boca deixa de produzir “palavra torpe” para proferir somente a que “edifica” e “transmite graça”; e tudo isso se faz sem “entristecer o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção” (Ef 4:25–30). Em lugar de “amargura, cólera, ira, gritaria, blasfêmias e malícia”, brilham “benignidade, compaixão e perdão”, “como também Deus, em Cristo, vos perdoou” — o padrão objetivo e a fonte inesgotável de toda ética cristã (Ef 4:31–32).

A. O Chamado à Unidade da Igreja (Efésios 4:1-6)

Efésios 4:1 Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor,... (A transição do indicativo da graça ao imperativo da vida cristã vem com parakaleō — “rogo/exorto” — e com a autoconsciência de Paulo como desmios en Kyriō — “prisioneiro no Senhor”: suas algemas autenticam o apelo, pois o evangelho que uniu judeus e gentios custou-lhe sofrer por Cristo [Efésios 3:1; Filipenses 1:12-14; Colossenses 4:3]. A exortação nasce da teologia exposta nos capítulos 1–3: quem foi eleito, redimido, selado e incorporado ao novo homem é chamado a viver coerentemente com essa identidade [Efésios 1:3-14; 2:11-22].) ...que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados,... (peripatein “andar” descreve um estilo de vida contínuo; axios tēs klēseōs não é para “merecer”, mas para “corresponder” ao chamado eficaz de Deus. O conteúdo dessa klēsis é a comunhão santa e a missão do corpo de Cristo; portanto, “andar dignamente” é refletir o caráter do Chamador na ética, no culto e na unidade [1 Tessalonicenses 2:12; Colossenses 1:10; Filipenses 1:27; Romanos 12:1-2].)

Efésios 4:2 com toda a humildade e mansidão,... (tapeinophrosynē e prautēs são virtudes cristológicas desprezadas pela cultura greco-romana, mas centrais no discipulado: Jesus é “manso e humilde de coração”, e seu Espírito forma esse ethos na igreja; mansidão não é fraqueza, é força sob controle para servir e ceder por amor [Mateus 11:29; 2 Coríntios 10:1; Gálatas 5:22-23].) ...com longanimidade,... (makrothymia espelha a paciência de Deus para com pecadores: persevera em suportar ofensas sem retaliar, dando espaço para arrependimento e reconciliação [Êxodo 34:6; Romanos 2:4; Colossenses 3:12].) ...suportando-vos uns aos outros em amor,... (anechomenoi… en agapē: carregar o peso real do outro, sem cinismo nem cálculo, porque o amor agapē cobre e cura; isso mantém relações quebráveis sob a cruz e evita cismas [1 Pedro 4:8; 1 Coríntios 13:4-7; Colossenses 3:13].)

Efésios 4:3 esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz;... (spoudazontes tērein tēn henotēta tou pneumatos = “empenhando-se para guardar a unidade do Espírito”: a unidade é dádiva do Espírito, não produto de votação; nossa tarefa é preservá-la pela obediência e pelo arrependimento contínuo. O syndesmos tēs eirēnēs — “vínculo da paz” — é a amarra relacional gerada pela reconciliação de Cristo, que desarma hostilidades e estabiliza a comunhão [João 17:21-23; Efésios 2:14-18; Colossenses 3:14-15; Romanos 14:19].)

Efésios 4:4 há somente um corpo... (Um só sōma: a igreja universal sob uma Cabeça; diversidade de membros e dons, mas uma vida compartilhada — por isso as divisões ferem o próprio corpo de Cristo [Efésios 1:22-23; 1 Coríntios 12:12-27].) ...e um Espírito,... (Um só pneuma: o Espírito Santo que regenera, habita e integra; é Ele quem efetua a unidade ontológica do corpo [1 Coríntios 12:13; Romanos 8:9].) ...como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação;... (Uma só elpis tēs klēseōs: esperança escatológica comum — a herança em Cristo, a ressurreição e a nova criação — que estrutura o presente e impede sectarismos [Efésios 1:18; Colossenses 1:27; Tito 2:13].)

Efésios 4:5 há um só Senhor,... (Um só Kyrios, Jesus: a confissão cristã é monárquica — um Senhor para todos, acima de poderes e tradições; é o centro do credo e o critério da unidade [Romanos 10:9; 1 Coríntios 8:6; Filipenses 2:11].) ...uma só fé,... (Uma só pistis: tanto o ato de crer quanto o conteúdo apostólico recebido “uma vez por todas”; essa fé comum nos une acima de culturas e épocas [Gálatas 2:16; Judas v. 3; Colossenses 2:6-7].) ...um só batismo;... (Um só baptisma: sinal de ingresso e identificação com Cristo e seu povo; o batismo marca nossa união com sua morte e ressurreição e, portanto, nossa co-pertença uns aos outros [Romanos 6:3-4; Gálatas 3:27-28; 1 Coríntios 12:13].)

Efésios 4:6 um só Deus e Pai de todos,... (Monoteísmo cristão aplicado à comunhão: o Pai único fundamenta a fraternidade única; não há “deuses tribais” na igreja, mas o Deus que adotou um só povo em Cristo [Deuteronômio 6:4; 1 Coríntios 8:6; Efésios 1:5].) ...o qual é sobre todos,... (“epi pantōn”: transcendência e soberania — Ele governa acima de tudo; isso relativiza poderes e partidos e impede idolatrias eclesiais [Salmo 103:19; Romanos 11:36].) ...age por meio de todos e está em todos. (“dia pantōn… en pasin”: providência e imanência — opera através de todos os membros e habita em todos os crentes pelo Espírito; “em todos” no contexto é “em todos vós”, a família de Deus, não um panteísmo difuso [Atos 17:28; 1 Coríntios 3:16; Romanos 8:9; Colossenses 1:17]. A doxologia trinitária de 4:4-6 (Espírito, Senhor, Pai) sela que a unidade da igreja é participação no próprio Deus.)

B. Diversidade de Dons para o Crescimento da Igreja (Efésios 4:7-16)

Efésios 4:7 E a graça foi concedida a cada um de nós... (Unidade não é uniformidade: o Cristo ressurreto reparte “graça” ministerial a cada membro; aqui charis tem nuance de capacitação para servir, não só de perdão [Romanos 12:6; 1 Coríntios 12:4-7; 1 Pedro 4:10]. Toda pessoa no corpo recebeu algo do Senhor para o bem dos outros — ninguém é supérfluo, ninguém tem “tudo”.) ...segundo a proporção do dom de Cristo. (A medida é “o dom de Cristo” — metron tou dōrou tou Christou: Ele, como Cabeça, distribui a porção e o encargo conforme Sua sabedoria e o bem comum, não segundo vaidades humanas [João 1:16; 1 Coríntios 12:11].)

Efésios 4:8 Por isso, diz: (Paulo lê o AT cristologicamente.) Quando ele subiu às alturas,... (Cita/eco de Salmo 68:18: o Vencedor sobe a Sião como Rei triunfante; em Cristo, essa subida culmina na ascensão [Salmo 68:18; Atos 1:9-11].) ...levou cativo o cativeiro... (Idiomatismo de vitória total: cativou os cativeiros — poderes que nos escravizavam (pecado, morte, hostilidades) foram despojados [Colossenses 2:15; Hebreus 2:14-15].) ...e concedeu dons aos homens. (No Salmo, Deus “recebe” tributos; Paulo, à luz de Cristo e do Pentecostes, enfatiza que o Rei agora dá dons à Igreja por meio do Espírito [Atos 2:33; João 7:39].)

Efésios 4:9 Ora, que quer dizer subiu,... (Se Ele subiu, houve um descer anterior.) ...senão que também havia descido até às regiões inferiores da terra? (Duas leituras principais e complementares: (1) descida da encarnação — o Filho vem “à terra” e à humilhação [João 3:13; Filipenses 2:6-8]; (2) descida ao “lugar dos mortos” — katōtata — linguagem afim a Sheol/Hades [Romanos 10:7; Mateus 12:40; 1 Pedro 3:19]. Em ambos os casos, a ênfase é a profundidade da condescendência antes da exaltação.)

Efésios 4:10 Aquele que desceu... (O mesmo Jesus histórico e crucificado.) ...é também o mesmo que subiu acima de todos os céus,... (Ascensão ao topo do cosmos criado: entronização soberana “acima de todo principado” [Efésios 1:20-21; Hebreus 4:14].) ...para encher todas as coisas. (plērosai ta panta: Cristo, Cabeça e Plenitude, enche o universo com Sua presença e governo, e especialmente Sua Igreja com dons e vida [Efésios 1:23; Colossenses 1:19; 2:9-10].)

Efésios 4:11 E ele mesmo concedeu uns para apóstolos,... (Os “dons” são pessoas dadas: apóstolos como testemunhas fundacionais do Cristo ressuscitado e fundamento histórico-doutrinário da Igreja [Atos 1:21-22; Efésios 2:20; Apocalipse 21:14].) ...outros para profetas,... (Profetas do NT: falam edificando, exortando e consolando, aplicando a Palavra de Cristo às igrejas sob critério apostólico [Atos 11:27-28; 1 Coríntios 14:3,29].) ...outros para evangelistas... (Portadores do evangelho em novos territórios e na catequese básica; vemos Filipe e a exortação a Timóteo como exemplos [Atos 21:8; 2 Timóteo 4:5].) ...e outros para pastores e mestres,... (Gramaticalmente ligados (poimenas kai didaskalous): pastores-mestres que apascentam e instruem localmente; cuidam, protegem do erro e formam o povo na sã doutrina [Atos 20:28-32; 1 Pedro 5:2-3; 1 Timóteo 3:2; Tito 1:9].)

Efésios 4:12 com vistas ao aperfeiçoamento dos santos... (katartismos = “ajuste, equipagem”: líderes existem para capacitar os santos — consertar, alinhar, treinar — por Palavra e exemplo [2 Timóteo 3:16-17].) ...para o desempenho do seu serviço,... (Quem faz a “obra do ministério” não é só o clero, mas os santos equipados: cada membro serve segundo o dom recebido [Romanos 12:4-8; 1 Pedro 4:10-11].) ...para a edificação do corpo de Cristo,... (O alvo é o crescimento qualitativo e quantitativo do corpo, em verdade e amor; toda prática que não edifica precisa ser revista [1 Coríntios 14:12, 26; Efésios 2:21-22].)

Efésios 4:13 até que todos cheguemos à unidade da fé... (Meta processual: convergir numa mesma confiança e conteúdo apostólico — “a fé” — não uniformidade cega, mas consenso evangélico maduro [Filipenses 1:27; Judas 3].) ...e do pleno conhecimento do Filho de Deus,... (epignōsis = conhecimento relacional profundo do Filho, que molda caráter e culto [Colossenses 1:10; 2:2-3].) à perfeita varonilidade,... (andra teleion = maturidade adulta corporativa; a Igreja deixa a infantilidade espiritual [1 Coríntios 14:20].) ...à medida da estatura da plenitude de Cristo,... (Padrão é Cristo mesmo: Seu caráter, obediência e amor; crescemos até a “medida” dEle, não até líderes carismáticos [Romanos 8:29; Efésios 1:23; Colossenses 1:28].)

Efésios 4:14 para que não mais sejamos como meninos,... (Crescimento protege da ingenuidade espiritual.) ...agitados de um lado para outro... (Imagem de barco sem quilha em mar revolto.) ...e levados ao redor por todo vento de doutrina,... (Modismos teológicos e espiritualidades voláteis desestabilizam; precisamos de ancoragem na Palavra [Colossenses 2:8; Hebreus 13:9].) ...pela artimanha dos homens,... (kubia = “jogo de dados/trapaça”: técnicas de manipulação.) ...pela astúcia com que induzem ao erro. (methodeia = “maquinações/metodologias” do engano; a mesma palavra em 6:11 para as ciladas do diabo — falsos ensinos têm engenharia espiritual por trás [2 Pedro 2:1-3; 1 João 4:1].)

Efésios 4:15 Mas, seguindo a verdade em amor,... (alētheuontes en agapē = “praticando/dizendo a verdade em amor”: ortodoxia + ortopraxia; verdade sem amor fere, amor sem verdade ilude [Zacarias 8:16; João 14:6; 1 Coríntios 13:6].) ...cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo,... (Crescimento integral — doutrina, caráter, missão — para Cristo e a partir de Cristo, Cabeça que nutre e dirige o corpo [Colossenses 1:18; 2:19].)

Efésios 4:16 de quem todo o corpo,... (A origem do crescimento é a Cabeça: tudo “vem de” Cristo.) ...bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta,... (synarmologoumenon kai symbibazomenon = encaixe e coesão; “juntas/ligamentos” (prov. haphai) são os pontos de conexão — pessoas/relacionamentos pelo quais a vida circula [Colossenses 2:19].) ...segundo a justa cooperação de cada parte,... (kata energeian en metrō = a energia operante “na medida” de cada parte: cada membro importa e responde por sua porção.) ...efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor. (O corpo, recebendo de Cristo e cooperando internamente, cresce e se edifica em amor — atmosfera e objetivo do crescimento; estruturas e dons servem a isso, não o contrário [Efésios 5:2; 1 Tessalonicenses 5:11].)

>C. A Exortação a uma Nova Vida em Cristo (Efésios 4:17-32)

Efésios 4:17 Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais andeis como também andam os gentios,... (A virada para a ética é marcada por “digo e testifico no Senhor”: Paulo fala com autoridade delegada, chamando a igreja a romper com o estilo de vida pagão. Peripatein (“andar”) é modo contínuo de viver; “gentios” aqui não é etnia, mas humanidade sem Deus. A exortação flui do que Deus já fez: quem foi unido a Cristo e incorporado ao Seu corpo não pode voltar ao padrão antigo [Efésios 1:3-14; 2:1-6; 4:1].) ...na vaidade dos seus próprios pensamentos,... (mataiotēs tou noos = futilidade da mente: raciocínio autocentrado que promete sentido e produz vazio. A Escritura associa a “futilidade” a ídolos e à inversão da verdade; é o oposto da “sabedoria e revelação” pedidas em 1:17 [Romanos 1:21-25; Jeremias 2:5; Efésios 1:17-18].)

Efésios 4:18 obscurecidos de entendimento,... (eskotōmenoi tē dianoia: trevas no centro da compreensão moral/espiritual; não é déficit intelectual, mas cegueira culpável resultante da troca da glória de Deus por imagens [2 Coríntios 4:4; Romanos 1:28].) ...alheios à vida de Deus... (Alienação da zōē tou Theou: vida que flui do Espírito e da comunhão com o Pai; fora de Cristo, há biologicidade, mas não vida verdadeira [João 1:4; 17:3; Efésios 2:1].) ...por causa da ignorância em que vivem,... (Ignorância não inocente: é resistência à verdade revelada; nos profetas, ignorar Deus é quebrar aliança [Oseias 4:1, 6; Atos 17:30-31].) ...pela dureza do seu coração,... (pōrōsis = calcificação do coração; impede ver, ouvir e voltar-se — tema frequente quando o povo resiste à Palavra [Marcos 3:5; Atos 28:26-27].)

Efésios 4:19 os quais, tendo-se tornado insensíveis,... (apelgēkotes = perdendo sensibilidade moral, “anestesiados”: já não doem com o mal; a consciência cauterizada normaliza o vício [1 Timóteo 4:2; Efésios 5:12].) ...se entregaram à dissolução para, com avidez, cometerem toda sorte de impureza. (aselgeia = devassidão sem freios; pleonexia = ganância/fome insaciável; akatharsia = impureza ampla, sexual e cultual. É a espiral de Romanos 1: desejos enganosos se tornam senhor; Cristo liberta desse jugo [Romanos 1:24-32; Gálatas 5:19; 1 Pedro 4:3-4].)

Efésios 4:20 Mas não foi assim que aprendestes a Cristo,... (Linguagem única: não “aprender sobre”, mas “aprender a Cristo” — a catequese apostólica tem uma pessoa por conteúdo e forma. O discípulo aprende Cristo como Verdade, Caminho e Vida, sendo conformado a Ele [Colossenses 2:6; João 14:6; Romanos 8:29].)

Efésios 4:21 se é que, de fato, o tendes ouvido... (Cristo é ouvido quando o evangelho é pregado; é Ele quem fala por meio da Palavra [Efésios 2:17; Lucas 10:16].) ...e nele fostes instruídos,... (A escola é “nele”: instrução ocorre em união com Cristo e dentro da comunidade que é Seu corpo [Efésios 1:22-23; Colossenses 2:6-7].) ...segundo é a verdade em Jesus,... (“Verdade em Jesus” ancora a ética na história do Jesus encarnado, crucificado e ressuscitado; Ele é o critério do verdadeiro viver [João 1:17; 18:37; 1 João 2:6].)

Efésios 4:22 no sentido de que, quanto ao trato passado,... (A salvação inclui ruptura com o “modo de vida” antigo; conversão é mudança de senhor, de rumo e de hábitos [1 Pedro 1:14-15].) vos despojeis do velho homem,... (apothesthai ton palaion anthrōpon: tirar a roupa do “Adão velho” — identidade moldada pelo pecado; é ato decisivo com efeitos contínuos [Romanos 6:6; Colossenses 3:9].) ...que se corrompe segundo as concupiscências do engano,... (phthieromenon = que se deteriora; “desejos do engano” seduzem prometendo vida e semeando morte; discerni-los é crucial [Tiago 1:14-15; Jeremias 17:9].)

Efésios 4:23 e vos renoveis no espírito do vosso entendimento,... (ananeousthai no presente passivo: processo contínuo operado por Deus; “espírito da mente” é a disposição interior que orienta percepções e escolhas. A renovação pela Palavra e pelo Espírito reconfigura valores e afeições [Romanos 12:2; 1 Coríntios 2:12-16; Efésios 1:17-18].)

Efésios 4:24 e vos revistais do novo homem,... (endysasthai ton kainon anthrōpon: vestir a nova humanidade criada em Cristo; é assumir ativamente a identidade recebida.) ...criado segundo Deus,... (kata Theon ecoa Gênesis 1:26-27: nova criação que reflete o caráter de Deus, como imagem restaurada no Filho [Colossenses 3:10; 2 Coríntios 5:17].) ...em justiça e retidão procedentes da verdade. (dikaiosynē e hosiotēs tēs alētheias: justiça nas relações e santidade devocional nascem da “verdade” do evangelho, não de um moralismo autônomo [Efésios 5:9; João 17:17].)

Efésios 4:25 Por isso, deixando a mentira,... (Primeiro fruto da nova humanidade é a verdade: o diabo é “pai da mentira”; abandonar enganos rompe com seu reino [Zacarias 8:16; João 8:44].) ...fale cada um a verdade com o seu próximo,... (A comunidade vive da transparência amorosa; verdade dita para edificar, não para ferir [Provérbios 12:18; Colossenses 3:9-10].) ...porque somos membros uns dos outros. (Mentir ao irmão é ferir o próprio corpo; a interdependência do corpo de Cristo exige veracidade [Romanos 12:5; Efésios 4:15-16].)

Efésios 4:26 Irai-vos e não pequeis;... (Citação do Salmo 4:4 na LXX: há ira justa diante do mal, mas ela é perigosa; deve ser governada para não se tornar pecado [Tiago 1:19-20; Marcos 3:5].) ...não se ponha o sol sobre a vossa ira,... (Prazo curto para reconciliar: deixar o ressentimento pernoitar enraíza amargura; o evangelho exige prontidão em buscar paz [Mateus 5:23-24; Romanos 12:18].)

Efésios 4:27 nem deis lugar ao diabo. (mēde didote topon tō diabolō: não entreguem “terreno” ao acusador; rancor, mentira e divisão abrem brechas espirituais. O perdão protege a igreja das “ciladas” [2 Coríntios 2:10-11; 1 Pedro 5:8-9].)

Efésios 4:28 Aquele que furtava não furte mais;... (Conversão rearranja economia e ética: parar de furtar é básico.) ...antes, trabalhe,... (kopiatō = labutar; trabalho torna-se vocação santa.) ...fazendo com as próprias mãos o que é bom,... (Trabalho honesto, útil e belo reflite o Criador e dignifica o próximo [Gênesis 2:15; 1 Tessalonicenses 4:11-12].) ...para que tenha com que acudir ao necessitado. (A meta vai além do “não roubar”: é generosidade. O ex-ladrão vira benfeitor; eco de Paulo: “mais bem-aventurado é dar do que receber” [Atos 20:34-35; Provérbios 28:27; Efésios 2:10].)

Efésios 4:29 Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe,... (sapros = podre/estragado: palavreado que corrompe, degrada e envenena ambientes.) ...e sim unicamente a que for boa para edificação,... (oikodomē = construir pessoas; a fala deve erguer, não demolir.) ...conforme a necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem. (Palavra “apta ao momento” — precisa, oportuna, misericordiosa — canaliza charis; nossas bocas podem ministrar ou ferir [Colossenses 4:6; Mateus 12:36-37; Tiago 3:1-12; Provérbios 25:11].)

Efésios 4:30 E não entristeçais o Espírito de Deus,... (O Espírito é pessoa que ama e se entristece diante de pecados relacionais; eco de Isaías 63:10. Pecados de língua e divisão ferem a comunhão onde Ele habita [1 Coríntios 3:16-17].) ...no qual fostes selados para o dia da redenção. (O selo do Espírito certifica pertença e proteção até a consumação; por isso, viver contra Ele é incongruente com nossa esperança [Efésios 1:13-14; Romanos 8:23].)

Efésios 4:31 Longe de vós,... (A ordem é expulsiva: “removam para longe”.) ...toda amargura,... (pikria = ressentimento enraizado.) ...e cólera,... (thymos = explosões.) ...e ira,... (orgē = hostilidade armazenada.) ...e gritaria,... (kraugē = berros, alaridos que intimidam.) ...e blasfêmias,... (blasphēmia = injúrias, difamações.) ...e bem assim toda malícia. (kakia = disposição para prejudicar. A lista espelha vícios que esgarçam comunidades; devem ser substituídos pelos hábitos do Reino [Colossenses 3:8; Tiago 1:20; Provérbios 15:1].)

Efésios 4:32 Antes, sede uns para com os outros benignos,... (chrēstoi = amáveis/úteis; Deus é “benigno”, Seus filhos também [Romanos 2:4].) ...compassivos,... (eusplanchnoi = entranhas movidas; empatia prática [1 Pedro 3:8].) ...perdoando-vos uns aos outros,... (charizomenoi = concedendo perdão como graça, não como barganha.) ...como também Deus,... (Padrão e fonte: Deus inicia.) ...em Cristo,... (Base objetiva: a cruz quitou a dívida.) ...vos perdoou. (O “como” é normativo: perdoamos do jeito e na medida que fomos perdoados — ilimitadamente, visando reconciliação e verdade [Mateus 18:21-35; Colossenses 3:12-13; Lucas 6:36-37].)

VIII. Devocional de Efésios 4

Efésios 4 nos chama a viver o evangelho “de modo digno da vocação” (Efésios 4:1), e a moldura devocional do capítulo é clara: quem foi alcançado por Cristo deve andar de forma coerente com essa graça, cultivando humildade, mansidão, longanimidade e amor que suporta (Efésios 4:2). Não é moralismo; é resposta. O que o Senhor requer “senão que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes humildemente com o teu Deus?” (Miqueias 6:8). Essa postura protege o bem maior que Paulo tem em vista: “a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Efésios 4:3). A unidade da igreja não é nebulosa: é trinitária e objetiva — “um só corpo e um só Espírito… um só Senhor… um só Deus e Pai de todos” (Efésios 4:4–6). O eco de Deuteronômio 6:4 (“Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”) reforça que a confissão de um Deus único deve desaguar numa vida unida. Onde irmãos vivem juntos em união, ali o Senhor ordena bênção (Salmo 133).

Essa unidade, porém, não é uniformidade. O Cristo exaltado distribui diversidade de dons para a edificação do mesmo corpo: “a cada um de nós foi concedida a graça” (Efésios 4:7). Paulo lê o Salmo 68:18 cristologicamente: Aquele que “subiu às alturas” derrama dons sobre os homens (Efésios 4:8), como na efusão do Espírito no Pentecostes (Atos 2). Entre esses dons, o Senhor dá pessoas — apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres — “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos… para edificação do corpo de Cristo” (Efésios 4:11–12; ver também Romanos 12:4–8; 1 Pedro 4:10–11). O alvo devocional disso é maturidade: sair da infância espiritual que se deixa “levar por todo vento de doutrina” (Efésios 4:14), e crescer “em tudo” naquele que é o Cabeça, Cristo (Efésios 4:15). A verdade, aqui, não é martelo sem amor; é “verdade em amor”, palavra que cura (Provérbios 27:6) e que edifica (Efésios 4:29). A imagem do corpo (1 Coríntios 12:12–27) reaparece: cada junta, recebendo de Cristo, supre o outro, e o corpo cresce “em amor” (Efésios 4:16; Colossenses 1:18).

A partir do versículo 17, Paulo aplica o evangelho às entranhas da vida: já não andar “como andam também os gentios” (Efésios 4:17), com futilidade de mente, coração entenebrecido e desejos insaciáveis. O chamado devocional é trocar de roupa: “despojar-se do velho homem… e revestir-se do novo” (Efésios 4:22–24). O “velho” é corrupto “segundo as concupiscências do engano”; isto é, nossos desejos prometem vida, entregam morte (Gênesis 3; Tiago 1:14–15). O “novo” é obra criativa de Deus: “criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Efésios 4:24), restaurando em nós a imagem para a qual fomos feitos (Gênesis 1:26–27; Levítico 11:44). Essa metamorfose acontece “no espírito da vossa mente” (Efésios 4:23): Deus dá novo coração e põe o seu Espírito em nós para nos fazer andar em seus estatutos (Ezequiel 36:26–27; Jeremias 31:33–34; Romanos 12:2).

Então Paulo traduz o “revestir-se” em hábitos concretos cheios de Bíblia. Falar a verdade, porque somos membros uns dos outros (Efésios 4:25; Zacarias 8:16). Lidar com a ira sem pecar (Efésios 4:26), ecoando o apelo de Davi: “Irai-vos e não pequeis; consultai com o vosso coração… e calai-vos” (Salmo 4:4). Não dar margem ao diabo por meio de ressentimentos ruminados (Efésios 4:27). Abandonar o furto e, em vez disso, trabalhar “fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha o que repartir” (Efésios 4:28); aqui, a graça transforma mãos que tomavam em mãos que doam (Atos 20:35). Domar a língua: nenhuma palavra podre, só as que edificam e transmitem graça conforme a necessidade (Efésios 4:29; Provérbios 18:21; Salmo 141:3). E, sobre tudo, não entristecer “o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção” (Efésios 4:30). Isaías já advertira: o povo rebelde “contristou o seu Santo Espírito” (Isaías 63:10). Paulo acrescenta: esse mesmo Espírito é o selo e o penhor que garante nossa herança até a redenção final (Efésios 1:13–14; 2 Coríntios 1:21–22; Romanos 8:23). Viver em amargura, cólera, gritaria e malícia não é só feio; é romper comunhão com Aquele que nos selou.

O parágrafo final mostra o coração do discipulado: substituir a aspereza por “bondade” e “compaixão” e, sobretudo, “perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou” (Efésios 4:32). Essa é a ética mais profunda do capítulo: não fazemos para ser perdoados; perdoamos porque fomos perdoados. Jesus contou a parábola do servo perdoado de “dez mil talentos” que se recusou a perdoar “cem denários” para mostrar a incoerência de quem conhece a remissão e mantém o outro preso (Mateus 18:21–35). Paulo canta a mesma melodia também a outra igreja: “assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós” (Colossenses 3:12–13). O padrão é Cristo; a fonte é Cristo; o poder vem de Cristo (João 13:34–35). A vida devocional de Efésios 4 é um contínuo voltar-se para Ele: a unidade que preservamos é a que o Espírito criou; os dons que exercemos foram distribuídos pelo Cristo exaltado; a maturidade a que aspiramos é crescer “em tudo” nEle; a santidade que vestimos é obra criadora de Deus; as palavras que proferimos devem carregar a sua graça; o perdão que estendemos deve espelhar o perdão que recebemos “em Cristo”.

Viver assim é, ao mesmo tempo, sobrenatural e ordinário. Sobrenatural, porque depende do Espírito que nos sela e nos renova (Efésios 4:30; Ezequiel 36:27). Ordinário, porque se expressa em escolhas cotidianas que qualquer um pode entender: dizer a verdade, consertar a ira antes do sol se pôr, trabalhar com integridade, repartir, falar de modo que cure, cortar a raiz da amargura, dar o passo do perdão. Nada disso é possível sem o evangelho; e nada disso é opcional para quem abraçou o evangelho. É por isso que o capítulo começa com “andar” (Efésios 4:1) e termina com “perdoar como Deus em Cristo” (Efésios 4:32): o caminho todo é graça recebida e graça praticada. Quando a igreja vive assim, a oração de Jesus ganha forma no mundo: um só rebanho, um só Pastor (João 10:16); um só corpo que, crescendo em amor, exibe com simplicidade e poder a unidade do Deus único (João 17:21–23).

A. Andar digno da vocação (Efésios 4:1–3)

Paulo escreve algemado e, ainda assim, livre por dentro. Ele não usa as correntes para arrancar pena; usa-as para apertar nosso amor ao modo de viver do evangelho. “Rogo-vos”, diz o prisioneiro, “que andeis de modo digno da vocação.” O chamado que nos alcançou não é pequeno: fomos arrancados da morte e feitos vivos com Cristo (Efésios 2:1–6), reconciliados com Deus e uns com os outros pela cruz (Efésios 2:14–18), feitos povo, família e templo, morada de Deus no Espírito (Efésios 2:19–22). Se o Pai nos elegeu, o Filho nos redimiu e o Espírito nos selou (Efésios 1:3–14), a única resposta coerente é um andar que torne visível o que a graça já operou no invisível (Romanos 12:1–2; 1 João 3:1–3).

Esse “andar digno” nasce no lugar onde Deus olha primeiro: “toda humildade”. Humildade não é baixa autoestima; é realidade diante de Deus. Isaías, ao contemplar o Santo, não sai com medalhas; sai com lábios purificados e ombros prontos (Isaías 6:1–7). O publicano que bate no peito e pede misericórdia desce justificado, enquanto o fariseu sobe inflado e volta vazio (Lucas 18:9–14). Deus habita com o contrito e abatido para vivificar (Isaías 57:15) e nos mostra “o que é bom”: praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com o nosso Deus (Miqueias 6:8). Em Jesus vemos a humildade encarnada: o Senhor e Mestre se cinge com a toalha e lava pés (João 13:1–15); o Rei convida: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mateus 11:29). Onde a humildade entra, a contenda perde combustível, porque “da soberba só procede a contenda” (Provérbios 13:10); e onde a cruz ocupa o centro, a vanglória sai de cena (Gálatas 6:14).

Da raiz da humildade brota a mansidão. Mansidão não é fraqueza de coluna; é força sob domínio do amor. Moisés, chamado o homem mais manso da terra, confronta Faraó, corrige um povo difícil e intercede por quem o trai (Números 12:3; Êxodo 32:31–32). Jesus, manso, não é conivente: zela pela casa do Pai (Mateus 21:12–16), denuncia a hipocrisia com lágrimas (Lucas 19:41–44) e perdoa na cruz (Lucas 23:34). O Espírito produz mansidão (Gálatas 5:22–23), molda a forma de restaurar quem caiu (Gálatas 6:1) e tempera a maneira de ensinar quem discorda (2 Timóteo 2:24–25). A verdade precisa de amor para não ferir; o amor precisa de verdade para não mentir (Efésios 4:15). Aos mansos, o Senhor promete terra (Mateus 5:5) e confia a missão de vencer o mal com o bem (Romanos 12:21).

Paulo junta mansidão com longanimidade. Longanimidade é ânimo longo: demora em explodir, demora em desistir. É o compasso do coração de Deus: Ele é tardio em irar-se e grande em misericórdia (Neemias 9:17), não retarda a promessa, mas é paciente, não querendo que ninguém pereça (2 Pedro 3:9). Ele suportou Israel no deserto, deu tempo a Nínive, e tem suportado a nós. Em nós, longanimidade é conviver com limitações reais sem normalizar o pecado, corrigir com esperança, permanecer quando seria mais cômodo romper. Por isso Paulo diz: “suportando-vos uns aos outros em amor”. Não é acobertar injustiça; é aplicar o caminho de Mateus 18: ir, falar, ganhar o irmão, e quando necessário envolver a igreja, buscando restauração, não vingança (Mateus 18:15–17). É lembrar que a ira pertence a Deus (Romanos 12:19) e que nossa vocação é “levar as cargas uns dos outros” (Gálatas 6:2), “revestir-nos de entranhas de misericórdia” e “perdoar como fomos perdoados” (Colossenses 3:12–15; Efésios 4:32).

O amor que suporta aprende com Abraão a ceder pasto para preservar a paz com Ló (Gênesis 13), com José a enxergar desígnio onde só parecia haver maldade: “Vós intentastes o mal contra mim; Deus o tornou em bem” (Gênesis 50:20), com Davi a poupar Saul quando poderia feri-lo, preferindo integridade a atalhos (1 Samuel 24). Esse amor é o descrito em 1 Coríntios 13: paciente, benigno, sem inveja, sem jactância, sem arrogância, que não se porta inconvenientemente, não busca seus interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Ele brota porque “o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Romanos 5:5). Não é técnica de personalidade; é vida nascida do alto (João 3:3–8).

Tudo isso desemboca numa urgência: “esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz”. A unidade é dom antes de tarefa: Cristo derrubou o muro, fez dos dois um só povo, criou paz na sua carne (Efésios 2:14–16), e o Espírito nos batizou em um só corpo (1 Coríntios 12:12–13) e nos deu acesso ao Pai (Efésios 2:18). O que Deus deu, nós guardamos. E guardamos com zelo, porque a carne puxa para o conflito, o mundo recompensa a polarização, e o acusador se alimenta de brechas (Tiago 3:14–18; 1 Pedro 5:8–9). “Esforçando-vos diligentemente” implica escolher palavras que promovem paz (Provérbios 15:1), cortar a fofoca e a murmuração (Filipenses 2:14), procurar reconciliação antes do pôr do sol (Efésios 4:26–27), pedir perdão sem se justificar, perdoar como fomos perdoados (Efésios 4:32), discernir o corpo na Ceia (1 Coríntios 11:27–29), transformar irritações em intercessões (1 Timóteo 2:1–2), abençoar os que nos perseguem (Mateus 5:44). Pacificadores não escondem conflitos; entram neles com sabedoria “primeiramente pura, depois pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem fingimento”, semeando paz e colhendo justiça (Tiago 3:17–18). “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).

A razão é doxológica e missionária. Preservar a paz exibe a própria vida de Deus no corpo: um só corpo, um só Espírito, uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos (Efésios 4:4–6). E testemunha ao mundo: Jesus orou para que fôssemos um “a fim de que o mundo creia” (João 17:20–23). O Salmo canta: “Oh! como é bom e agradável viverem unidos os irmãos” e promete orvalho e vida onde há unidade (Salmos 133). A igreja que guarda a paz catequiza até principados e potestades, tornando conhecida a multiforme sabedoria de Deus (Efésios 3:10). A que cultiva orgulho, aspereza e pressa em romper entristece o Espírito (Efésios 4:30), escandaliza os de fora (Tiago 3:16) e entrega munição ao acusador (Apocalipse 12:10).

Na prática, esse texto derrama um estilo de vida em cada esfera. No secreto, pedimos que Deus sonde o coração, revele soberba e irritação, e nos conduza no caminho eterno (Salmos 139:23–24). Confessamos pecados e recebemos perdão (1 João 1:9). Buscamos plenitude de Espírito para responder como Cristo (Efésios 5:18). No lar, resolvemos desavenças antes de a noite cair (Efésios 4:26), criamos filhos sem provocá-los à ira (Efésios 6:4), tratamos cônjuge com honra sacrificial (Efésios 5:25–33; 1 Pedro 3:7). Na comunidade, praticamos hospitalidade sem murmuração (1 Pedro 4:9), honramos preferências alheias onde o evangelho não está em jogo (Romanos 14–15), acolhemos o fraco sem contendas (Romanos 14:1) e fazemos “de tudo para com todos” a fim de ganhar alguns (1 Coríntios 9:19–23). Nas redes, lembramos que “o servo do Senhor não deve ser contencioso” (2 Timóteo 2:24) e que “toda palavra ociosa” importa (Mateus 12:36). Na igreja, exercemos disciplina com lágrimas, não com dureza fria, visando restauração (1 Coríntios 5; 2 Coríntios 2:6–8), discernimos o corpo ao partir o pão (1 Coríntios 11:28–29) e perseveramos juntos na oração (Atos 2:42; Atos 4:24–31).

“Mas eu não consigo.” Nenhum de nós consegue sozinho. O chamado vem com a força: “é Deus quem efetua em vós tanto o querer quanto o realizar” (Filipenses 2:13). O mesmo Deus que manda andar dignamente nos fortalece com poder no homem interior, faz Cristo habitar pela fé em nossos corações, nos enraíza e fundamenta em amor e amplia nossa capacidade de conhecer o amor de Cristo (Efésios 3:16–19). A suficiência não está em nós, mas em Deus (2 Coríntios 3:5). Por isso a ordem “andai” caminha junto com o convite “acheguemo-nos confiadamente ao trono da graça” (Hebreus 4:16). A cada queda, temos Advogado junto ao Pai (1 João 2:1–2). A cada conflito, temos paz que excede todo entendimento para guardar coração e mente (Filipenses 4:6–7).

Há limites claros para a unidade: nunca custe o evangelho. Se alguém prega outro evangelho, resistimos (Gálatas 1:6–9; 2 João 9–11). Mas a maioria das rupturas nasce menos de heresia e mais de orgulho, pressa e linguagem venenosa. Efésios 4:1–3 não é slogan: é sangue diário. “Segui a paz com todos e a santificação” (Hebreus 12:14–15). Se depender de nós — e sempre depende algo —, que seja de nós a primeira palavra mansa, o primeiro pedido de perdão, o primeiro passo de reconciliação (Romanos 12:18; Mateus 5:23–24).

Ao fim, esse andar digno é ensaio do céu. Hoje guardamos a unidade com esforço; naquele dia viveremos a unidade em plenitude. Hoje vemos em espelho; então veremos face a face (1 Coríntios 13:12). Hoje seguramos firme a corda da paz; então Deus mesmo será o nosso laço eterno. Enquanto isso, que o “prisioneiro no Senhor” siga sendo nosso maestro: humildade, mansidão, longanimidade e amor como pauta; unidade do Espírito como melodia; paz como ritmo. E que a doxologia que fecha a oração precedente seja nosso fôlego: “Aquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos… a Ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém” (Efésios 3:20–21).

>B. Um só corpo, um só Espírito, uma só esperança: (Efésios 4:4–6)

Paulo não inventa uma unidade; ele aponta para uma obra que Deus já realizou. “Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por meio de todos e está em todos.” Essa não é uma ideia bonita para pôster; é a realidade espiritual que sustenta a igreja, mesmo quando nossa experiência parece contradizê-la. O chamado, portanto, não é fabricar a unidade, mas reconhecê-la, recebê-la e preservá-la “no vínculo da paz” (Efésios 4:3).

O ponto de partida é “um só corpo”. Não existem vários corpos de Cristo espalhados em feudos denominacionais; há um só. Em 1 Coríntios 12 Paulo insiste: muitos membros, um só corpo, e “se um membro sofre, todos sofrem com ele; se um membro é honrado, todos se alegram com ele” (1 Coríntios 12:12–27). Essa imagem desarma nosso orgulho e relativiza nossas preferências. O olho não despreza a mão; o cabeça não humilha os pés. Na prática, significa aprender a considerar indispensáveis aqueles irmãos que a cultura despreza, porque “Deus dispôs os membros no corpo” e “conferiu muito mais honra ao que tinha falta” (1 Coríntios 12:18–24).

Se há um só corpo, há “um só Espírito” que lhe dá vida. Não é nossa energia emocional que mantém a igreja pulsando; é o Espírito Santo que regenera, santifica e distribui dons “como quer” (1 Coríntios 12:11). Foi o Espírito quem nos convenceu do pecado (João 16:8), nos deu novo coração (Ezequiel 36:26–27), nos selou para o dia da redenção (Efésios 1:13–14) e nos une a Cristo e uns aos outros (Romanos 8:9–16). Quando esquecemos que a unidade é obra do Espírito, tentamos substituí-la por uniformidade forçada, carisma de líderes ou acordos políticos. Mas onde o Espírito governa, há verdade, santidade e amor que se traduzem em “paz” (Gálatas 5:22–23).

A terceira âncora é “uma só esperança” do nosso chamado. Não esperamos coisas diferentes em essência; todos aguardamos “a esperança da glória” (Colossenses 1:27), a ressurreição do corpo (Romanos 8:23), a herança incorruptível (1 Pedro 1:3–5). Essa esperança não é fuga da terra; é a certeza de “novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2 Pedro 3:13). Quando perdemos a esperança comum, nos tornamos presa de agendas rivais, transformamos a igreja em trincheira ideológica e negociamos convicções por resultados imediatos. A esperança reorienta nosso olhar e nos faz peregrinos (Hebreus 11:13–16).

O coração do credo de Paulo pulsa em “um só Senhor”. Jesus é Senhor, e isso abate toda altivez religiosa. Ele comprou a igreja com seu sangue (Atos 20:28), recebeu todo poder nos céus e na terra (Mateus 28:18) e, como Cordeiro, é adorado por anjos e santos (Apocalipse 5:9–13). Confessar “Jesus é Senhor” não é slogan; é render vontade, bolso, agenda e língua. É admitir que nenhum líder, tradição ou preferência pode tomar o lugar que pertence a Cristo (Colossenses 1:15–20).

Ligada ao Senhor, vem “uma só fé”. Fé aqui é tanto o ato de crer quanto o conteúdo crido. Todos somos salvos pela graça por meio da fé (Efésios 2:8–9), e “a fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” define as fronteiras do evangelho (Judas 3). Isso não exige unanimidade em cada detalhe secundário, mas impõe consenso robusto no essencial: a divindade e humanidade de Cristo, sua morte substitutiva e ressurreição, a justificação pela graça mediante a fé, a necessidade do novo nascimento, a autoridade das Escrituras (João 3:3; Romanos 3:21–26; 2 Timóteo 3:16–17). Fora disso, não há unidade cristã, há outra mensagem (Gálatas 1:6–9).

Paulo inclui “um só batismo”. Não é que não existam formas distintas de administrá-lo; é que o sinal é um só: fomos identificados com Cristo, mortos e ressuscitados com ele (Romanos 6:3–4), incorporados a um povo (1 Coríntios 12:13). O batismo é o juramento público de lealdade a Jesus; é vestir a camisa do time de Cristo (Gálatas 3:27–29). Em vez de transformar o batismo em motivo de guerra, deveríamos permitir que seu significado nos lembrasse que atravessamos o mesmo mar e comemos do mesmo pão (Êxodo 14; 1 Coríntios 10:1–4).

O ápice da confissão é “um só Deus e Pai de todos”. Ele é “sobre todos”, soberano que nenhum império derruba (Salmos 115:3). Ele é “por meio de todos”, sustentando tudo pela palavra do seu poder (Hebreus 1:3), dirigindo história e detalhes (Provérbios 16:9; Mateus 10:29–31). Ele é “em todos”, habitando pela sua presença, fazendo de nós sua morada (João 14:23; Efésios 2:22). Onde Deus é Pai, há irmãos; onde Deus é dono, ninguém é dono da igreja. Essa paternidade derruba muros de hostilidade e cria família de adotados (Efésios 1:5; Romanos 8:15–17).

Esse conjunto — corpo, Espírito, esperança, Senhor, fé, batismo, Pai — forma uma espinha dorsal que sustenta a vida da igreja e desautoriza divisões carnais. O Salmo celebra: “Oh! como é bom e agradável viverem unidos os irmãos!” (Salmos 133). Jesus pediu ao Pai que fôssemos um “para que o mundo creia” (João 17:20–23). A unidade, portanto, não é um enfeite; é parte do testemunho. Quando nos mordemos e devoramos, negamos na prática o que confessamos com os lábios (Gálatas 5:15).

A unidade que Deus dá não elimina a diversidade que Deus celebra. O mesmo capítulo dirá que Cristo concede dons distintos para edificação do corpo (Efésios 4:7–16). O corpo precisa de olhos e mãos; a vinha, de vide e estaca; a casa, de tijolos e argamassa. Uniformidade é atalho para controle; unidade na diversidade é milagre da graça. Em Atos 2 vemos judeus de muitas línguas proclamando a mesma grandeza de Deus; mais adiante, judeus e gentios partilhando mesa por causa da cruz (Atos 2:5–11; Atos 11:18; Efésios 2:14–18).

Se a unidade é um dom, por que tropeçamos tanto? Porque carregamos a carne, com sua inveja e ambição (Tiago 3:14–16). Porque trocamos o evangelho por bandeiras que pedem fidelidade maior do que a Jesus (Gálatas 3:1–3). Porque esquecemos que a nossa justiça vem de Cristo e não de estar “certo” no debate (Filipenses 3:9). Por isso a exortação de Efésios 4:1–3 antecede a confissão de 4:4–6: humildade, mansidão, longanimidade, suportando em amor. Não há unidade sem crucificação do ego (Gálatas 2:20).

O Antigo Testamento testemunha como Deus reúne e preserva um povo apesar de seus conflitos. José não devolve mal por mal e Deus preserva vida por meio da reconciliação (Gênesis 45:4–8; Gênesis 50:20). Davi poupa Saul e deixa o julgamento com o Senhor (1 Samuel 24). Neemias repara muros convocando o povo a trabalhar “cada um diante de sua casa”, lado a lado (Neemias 3). Esses retratos antigos apontam para o novo povo que Cristo cria, onde “não há judeu nem grego… porque todos sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).

No Novo Testamento, a unidade se traduz em práticas nitidamente contraculturais. Em Romanos 14–15, Paulo ensina a acolher “o fraco na fé, não para discutir opiniões”, a não desprezar nem julgar, a buscar “o que conduz à paz e à edificação mútua” (Romanos 14:1–19). Em Filipenses 2, o caminho é “nada façais por partidarismo ou vanglória; pelo contrário, cada um considere o outro superior a si mesmo”, porque temos a mente de Cristo que se esvaziou (Filipenses 2:3–11). Em Colossenses 3, vestimos “entranhas de misericórdia, bondade, humildade, mansidão, longanimidade” e “o vínculo da perfeição, que é o amor”, deixando a paz de Cristo arbitrar em nossos corações (Colossenses 3:12–15).

Preservar a unidade inclui lidar com o pecado com verdade e graça. Jesus ensina a buscar o irmão em particular, depois levar uma ou duas testemunhas, depois a igreja, sempre visando ganhar o irmão (Mateus 18:15–17). Paulo manda restaurar o caído com espírito de mansidão (Gálatas 6:1) e, quando a disciplina é necessária, aplicá-la com lágrimas e objetivo de cura (1 Coríntios 5; 2 Coríntios 2:6–8). A unidade não se mantém escondendo a verdade, mas falando a verdade em amor e andando na luz (Efésios 4:15; 1 João 1:7).

Unidade também exige vigilância com a língua. “A morte e a vida estão no poder da língua” (Provérbios 18:21). Tiago alerta sobre a sabedoria terrena, animal e diabólica que se revela em inveja amarga e sentimento faccioso (Tiago 3:14–18). O evangelho treina nossa boca para abençoar os que nos perseguem (Romanos 12:14), para responder com brandura (Provérbios 15:1) e para falar “apenas o que for bom para edificação” (Efésios 4:29).

A Ceia do Senhor é sacramento de unidade. Em Corinto, partir o pão sem discernir o corpo gerou juízo (1 Coríntios 11:17–34). Discernir o corpo é reconhecer a presença do Senhor e a realidade do corpo visível ao meu lado. É confrontar egoísmo e partilha desigual, para que a mesa proclame o evangelho que reconcilia. Quando comemos de um só pão, proclamamos que somos um só corpo (1 Coríntios 10:16–17).

Como viver isso na segunda-feira? Transforme irritações em intercessões (1 Timóteo 2:1–2). Procure reconciliação antes do pôr do sol (Efésios 4:26–27). Pratique hospitalidade sem murmuração (1 Pedro 4:9). Honre irmãos de convicções diferentes em questões disputáveis, sem relativizar o evangelho (Romanos 14:5–9). Lembre-se de que a bondade de Deus o conduziu ao arrependimento e trate o outro com a mesma paciência que o Pai tem com você (Romanos 2:4).

Alguém perguntará: e quando o evangelho está em jogo? A mesma Escritura que manda preservar a unidade ordena separar-se do falso evangelho (Gálatas 1:6–9), rejeitar quem nega Cristo (2 João 9–11) e marcar os que promovem divisões contrárias à doutrina (Romanos 16:17–18). A unidade bíblica nunca custa a verdade; ela a serve. Porém muitas vezes quebramos comunhão não por causa do evangelho, mas por causa de preferências, estilos e feridas. Precisamos de discernimento para distinguir heresia de diferença secundária, e precisamos de coragem para abraçar quem ama o mesmo Senhor e a mesma fé.

Nada disso é possível apenas com boa vontade. Precisamos do próprio Deus Triúno atuando em nós. O Pai nos adotou e nos chama à mesa; o Filho derrubou o muro e fez paz pelo sangue; o Espírito nos batizou em um corpo e derrama o amor de Deus em nossos corações (Efésios 1:5; Efésios 2:14–16; 1 Coríntios 12:13; Romanos 5:5). É por isso que a doxologia antecede e sustenta a ética: “Aquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos… a ele seja glória” (Efésios 3:20–21). O Deus que ordena é o Deus que capacita (Filipenses 2:12–13).

Deixar essa confissão descer do credo para a carne exige práticas simples e persistentes. Ore diariamente pela sua igreja local, por outros pastores na cidade e por igrejas de outras tradições que confessam o mesmo evangelho (João 17:20–23). Participe com fidelidade, sirva com humildade, contribua com generosidade (Hebreus 10:24–25; 1 Pedro 4:10; 2 Coríntios 9:6–8). Promova encontros e mesas onde gente diferente partilha o mesmo pão. E quando falhar, busque perdão rapidamente, lembrando que “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar” (1 João 1:9).

No fim, a unidade que hoje preservamos pela fé é um ensaio do futuro que aguardamos pela esperança. João viu uma multidão de todas as nações, tribos, povos e línguas, de pé diante do Cordeiro, com vestes brancas e palmas nas mãos (Apocalipse 7:9–10). Não havia partidarismo ali; havia um só cântico. Até lá, vivamos como quem já pertence a esse coro. Há um só corpo, um só Espírito, uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos. Recebamos esse dom com temor e alegria, e caminhemos na paz que o próprio Deus plantou entre nós.

C. Subiu às alturas para encher a terra: (Efésios 4:7–8)

“Mas a graça foi concedida a cada um de nós, segundo a medida do dom de Cristo. Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens.” A frase é curta, mas abre um horizonte imenso: ela começa no coração de Cristo, atravessa a história da redenção, sobe com Ele ao céu, desce com o Espírito sobre a Igreja, e volta para o nosso cotidiano com uma certeza simples e poderosa — ninguém em Cristo ficou de fora. Não é à toa que Paulo ancora sua afirmação numa antiga canção: o Salmo 68, onde Deus triunfa sobre inimigos, habita entre o seu povo e, como um rei vitorioso, reparte despojos (Salmos 68:18). O que Davi celebrou de modo simbólico quando a arca subiu a Sião, Paulo contempla cumprido quando Jesus, depois de descer à nossa miséria, sobe acima de todos os céus “para encher todas as coisas” (Efésios 4:10). O Êxodo todo ressoa aqui: Aquele que “quebrou as portas de bronze” e arrancou Israel do jugo do Egito (Salmos 107:14; Êxodo 15), agora quebra a prisão mais profunda — o pecado, a morte e o diabo — e leva consigo os cativos que libertou (Hebreus 2:14–15; Colossenses 2:14–15; 1 Coríntios 15:54–57).

A beleza do texto é pastoral e prática: “a cada um de nós foi concedida graça”. Não é um privilégio para poucos, não é um loteamento de elite espiritual. O Cristo exaltado não criou uma aristocracia de dons; Ele multiplicou graça para todo o corpo. Como no deserto, quando o maná caía para todos, cada um recolhia sua porção; ninguém passava fome e ninguém acumulava para se gloriar (Êxodo 16). Do mesmo modo, na Nova Aliança, “cada um recebeu um dom” para “servir uns aos outros, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1 Pedro 4:10–11). Isso nos livra da inveja e da soberba: quem recebeu mais, recebeu para servir mais; quem recebeu menos, não recebeu menos amor. “Quem te distingue? E que tens que não tenhas recebido?” (1 Coríntios 4:7). Em Cristo, medida nunca é sinônimo de valor, mas de missão.

Paulo diz que essa graça vem “segundo a medida do dom de Cristo”, lembrando que a distribuição pertence ao Senhor. Ele é o doador soberano que conhece o corpo e reparte conforme a necessidade do corpo (1 Coríntios 12:11, 18). O Espírito, prometido pelo Pai e derramado pelo Filho exaltado (Lucas 24:49; João 7:37–39; Atos 2:32–33), tece essa diversidade: palavra de sabedoria, palavra de conhecimento, fé, serviço, socorros, governo, ensino, misericórdia (Romanos 12:4–8; 1 Coríntios 12:4–10). A multiplicidade não ameaça a unidade; antes, a unidade a explica: “muitos membros, mas um só corpo” (1 Coríntios 12:12–27). O Cristo que subiu não padroniza pessoas; Ele harmoniza diferenças para uma sinfonia de edificação.

“Levou cativo o cativeiro.” A frase soa como poesia antiga, mas fala da coisa mais concreta do mundo. Quem já se viu refém de vícios, medos, culpas, tristezas sem nome, entende. Jesus não apenas nos tirou da prisão; Ele prendeu o carcereiro. O pecado perdeu o domínio legal; a morte, o aguilhão; o acusador, a arma (Romanos 6:14; 1 Coríntios 15:55–57; Apocalipse 12:10–11). É por isso que dons vêm após libertação: dom não é compensação por mérito, mas herança de quem foi solto. E é por isso que dons servem à santidade: não são troféus de vitrine, mas ferramentas de uma obra de restauração, “para o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo” (Efésios 4:11–16).

O Antigo Testamento inteiro nos treinou para esperar esse Rei que sobe com despojos. Quando Davi sobe a arca para Jerusalém, não sobe sozinho; sobe dançando, distribuindo pão, carne e bolo de passas para todo o povo (2 Samuel 6:12–19). Quando Neemias e o povo reerguem os muros, cada família recebe um trecho específico e ferramentas condizentes com sua parte (Neemias 3). Quando o Senhor “sobe sobre os querubins e voa” para salvar o aflito, é para pôr “num lugar espaçoso” quem estava encurralado (Salmos 18:10, 19). Tudo isso culmina em Jesus atravessando nosso mar, levando-nos consigo, e, já do outro lado, repartindo os bens do seu triunfo.

O Novo Testamento mostra o momento em que os presentes caem sobre a Igreja: no Pentecostes, “línguas, como de fogo, pousaram sobre cada um deles”, e todos proclamam “as grandezas de Deus” em muitas línguas (Atos 2:1–11). A cena ecoa a promessa — “derramarei do meu Espírito sobre toda a carne” (Joel 2:28–29) — e estabelece a norma: cada um participa, cada um fala, cada um serve, cada um é necessário (1 Coríntios 14:26; 1 Pedro 4:10). A ascensão não afastou Cristo; ela o universalizou. Ele “subiu acima de todos os céus para encher todas as coisas” (Efésios 4:10). A mão que reparte dons é a mesma que carrega as estrelas (Isaías 40:26) e que toca nossas feridas (João 20:27).

Há consolo aqui para quem se sente pequeno: “a cada um”. Talvez você não pregue, não cante, não apareça. Talvez seus dons sejam silenciosos: visitar, ouvir, organizar, sustentar, interceder. Para o corpo, são vitais. “Os membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários; e os que nos parecem menos honrosos, a estes damos muito maior honra” (1 Coríntios 12:22–23). Quem doa pão no anonimato, quem abre a casa, quem sussurra orações na madrugada, quem segura o choro de alguém — todos participam da corrente do Cristo exaltado, que segue enchendo a terra com sua graça.

Há também advertência para quem se acha grande: o dom não prova maturidade; o amor, sim (1 Coríntios 13:1–3). Dons sem caráter ferem; graça sem verdade engana; verdade sem graça oprime (João 1:14). Por isso, a mesma carta que celebra a distribuição de dons exige “humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor” (Efésios 4:2). O Cristo que deu dons é o Cristo que lavou pés (João 13:1–15). Quem sobe com Ele aprende a descer para servir.

“Segundo a medida do dom de Cristo” também corrige nossa ansiedade. Não precisamos imitar o chamado alheio; precisamos ser fiéis ao que recebemos. Paulo diz a Timóteo: “reaviva o dom de Deus que há em ti” (2 Timóteo 1:6). Pedro aconselha: “se alguém fala, fale como oráculos de Deus; se alguém serve, sirva segundo a força que Deus supre, para que em tudo Deus seja glorificado” (1 Pedro 4:11). Medida não é limite mesquinho; é ajuste perfeito. O Senhor da colheita sabe quantos talentos colocar em nossas mãos; nosso papel é negociá-los para o bem dos outros e a glória do Senhor (Mateus 25:14–23).

A ascensão também nos coloca em oração confiante. Se os dons vêm do Cristo exaltado, a maneira de recebê-los e frutificá-los é pedir e andar no Espírito. “Se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai dará o Espírito Santo aos que lho pedirem?” (Lucas 11:13). “Enchei-vos do Espírito” não é slogan; é mandato diário (Efésios 5:18). Peça sabedoria para usar o que tem (Tiago 1:5), peça amor para motivar o que faz (Romanos 5:5), peça intrepidez para testemunhar (Atos 4:29–31), peça discernimento para edificar (Filipenses 1:9–11). E peça mais de Cristo, porque “de sua plenitude todos nós recebemos, e graça sobre graça” (João 1:16).

“Levou cativo o cativeiro” é também remédio para culpas antigas e rótulos persistentes. O texto do Salmo diz que Ele recebeu dádivas “até para os rebeldes” (Salmos 68:18). Paulo, o ex-perseguidor, pode confirmar: “fui alcançado pela misericórdia” e “me foi concedida a graça de pregar as riquezas insondáveis de Cristo” (1 Timóteo 1:12–16; Efésios 3:8). Rebeldes podem se tornar mordomos; feridos, curadores; vencidos, instrumentos de vitória. Não negocie com o passado o direito que Cristo comprou para o seu presente.

O objetivo final da distribuição é “edificação” e “maturidade” até “a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus” (Efésios 4:13–16). Dons não existem para criar plateias; existem para formar corpo que pensa, ama e age como Cristo. Quando cada parte opera “segundo a justa cooperação de cada parte”, o corpo cresce “para edificação de si mesmo em amor” (Efésios 4:16). É uma frase longa para dizer algo simples: ninguém cresce sozinho e ninguém cresce o corpo sozinho. O Cristo que sobe nos vincula uns aos outros em responsabilidade mútua.

Tudo isso nos prepara para viver em chave pascal: entre a cruz e a coroa, entre a descida e a subida. Como Ele desceu, também nós descemos: ao arrependimento, ao serviço, ao lugar do outro (Filipenses 2:5–11). Como Ele subiu, também nós subimos: na esperança, na ousadia, na intercessão (Hebreus 4:14–16). E enquanto caminhamos, celebramos. “Levantai, ó portas, as vossas cabeças… para que entre o Rei da glória” (Salmos 24:7–10). Ele já entrou; e, porque entrou, os portais da graça se abriram sobre nós.

Então, receba hoje esta palavra como convite e envio. Creia que há uma medida de Cristo para você. Descubra-a na oração, confirme-a na comunhão, exercite-a no serviço, purifique-a no amor. Não despreze o que é pequeno; não idolatre o que é grande. Lembre-se de que os dons são despojos da vitória de Alguém que desceu até o pó e subiu acima dos céus — e agora enche sua vida com o próprio Espírito de Deus. E, quando a comparação tentar roubar sua alegria, olhe de novo: “a graça foi concedida a cada um de nós”. O Rei voltou do campo de batalha, a procissão não acabou, e os presentes ainda estão sendo derramados. Abra as mãos. Abra o coração. O Cristo que subiu reparte. E tudo nele é graça.

D. O uso do ministério

O Cristo que subiu para encher todas as coisas é o mesmo que, em amor, estruturou a sua Igreja para que ninguém caminhe sozinho. Em Efésios 4:11–16, Paulo contempla o Cristo exaltado distribuindo pessoas-dom à comunidade: apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Alguns desses ofícios foram fundacionais e extraordinários no início, para lançar o alicerce doutrinário e missionário (como se vê no livro de Atos e na edificação sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”, Efésios 2:20); outros permanecem como provisão ordinária para cada geração, a fim de nutrir, corrigir, consolar e guiar o povo de Deus com a Palavra e o Espírito. Não é um sistema inventado por pragmatismo religioso; é fruto da vitória pascal: depois de vencer, Cristo “deu dons aos homens” (Efésios 4:8), e entre esses dons estão os ministros que servem ao corpo, não como aristocratas espirituais, mas como mordomos e lavadores de pés (João 13:1–15).

A intenção de Cristo ao dar um ministério estável não é a manutenção de uma classe, mas o aperfeiçoamento de um povo. Paulo descreve três linhas entrelaçadas: equipar os santos, realizar a obra do serviço e edificar o corpo de Cristo. Primeiro, equipar. A ideia é “aparelhar”, “ajustar”, como o pescador que conserta a rede para que ela volte a ser útil (Mateus 4:21). O ministério não substitui o sacerdócio de todos os crentes; ele o desperta e o capacita (1 Pedro 2:9). A pregação, a doutrina, a exortação, a disciplina amorosa e o cuidado pastoral existem para que cada santo se torne participante ativo na missão, com consciência, coragem e compaixão (2 Timóteo 3:16–17). Por isso, onde o púlpito fortalece a fé, a mesa se enche de serviço; onde a Palavra arde no coração, as mãos se movem para o próximo (Lucas 24:32; Hebreus 10:24–25).

Segundo, “a obra do ministério” não é monopólio dos ordenados; é a diaconia de toda a Igreja. Os pastores e mestres treinam; o corpo serve. É assim desde o início: os apóstolos perseveravam na oração e no ministério da Palavra, e toda a comunidade se via como convocada a “servir às mesas”, a repartir, visitar, consolar, hospedar, testemunhar (Atos 6:1–7; Romanos 12:4–13). Quando cada crente entende que recebeu do Cristo exaltado uma porção de graça para colocar em circulação (Efésios 4:7; 1 Pedro 4:10–11), a Igreja deixa de ser plateia e vira povo sacerdotal que brilha e dá sabor (Mateus 5:13–16). A soma desse equipar e servir é o terceiro fio: edificação. A imagem é arquitetônica e orgânica ao mesmo tempo: um edifício que cresce ajustado, um corpo que cresce coeso. Não se trata de crescimento numérico apenas, mas de maturidade na verdade e no amor.

Essa maturidade tem um alvo claro: “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à condição de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo”. O padrão não é o vizinho, nem a média denominacional; é o próprio Cristo. O Antigo Testamento antecipava essa meta quando prometia um Pastor segundo o coração de Deus que apascentaria com ciência e inteligência (Jeremias 3:15), e quando ansiava por um povo com a lei escrita no coração (Jeremias 31:33–34). O Novo Testamento revela o caminho: contemplando o Senhor com o rosto desvendado, somos transformados “de glória em glória” (2 Coríntios 3:18). O ministério que Cristo dá é meio para essa contemplação ativa: anunciar Cristo, advertir e ensinar “com toda sabedoria”, para “apresentar todo homem perfeito em Cristo” (Colossenses 1:28–29). Perfeição aqui é integridade, coerência, uma vida cada vez mais integrada no Cabeça.

Paulo, realista e terno, nomeia o perigo da imaturidade: “não mais crianças”. Crianças são amadas, mas são vulneráveis. Sem raízes e sem colunas, elas são “arremessadas de um lado para outro e levadas ao redor por todo vento de doutrina”, vítimas de dados viciados (a “esperteza” de homens) e de sistemas de erro engenhosamente montados (Efésios 4:14). O Antigo Testamento já alertava: “O meu povo é destruído por falta de conhecimento” (Oséias 4:6). Jesus, por sua vez, advertiu sobre falsos profetas vestidos de ovelhas, e sobre doutrinas construídas na areia (Mateus 7:15–27). A internet amplificou os ventos, mas a antiga bússola segue a mesma: a Palavra habitando ricamente, o evangelho central, a cruz como crivo, a comunidade discernindo junta, os pastores guardando o rebanho do lobo (Colossenses 3:16; Gálatas 1:6–9; Atos 20:28–31). Uma igreja pastoreada e ensinada com fidelidade deixa de ser presa fácil do modismo teológico, do moralismo sem evangelho, da espiritualidade sem Cristo.

Contra essa instabilidade, Paulo apresenta um caminho que é ao mesmo tempo método e marca: “vivendo a verdade em amor” (literalmente, “verbalizando/encarnando a verdade em amor”). A ortodoxia sem amor vira martelo; o amor sem verdade vira gelatina. O Cristo que é “cheio de graça e de verdade” faz do ministério uma escola de ambas as coisas (João 1:14). Isso muda o tom do ensino (manso, paciente, persuasivo — 2 Timóteo 2:24–25), muda o jeito de corrigir (visando ganhar o irmão, não vencer discussão — Mateus 18:15–17; Gálatas 6:1), muda a expectativa do ouvinte (não coçar o ouvido, mas receber o implante da Palavra que salva — Tiago 1:21; 2 Timóteo 4:3–4). E muda a forma como o corpo cresce: “cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”. Crescer “em tudo” significa permitir que o evangelho invada todos os cômodos: afetos, hábitos, finanças, sexualidade, trabalho, imaginação, palavras. Pastores e mestres não apontam para si, apontam para o Cabeça; não criam dependentes, criam discípulos; não centralizam, catalisam.

A visão de Paulo para o corpo é impressionante: Cristo, Cabeça viva, suprindo vida; o corpo “bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta”, “segundo a justa operação de cada parte”, efetuando “o crescimento do corpo para a edificação de si mesmo em amor”. É o oposto de celebridades e consumidores. Cada junta (as conexões, os relacionamentos, as estruturas que ligam) tem papel; cada parte opera “segundo a medida” que recebeu (eco de Efésios 4:7), nem ociosidade nem burnout, mas fidelidade. Isso honra a sabedoria do Criador, que organizou o nosso corpo físico com dependências mútuas (1 Coríntios 12:12–27), e honra a economia da graça, onde ninguém tem tudo e ninguém fica sem nada (Romanos 12:3–8). Na prática, isso significa que o ensino bíblico saudável cria gente que ora, gente que serve, gente que dá, gente que acolhe, gente que discipula — e que se submete mutuamente “no temor de Cristo” (Efésios 5:21).

Nada disso acontece sem o Espírito. Pastores e mestres são dons, mas o Doador é quem dá fruto. O Antigo Testamento prometeu: “vos darei pastores segundo o meu coração” (Jeremias 3:15), “derramarei o meu Espírito sobre toda carne” (Joel 2:28–29). O Novo Testamento mostra o cumprimento: o Cristo ascendido recebe do Pai o Espírito e o derrama (Atos 2:33). É por isso que a pregação apostólica “não consiste em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração do Espírito e de poder” (1 Coríntios 2:4–5). O ministério fiel se ajoelha antes de subir ao púlpito; confia que o mesmo Espírito que inspirou a Escritura a aplicará aos corações (2 Pedro 1:19–21; Isaías 55:10–11). E a igreja, em resposta, ouve com fé, examina as Escrituras, retém o que é bom, rejeita o mal (Atos 17:11; 1 Tessalonicenses 5:19–22).

Essa passagem, portanto, chama pastores e igreja a um pacto santo. Pastores e mestres devem se lembrar de que foram dados por Cristo à Igreja, não a si mesmos: para alimentar, proteger, guiar, com a vara e o cajado da Palavra e do amor (Ezequiel 34:1–16; 1 Pedro 5:1–4). Eles prestarão contas ao Supremo Pastor; por isso, devem “pregar a Palavra, a tempo e fora de tempo; corrigir, repreender, exortar, com toda longanimidade e doutrina” (2 Timóteo 4:1–5). E a Igreja deve lembrar que o ministério é para seu bem: receber a Palavra com mansidão, orar por seus líderes, obedecer quando eles ensinam o que Cristo ordenou, e exigir deles fidelidade às Escrituras (Hebreus 13:7, 17–18; Gálatas 1:8–10). Onde esse pacto se vive, a beleza do corpo aparece: viúvas amparadas, órfãos visitados, pobres assistidos, doentes consolados, pecadores restaurados, cativos libertos, crianças instruídas, jovens firmados, idosos honrados, famílias fortalecidas, missionários enviados (Tiago 1:27; Atos 13:1–3).

Tudo converge para Cristo. Ele é o doador dos ministros, o conteúdo da mensagem, o padrão da maturidade, a Cabeça que vivifica, o objetivo do crescimento. Ele é a verdade que dizemos e o amor com que a dizemos. O ministério que vale a pena ter é aquele que, domingo após domingo, semana após semana, conduz o povo de Deus a Ele — para crer, arrepender-se, obedecer, esperar e amar. Onde isso acontece, o tempo cumpre seu propósito: “até que todos cheguemos”. Um dia, a obra de equipar cessará porque a Igreja estará completa; cessarão os ventos de doutrina porque veremos face a face; cessará o falar em frações porque conheceremos plenamente como somos plenamente conhecidos (1 Coríntios 13:8–12). Até lá, a palavra de ordem é perseverar: pastores, perseverem na doutrina e na vida, porque assim salvarão a si mesmos e aos que os ouvem (1 Timóteo 4:16); igreja, persevera no ensino, na comunhão, no partir do pão e nas orações (Atos 2:42). O Cristo que deu um ministério estável segue sustentando a sua obra. Cresçamos, portanto, “em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”, e façamos isso “em amor”, porque no fim o que permanecerá para sempre é o amor (Efésios 4:15; 1 Coríntios 13:13).

E. Educação e Caminho Cristão

“Mas vós não aprendestes assim a Cristo; se é que O ouvistes e nEle fostes instruídos, conforme é a verdade em Jesus” (Efésios 4:20–21). Com essas palavras, Paulo corta o evangelho até o miolo: cristianismo não é só aceitar um conjunto de ideias; é “aprender Cristo”. Não é apenas saber sobre Ele, mas ser matriculado na Sua escola, ouvir Sua voz e ser formado por Ele de dentro para fora. Por isso o apóstolo, mesmo preso, não pede alívio para si; pede que a igreja viva de modo diferente dos gentios, porque quem foi admitido na aula de Cristo não pode continuar no mesmo currículo do mundo (Efésios 4:17–19). A fé bíblica é uma educação que mira transformação: Deus escreve Sua lei no coração (Jeremias 31:33–34), tira o coração de pedra e dá um coração de carne, pondo Seu Espírito para nos fazer andar nos Seus estatutos (Ezequiel 36:26–27). Essa é “a verdade como está em Jesus”: verdade que santifica (João 17:17), que liberta (João 8:31–36) e que se verifica no andar.

Aprender Cristo começa com ouvir o próprio Cristo. Sim, Ele nos ensina por meio da Palavra pregada e lida; quando ouvimos mensageiros fiéis, ouvimos o próprio Senhor (Lucas 10:16). Mas Paulo fala de algo mais profundo: uma instrução direta do Mestre ao coração. O mesmo Jesus ressuscitado que “abriu o entendimento” dos discípulos para compreenderem as Escrituras (Lucas 24:45) ainda hoje, pelo Espírito, abre o coração de Lídia para “atender às coisas” do evangelho (Atos 16:14) e faz com que “flesh and blood” não seja a fonte última do nosso conhecimento, mas o Pai que revela o Filho (Mateus 16:16–17). É o Espírito quem nos ensina todas as coisas e nos lembra o que Cristo disse (João 14:26); é Ele quem nos guia em toda a verdade e toma do que é de Cristo para nos anunciar (João 16:13–15). Não sabemos explicar o “como” desse ensino secreto, assim como não sabemos mapear exatamente como o espírito humano move o corpo, mas reconhecemos os efeitos: coisas que eram loucura tornam-se sabedoria, e o evangelho deixa de ser rumor distante para tornar-se voz viva (1 Coríntios 2:9–14). Daí a oração do salmista—“Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei” (Salmos 119:18)—e o apelo de Provérbios para buscarmos a sabedoria como quem busca tesouros (Provérbios 2:1–6). Em última análise, aprender Cristo é fruto de graça, mas é também um chamado: “Vinde a mim… tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim” (Mateus 11:28–30).

Se essa é a nossa educação, o resultado é um caminhar outro. Paulo não compara cristãos e gentios para inflar vaidade, e sim para lembrar que novos alunos têm nova vida. Quem “aprendeu Cristo” desaprende a antiga didática do coração obscurecido, desapega-se da ignorância que gera dureza e das paixões que conduzem a impureza (Efésios 4:17–19). Aprende a discernir, como Daniel na Babilônia, o que pode adotar sem contaminação e o que precisa recusar por fidelidade (Daniel 1:8–17). Aprende a não se conformar a este século, mas a ser transformado pela renovação da mente, para experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Romanos 12:2). Aprende que “andar como Ele andou” não é slogan, é trilha (1 João 2:6): humildade que serve, mansidão que não revida, pureza que não barganha, obediência que custa (Filipenses 2:5–11; Mateus 5:27–30). A verdade em Jesus não é só conteúdo; é caminho (João 14:6). Por isso Tiago insiste: “Sede praticantes da Palavra, e não somente ouvintes” (Tiago 1:22). Em Cristo, doutrina e vida se beijam.

Essa educação tem currículo e método. O currículo é o próprio Cristo—quem Ele é, o que fez, faz e fará; Seus ofícios de Profeta, Sacerdote e Rei; Seu evangelho que nos chama ao arrependimento e à fé; Sua cruz que nos reconcilia; Sua ressurreição que nos vivifica; Seu Espírito que nos habita; Sua Palavra que nos modela. O método é relacional: ouvir e obedecer; contemplar e imitar; receber e repartir. O aluno lê a Escritura, mas, sobretudo, a Escritura o lê; ele memoriza promessas, mas, sobretudo, as promessas o sustentam; ele aprende a doutrina, mas, sobretudo, a doutrina o dobra. O Antigo Testamento já sonhava com essa pedagogia do coração: “Todos me conhecerão, do menor ao maior” (Hebreus 8:10–11; Jeremias 31:34). O Novo Testamento mostra como ela se concretiza: contemplando o Senhor, somos transformados “de glória em glória” (2 Coríntios 3:18), e “já não vivo eu, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Por isso, aprender Cristo é mais que acumular informação; é ser conformado à Sua imagem, “até que Cristo seja formado” em nós (Gálatas 4:19).

Aprender Cristo também reorganiza a sala de aula do coração. Velhos professores—o ego, o apetite, o aplauso—são demitidos; o novo Professor assume a cadeira. Paulo fala disso adiante como “despir o velho homem… e revestir o novo” (Efésios 4:22–24). O “velho homem” ministra aulas de mentira, de ira, de roubo, de podridão na fala; o “novo” ensina a verdade, o domínio próprio, o trabalho honesto, a palavra que edifica (Efésios 4:25–32). O Espírito sela a matrícula e proíbe que entristeçamos o Diretor (Efésios 4:30). E tudo isso acontece “conforme é a verdade em Jesus”: Ele não apenas prescreve o conteúdo, Ele é o conteúdo; não apenas avalia o aluno, Ele mesmo passou por cada lição, obedecendo perfeitamente onde nós falhamos (Hebreus 5:7–9). Por isso, quando tropeçamos, voltamos à cruz, onde aprendemos arrependimento real e recebemos perdão real (1 João 1:9). E voltamos à sala, porque a aula continua.

Essa educação exige prática diária. Ouvimos Cristo quando a Palavra habita ricamente em nós (Colossenses 3:16), quando a comunidade ensina e admoesta em sabedoria, quando o culto nos treina a dizer “Amém” às promessas de Deus (2 Coríntios 1:20), quando a mesa do Senhor reafirma que só vivemos porque Ele se deu por nós (1 Coríntios 11:23–26), quando a disciplina amorosa nos corrige (Hebreus 12:5–11). Ouvimos Cristo quando o Espírito aplica a Palavra à nossa situação concreta: uma tentação chega, e lembramos que “bem-aventurados os limpos de coração” (Mateus 5:8); uma ofensa nos fere, e o Mestre nos chama a perdoar “setenta vezes sete” (Mateus 18:21–35); a ansiedade aperta, e ouvimos “lança sobre mim o teu cuidado” (1 Pedro 5:7; Mateus 6:25–34). Ouvimos Cristo quando o próximo se torna lição viva—o pobre, o estrangeiro, o órfão, a viúva—e obedecemos à religião pura que os visita (Tiago 1:27). Ouvimos Cristo quando, como Maria, escolhemos a melhor parte de assentar-nos aos Seus pés (Lucas 10:38–42), e, como Marta renovada, servimos sem perder de vista o Senhor do serviço.

Aprender Cristo também redefine o sucesso escolar. O diploma não é aplauso humano nem acumular títulos espirituais; é crescer “até a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Efésios 4:13). Isso nos guarda de dois erros. O primeiro é confundir informação com transformação: podemos conhecer os termos e continuar duros; os fariseus sabiam a letra, mas perderam o Senhor da letra (João 5:39–40). O segundo é confundir sinceridade com santidade: boas intenções sem obediência não bastam (Mateus 7:21–27). A régua é Cristo. Por isso, Paulo confessa não ter já alcançado, mas prossegue “para o alvo” (Filipenses 3:12–14). Onde quer que estejamos na jornada, há lições novas: maior humildade, amor mais amplo, pureza mais profunda, esperança mais firme. O Espírito não cessa de trabalhar até que sejamos “confirmados até o fim” (1 Coríntios 1:8), e o Pai, o grande Pedagogo, não interrompe Sua obra até completar o que começou (Filipenses 1:6).

Se você anseia entender o evangelho, saiba que o assunto é uma Pessoa. O convite não é “aprenda um sistema”, mas “aprenda Cristo”. Venha a Ele com a docilidade de criança: peça olhos desvendados (Salmos 119:18), coração inclinado (Salmos 119:36), mente renovada (Romanos 12:2). Não confie em competência intelectual; o Pai se deleita em revelar aos pequeninos (Mateus 11:25–27). Abra a Escritura como quem abre uma janela: por ela, a luz entra; mas é o Sol da Justiça quem brilha (Malaquias 4:2). E persevere: a verdade em Jesus não é lida de uma vez, é ruminada, orada, cantada, obedecida. Se você deseja adornar o evangelho, não mire o padrão da cultura religiosa ao redor; mire o próprio Cristo. Não aceite um “basta” que Ele não assinou. O tempo todo haverá algo do velho a despir e algo do novo a vestir (Efésios 4:22–24). Não se contente com reformas cosméticas; peça mudança no “espírito da mente”, onde nascem desejos, critérios, amores (Salmos 51:10). E, quando cair, levante-se pela graça, porque a escola de Cristo é exigente, mas é cheia de misericórdia: o Mestre que instrui é o mesmo que intercede por você (Hebreus 7:25).

Por fim, lembre-se: o objetivo da aula é comunhão. Cristo ensina para habitar; fala para fazer morada. Ele não quer apenas alunos informados, quer discípulos que permanecem nEle (João 15:1–11). Aprender Cristo, então, é viver de Cristo: mente capturada pela Sua verdade, coração derretido pelo Seu amor, vontade alinhada à Sua vontade, mãos e pés disponíveis ao Seu serviço. Isso é educação cristã; isso é o caminhar de quem foi de fato “ensinado por Ele, segundo é a verdade em Jesus”. Que o Pai, que prometeu escrever a lei no coração, cumpra Sua promessa em nós; que o Filho, nosso Professor e Conteúdo, seja formado em nós; que o Espírito, nosso Tutor interior, continue nos guiando até que a aula termine e vejamos o Mestre face a face (1 João 3:2). Até lá, sigamos ouvindo e obedecendo—não como os gentios andam, mas como quem, pela graça, já “aprendeu Cristo”.

F. O velho e o novo homem

“Despojar o velho homem” e “revestir o novo” não é uma metáfora simpática para um retoque moral; é a descrição bíblica do milagre diário da santificação. Paulo escreve que o velho homem “se corrompe segundo as concupiscências do engano”, e que o novo homem é “criado segundo Deus, em justiça e santidade da verdade” (Efésios 4:22–24). Aqui há um contraste radical de origem, direção e destino. O velho nasce conosco, vem da queda, infiltra-se em todos os desejos e raciocínios, promete liberdade e paga com escravidão (Gênesis 6:5; Jeremias 17:9; Tiago 1:14–15). O novo não emerge de esforço humano; é criação—obra do mesmo Deus que disse “haja luz” e resplandeceu em nossos corações, dando-nos vida em Cristo (2 Coríntios 4:6; 2 Coríntios 5:17). O velho homem é “antigo” não apenas por ser anterior à conversão, mas porque carrega a idade do Éden: herdamos de Adão essa natureza inclinada à autonomia e à autoadoração (Romanos 5:12–19). O novo é “novo” não por estar na moda, mas por pertencer ao século vindouro: é a própria vida do Ressuscitado implantada em nós pelo Espírito (Romanos 6:4–5; Colossenses 3:1–4).

Quando Paulo manda “despojar”, está evocando a cena de tirar uma roupa suja, impregnada, imprópria para a presença do Rei. Não se trata de cosmética, mas de renúncia decisiva: o velho homem não pode ser reformado; deve ser crucificado (Gálatas 5:24). O apóstolo chama de “concupiscências do engano” os impulsos que seduzem a imaginação, dourão o pecado, escondem o gancho sob a isca. O engano promete alívio rápido e prazer duradouro; entrega culpas, cansaço e mais fome. Por isso a primeira batalha é sempre a da lucidez: chamar as coisas pelo nome, desfazer as narrativas que justificam ressentimento, impureza, avareza, orgulho. “Examinai-me, ó Deus, e conhecei o meu coração… vede se há em mim algum caminho mau” (Salmos 139:23–24). A luz do evangelho expõe as fantasias do coração e nos ajuda a discernir, no nascedouro, os movimentos do velho homem, antes que eles desçam da mente ao corpo como ações (Tiago 1:14–15).

Paulo também ordena “serdes renovados no espírito do vosso entendimento”. A santificação começa na sala de comando: mentalidades são trocadas, critérios reeducados, amores recalibrados. A mente renovada não é uma biblioteca nova; é uma bússola nova. Em vez de conformar-se aos moldes do presente século, ela passa por metamorfose pela renovação da inteligência, para experimentar, na prática, a vontade boa, agradável e perfeita de Deus (Romanos 12:1–2). Essa renovação é obra do Espírito prometido: Deus tira o coração de pedra, dá um coração de carne e põe dentro de nós o Seu Espírito para que andemos nos Seus estatutos (Ezequiel 36:26–27). Mas, sendo obra de Deus, não é passiva em nós: “operai a vossa salvação com temor e tremor, porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar” (Filipenses 2:12–13). Cooperamos com a graça, resistindo ao diabo, humilhando-nos diante do Senhor, purificando mãos e corações (Tiago 4:7–10). Alimentamos a nova mente com a Palavra que habita ricamente, com oração perseverante, com o culto da igreja, com a mesa do Senhor, com a comunhão que admoesta em amor (Colossenses 3:16; Atos 2:42). A fé vem pelo ouvir; a nova mente respira por essas narinas (Romanos 10:17).

“Revestir o novo homem” é mais do que dizer “não” ao pecado; é vestir-se ativamente de Cristo. O novo homem tem um guarda-roupa claro: compaixão, bondade, humildade, mansidão, longanimidade; acima de tudo, o amor que é o vínculo da perfeição (Colossenses 3:12–14). Vestir-se disso não é teatro; é identidade. Se estamos em Cristo, fomos batizados em Sua morte e ressurreição; portanto, consideramo-nos mortos para o pecado, mas vivos para Deus (Romanos 6:9–11). Essa contabilidade da fé muda a postura: não oferecemos os membros ao pecado como instrumentos de injustiça; oferecemo-los a Deus como instrumentos de justiça (Romanos 6:12–13). E como isso se materializa? Paulo aplica logo em seguida: quem mentia, agora fala a verdade; quem furtava, agora trabalha para ter com que repartir; quem soltava palavras podres, agora edifica com graça; quem nutria amargura, ira e malícia, agora perdoa como Deus o perdoou em Cristo (Efésios 4:25–32). O novo homem não é abstrato; ele aparece na boca, nas mãos, no bolso, no perdão. Deus não nos veste para desfile, mas para serviço.

É vital lembrar que “despojar” e “revestir” são ordens “segundo a verdade em Jesus” (Efésios 4:21). Jesus é tanto o padrão quanto o poder. Ele não apenas nos manda amar os inimigos; viveu isso na cruz (Lucas 23:34). Não só ensinou pureza; purificou o templo do nosso coração com Seu próprio sangue (Hebreus 9:14). Não só disse “segue-me”; deu-nos o Espírito para tornar possível segui-lo (João 14:16–18). O velho homem foi julgado na cruz: “os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gálatas 5:24). O novo homem foi inaugurado na ressurreição: “se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas antigas passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios 5:17). Por isso a santificação não é um projeto de autoaperfeiçoamento; é resposta à graça. A “graça de Deus se manifestou salvadora… educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século de modo sensato, justo e piedoso” (Tito 2:11–14). A mesma graça que nos recebe nos disciplina; a mesma cruz que nos absolve nos molda.

Despojar o velho homem implica guerra. O pecado remanescente não se aposenta; trama, disfarça-se, espera oportunidade. Por isso a Escritura fala de mortificação: “se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, vivereis” (Romanos 8:13). Mortificar não é suprimir desejos pelo puro músculo da vontade; é recusar alimento ao pecado e fortalecer os afetos santos. É fazer “provisão” não para a carne, mas para o Espírito (Romanos 13:14; Gálatas 5:16–18). Isso começa antes da ocasião: vigilância. Corações são portões; vigiamos as entradas: olhos, ouvidos, imaginação, companhia (Provérbios 4:23; Salmos 1). Planejamos caminhos de fuga, como José diante da mulher de Potifar (Gênesis 39:7–12). Cortamos fontes, mesmo se dolorosas, porque é melhor entrar no Reino manco do que inteiro ser lançado fora (Mateus 5:29–30). Fugimos das paixões da mocidade e perseguimos justiça, fé, amor e paz com os que de coração puro invocam o Senhor (2 Timóteo 2:22). Resistimos firmes na fé, sabendo que os mesmos sofrimentos se cumprem na irmandade espalhada pelo mundo (1 Pedro 5:8–10).

Revestir o novo homem supõe hábitos. A nova vida amadurece como fruto, não explode como fogos de artifício. A fé age pelo amor (Gálatas 5:6). O Espírito produz fruto: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio (Gálatas 5:22–23). Cultivamos esse pomar com disciplinas da graça: palavra, oração, jejum, serviço, generosidade, confissão mútua, hospitalidade. Aprendemos a praticar as obras de misericórdia—dar de comer, visitar, acolher—porque nelas encontramos o próprio Cristo (Mateus 25:35–40). Aprendemos a transformar a rotina em culto: “quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Coríntios 10:31). O novo homem não está de folga no escritório, no trânsito, no quarto; ele se revela na gentileza com o cônjuge, na paciência com os filhos, na honestidade no caixa, na coragem de dizer “não” quando todos dizem “sim”. Ele canta salmos e vive Salmos.

Tal chamado desperta duas reações: convicção e consolo. Convicção, porque o retrato expõe; muitos contentam-se com reformas externas, enquanto o velho homem segue sentado no trono. A Escritura é clara: não basta virar página; é preciso nascer de novo (João 3:3, 7). Não basta aparar galhos; é preciso trocar a raiz. Onde o novo homem não existe, o velho reina, e “os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8:8). Mas o mesmo texto que fere cura. Há consolo para quem luta e se entristece por tropeços. O conflito interno não desmente a graça; geralmente a confirma. Antes, o pecado reinava sem resistência; agora, há duelo (Gálatas 5:17). Paulo descreve a angústia do capítulo mais honesto da alma, Romanos 7, e logo canta: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 8:1). O Sumo Sacerdote intercede por fracos; quando caímos, corremos para a luz, confessando pecados, certos de perdão e purificação (1 João 1:9; 1 João 2:1–2). Lavamos as vestes no sangue do Cordeiro e recomeçamos (Apocalipse 7:14; Isaías 1:18).

Essa caminhada é comunitária. O velho homem ama isolamento, onde suas narrativas não são confrontadas; o novo homem busca irmãos que digam a verdade em amor (Efésios 4:15). Carregamos fardos uns dos outros; exortamos diariamente para que nenhum de nós se endureça pelo engano do pecado (Gálatas 6:2; Hebreus 3:13). Submetemo-nos à Palavra pregada, aos sacramentos que nos lembram quem somos: no batismo, enterrados e levantados com Cristo; na Ceia, alimentados por Cristo para viver Cristo (Romanos 6:3–5; 1 Coríntios 11:23–26). Vestir o novo homem tem plural: “revesti-vos” é chamado à igreja inteira, para que juntos sejamos “renovados para o conhecimento, segundo a imagem daquele que nos criou” (Colossenses 3:10).

Também precisamos distinguir, para não desanimar, entre posição e processo. Em Cristo, já somos declarados justos; isso é completo e irrevogável (Romanos 5:1). Em Cristo, estamos sendo tornados santos; isso é progressivo e imperfeito, ainda que real (Hebreus 10:14). Deus já nos separou para Si e promete completar a boa obra até o dia de Cristo (Filipenses 1:6). Ele mesmo nos santificará em tudo—espírito, alma e corpo—e é fiel; Ele o fará (1 Tessalonicenses 5:23–24). Quando tropeços nos humilharem, lembremos: o Pai poda para dar mais fruto; o Pastor busca a ovelha cansada; o Oleiro não descarta o vaso, refaz (João 15:2; Lucas 15; Jeremias 18:1–6). O velho homem será finalmente despido quando formos revestidos de imortalidade; até lá, lutamos com esperança (1 Coríntios 15:53–57).

Praticamente, por onde começar? Pela honestidade com Deus: um Salmo 51 diante da santidade e da graça. Pelo trato direto com pecados conhecidos: cortar, confessar, consertar. Pelo cultivo deliberado de virtudes contrárias: ao egoísmo, generosidade; ao orgulho, humildade; à impureza, pureza; à dureza, ternura. Pela disciplina do olhar e do tempo: nada fortalece o velho homem como olhos soltos e agenda ociosa; nada fortalece o novo como olhos fixos em Jesus e agenda ajeitada para o bem (Hebreus 12:1–2; Salmos 101:3). Pelo uso da armadura de Deus: verdade que cinge, justiça que protege, evangelho que calça, fé que apaga setas, salvação que guarda, Palavra que corta, oração que sustenta (Efésios 6:10–18). E pelo ritmo da esperança: manhã a manhã, noite a noite, pequenas fidelidades que, somadas, esculpem um caráter novo.

Tal caminho não é solitário nem inseguro. O Bom Pastor diz: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz… eu lhes dou a vida eterna, e jamais perecerão; ninguém as arrebatará da minha mão” (João 10:27–29). A mão que nos segurou na justificação não nos soltará na santificação. A graça que perdoa é a mesma que transforma. O Deus que ordena “despoja-te” e “reveste-te” é o Deus que “já nos tem doado tudo o que diz respeito à vida e piedade”, chamando-nos a acrescentar diligentemente fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade e amor (2 Pedro 1:3–8). Por isso, em vez de nos reconciliarmos com o velho, levantemos, vistamos a armadura, lancemos fora as obras das trevas e vistamos as armas da luz (Romanos 13:12). Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo. Ele é o nosso traje de festa, a nossa justiça, a nossa força, a nossa beleza (Romanos 13:14; Isaías 61:10). E, enquanto o mundo nos empurra de volta à velha roupa, a igreja canta e trabalha para que, dia após dia, o novo homem apareça—não para a glória do novo homem, mas para a glória de Deus.

Se este chamado expõe e assusta, lembremos: a mão que aponta a sujeira também oferece o manto. Deus não nos convida a mudar para nos amar; Ele nos ama para nos mudar. Vinde e vede, provai e vede que o Senhor é bom (Salmos 34:8). Lançai-vos a Cristo como estáis, e Ele vos revestirá como Ele é. Hoje, não amanhã, seja a troca: despojar o velho, renovar a mente, revestir o novo—segundo Deus, em justiça e santidade da verdade. E quando enfim O virmos, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é (1 João 3:2). Até lá, esta é a nossa vocação e a nossa alegria.

G. Entristecer o Espírito

“Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção.” O peso e a ternura dessa frase caminham juntos. Deus nos fala como Pai, e a figura é de um coração amoroso que se magoa quando os filhos escolhem caminhos que os ferem. “Entristecer” o Espírito não significa que o Eterno seja frágil como nós, mas que Ele se relaciona conosco de modo pessoal, real e afetuoso: quando resistimos à Sua obra, negamos o Seu testemunho sobre o Filho, ou guardamos pecados que Ele quer curar, ferimos a comunhão que Ele mesmo criou. E é precisamente por nos amar e habitar em nós que a Escritura usa linguagem tão intensa: “Rebelaram-se e contristaram o seu Santo Espírito” (Isaías 63:10); “Por isso jurei na minha ira: não entrarão no meu descanso” (Salmos 95; comparado com Hebreus 3 e 4). O aviso é sério, mas vem embalado em consolo: esse mesmo Espírito “vos selou” como propriedade de Deus e “penhor” da herança, até que chegue o “dia da redenção” (Efésios 1:13–14; 2 Coríntios 1:21–22; Romanos 8:23). A advertência não anula a promessa, e a promessa não anula a advertência; juntas, elas nos mantêm despertos, humildes e esperançosos.

Para entender o que é entristecer o Espírito, olhe o contexto imediato. Paulo vem trocando a roupa do velho homem pela do novo: quem mentia agora fala a verdade; quem furtava agora trabalha e reparte; quem espalhava palavras podres agora edifica com graça; quem guardava amargura agora perdoa “como também Deus vos perdoou em Cristo” (Efésios 4:25–32). O Espírito se entristece quando nossa boca, mãos, mente e afetos naturalizam o velho homem que Cristo levou à cruz (Gálatas 5:24). Ele se entristece quando trocamos a simplicidade do evangelho por sofisticações que roubam de Jesus a glória exclusiva de salvar (2 Coríntios 11:3; Colossenses 2:8). Entristece-se quando preferimos o atalho do ressentimento à via difícil do perdão (Mateus 18:21–35); quando damos hospedagem à pornografia e à cobiça no coração (Mateus 5:27–30); quando toleramos mentira “branca”, jeitinho nos negócios, piadas que maculam, explosões de ira que justificamos como “gênio forte” (Efésios 4:26–29, 31). Entristece-se, sobretudo, quando negligenciamos o seu principal encargo: “Ele me glorificará” (João 16:14). Sempre que descentramos Cristo—confiando mais em nossa justiça, em nossos méritos, em nossos rituais—apagamos o brilho do Cordeiro (Gálatas 2:21). E o Espírito, que é zeloso da honra do Filho, se magoa quando O trocamos por ídolos disfarçados de virtudes.

Mas Paulo não diz apenas o que não fazer; ele lembra quem nos acompanha: “o Espírito Santo de Deus” que nos selou. O selo rompia a dúvida acerca de propriedade, segurança e destino. Em Cristo, Deus colocou Seu selo em nós: “O Senhor conhece os que são seus” (2 Timóteo 2:19). Esse selo não é um tranquilizante para pecar, é uma consagração: fomos marcados para ser “povo de propriedade exclusiva, zeloso de boas obras” (Tito 2:14). O Espírito é também “o Espírito de adoção”, pelo qual clamamos “Aba, Pai” (Romanos 8:15–16); é o “penhor”—as primícias do céu dadas agora—derramando o amor de Deus em nossos corações (Romanos 5:5), intercedendo por nós quando não sabemos orar (Romanos 8:26–27), guiando-nos em toda a verdade (João 16:13). O mesmo Espírito que nos regenera (João 3:5–8) nos santifica, formando Cristo em nós (Gálatas 4:19). Entristecê-lo, então, é ferir a relação que nos vivifica; é caminhar contra o vento que nos empurra na direção do Pai.

A Escritura pinta esse quadro com matizes diversos para aguçar nossa consciência. Ela fala em “resistir” ao Espírito (Atos 7:51), quando fechamos o coração à Sua convicção; em “apagar” o Espírito (1 Tessalonicenses 5:19), quando sufocamos Seu fogo com indiferença, incredulidade e mundanismo; e em “blasfemar” contra o Espírito (Mateus 12:31–32), quando se atribui à ação de Deus a obra do mal em obstinação desesperadora. O crente, selado e habitado, pode entristecer e apagar; por isso precisa da exortação. A blasfêmia, como postura final e impenitente que rejeita o testemunho do Espírito sobre Cristo, é o abismo a evitar com horror. A advertência existe para nos manter humildes, dependentes, atentos. Não a escove como se fosse só para “outros”; faça dela um freio e um farol.

Como, então, não entristecer o Espírito? A resposta de Paulo é surpreendentemente concreta, terrestre, diária. Santidade tem cheiro de perdão, som de palavras que curam, atitude de generosidade. Antes de pensar em êxtases, pense em sua língua. “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e sim unicamente a que for boa para edificação, conforme a necessidade, e assim transmita graça aos que ouvem” (Efésios 4:29). O Espírito habita onde a graça escorre pela fala. Ele se alegra quando a verdade substitui disfarces e meias-verdades, quando o trabalho honesto troca o “jeitinho” por servir e repartir (Efésios 4:28), quando a ira é domada antes do pôr do sol (Efésios 4:26), quando o coração liberta o outro de dívidas morais como Deus nos libertou em Cristo (Efésios 4:32). O Espírito também floresce quando o evangelho fica no centro: Cristo crucificado e ressurreto não como rodapé, mas como alicerce (1 Coríntios 2:2; Romanos 3:21–26). E se perguntarmos “onde encontro forças para isso?”, a resposta é o próprio Espírito. “Andai no Espírito e jamais satisfareis à cobiça da carne… o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5:16, 22–23). Não é autocontrole estoico; é vida controlada pelo Espírito.

Esse caminho tem hábitos. Palavra: deixar “a Palavra de Cristo habitar em vós ricamente” (Colossenses 3:16). O Espírito escreveu as Escrituras e se alegra quando nos dobramos a elas; Ele não se alegra quando selecionamos versículos para justificar ressentimentos. Oração: “orai no Espírito em todo tempo” (Efésios 6:18). O Espírito não é uma energia a ser manipulada, mas o Deus pessoal que nos ajuda a orar com “gemidos inexprimíveis” (Romanos 8:26). Comunhão: “não abandonando a nossa congregação… antes exortando-nos” (Hebreus 10:25). O Espírito constrói o corpo por meio de membros que se edificam mutuamente (Efésios 4:15–16). Mesa do Senhor e batismo: sinais onde o Espírito sela e renova nossa identidade—mortos e ressuscitados com Cristo, nutridos de Cristo para viver Cristo (Romanos 6:3–5; 1 Coríntios 11:23–26). Reconciliação rápida: “se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti… vai reconciliar-te primeiro” (Mateus 5:23–24). Poucas coisas apagaram tanto o fogo do Espírito em igrejas quanto mágoas não tratadas. Pureza de olhos e cliques: o Espírito se entristece quando a imaginação alimenta o que Cristo mandou arrancar; Ele se alegra quando fugimos e perseguimos a justiça (2 Timóteo 2:22; Jó 31:1). Generosidade alegre: o Espírito ama quando o povo de Cristo abre mão de direitos para aliviar fardos (2 Coríntios 9:7; Gálatas 6:2).

Talvez você leia tudo isso com o coração apertado porque já O entristeceu. A boa notícia do evangelho é que o Espírito é dado exatamente a pessoas assim. “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar… e nos purificar de toda injustiça” (1 João 1:9). A dor que você sente não é prova de rejeição; é sinal de sensibilidade viva. Antes, quando o velho homem reinava, o pecado doía pouco. Agora, um olhar desviado já pesa; isso é obra do Consolador. Então, corra para a luz, não para a caverna. O Advogado junto ao Pai é Jesus Cristo, o justo (1 João 2:1–2). O Espírito não foi dado para abandonar culpados, mas para aplicar a Cristo aos culpados. Ele não joga nossa face no chão para esmagar; Ele nos põe de joelhos para levantar. “O caniço quebrado, não quebrará, e o pavio que fumega, não apagará” (Mateus 12:20; eco de Isaías 42:3). Longe de apagar você, Ele reacende.

Também vale lembrar: ser “selado” não é licença para relaxar, é razão para vigiar com alegria. A mesma mão que marcou nos guarda e disciplina. Israel foi selado como povo no Êxodo, mas “entristeceu” o Espírito no deserto; muitos tombaram no caminho (1 Coríntios 10:1–12). Paulo então conclui: “Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não caia”. E logo consola: “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel, e não permitirá que sejais tentados além do que podeis, pelo contrário, juntamente com a tentação vos proverá livramento” (1 Coríntios 10:12–13). Segure as duas cordas: Deus é fiel; portanto, vigie. Deus é fiel; portanto, espere. O “dia da redenção” se aproxima—o dia em que este corpo, ainda sujeito à fraqueza, será revestido de incorruptibilidade, e o Espírito, que hoje é penhor, será plenitude (Romanos 8:23; 1 Coríntios 15:53–57). Até lá, o selo nos lembra quem é o Dono, quem é o Guardião e qual é o destino.

Em última análise, o antídoto para entristecer o Espírito é alegrá-lo, e nada alegra mais o Espírito do que ver Cristo honrado em nós. Quando nossos lábios exaltam o Cordeiro, quando nossa ética mostra a beleza do Sermão do Monte, quando nossa coragem confessa Jesus diante dos homens, quando nosso arrependimento é rápido e nosso perdão é largo, quando nosso amor cobre multidão de pecados, o Espírito sorri. Ele nos foi dado “para que andemos nos seus estatutos” (Ezequiel 36:27), “para que, fortalecidos com poder no homem interior”, Cristo habite pela fé em nossos corações (Efésios 3:16–17). Que oremos assim: Espírito Santo de Deus, não queremos entristecer-Te. Sopra Teu temor doce e Teu amor ardente. Mostra-nos o que ofende, dá-nos prontidão para confessar, audácia para cortar, mansidão para reconciliar, perseverança para andar. Faz nascer em nós a linguagem que edifica, as mãos que repartem, os olhos limpos, o coração aberto. E, acima de tudo, mantém Jesus grande diante de nós, para que, olhando para Ele, sejamos transformados de glória em glória (2 Coríntios 3:18). Então o selo que já nos marca brilhará, o penhor que já possuímos aumentará, e, naquele Dia, ouviremos o que mais desejamos: “Muito bem, servo bom e fiel… entra no gozo do teu Senhor” (Mateus 25:23). Até lá, “não entristeçais o Espírito Santo de Deus”—e alegrai-O com uma vida toda dEle.

H. Perdão dos pecados

“Antes, sede bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-vos mutuamente, como também Deus, em Cristo, vos perdoou.” O versículo encerra a ética cristã num só sopro: o que Deus fez por nós, em Cristo, torna-se o molde do que fazemos com o próximo. Não é um adendo moral à parte “espiritual” do evangelho; é o próprio evangelho derramado no cotidiano. Onde o perdão de Deus é crido, saboreado e habitado, nasce um povo que perdoa. E onde um povo perdoa, a beleza do perdão de Deus se torna visível, palpável, incontestável. Assim, Efésios 4:32 não oferece apenas um consolo (“Deus vos perdoou”), nem apenas um imperativo (“perdoai-vos”); ele une consolo e imperativo na costura viva do “em Cristo”, a expressão que explica tudo: a causa, o caminho, a medida e a meta do perdão.

A Escritura inteira apresenta Deus como Deus que perdoa. Quando o Senhor passa diante de Moisés e proclama o seu Nome, Ele escolhe falar de misericórdia: “misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e grande em amor e fidelidade; que guarda a misericórdia até mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado” (Êxodo 34:6–7). Os salmos cantam esse caráter; os profetas o imploram; o povo o experimenta e o trai, e mesmo assim volta a achá-lo. Isaías convoca: “Deixe o ímpio o seu caminho… e volte-se para o Senhor, que se compadecerá dele… porque grandioso é em perdoar” (Isaías 55:7). Mas esse perdão jamais foi capricho ou desleixo com a justiça; por trás do fio dourado da misericórdia corre sempre o custo da reconciliação. Desde o Éden coberto com peles, passando pelo altar saturado de sangue no tabernáculo, até o clamor do Servo que carrega culpas não suas, a Bíblia prepara nossos olhos para perceber o que Paulo afirma sem rodeios: Deus perdoa “em Cristo”. O perdão não é um “deixa pra lá”; é uma absolvição à luz de uma satisfação. Não é amnésia; é expiação. Não é sentimentalismo; é justiça feita, e misericórdia triunfando sobre a justiça porque a justiça foi plenamente honrada no Cordeiro (Romanos 3:21–26; Hebreus 9:22; 2 Coríntios 5:19).

Assim, quando Paulo diz “Deus, em Cristo, vos perdoou”, ele não fala de um gesto isolado, mas de uma história inteira que culmina na cruz e no túmulo vazio. O Filho eterno se fez carne, andou entre nós sem pecado, cumpriu toda a justiça, tomou sobre si a nossa culpa, sofreu o juízo que nos cabia, e ressuscitou para nossa justificação. Em Cristo, Deus não apenas nos perdoa; Ele nos recebe, nos adota, nos sela com o Espírito Santo, nos dá o penhor da herança (Efésios 1:13–14), derrama em nossos corações o seu amor (Romanos 5:5), dá-nos o Espírito de adoção para clamarmos “Aba, Pai” (Romanos 8:15–16). O perdão não é a porta dos fundos do céu; é a porta principal pela qual filhos chegam à casa do Pai. Por isso, Paulo não diz “perdoai para que Deus vos perdoe”, mas “perdoai porque Deus vos perdoou”. O perdão fraterno não compra, não mantém, não sustenta o perdão de Deus; ele o reflete. O fluxo é de cima para baixo, e de dentro para fora. O imperativo brota do indicativo.

Essa ordem é evangelho em ação. Nada é mais humano que se ferir; nada é mais divino que perdoar. E, ainda assim, o perdão que o evangelho cria não é natural, e é por isso que ele é um milagre que exige a presença de Cristo e o poder do Espírito. Quando somos feridos, o coração grita por compensação: justiça já, humilhação do outro, acerto de contas. O evangelho não banaliza a dor, nem varre a ofensa para debaixo do tapete; ele olha a ferida com honestidade e, ao mesmo tempo, encara o rosto do Crucificado. Ali, a minha dívida incancelável foi cancelada; ali, o meu ofensor se torna alguém por quem o Filho também sangrou; ali, a minha sede de justiça encontra seu descanso, porque a justiça de Deus não é mais minha inimiga; ela se tornou minha aliada, já que foi satisfeita em Cristo. Desse encontro, nasce uma nova matemática: o outro me deve “cem denários”; eu devia “dez mil talentos”. Um é troco; o outro é montanha. Quem provou a remissão da montanha, pode, pela graça, soltar o troco (Mateus 18:21–35). O perdão cristão não nega a gravidade de cem denários; ele apenas se lembra da gravidade incalculável dos dez mil talentos, e da alegria de tê-los visto riscados no sangue do Filho.

Perdoar, então, não é dizer que não doeu. Não é minimizar o mal, nem apressar reconciliações baratas. Não confunde perdão com ausência de consequências civis ou disciplinares quando elas são justas e necessárias. Não exige que vítimas silenciem. Não impede que limites sejam postos. O perdão cristão é decisão e caminho: decisão de não alimentar a vingança, de entregar a Deus o direito de julgar, de orar pelo bem do ofensor, de buscar, quando possível e sábio, a restauração da comunhão. E é caminho, porque o coração ferido precisa repetir essa decisão muitas vezes, enquanto cicatriza. Em alguns casos, reconciliação plena será possível e gloriosa; em outros, será prudente manter distância saudável, ainda que o coração já não deseje o mal. Há perdões que se dão olho no olho; há outros que se dão aos pés da cruz, em lágrimas silenciosas, porque o ofensor não se arrependeu, já morreu, ou não é seguro se aproximar. Mas, em todos os cenários, o “como Deus vos perdoou em Cristo” serve de bússola: Deus nos perdoou primeiro; Deus nos perdoou sem nos humilhar com lembranças públicas; Deus nos perdoou plenamente; Deus nos perdoou para nos reconciliar; Deus nos perdoou sem nos tratar segundo os nossos pecados; Deus nos perdoou a um custo infinito que Ele mesmo suportou. E o Espírito nos chama a refletir esse padrão, cada um no compasso da graça recebida.

Note como Paulo prepara o terreno. Antes de falar “perdoai”, ele já vinha costurando a roupa nova do cristão: tirar a mentira e vestir a verdade; trocar o furto pelo trabalho que reparte; trocar a palavra que apodrece pela palavra que edifica; não dar lugar ao diabo alimentando ira ruminada; tirar amargura, cólera, gritaria, blasfêmia; vestir bondade e compaixão. Tudo isso culmina no “perdoando-vos mutuamente”. O perdão não fica sozinho; ele mora numa casa onde outras virtudes lhe dão espaço e sustentação. A boca que para de ferir cria ambiente para o coração que escolhe perdoar. As mãos que trabalham para repartir enfraquecem o ciclo de ressentimento. A compaixão abre janelas por onde entra a brisa do Espírito. E Paulo põe uma motivação relacional: não entristeçam o Espírito Santo (Efésios 4:30). O Espírito é quem nos fez saborear o perdão de Deus, é quem nos coloca na mesa como filhos, é quem sussurra “Aba, Pai”; o Espírito se entristece quando guardamos a planilha do ressentimento. Ele se alegra quando liberamos o outro da nossa prisão, como fomos liberados da cadeia da condenação.

Alguém dirá: “Mas eu não sinto vontade”. O evangelho não manda sentir primeiro; manda olhar para Cristo. Sentimentos seguem senhores; não devem governá-los. A fé não é anestesia; é direção. O ato de perdoar, repetido, prepara o terreno para que o coração, devagar, comece a desejar o bem do outro. E, mesmo quando o sentimento demorar, o ato obediente já honra o Senhor e já liberta o próprio ofendido do cárcere da amargura. Outros dirão: “E se eu perdoar, estou aprovando o mal?”. Não; perdoar é chamar o mal de mal diante da cruz, e recusar-se a pagar o mal com mal. É entregar a causa Àquele que julga retamente (1 Pedro 2:23), é tomar posição ao lado do Cristo que, pendurado, ora: “Pai, perdoa-lhes”. Não é fingir que não houve pecado; é decidir que o pecado do outro não vai se tornar senhor do meu futuro.

E quanto a saber se, de fato, Deus me perdoou? A Escritura não nos convida a uma loteria emocional; convida-nos à confiança em promessas objetivas, gestadas na história e aplicadas pelo Espírito. O perdão é prometido a todo aquele que se volta a Deus em arrependimento e se lança em Cristo pela fé. Essa promessa Deus a sela em nós por seu Espírito: Ele nos dá o Espírito de adoção, o testemunho interno de que somos filhos, a alegria concreta de chamar Deus de Pai (Romanos 8:15–16). Ele nos dá o “penhor” da herança (Efésios 1:13–14; 2 Coríntios 1:21–22): uma antecipação sensível do amor que nos aguarda. Essa segurança não é isolada de vida nova: onde há perdão, há mudança; onde há paz com Deus, há guerra contra o pecado; onde há graça recebida, há graça oferecida. “Escrevo-vos, filhinhos, porque os vossos pecados são perdoados por causa do seu nome” (1 João 2:12). Essa certeza humilde, alicerçada na obra de Cristo e confirmada pelo Espírito, não produz orgulho, mas gratidão obediente. E essa gratidão se derrama, inevitavelmente, em disposição de perdoar.

Mas e quando falhamos em perdoar? O evangelho nos chama de volta ao evangelho. Confessemos nosso orgulho, nossa dureza, nossa falta de compaixão. Lembremos do Rei que cancelou nossa montanha de dívida. Meditemos na cruz até que o coração amoleça. Peçamos ao Espírito que nos conceda o que Cristo ordena. Busquemos a ajuda da comunidade, porque às vezes o perdão é pesado demais para ser carregado a sós. E nos levantemos para recomeçar. A ética de Efésios 4–5 não é um retrato estático de perfeitos; é um roteiro de recomeços na graça: “sede imitadores de Deus, como filhos amados, e andai em amor, como também Cristo nos amou e se entregou por nós” (Efésios 5:1–2). O caminho todo é “em Cristo”: a expressão volta e volta, como refrão. Em Cristo fomos perdoados; em Cristo aprendemos a perdoar; em Cristo nos arrependemos de não perdoar; em Cristo pedimos força para perdoar; em Cristo, um dia, seremos como Ele é, e todo perdão pendente se consumará em alegria.

Há, ainda, um fruto comunitário precioso quando o perdão de Deus molda nosso perdão mútuo. Um povo que perdoa se torna seguro; a confissão floresce; as máscaras caem. Os fracos se fortalecem; os feridos encontram abrigo; os pecadores, que somos todos, experimentam a restauração. A mesa do Senhor, que recorda o sangue derramado “para remissão de pecados”, deixa de ser um rito frio e se torna a escola prática do perdão: ali, o Ressuscitado nos serve, e nós nos curvamos para lavar os pés uns dos outros (Mateus 26:28; João 13). O mundo assiste e, mesmo cético, se pergunta de onde vem esse poder que cura o que nenhuma terapia sozinha consegue curar. E a resposta é sempre a mesma: “Deus, em Cristo, nos perdoou”.

Se hoje você carrega a culpa do imperdoável, ou a ferida do imperdoado, ou o fardo de não conseguir perdoar, comece aqui: olhe para Cristo. Ele não apenas aponta o caminho; Ele é o caminho. Nele, Deus perdoa culpados como eu e você. Nele, Deus derrama o Espírito que nos faz filhos e nos dá o querer e o realizar. Nele, Deus nos ensina a dizer “perdoo” enquanto ainda doem as costelas. Nele, o futuro está garantido, e o “dia da redenção” se aproxima, quando não haverá mais dívidas, nem lembranças venenosas, nem corações armados. Até lá, cada ato de perdão é uma faísca do porvir acesa no presente. E cada vez que liberamos alguém, ouvimos de novo a voz que primeiro nos libertou: “Perdoado. Em Cristo.”

IX. Concordância Bíblica Comentada

Efésios 4:1 diz: “Eu, pois, prisioneiro no Senhor, vos rogo que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados”. Paulo se identifica como prisioneiro; ele já havia ancorado isso em Efésios 3:1: “Eu, Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de vós, gentios…”. A mesma condição reaparece aqui para dar peso pastoral ao apelo: as cadeias não desautorizam o pedido, antes autenticam que seu ministério e sua vida estão “no Senhor” e a serviço do evangelho entre os gentios. Em 4:1, portanto, quem “roga” é o mesmo “prisioneiro de Cristo” de 3:1, e isso explica por que o chamado à prática ética vem carregado de autoridade mansa.

O verbo central é “rogo”. Em Jeremias 38:20, o profeta suplica ao rei: “Ouve, peço-te, a voz do SENHOR… e bem te irá”. É o mesmo movimento de Efésios 4:1: uma súplica que exige resposta concreta de obediência. Romanos 12:1 apresenta a mesma arquitetura da carta: “Rogo-vos… pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos…”. Primeiro graça exposta (Efésios 1–3), depois rogo para uma vida coerente (Efésios 4–6). Em Primeira aos Coríntios 4:16, “rogo-vos: sede meus imitadores”; o pedido se apoia na exemplaridade do mensageiro — exatamente o que Paulo faz como “prisioneiro no Senhor”. Segunda aos Coríntios 5:20 acrescenta a nota representativa: “em nome de Cristo… rogamos: reconciliai-vos com Deus”; em Efésios 4:1, o complemento “no Senhor” marca a mesma esfera de autoridade: o apelo é de embaixador. Segunda aos Coríntios 6:1 reforça: “cooperando com Ele, também vos exortamos que não recebais a graça em vão” — o rogo é cooperação com a obra divina que Efésios 1–3 revelou. Em Segunda aos Coríntios 10:1, “vos rogo pela mansidão e benignidade de Cristo”; o tom do pedido já antecipa 4:2 (“toda humildade e mansidão”), mostrando que o conteúdo do rogo combina com o espírito do rogo. Gálatas 4:12 mostra o apelo por identificação: “rogo-vos: sede como eu, porque também eu sou como vós”; do mesmo modo, em 4:1 Paulo chama a um caminho que ele mesmo trilha “no Senhor”. Em Filemom 1:9, apesar de poder “ordenar”, Paulo diz: “rogo-te antes, por amor”; e em Filemom 1:10 personaliza: “rogo-te por meu filho Onésimo” — o rogo apostólico se faz pastoral e amoroso, o mesmo que acontece quando ele pede, em Efésios 4, um andar digno em amor. Primeira de Pedro 2:11 traz outra vez o verbo no registro ético: “amados, exorto-vos… a vos absterdes das paixões carnais”; é o apelo a um caminhar contracultural que Efésios 4–5 detalha ponto a ponto. E Segunda de João 1:5 explicita o núcleo moral desse rogo: “rogo-te… que nos amemos uns aos outros”, que em Efésios 5:2 será a régua do passo: “andai em amor”.

Vem, então, o “andar”. Efésios 4:17 explicita o contraste imediato: “não andeis como andam os gentios, na vaidade da sua mente” — isto é, o “digno” de 4:1 é o oposto do passo vazio do velho homem. Efésios 5:2 define o compasso: “andai em amor, como também Cristo vos amou e se entregou por nós”; o “andar digno” é calibrado pela cruz. Muito antes, Gênesis 5:24 descreveu Enoque: “andou com Deus”; Efésios 4:1 apenas retoma o vocabulário da aliança: vida inteira na presença. Gênesis 17:1 crava a direção: “anda na minha presença e sê perfeito” — “digno” significa diante de Deus, não mera performance social. Em Atos dos Apóstolos 9:31, as igrejas “caminhavam no temor do Senhor e na consolação do Espírito Santo”; é o clima do passo pedido em 4:1 e explicado em 4:3–4 (unidade “no Espírito”). Filipenses 1:27 formula de modo paralelo: “vivei de modo digno do evangelho de Cristo”; é a mesma exigência de coerência que Efésios 4:1 vocaliza. Filipenses 3:17 convoca: “sede meus imitadores… e atentai para os que andam assim”; o passo aprende de modelos fiéis — inclusive do apóstolo cativo. Filipenses 3:18 dá o negativo pedagógico: “muitos andam como inimigos da cruz de Cristo” — serve de contraste para o “andar digno”. Colossenses 1:10 traduz em metas: “para que andeis de modo digno do Senhor, agradando-Lhe em tudo, frutificando…”; é Efésios 4:1 aplicado: agradar a Deus e produzir frutos. Colossenses 4:12 mostra o alvo do caminhar: Epafras “luta em orações” para que a igreja esteja “perfeita e plenamente convicta” — a maturidade que Efésios 4:13–15 descreve como destino do “andar”. Primeira aos Tessalonicenses 2:12 repete quase literalmente: “vos exortávamos… a andardes de modo digno de Deus”; Primeira aos Tessalonicenses 4:1 esclarece o processo: “como deveis andar e agradar a Deus… assim andai, e progridais mais e mais” — o passo é contínuo e crescente; e Primeira aos Tessalonicenses 4:2 lembra a base: “sabeis que mandamentos vos demos por autoridade do Senhor Jesus”, o que casa com “no Senhor” em Efésios 4:1. Tito 2:10 acrescenta a finalidade pública: “para que em tudo ornamenteis a doutrina de Deus” — o “andar digno” torna a doutrina visível e bela. Hebreus 13:21 fecha o círculo: Deus “vos aperfeiçoe em toda boa obra, para fazerdes a sua vontade”; o próprio Deus equipa o caminho que Ele requer — o que Paulo já havia pedido em Efésios 3:16 (“fortalecidos… no homem interior”).

Resta o padrão que regula o passo: a “vocação”. Efésios 4:4 afirma “uma só esperança da vossa vocação”: o chamado é um e cria uma esperança comum; andar “digno” é andar promovendo essa unidade (4:3–6). Romanos 8:28–30 coloca a vocação dentro da corrente eterna: “aos que de antemão conheceu… predestinou… chamou… justificou… glorificou”; a palavra “vocação” de Efésios 4:1 é esse chamado eficaz que dá peso ao “digno”. Filipenses 3:14 mostra a direção: “prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação”; o chamado tem alvo e prêmio — orienta o nosso passo. Segunda aos Tessalonicenses 1:11 ora: “o nosso Deus vos faça dignos da sua vocação”; é o mesmo pedido de Efésios 4:1, agora explicitado como obra de Deus em nós. Segunda a Timóteo 1:9 delimita a base: “nos salvou e nos chamou com santa vocação, não segundo as nossas obras, mas segundo o seu propósito e graça”; logo, “digno” não é mérito humano, é resposta à graça do chamado. Hebreus 3:1 nos nomeia: “participantes da vocação celestial”; a origem “celestial” explica por que Efésios 4 chama a viver à altura desse nome. Primeira de Pedro 3:9 aplica à vida pública: “para isto fostes chamados: para abençoar” — Efésios 4 desenvolve esse etos em fala que edifica, mansidão, paciência e perdão. Primeira de Pedro 5:10 aponta o destino: “o Deus de toda graça… vos chamou à sua eterna glória em Cristo”; é essa glória que confere “dignidade” agora. Segunda de Pedro 1:3 explica a fonte e o conteúdo: “nos chamou pela sua glória e virtude”; a vocação carrega padrão moral (virtude) e finalidade doxológica (glória) — exatamente o horizonte de Efésios 4:1.

Assim, cada referência bíblica para Efésios 4:1 abre uma palavra do versículo: o prisioneiro de Cristo que fala roga no espírito de profetas e apóstolos; o que ele pede é um andar antigo e sempre novo — diante de Deus, no amor de Cristo, no temor do Senhor, frutífero e belo —; e o padrão é a vocação eficaz, celestial e gloriosa que nos chamou. Tudo converge para o mesmo ponto: viver de modo digno do chamado que recebemos.

Em Efésios 4:2 Paulo descreve a forma concreta do “andar digno” (v.1): “com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor”. Cada referência bíblica abre essas quatro palavras e mostra como elas se enraízam na revelação inteira e desembocam na vida da igreja.

A dupla “humildade e mansidão” começa com o paradigma de Moisés: “era o homem Moisés mui manso” (Números 12:3); se o mediador antigo se distinguiu pela mansidão, quanto mais a comunidade do novo pacto chamada a espelhar Cristo. O Salmo messiânico mostra o Rei avançando “pela verdade, mansidão e justiça” (Salmos 45:4): Efésios 4:2 pede que o corpo compartilhe o caráter do seu Cabeça. Deus mesmo declara sua disposição: “o SENHOR, ainda que é excels o, atenta para o humilde” (Salmos 138:6); por isso a vida em 4:2 é o lugar do favor divino. A sabedoria confirma: “ele escarnece dos escarnecedores, mas dá graça aos humildes” (Provérbios 3:34), e “melhor é ser humilde de espírito com os mansos do que repartir o despojo com os soberbos” (Provérbios 16:19); Efésios 4:2 é a escolha pelo primeiro caminho. O Santo anuncia: “habito… também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos” (Isaías 57:15); logo, a humildade é o ambiente da presença que edifica (o tema de 4:12–16). A unção do Servo vem “para pregar boas-novas aos quebrantados… a consolar todos os tristes… para que se chamem carvalhos de justiça” (Isaías 61:1–3): a mansidão é tanto alvo quanto fruto do evangelho. O chamado profético convoca: “buscai o SENHOR, vós todos os mansos da terra” (Sofonias 2:3); Efésios 4:2 cumpre esse imperativo na ética comunitária. O Rei prometido “é justo e salvador, humilde, montado sobre um jumentinho” (Zacarias 9:9); o povo do Rei vive na mesma chave. Nas Bem-aventuranças, “bem-aventurados os pobres de espírito” e “os mansos herdarão a terra” (Mateus 5:3–5); Efésios traduz a felicidade do Reino em prática diária. O próprio Cristo nos convida: “aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mateus 11:29); 4:2 nada mais é do que aplicar esse aprendizado às relações internas. Paulo modelou isso no ministério: “servindo ao Senhor com toda humildade e com lágrimas” (Atos dos Apóstolos 20:19), exatamente a expressão de Efésios. O amor que sustenta tudo “é paciente, é benigno; o amor não se ensoberbece, não se porta inconvenientemente, não busca os seus interesses” (Primeira aos Coríntios 13:4–5); aqui a humildade aparece como forma do amor que, em 4:2, suporta. O fruto do Espírito inclui “mansidão” e “domínio próprio”, e, no mesmo feixe, “longanimidade” (Gálatas 5:22–23): Efésios 4:2 depende dessa obra do Espírito. Por isso Colossenses descreve quase com as mesmas palavras: “revesti-vos… de humildade, mansidão, longanimidade; suportando-vos e perdoando-vos mutuamente” (Colossenses 3:12–13) — é o paralelo direto de Efésios 4:2. A busca pessoal do ministro é a mesma lista: “segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão” (Primeira a Timóteo 6:11); e a prática pastoral exige “com mansidão instruir os que resistem” (Segunda a Timóteo 2:25), mostrando que a mansidão não é passividade, é o modo de corrigir. A acolhida da Palavra também tem essa postura: “recebei com mansidão a palavra em vós enxertada” (Tiago 1:21), a única que pode sustentar a unidade pedida em 4:3. A “sabedoria lá do alto” é “primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável… cheia de misericórdia” (Tiago 3:15–18); é exatamente o etos de 4:2 que produz “fruto de justiça em paz”. E até a defesa da fé tem a mesma régua: “estai sempre preparados para responder… com mansidão e temor” (Primeira de Pedro 3:15); Efésios 4:2 quer essa voz mansa no trato mútuo.

A segunda metade do versículo fala de longanimidade e de suportar em amor. O próprio Senhor Jesus, diante da incredulidade, pergunta: “até quando vos suportarei?” (Marcos 9:19); seu modo de suportar, sem desistir do povo, é a régua do nosso. A igreja forte é chamada a carregar os fracos: “nós que somos fortes devemos suportar as fraquezas dos fracos” (Romanos 15:1); exatamente a expressão de Efésios 4:2 aplicada às diferenças internas. O amor “tudo suporta” (Primeira aos Coríntios 13:7); quando Paulo manda “suportando-vos em amor”, ele só está colocando essa cláusula do amor em operação comunitária. E o gesto ganha imagem concreta: “levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gálatas 6:2); suportar em amor é carregar peso alheio, não apenas tolerar.

Os ecos “recíprocos” mostram o fruto e a arquitetura que 4:2 produz. Abraão evita contenda dizendo a Ló: “não haja contenda entre mim e ti… porque somos irmãos” (Gênesis 13:8); é o suportar em amor que previne rupturas. As tábuas e colchetes do tabernáculo “acopladas” para formar um só santuário (Êxodo 36:10; Êxodo 36:29) ilustram como humildade, mansidão e longanimidade funcionam como ligaduras que mantêm o edifício unido — exatamente o que 4:2 prepara e 4:16 descreve. O profeta promete: “os mansos terão mais alegria no SENHOR” (Isaías 29:19), o próprio bem-aventurado de Mateus 5:5; quem caminha em 4:2 colhe essa alegria. Jesus manda: “tende paz uns com os outros” (Marcos 9:50); paz é o resultado social de humildade + mansidão + longanimidade. Em Jerusalém, “era um o coração e a alma da multidão dos que criam” (Atos dos Apóstolos 4:32); essa unidade visível nasce das virtudes de 4:2. Paulo descreve seu ministério “em paciência, em benignidade, no Espírito Santo, em amor não fingido” (Segunda aos Coríntios 6:6): é o mesmo conjunto de Efésios 4:2. O projeto inteiro de Deus “nos elegeu… para sermos santos e irrepreensíveis em amor” (Efésios 1:4) e manda “andar em amor” (Efésios 5:2); por isso o “suportando-vos em amor” é a via prática para manter a santidade e a unidade (4:3). A mente de Cristo ordena: “nada façais por partidarismo… mas, por humildade, cada um considere os outros superiores a si mesmo” (Filipenses 2:3); é a formulação mais próxima do “com toda humildade” de Efésios 4:2. A capacitação vem do alto: “fortalecidos… em toda perseverança e longanimidade com alegria” (Colossenses 1:11); Deus mesmo sustenta o que 4:2 exige. A vida comunitária pede: “admoestai os desordeiros, consolai os desanimados, ampareis os fracos, sejais pacientes para com todos” (Primeira aos Tessalonicenses 5:14); é a agenda cotidiana de 4:2. O servo do Senhor “não deve contender, mas ser manso para com todos, apto para ensinar, paciente” (Segunda a Timóteo 2:24); o ofício inteiro é moldado por Efésios 4:2. A vida pública dos santos é: “a ninguém difamem; não sejam contenciosos; sejam modestos, mostrando toda mansidão para com todos os homens” (Tito 3:2), sustentada pela abundância do Espírito derramado (Tito 3:6), o mesmo Espírito que produz mansidão e longanimidade (Gálatas 5). A sabedoria prática pergunta: “quem é sábio…? mostre… com mansidão de sabedoria” (Tiago 3:13); Efésios 4:2 é essa sabedoria aplicada. E a beleza interior que Deus estima é “um espírito manso e quieto, que é de grande valor diante de Deus” (Primeira de Pedro 3:4); é a estética do Reino que 4:2 manda vestir.

Assim, cada texto citado serve à mesma tese de Efésios 4:2: a igreja guarda a unidade e cresce quando, movida pelo Espírito, veste a humildade do seu Rei, pratica a mansidão do seu Mestre, persevera longanimemente e carrega, em amor, o peso uns dos outros. Essa é a forma do “andar digno” que faz a doutrina parecer bela e o corpo permanecer unido.

Em Efésios 4:3, Paulo manda “procurar diligentemente guardar a unidade do Espírito no vínculo da paz”. O próprio versículo seguinte, Efésios 4:4, explica a que “unidade” ele se refere: um só corpo e um só Espírito; por isso o v.3 é um chamado a manter, não a criar, aquilo que o Espírito já produziu. Foi exatamente isso que Jesus ordenou como marca do seu povo: “um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros” (João 13:34); o amor mútuo é o “vínculo” pelo qual o Espírito preserva a paz. A oração sacerdotal torna o alvo explícito: “para que todos sejam um… eu neles, e tu em mim, para que sejam aperfeiçoados em unidade” (João 17:21–23); a unidade que o v.3 manda guardar é a mesma unidade pela qual Jesus orou e que convence o mundo. O Reino que nos governa é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Romanos 14:17), e por isso “sigamos as coisas que conduzem à paz e à edificação mútua” (Romanos 14:19): é a tradução direta do “vínculo da paz”. Daí a admoestação inicial em Corinto: “que não haja entre vós divisões… estejais unidos no mesmo parecer” (Primeira aos Coríntios 1:10); Paulo está pedindo, em outras palavras, Efésios 4:3. Esse pedido repousa na ontologia do corpo: “assim como o corpo é um e tem muitos membros… assim é Cristo” (Primeira aos Coríntios 12:12), porque “em um só Espírito fomos todos batizados em um corpo” (Primeira aos Coríntios 12:13); a unidade é obra do Espírito e tem forma de corpo. Por isso ele encerra outra carta com: “sede de um mesmo parecer; vivei em paz; e o Deus de amor e de paz será convosco” (Segunda aos Coríntios 13:11); o “vínculo da paz” de Efésios 4:3 é a presença do Deus de paz na comunidade. O paralelo mais próximo está em Colossenses: “suportando-vos uns aos outros… e a paz de Cristo seja o árbitro em vossos corações, para a qual também fostes chamados em um corpo” (Colossenses 3:13–15); aqui aparecem o suporte mútuo, a paz como juiz e o “um corpo” que Efésios 4:3–4 desenvolve. O mesmo tom surge em “vivei em paz uns com os outros” (Primeira aos Tessalonicenses 5:13) e “segui a paz com todos” (Hebreus 12:14): a “diligência” de 4:3 é perseguir paz. Tiago explica a dinâmica interior: a sabedoria do alto é “pacífica… tratável, cheia de misericórdia” (Tiago 3:17), e “o fruto da justiça semeia-se em paz para os que promovem a paz” (Tiago 3:18); é a sabedoria que gera o “vínculo” que segura o corpo unido.

As referências bíblicas de Efésios 4:3 ilustram, confirmam e advertem. Abraão evita a ruptura com Ló dizendo: “não haja contenda entre mim e ti… somos irmãos” (Gênesis 13:8): é a prática do vínculo da paz para conservar a família una. O tabernáculo foi costurado com cortinas “acopladas uma à outra” (Êxodo 26:3) e a túnica sacerdotal tinha a gola reforçada “para que não se rompesse” (Êxodo 28:32); imagens materiais de uma unidade que não deve ser rasgada — exatamente o que Paulo pede à igreja. Quando “o povo se dividiu” (Primeiro Livro dos Reis 16:21), veio fraqueza e juízo; Jesus repetirá o princípio: “se um reino for dividido contra si mesmo, não pode subsistir” (Marcos 3:24). Em contrapartida, “orai pela paz de Jerusalém” (Salmos 122:6) e “quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união” (Salmos 133:1): é a beleza do que Efésios 4:3 manda guardar. “O cordão de três dobras não se arrebenta com facilidade” (Eclesiastes 4:12) e “uma é a minha pomba, a minha imaculada” (Cântico dos Cânticos 6:9): figuras de coesão. A promessa de “um só coração e um novo espírito” (Ezequiel 11:19) mostra que a unidade que guardamos foi dada por Deus. A ética cristã resume-se em “se possível, tende paz com todos” (Romanos 12:18) e, de novo, “sigamos as coisas que conduzem à paz” (Romanos 14:19); quem “se ajunta ao Senhor é um espírito com ele” (Primeira aos Coríntios 6:17), raiz da “unidade do Espírito”. O objetivo paulino é “chegarmos à unidade da fé” (Efésios 4:13), e a prática é “permanecei firmes… com um só espírito, combatendo juntos” (Filipenses 1:27). Deus mantém o corpo “bem vinculado e unido pelo auxílio de toda junta e ligamento” (Colossenses 2:19); o laço que segura tudo é “o amor, que é o vínculo da perfeição” (Colossenses 3:14). “Permaneça o amor fraternal” (Hebreus 13:1) e “amai-vos ardentemente de coração” (Primeira de Pedro 1:22): é assim que a unidade do Espírito fica visível.

Em Efésios 4:4 Paulo explica o conteúdo dessa unidade: “um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação.” O “um só corpo” ecoa a reconciliação que fez de dois povos um: “reconciliar ambos em um corpo com Deus, por meio da cruz” (Efésios 2:16); por isso, “somos membros do seu corpo” (Efésios 5:30). A imagem do corpo permeia o Novo Testamento: “assim como em um corpo temos muitos membros… assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo” (Romanos 12:4–5); “porque nós, embora muitos, somos um só pão e um só corpo” (Primeira aos Coríntios 10:17); “há muitos membros, mas um só corpo” (Primeira aos Coríntios 12:20), e tudo isso porque “em um só Espírito fomos batizados em um corpo” (Primeira aos Coríntios 12:13) — o mesmo “um Espírito” do versículo. É por isso que a paz governa: “a paz de Cristo seja o árbitro… pois em um só corpo fostes chamados para a paz” (Colossenses 3:15). O “um Espírito” é o ambiente de toda a vida cristã: “por Ele ambos temos acesso ao Pai em um Espírito” (Efésios 2:18) e somos “edificados… para habitação de Deus no Espírito” (Efésios 2:22). O mandato batismal reconhece a unidade do nome divino (Mateus 28:19), e a diversidade de dons confirma que “há diversidades de dons, mas o mesmo Espírito… e é um só e o mesmo Espírito quem opera tudo” (1 Coríntios 12:4–11); quando alguém aceita “outro espírito” (2 Coríntios 11:4), rompe-se justamente a unidade confessada aqui. A terceira cláusula amarra a ética do v.1: “como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação.” Já no início Paulo orou para conhecermos “qual é a esperança do seu chamado” (Efésios 1:18), e o v.1 acabara de falar em “andar digno da vocação”; essa esperança é o conteúdo comum do nosso chamado. Por isso a Escritura chama Deus de “esperança de Israel” (Jeremias 14:8) e descreve o bendito que “confia no SENHOR” (Jeremias 17:7); ela afirma que “pela graça do Senhor Jesus seremos salvos” (Atos 15:11) e fala da “esperança que vos está reservada nos céus” (Colossenses 1:5). Deus mesmo “nos deu eterna consolação e boa esperança” (Segunda aos Tessalonicenses 2:16); “Cristo Jesus, nossa esperança” (1 Timóteo 1:1). Vivemos “na esperança da vida eterna” (Tito 1:2), aguardando a “bem-aventurada esperança” (Tito 2:13) como “herdeiros segundo a esperança” (Tito 3:7). Essa esperança é firme: “para que tenhamos… forte alento… a esperança proposta, a qual temos por âncora da alma” (Hebreus 6:18–19). Ela nasce da ressurreição: Deus “nos regenerou para uma viva esperança… para uma herança incorruptível” (1 Pedro 1:3–4), de modo que “a vossa fé e esperança estejam em Deus” (1 Pedro 1:21). E é purificadora: “todo o que tem esta esperança nele purifica-se a si mesmo” (1 João 3:3). Assim, “um corpo… um Espírito… uma esperança” não são slogans; descrevem a realidade que o Espírito operou e à qual o nosso andar deve corresponder.

As referências bíblicas de Efésios 4:4 reforçam a mesma tapeçaria. Elias levanta “doze pedras” (1 Reis 18:31) para o altar, sinal de um Israel uno; Jerusalém é “cidade compacta, bem edificada” (Salmos 122:3), cuja paz buscamos “por amor de meus irmãos e amigos” (Salmos 122:8). A profecia promete “um só pastor” sobre um só povo (Ezequiel 37:24) e o próprio Jesus roga: “Pai santo, guarda-os… para que sejam um” (João 17:11). O chamado é amplo e unificador: “a promessa é para tantos quantos” o Senhor chamar (Atos 2:39), e a corrente de Romanos 8:30 (“aos que chamou, a esses justificou… glorificou”) explica por que a “esperança” do chamado é comum a todos. A raiz dessa unidade é mística: “quem se une ao Senhor é um espírito com Ele” (1 Coríntios 6:17); por isso, “não há judeu nem grego… porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28). A igreja é “a plenitude daquele que enche” (Efésios 1:23); por isso é chamado a “guardar a unidade do Espírito” (Efésios 4:3) e a ser “edificada… o corpo de Cristo” (Efésios 4:12). Há “comunhão do Espírito” (Filipenses 2:1) porque somos “participantes da vocação celestial” (Hebreus 3:1), chamados “pela sua glória e virtude” (2 Pedro 1:3); é essa vocação única que gera “uma só esperança” e exige um só coração.

Desse modo, em Efésios 4:3–4, cada texto citado mostra o mesmo enredo: Jesus pediu, o Espírito realizou, os apóstolos ensinaram e os símbolos bíblicos ilustraram — um corpo mantido coeso por um Espírito e orientado por uma esperança, cuidado por um povo que persegue a paz, ama de verdade, suporta em amor e se recusa a rasgar a túnica da unidade.

Em Efésios 4:5 Paulo condensa a base objetiva da unidade cristã: “um só Senhor, uma só fé, um só batismo”. Cada referência bíblica mostra, ponto a ponto, como essa tríade é sustentada pela Escritura inteira.

“Um só Senhor.” Em Pentecostes, Pedro proclama que Deus “o fez Senhor e Cristo, a esse Jesus que vós crucificastes” (Atos dos Apóstolos 2:36): a entronização de Jesus define quem é o único Senhor da igreja. A pregação na casa de Cornélio diz o mesmo com alcance universal: “Ele é Senhor de todos” (Atos dos Apóstolos 10:36); Efésios 4:5 não fala de um senhor local, mas do Rei de todos os povos. Paulo explica que Cristo “morreu e ressuscitou exatamente para ser Senhor de mortos e vivos” (Romanos 14:8–9); sua soberania atravessa vida e morte, por isso a igreja pode confessar “um só Senhor”. Essa confissão é comum “em todo lugar” onde os santos invocam “o nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Coríntios 1:2): a unicidade do Senhor fundamenta a comunhão de todas as igrejas. Por isso Paulo corta o partidarismo: “Está Cristo dividido?” (1 Coríntios 1:13); se o Senhor é um, o corpo não pode ser fatiado por lemas humanos. A formulação mais direta é: “para nós há um só Deus, o Pai… e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8:6); Efésios 4:5 ecoa essa confissão básica. E mesmo havendo “diversidades de ministérios”, há “o mesmo Senhor” (Primeira aos Coríntios 12:5): o Senhor único garante unidade na diversidade. O hino cristológico conclui: “toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor” (Filipenses 2:11); a universalidade da confissão confirma o “um só Senhor”. Por fim, Paulo a torna pessoal: considera tudo perda “pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (Filipenses 3:8); a unidade cósmica do senhorio se traduz na lealdade pessoal de cada crente.

“Uma só fé.” A própria carta, adiante, define o alvo do ministério: “cheguemos… à unidade da fé” (Efésios 4:13); “uma só fé” em 4:5 é o conteúdo comum que o corpo inteiro aprende e confessa até a maturidade. Em Romanos, Paulo mostra que Deus “justificará” tanto circuncisos “pela fé” quanto incircuncisos “mediante a fé” (Romanos 3:30): não há dois caminhos, mas uma fé para todos. O alerta em Corinto expõe o perigo pastoral: “se alguém vos prega outro Jesus… ou outro evangelho… o tolerais” (Segunda aos Coríntios 11:4); Efésios 4:5 contrapõe a isso uma fé autêntica. Gálatas abre o diagnóstico: “estais passando para outro evangelho”, que “não é outro” (Gálatas 1:6–7); existe um evangelho verdadeiro e contrafações — logo, uma fé. E qual é o seu perfil? “Em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm valor, mas a fé que atua pelo amor” (Gálatas 5:6); Efésios 4 já vinha pedindo “em amor” (4:2), porque essa é a forma viva da única fé. A missão apostólica existe “por causa da fé dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade” (Tito 1:1), e Paulo saúda Tito “segundo a fé comum” (Tito 1:4): há uma fé compartilhada por toda a igreja. Hebreus manda lembrar os guias “considerando o fim da sua vida e imitando a sua fé” (Hebreus 13:7); a mesma fé apostólica é transmitida e imitada — não há múltiplas “fés” concorrentes. Tiago, ao confrontar a fé morta, diz: “mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas obras” (Tiago 2:18); não propõe outra fé, mas mostra que a uma fé bíblica se manifesta em obras — é essa fé viva que unifica. Pedro saúda os que “alcançaram fé igualmente preciosa” (Segunda de Pedro 1:1); a igualdade de valor da fé em todos reforça a sua unicidade. E Judas faz a definição clássica: “batalhai pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas 1:3) e exorta: “edificando-vos na vossa santíssima fé” (Judas 1:20); a fé apostólica é única, final e suficiente — exatamente o que Efésios 4:5 afirma.

“Um só batismo.” O mandato do Ressuscitado é: “batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mateus 28:19). Observe o singular: em nome — o batismo cristão é uma única iniciação no Nome trinitário. Paulo explica sua dinâmica: “fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte” (Romanos 6:3) e, por isso, “fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte, para que… andemos em novidade de vida” (Romanos 6:4); trata-se de uma só participação na morte e ressurreição de Cristo, que fundamenta o “andar” de Efésios 4. Esse mesmo ato é o que nos incorpora: “em um só Espírito fomos todos batizados em um corpo” (1 Coríntios 12:13); o único batismo é o meio de entrada no único corpo de 4:4. E ele apaga distinções como marca de pertença: “todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, porque todos quantos fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo… não há judeu nem grego” (Gálatas 3:26–28); o um batismo cria um povo. A advertência severa de Hebreus mostra por contraste a seriedade dessa iniciação: quem, tendo sido introduzido, apostata “recrucifica para si mesmo o Filho de Deus” (Hebreus 6:6); não há múltiplas iniciações repetíveis — o batismo é ato único que exige perseverança. E Pedro esclarece seu sentido: “o batismo, que corresponde a isso, agora também vos salva — não removendo a imundícia do corpo, mas como compromisso de uma boa consciência para com Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo” (Primeira de Pedro 3:21); um único apelo/aliança selado na ressurreição, coerente com Efésios 4:5.

As referências bíblicas confirmam a mesma tríade. As duas trombetas “de uma só peça” (Números 10:2) convocavam um povo com um som: imagem veterotestamentária de uma convocação única que reúne a assembleia — como a confissão de “um só Senhor”, a “uma só fé” e o “um só batismo” reúnem a igreja. O profeta promete: “o SENHOR será rei sobre toda a terra; naquele dia um será o SENHOR, e um será o seu nome” (Zacarias 14:9); Efésios 4:5 é essa esperança cumprida na confissão cristã. Paulo deseja “ser juntamente consolado convosco pela fé mútua, tanto vossa como minha” (Romanos 1:12); a mútua edificação supõe uma fé compartilhada. Colossenses retoma o símbolo batismal: “sepultados com Ele no batismo, nele também ressuscitastes” (Colossenses 2:12); a mesma união uma-vez-para-sempre que Efésios 4:5 chama de “um só batismo”. E Tiago lembra: “crês que Deus é um? fazes bem; até os demônios o creem e estremecem” (Tiago 2:19); a mera admissão monoteísta não basta — é preciso confessar e submeter-se ao um Senhor, pela uma fé, selada no um batismo que compromete a consciência e molda a vida.

Assim, cada referência sustenta a mesma confissão de Efésios 4:5: a igreja é una porque pertence a um só Senhor, confessa uma só fé entregue de uma vez por todas, e foi iniciada, como um só povo, por um só batismo no Nome.

Em Efésios 4:6, Paulo confessa: “um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos”. A primeira cláusula — “um só Deus e Pai de todos” — está em linha direta com a benção final da própria carta: “paz… e amor com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo” (Efésios 6:23), mostrando que a unidade da igreja deriva de um único Pai. O título antigo “Deus dos espíritos de toda a carne” (Números 16:22) amplia “de todos” para a esfera da criação inteira. Quando Israel ora “tu és nosso Pai; ainda que Abraão não nos conhece… tu, SENHOR, és nosso Pai” (Isaías 63:16), a paternidade divina fundamenta a identidade do povo; a pergunta profética “não temos nós todos um só Pai? não nos criou um só Deus?” (Malaquias 2:10) transforma a paternidade em argumento ético de unidade — exatamente o ponto do contexto de Efésios 4. Jesus nos ensinou a nos dirigirmos a Deus como “Pai nosso” (Mateus 6:9) e, após a ressurreição, sela: “meu Pai e vosso Pai” (João 20:17), o que universaliza a filiação em Cristo. A confissão apostólica declara: “para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas” (1 Coríntios 8:6), e o mesmo Deus “opera tudo em todos” (1 Coríntios 12:6), unindo “por meio de todos” com a paternidade única. Essa filiação é dada a todos os crentes: “todos sois filhos de Deus mediante a fé… todos vós sois um em Cristo” (Gálatas 3:26–28), e, pela adoção, Deus “enviou o Espírito de seu Filho aos vossos corações, que clama: Aba, Pai” (Gálatas 4:3–7); por isso João se admira: “vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus” (1 João 3:1–3). Assim, “um só Deus e Pai de todos” em Efésios 4:6 resume a revelação: um Pai único, origem e vínculo do único povo.

A segunda afirmação — Deus “sobre todos” — explicita a soberania que sustenta a unidade. Cristo foi exaltado “acima de todo principado e autoridade” (Efésios 1:21), de modo que, sob Ele, a igreja confessa a primazia do Pai. Melquisedeque bendiz “o Deus Altíssimo, possuidor dos céus e da terra” (Gênesis 14:19), linguagem retomada quando Davi ora: “teu é, SENHOR, o reino… e estás exaltado como chefe sobre tudo; riquezas e glória vêm de ti, e tu dominas sobre tudo” (1 Crônicas 29:11–12). O salmista canta: “o SENHOR é grande Deus, e Rei grande sobre todos os deuses” (Salmos 95:3). Isaías contrapõe o Pastor que cuida (40:11) à grandeza incomparável do Criador “diante de quem as nações são como uma gota” (40:15; 40:11–17) e que “se assenta sobre o círculo da terra… reduz a nada os príncipes” (40:21–23). Jeremias confessa “o Deus vivo, Rei eterno… Criador pela sua palavra” (Jeremias 10:10–13). Nabucodonosor aprende a dizer: “todos os moradores da terra são nada, e segundo a sua vontade ele opera… ninguém pode deter a sua mão” (Daniel 4:34–35), lição que Daniel repete a Belsazar: foi o Altíssimo quem “deu a teu pai o reino… e a quem queria matava e a quem queria deixava com vida” (Daniel 5:18–23). A doxologia da oração do Senhor conclui: “teu é o reino, o poder e a glória” (Mateus 6:13), e Paulo sela: “dele, por ele e para ele são todas as coisas” (Romanos 11:36) — linguagem que costura “sobre todos” e “por meio de todos”. No trono, os seres viventes proclamam “Santo, Santo, Santo… digno és… porque todas as coisas tu criaste” (Apocalipse 4:8–11). Portanto, dizer que Ele é “sobre todos” em Efésios 4:6 não é um adorno: é reconhecer que a unidade da igreja repousa na realeza criadora e providente de Deus.

Por fim, a cláusula “por meio de todos e em todos” ilumina a ação presente de Deus na igreja. O “por meio de todos” já apareceu em “o mesmo Deus opera tudo em todos” (1 Coríntios 12:6), mas Efésios enfatiza também o “em todos”: a comunidade é “habitação de Deus no Espírito” (Efésios 2:22) e Cristo “habita pela fé em vossos corações” (Efésios 3:17). Jesus prometeu: “se alguém me ama… viremos a ele e faremos nele morada” (João 14:23), e orou para que “o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles” (João 17:26). A promessa antiga cumpre-se: “habitarei e andarei entre eles… serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (2 Coríntios 6:16). A evidência dessa presença é relacional: “aquele que guarda os seus mandamentos permanece nele, e ele nele; e nisto conhecemos que permanece em nós: pelo Espírito” (1 João 3:24); “Deus permanece em nós, e nisto conhecemos… se confessarmos que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus” (1 João 4:12–15). Assim, “por meio de todos e em todos” não apaga a distinção Criador–criatura, mas afirma que o Deus soberano age por toda a sua igreja e habita em toda a sua igreja, sustentando, energizando e unificando o corpo.

As confirmações bíblicas apenas reforçam a mesma confissão de unidade: “Tu só és Deus” (Salmos 86:10); “naquele dia o SENHOR será um, e um será o seu nome” (Zacarias 14:9); “não há senão um só Deus” (1 Coríntios 8:4); damos graças “ao Pai” que nos fez idôneos (Colossenses 1:12); há “um só Deus e um só Mediador, Jesus Cristo” (1 Timóteo 2:5); e até a ortodoxia mais básica reconhece: “crês que Deus é um? fazes bem” (Tiago 2:19). Efésios 4:6, portanto, amarra toda a tapeçaria: um Pai único sobre todos, que opera por todos e habita em todos — a raiz objetiva da unidade que os versículos anteriores nos mandam guardar.

Em Efésios 4:7 Paulo explica por que a unidade que ele acabou de afirmar (um corpo, um Espírito, uma esperança) não elimina a diversidade: “a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo”. O par “graça/dom” aqui é graça para servir (carisma), não graça para salvar (Efésios 2:8). Observe como cada referência bíblica ilumina essa frase. O próprio parágrafo seguinte (Efésios 4:8–14) mostra que o Cristo exaltado distribui dons diversos — apóstolos, profetas, evangelistas, pastores-mestres — para edificar um corpo, logo a diversidade provém da mesma Cabeça e visa a mesma unidade. A parábola dos talentos confirma o princípio de distribuição “conforme a capacidade de cada um” (Mateus 25:15): há medida e responsabilidade. Paulo diz o mesmo em outra lista: “temos diferentes dons, segundo a graça que nos foi dada” (Romanos 12:6–8); e detalha noutra: “a um é dada… a outro…” — mas “um e o mesmo Espírito opera tudo, repartindo a cada um individualmente” (Primeira aos Coríntios 12:8–11). Por isso ninguém concentra tudo: “pôs Deus na igreja… uns para isto, outros para aquilo… porventura são todos apóstolos? todos falam em línguas?” (1 Coríntios 12:28–30). Essa “graça” ministerial já tinha aparecido como privilégio e encargo: “a mim foi dada a graça… de anunciar” (Efésios 3:8); por isso Paulo suplica que não recebamos “a graça de Deus em vão” (2 Coríntios 6:1), e Pedro manda: “cada um administre aos outros o dom, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1 Pedro 4:10). A cláusula “segundo a medida” liga-se à “dispensação da graça” confiada a Paulo (Efésios 3:2) e se equilibra com duas ideias complementares: Cristo recebeu o Espírito sem medida (João 3:34) — portanto possui a plenitude —, e, a partir dessa plenitude, Ele reparte “medida de fé” e “regra de medição” a cada servo (Romanos 12:3; 2 Coríntios 10:13–15). É por isso que todos participamos, mas ninguém se gloria além da medida; e todos dependemos da plenitude de Cristo (ecoando também João 1:16, da lista recíproca).

No versículo seguinte (Efésios 4:8) Paulo cita o Salmo 68 para explicar como Cristo pode distribuir dons: “Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens.” O texto-fonte é Salmos 68:18, onde o Rei vitorioso sobe a Sião trazendo cativos e recebendo dádivas; Paulo, lendo a vitória pascal, mostra o Rei messiânico distribuindo dádivas ao seu povo. O verbo “levar cativos” soa como o cântico de Débora — “desperta… leva cativos” (Juízes 5:12) — e, em chave do Novo Testamento, como o despojamento que Cristo fez “dos principados e potestades” (Colossenses 2:15). A segunda metade da frase (“deu dons”) encontra paralelos na prática régia: Davi, ao regressar vitorioso, reparte o despojo com os anciãos (1 Samuel 30:26), e o rei persa faz presentes por ocasião da ascensão de Ester (Ester 2:18). As referências bíblicas ampliam o quadro da ascensão: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças… entrará o Rei da glória” (Salmos 24:7–10), “Deus subiu por entre aclamações” (Salmos 47:5), “foi elevado às alturas… derramou o que agora vedes e ouvis” (Atos 2:33), “o Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu” (Marcos 16:19). O caminho é sempre o mesmo: vitória → subida → partilha de dons.

Efésios 4:9 comenta a citação: “Ora, isto — subiu — que é, senão que também desceu às regiões inferiores da terra?” O Antigo Testamento já fazia a pergunta que só Cristo responde: “Quem subiu ao céu e desceu?… qual é o seu nome?” (Provérbios 30:4). Jesus se identifica como o Filho do Homem que “desceu do céu” e “subiu ao céu” (João 3:13), “o pão de Deus que desce do céu e dá vida ao mundo” (João 6:33; 6:38; 6:41; 6:51; 6:58), e, depois da ressurreição, fala explicitamente de “subir para meu Pai” (João 20:17). Pedro reforça: “Davi não subiu aos céus”, mas Deus fez Jesus Senhor e Cristo (Atos 2:34–36). Quando Paulo diz “desceu às partes mais baixas da terra”, ele costura toda a humilhação do Verbo: feito “um pouco menor do que os anjos” (Salmos 8:5; Hebreus 2:7; 2:9), tecido no “profundo da terra” (Salmos 139:15), lançado ao “coração da terra” “três dias e três noites” (Mateus 12:40), até que, do pó da humilhação e das profundezas da morte, Ele suba. As notas “ele também desceu” (Gênesis 11:5; Êxodo 19:20) lembram a antiga vinda de Deus em juízo e teofania — agora cumpridas na encarnação do Filho.

Efésios 4:10 fecha o arco: “Aquele que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas.” A exaltação já fora cantada: Deus “o fez sentar-se à sua destra nos lugares celestiais… acima de todo principado… e o deu como Cabeça sobre todas as coisas à igreja” (Efésios 1:20–23); os relatos da ascensão confirmam (Atos 1:9; Atos 1:11), e a confissão apostólica o proclama “manifestado na carne… recebido na glória” (1 Timóteo 3:16). Como “Sumo Sacerdote que atravessou os céus” (Hebreus 4:14), “santo, inculpável, exaltado acima dos céus” (Hebreus 7:26), “assentado à direita do trono da Majestade” (Hebreus 8:1), Ele entra “no próprio céu, para agora comparecer por nós” (Hebreus 9:23–24). E para quê? “Para encher todas as coisas.” Isso tem dois sentidos complementares: (1) plenitude que transborda sobre a igreja e o mundo: “da sua plenitude todos nós recebemos” (João 1:16); “exaltado à destra de Deus, derramou isto que agora vedes” (Atos 2:33); “aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude” (Colossenses 1:19) e “nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2:9) — de onde Ele abastece o corpo (compare Efésios 1:23). (2) Plenitude como cumprimento do plano e das Escrituras: “era necessário que se cumprisse tudo” (Lucas 24:44); “para que se cumprisse a Escritura” (João 19:24; 19:28; 19:36); Deus “cumpriu assim o que antes anunciara” (Atos 3:18; Atos 13:32–33). Esse “encher” alcança também os povos, como Paulo lê em Romanos: promessas aos gentios sendo cumpridas (Romanos 9:25–30; 15:9–13), o “mistério guardado em silêncio” agora manifestado (Romanos 16:25–26). Por isso, se Ele “subiu” “acima de todos os céus”, nossa vida busca “as coisas lá do alto, onde Cristo está, assentado” (Colossenses 3:1), enquanto o próprio Cristo enche a igreja de dons para que ela, por sua vez, encha o mundo com o evangelho.

Assim, em Efésios 4:7–10, cada referência bíblica mostra a mesma linha: Cristo possui a plenitude (João 3:34; João 1:16), desce em humilhação, sobe em vitória, leva cativo o cativeiro, distribui dons “segundo a medida” e, do lugar supremo, enche a igreja e cumpre as Escrituras entre as nações. A unidade do corpo (v.7) é preservada precisamente porque a diversidade de dons vem da mesma Cabeça exaltada e serve ao mesmo fim: que “tudo seja cheio” de Cristo.

Em Efésios 4:11 Paulo explicita o modo como o Cristo exaltado, que “subiu ao alto” e “deu dons” (Efésios 4:8), edifica a sua igreja: “ele mesmo deu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres”. O “ele mesmo” retoma o Cristo do versículo 8; por isso Efésios 4:8 é a chave imediata: a distribuição de dons do Rei vitorioso desemboca, em 4:11, na instituição de ministérios. Efésios 2:20 já havia mostrado por que os primeiros na lista são “apóstolos e profetas”: sobre eles está lançado o fundamento, tendo Jesus Cristo como a pedra angular; Efésios 3:5 explicou que o “mistério” foi revelado “aos seus santos apóstolos e profetas no Espírito”, de modo que os dois primeiros ofícios são fundacionais na recepção e transmissão da revelação do Evangelho. Romanos 10:14–15, ao perguntar “como ouvirão, se não há quem pregue? e como pregarão, se não forem enviados?”, detalha a própria lógica de Efésios 4:11: é Cristo quem envia e, enviando, dá pessoas à igreja para que a igreja tenha Palavra, fé e salvação. Primeira aos Coríntios 12:28 ecoa a mesma ordem soberana: “a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas…”, o que confirma que a variedade ministerial em 4:11 é obra da Cabeça por meio do Espírito. Judas 1:17 chama a igreja a lembrar-se das palavras dos apóstolos: eles foram dados para fixar o padrão apostólico pelo qual tudo se mede. Apocalipse 18:20 manda “alegrar-se” apóstolos e profetas no juízo de Deus sobre a Babilônia, mostrando que esses ofícios existem como corpo testemunhal até o fim. E Apocalipse 21:14 sela a imagem fundacional: o muro da Nova Jerusalém tem “doze fundamentos” com “os doze nomes dos apóstolos do Cordeiro”; Efésios 4:11, portanto, coloca na história o que Apocalipse retrata na escatologia: Cristo deu apóstolos e profetas como alicerce da sua morada.

Quando Paulo menciona “evangelistas”, o livro de Atos oferece o exemplo vivo: Filipe é chamado explicitamente de “o evangelista” (Atos dos Apóstolos 21:8), mostrando que o termo não é apenas uma função genérica, mas um ofício reconhecido de quem anuncia e planta. A Timóteo, pastor em Éfeso, Paulo ordena: “faz a obra de um evangelista” (Segunda a Timóteo 4:5), o que explica por que em Efésios 4:11 “pastores e mestres” convivem, complementados por “evangelistas” que avançam fronteiras e acendem novas lâmpadas; Cristo dá tais pessoas para que o corpo não apenas se mantenha, mas se expanda.

Por fim, “pastores e mestres” são o par que cuida e instrui o rebanho edificado. A história de Judá lembra o que acontece quando esse dom falta: “por muito tempo Israel esteve sem o verdadeiro Deus, sem sacerdote que ensinasse, e sem lei” (2 Crônicas 15:3); Efésios 4:11 é a resposta de Cristo a essa carência: ele dá quem apascente e ensine. O próprio Senhor prometeu: “vos darei pastores segundo o meu coração, que vos apascentem com conhecimento e com inteligência” (Jeremias 3:15); o conteúdo (“conhecimento”) explica o acoplamento “pastores e mestres”. A Grande Comissão exige que os discípulos sejam feitos “ensinando-os a guardar” (Mateus 28:20); o “mestre” em Efésios 4:11 cumpre exatamente essa cláusula do mandato do Ressuscitado. Em Antioquia havia “profetas e mestres” (Atos dos Apóstolos 13:1), mostrando como a igreja local experimenta, na prática, a variedade mencionada por Paulo. Romanos 12:7 distingue o dom: “se é ensinar, haja dedicação ao ensino”; e Primeira aos Coríntios 12:29 pergunta retoricamente “são todos mestres?”, sublinhando que Cristo distribui de modo diverso. Hebreus 5:12 repreende quem “já devia ser mestre” e ainda precisa de leite, lembrando que Cristo dá mestres, mas também forma novos mestres pelo crescimento. E Primeira de Pedro 5:1–3 resume a ética do ofício: “pastoreai o rebanho de Deus… exemplo do rebanho”; é isso que Efésios 4:11 quer garantir ao corpo: cuidado, direção, ensino fiel.

As referências bíblicas desenham a moldura mais ampla do mesmo ato soberano de Cristo que confia pessoas à sua obra e as capacita para vigiar, falar e conduzir. O tabernáculo erguido com pátio e cortinas (Êxodo 40:8; Êxodo 40:33) e a entrega de instrumentos aos levitas (Números 3:9; Números 7:5) figuram a organização do culto: Deus separa e entrega servos com funções definidas — como Cristo faz em Efésios 4:11. “Se houver entre vós profeta, eu, o SENHOR, a ele me revelarei” (Números 12:6) antecipa a lógica do “profeta” novo-testamentário. Quando Moisés constitui chefes sobre o povo (Deuteronômio 1:15), vemos o princípio de delegação que reaparece nas listas de dons. “O Senhor dava a palavra; grande era a companhia dos que a anunciavam” (Salmos 68:11) é a música de fundo de Efésios 4:8–11. Mesmo em tempos escuros, Deus não tira “os teus mestres” (Isaías 30:20): preserva a instrução. Israel será chamado “sacerdotes do SENHOR” (Isaías 61:6) e terá “sentinelas sobre os teus muros” (Isaías 62:6): imagens do cuidado e da vigilância pastoral. “Antes que te formasse… te constituí profeta” (Jeremias 1:5) e “por atalaia te dei” (Ezequiel 33:7) mostram que tais ministérios são dádivas da vontade divina, não criações humanas. “Os sábios resplandecerão… e os que a muitos conduzem à justiça brilharão” (Daniel 12:3): o fruto esperado dos que ensinam e pastoreiam. Por isso Jesus manda suplicar ao “Senhor da seara que mande trabalhadores” (Mateus 9:38) e chama os Doze “apóstolos” (Mateus 10:2), envia “servos” para cuidar da sua vinha (Mateus 13:27), põe um “servo fiel e prudente para dar o sustento” (Mateus 24:45) e “entrega talentos” (Mateus 25:14): todas essas cenas explicam o “ele deu” de Efésios 4:11. Lucas confirma o chamado: testemunhas “desde o princípio” (Lucas 1:2), a escolha dos “apóstolos” (Lucas 6:13) e a palavra de Sabedoria eterna: “enviarei profetas e apóstolos” (Lucas 11:49). O Bom Pastor declara que as ovelhas “não seguirão o estranho” (João 10:5), pressupondo pastores verdadeiros; e na oração, Cristo diz: “eu lhes dei as palavras que me deste” (João 17:8) e ora “por aqueles que hão de crer por meio da palavra deles” (João 17:20): eis a cadeia do dom ministerial. Em Atos, o apostolado é “lote” recebido de Cristo (Atos dos Apóstolos 1:17); Estêvão, cheio de graça e poder (Atos 6:8), e os “profetas” em Jerusalém (Atos 11:27) e os “profetas” que exortam e fortalecem em Antioquia (Atos 15:32) ilustram como Cristo efetivamente dá pessoas que falam e edificam. Paulo se entende “chamado para apóstolo” (Romanos 1:1), discerne “segundo a graça” a variedade de dons (Romanos 12:6), e em Corinto tudo converge: “Paulo, chamado apóstolo” (1 Coríntios 1:1); fala de “sabedoria entre os maduros” (1 Coríntios 2:6), lembra que “tudo é vosso… Paulo, Apolo, Cefas” (1 Coríntios 3:22), trata dos “espirituais” (1 Coríntios 12:1), distingue “administrações” (1 Coríntios 12:5) e afirma que “todos podeis profetizar um por um, para que todos aprendam” (1 Coríntios 14:31): variedade, ordem e edificação, exatamente o alvo de Efésios 4:12–16. “Ele nos fez ministros de uma nova aliança” (Segunda aos Coríntios 3:6) mostra a origem divina da incumbência. Em Filipos, o apóstolo permanece “para proveito e gozo da fé” (Filipenses 1:25): o dom da pessoa para o progresso do corpo. Em Colossos, a meta dos mestres é “advertindo e ensinando… para apresentar todo homem perfeito em Cristo” (Colossenses 1:28), e Paulo cobra: “cumpre o ministério que recebeste” (Colossenses 4:17): expressão direta do “ele deu”. “Não desprezeis as profecias” (1 Tessalonicenses 5:20) protege o dom profético. “Toda Escritura é útil para ensinar” (2 Timóteo 3:16) sustenta o ofício de mestre. Tiago adverte: “não vos torneis muitos mestres” (Tiago 3:1), lembrando que o dom vem com juízo e medida. Pedro exhorta: “cada um administre… como bons despenseiros da multiforme graça” (1 Pedro 4:10), e volta a se nomear “apóstolo” por chamado (2 Pedro 1:1); o Apocalipse promete: “darei às minhas duas testemunhas… que profetizem” (Apocalipse 11:3): Cristo continua a dar vozes ao seu povo.

Assim, em Efésios 4:11, cada passagem bíblica converge para a mesma confissão: o Cristo que desceu e subiu é quem dá à igreja pessoas — apóstolos e profetas para o fundamento revelacional; evangelistas para o avanço missionário; pastores e mestres para o cuidado e a instrução —, de tal modo que a unidade do corpo se traduza em maturidade, e a plenitude de Cristo se derrame, por meio desses dons, sobre todos.

Em Efésios 4:12 Paulo revela o propósito pelo qual o Cristo exaltado “deu” pessoas-dom à igreja (v.11): “para o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do corpo de Cristo.” Cada texto bíblico mostra esse triplo movimento acontecendo em toda a Escritura — os santos sendo ajustados, os ministros servindo, e o corpo crescendo.

Quando ele diz “aperfeiçoamento dos santos”, a ideia é de ajuste, restauração e capacitação. Foi isso que o Senhor pediu a Pedro: “quando te converteres, fortalece os teus irmãos” (Lucas 22:32); e, já restaurado, o Senhor o comissiona três vezes: “apascenta… pastoreia… apascenta as minhas ovelhas” (João 21:15-17). Em seguida, Atos descreve exatamente esse resultado do ministério: “as igrejas tinham paz, eram edificadas e, no consolo do Espírito Santo, se multiplicavam” (Atos 9:31); quando Barnabé chega a Antioquia, ele “exorta a todos a permanecerem no Senhor com firme propósito de coração” (Atos 11:23) — estabilização espiritual é “aperfeiçoamento” na prática. Em Listra, Icônio e Antioquia, Paulo e Barnabé passam “confirmando as almas dos discípulos e exortando-as a permanecer na fé” (Atos 14:22) e “constituindo presbíteros em cada igreja” (Atos 14:23): ajustar pessoas e organizar liderança é parte do mesmo verbo. Em Mileto, Paulo lembra aos presbíteros que o Espírito os constituiu para “apascentar a igreja de Deus” (Atos 20:28) — isto é, munir e velar, o próprio “aperfeiçoar”. Em Roma, Paulo reconhece que os irmãos “estão cheios de bondade, cheios de todo conhecimento, aptos para se admoestarem uns aos outros” (Romanos 15:14); e deseja chegar “na plenitude da bênção de Cristo” (Romanos 15:29), meta que coincide com maturidade. Em Corinto, ele explica que a “manifestação do Espírito é concedida a cada um visando ao que é útil” (1 Coríntios 12:7): dons pessoais são ferramentas para o ajuste de todos. A exortação “aperfeiçoando a santidade no temor de Deus” (2 Coríntios 7:1) dá a direção ética do mesmo processo. Em Filipos, Paulo decide “permanecer com todos para o progresso e júbilo da fé” (Filipenses 1:25-26) e mostra o alvo: não que já tenha alcançado, mas prossegue para a perfeição e manda que os “maduros” pensem assim e que “sejais meus imitadores” (Filipenses 3:12-18); o aperfeiçoamento tem ritmo de caminhada e modelo vivo. Em Colossos, ele define o trabalho do ensino: “anunciamos, admoestando e ensinando a todo homem com toda sabedoria, para apresentar todo homem perfeito em Cristo” (Colossenses 1:28). Em Tessalônica, a agenda diária da santificação comunitária aparece em série: “edificai-vos uns aos outros e consolai-vos” (1 Tessalonicenses 5:11), “admoestai os desordeiros, consolai os desanimados, amparei os fracos, sede pacientes para com todos” (1 Tessalonicenses 5:14) — exatamente o que “aperfeiçoar” requer. Hebreus manda “deixemos os rudimentos… e avancemos para a maturidade” (Hebreus 6:1) e, no fim, lembra: “obedecei aos vossos guias… pois velam por vossas almas” (Hebreus 13:17); o cuidado pastoral é o caminho ordenado para a maturidade dos santos.

Daí Paulo emendar “para a obra do ministério”: os santos são ajustados a fim de servirem. Os doze reconheceram que haviam “recebido parte neste ministério” (Atos 1:17) e que outro deveria “tomar parte neste ministério e apostolado” (Atos 1:25); não é honra privada, é encargo público. O próprio Paulo vive sob essa consciência: “em nada tenho a minha vida por preciosa, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor” (Atos 20:24). Romanos chama cada crente ao foco: “se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino…” (Romanos 12:7) — variedade de tarefas, uma mesma obra. Por isso ele define os servos como “ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus” (1 Coríntios 4:1) e acrescenta a régua: “requer-se… que cada um se ache fiel” (1 Coríntios 4:2). Em Corinto ainda, Paulo contrasta a antiga e a nova economia: o “ministério do Espírito” é “muito mais glorioso” (2 Coríntios 3:8); por isso, “tendo este ministério, não desfalecemos” (2 Coríntios 4:1). E qual é o cerne da obra? “Deus nos deu o ministério da reconciliação” (2 Coríntios 5:18). Logo, os ministros se recomendam “em tudo, não dando motivo de escândalo, para que o ministério não seja vituperado” (Segunda aos Coríntios 6:3). Tudo isso desemboca em chamados concretos: “Atenta para o ministério que recebeste no Senhor, para o cumprires” (Colossenses 4:17); “dou graças ao que me fortaleceu, a Cristo Jesus… porque me pôs no ministério” (1 Timóteo 1:12); “faz a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério” (2 Timóteo 4:5); “Traz Marcos contigo, porque me é útil para o ministério” (2 Timóteo 4:11). A “obra” é maior que um homem; por isso Cristo dá pessoas e junta equipes.

A terceira cláusula mostra o alvo: “para a edificação do corpo de Cristo”. O próprio parágrafo fecha com essa imagem: de Cristo “todo o corpo, ajustado e coeso pelo auxílio de cada junta, efetua o seu aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Efésios 4:16); e a ética da fala é regulada por esse fim: “não saia da vossa boca palavra torpe, mas a que for boa para edificação, conforme a necessidade, para que ministre graça” (Efésios 4:29). Em Roma a linguagem é idêntica: “sigamos, pois, as coisas que servem para a paz e para a edificação mútua” (Romanos 14:19); “cada um de nós agrade ao próximo para o que é bom, para edificação” (Romanos 15:2). Em Corinto Paulo repete dez vezes a palavra “edificar”: “o que profetiza edifica a igreja” (1 Coríntios 14:4); ele até deseja que todos profetizem “para que a igreja receba edificação” (1 Coríntios 14:5); manda “abundar para a edificação da igreja” (1 Coríntios 14:12); lembra que “se orar em línguas… o meu espírito ora, mas o meu entendimento fica sem fruto” (1 Coríntios 14:14) — logo, inteligibilidade é critério de edificação; conclui: “faça-se tudo para edificação” (1 Coríntios 14:26). Mesmo ao defender-se, Paulo diz: “tudo… é para vossa edificação” (2 Coríntios 12:19). E em Tessalônica volta o imperativo comunitário: “exortai-vos e edificai-vos uns aos outros” (1 Tessalonicenses 5:11). A distribuição de dons, a obra dos ministros e a maturidade dos santos convergem nesse resultado: o corpo cresce.

Por falar em corpo, Paulo ancora a expressão final: “o corpo de Cristo.” A unidade de 4:1-6 explica-se por “um só corpo” (Efésios 4:4); essa comunidade é “a plenitude daquele que tudo enche” (Efésios 1:23); e Paulo, sofrendo por ela, diz “na minha carne cumpro o que resta das aflições de Cristo a favor do seu corpo, que é a igreja” (Colossenses 1:24). Edificar “o corpo” é, portanto, cooperar com a Cabeça para que a sua plenitude encha o seu povo.

As referências bíblicas espalham a mesma lógica por toda a Bíblia: Deus organiza sua casa, envia seus servos, fixa um padrão e constrói seu povo. O arranjo do tabernáculo — pátio, cortinas, estacas (Êxodo 40:8) — é imagem visível de um povo ajustado em torno da presença, o que Efésios chama de “aperfeiçoamento”. Deus chama e ordena ministros desde cedo: “antes que te formasse… te constituí profeta” (Jeremias 1:5) e promete “vos darei pastores segundo o meu coração” (Jeremias 3:15) — a mesma graça de 4:11 para 4:12. Israel é chamado a servir como “sacerdotes do SENHOR” (Isaías 61:6) e receber “sentinelas” (Isaías 62:6), funções que protegem e edificam. Na parábola da vinha aparecem os “servos” (Mateus 13:27), e o Novo Testamento abre com “testemunhas desde o princípio” (Lucas 1:2); Jesus afirma: “eu lhes dei as palavras que me deste” e “eu neles, e tu em mim, para que sejam aperfeiçoados em unidade” (João 17:8; João 17:23) — exatamente o efeito almejado em Efésios 4:12-13. Em Jerusalém, “profetas… exortavam e confirmavam os irmãos” (Atos 15:32), e Paulo encomendou os anciãos “à palavra da sua graça, que tem poder para edificar” (Atos 20:32). Tudo isso supõe mensageiros: “como pregarão, se não forem enviados?” (Romanos 10:15). A igreja pertence a Cristo e seus ministros são seus dons: “tudo é vosso: Paulo, Apolo, Cefas” (1 Coríntios 3:22); por isso nossos “membros” (1 Coríntios 6:15) estão comprometidos com “um só pão, um só corpo” (1 Coríntios 10:17), sob “diversidades de administrações” (1 Coríntios 12:5) e na realidade de “um só corpo” (1 Coríntios 12:12; 12:27). A profecia deve produzir “edificação, exortação e consolação” (1 Coríntios 14:3), e Paulo deseja que “todos profetizeis um por um, para que todos aprendam e todos sejam consolados” (1 Coríntios 14:31) — a própria mecânica de 4:12 em ação. “Ele nos fez ministros de nova aliança” (Segunda aos Coríntios 3:6) e nos edificou “sobre o fundamento dos apóstolos e profetas” (Efésios 2:20); o alvo é “chegarmos à unidade da fé e à medida da estatura” (Efésios 4:13). Por isso Paulo confia: “aquele que começou boa obra a aperfeiçoará” (Filipenses 1:6), e exorta: “não desprezeis as profecias” (1 Tessalonicenses 5:20), “edificação que promove a fé” (1 Timóteo 1:4), e “excelente obra deseja” quem almeja o episcopado (1 Timóteo 3:1) — tudo vocabulário de construção do corpo.

Assim, Efésios 4:12 é a régua e o roteiro: Cristo ajusta os santos (Lucas 22; João 21; Atos 9; 11; 14; 20; Romanos 15; 1 e 2 Coríntios; Filipenses 1 e 3; Colossenses 1; 1 Tessalonicenses 5; Hebreus 6 e 13), para que sirvam na obra que Ele confiou (Atos 1 e 20; Romanos 12; 1 e 2 Coríntios; 2 Coríntios 3–6; Colossenses 4; 1 e 2 Timóteo 4), e, servindo, edifiquem efetivamente o corpo (Efésios 4; Romanos 14–15; 1 Coríntios 14; 2 Coríntios 12; 1 Tessalonicenses 5), até que a igreja manifeste a plenitude de Cristo (Efésios 1:23) como um só corpo (Efésios 4:4; Colossenses 1:24).

Em Efésios 4:13 Paulo descreve o alvo da distribuição de dons (4:11–12): “até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo”. O “todos” amarra o parágrafo anterior sobre “um só corpo… um só Senhor… uma só fé” (Efésios 4:3; 4:5): a unidade que devemos “guardar” é precisamente a que Deus prometeu formar — “serão meu povo e eu serei o seu Deus, e lhes darei um só coração e um só caminho” (Jeremias 32:38–39); é a reunião das tribos em uma só nação com um só rei (Ezequiel 37:21–22); é o “lábio puro” pelo qual os povos invocam um Nome (Sofonias 3:9); é o dia em que “o SENHOR será um, e um será o seu nome” (Zacarias 14:9). Jesus pediu e definiu essa unidade: “que todos sejam um, como Tu em mim e eu em Ti” (João 17:21); e Atos mostra seu início histórico: “da multidão dos que creram era um o coração e a alma” (Atos dos Apóstolos 4:32). Por isso Paulo exorta a “falar a mesma coisa… sem divisões” (1 Coríntios 1:10) e a cultivar “o mesmo amor, um só ânimo, um mesmo sentimento” (Filipenses 2:1–3).

A segunda expressão — “o conhecimento do Filho de Deus” — não é informação fria: é conhecimento que justifica, transforma e dá vida. O Servo justo “com o seu conhecimento justificará a muitos” (Isaías 53:11). Esse conhecimento é dom do Pai: “ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mateus 11:27). Por contraste, o mundo religioso “não conheceu nem ao Pai nem a mim” (João 16:3), mas a vida eterna é “conhecer a Ti… e a Jesus Cristo” (João 17:3); por isso o Filho “deu a conhecer” o nome do Pai e continua a dá-lo a conhecer (João 17:25–26). Conversão é criação de luz: “Deus… brilhou em nossos corações para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2 Coríntios 4:6). É por isso que Paulo “estima tudo como perda pela excelência do conhecimento de Cristo” (Filipenses 3:8). Em termos de igreja, esse conhecimento é “plena certeza de entendimento… para o conhecimento do mistério de Deus, Cristo” (Colossenses 2:2). Ele é também a base da vida: “graça e paz vos sejam multiplicadas no conhecimento de Deus e de Jesus… pelo conhecimento… nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade” (2 Pedro 1:1–3); e crescemos continuamente “na graça e no conhecimento” (2 Pedro 3:18). Tudo converge em segurança: “o Filho de Deus já veio e nos tem dado entendimento para conhecermos ao Verdadeiro” (1 João 5:20).

“A homem perfeito” indica maturidade. É o desfecho do v.12: ajustes e ministérios para apresentar gente madura (Efésios 4:12). É também o “novo homem” criado em Cristo (Efésios 2:15). Logo, “não sejais meninos no entendimento;… sede perfeitos no entendimento” (1 Coríntios 14:20). O trabalho do ensino visa exatamente isso: “advertindo e ensinando… para apresentar todo homem perfeito em Cristo” (Colossenses 1:28). E o padrão é a última cláusula: “a medida da estatura da plenitude de Cristo”, que retoma 1:23: a igreja é “a plenitude daquele que tudo enche”. Maturidade não é bater metas humanas; é corresponder a Cristo em sua plenitude.

Daí o 4:14: o objetivo prático da maturidade é “que não mais sejamos meninos”. As Escrituras contrapõem infância espiritual a maturidade: “a quem ensinaria ele o conhecimento?” (Isaías 28:9) — ironia contra imaturidade; Jesus exige humildade infantil para entrar (Mateus 18:3–4), mas Paulo repreende quando há infantilidade no entendimento: “vos dei leite… não pude falar-vos como a espirituais” (1 Coríntios 3:1–2); “crianças na malícia, mas adultos no entendimento” (1 Coríntios 14:20). Hebreus diz que já devíeis ser mestres, mas ainda precisais de leite; o “alimento sólido é para adultos” (Hebreus 5:12–14).

“Agitados como as ondas e levados em roda por todo vento de doutrina” explica o perigo. Paulo preveniu Éfeso: “lobos cruéis… pervertendo as coisas para atrair os discípulos” — “vigiai!” (Atos dos Apóstolos 20:30–31). Em Roma manda “notar os que provocam divisões… enganam os corações dos simples” (Romanos 16:17–18). Em Corinto teme que “assim como a serpente enganou Eva” a mente deles “seja corrompida” e recebam “outro Jesus… outro espírito… outro evangelho” (2 Coríntios 11:3–4). Gálatas já estava “passando para outro evangelho (que não é outro!)” (Gálatas 1:6–7) — é a ventania; “insensatos Gálatas, quem vos fascinou?” (Gálatas 3:1). Colossos alerta contra “persuasivos discursos” e “filosofia… rudimentos do mundo” (Colossenses 2:4–8). Tessalônica não devia “deixar-se abalar” por rumores nem por “espírito” ou “carta” falsos (2 Tessalonicenses 2:2–5). Há também imaturidade perigosa: o “neófito” pode “ensoberbecer-se” (1 Timóteo 3:6); já o bom ministro “nutre” os irmãos na “boa doutrina” e rejeita “fábulas” (1 Timóteo 4:6–7). Paulo sente o peso das deserções (“todos os da Ásia me abandonaram”, 2 Timóteo 1:15), vê doutrinas como “gangrena” (2 Timóteo 2:17–18), e descreve sedutores que “se introduzem… captivam… sempre aprendendo e nunca podendo chegar ao conhecimento da verdade” (2 Timóteo 3:6–9), enquanto “maus homens e impostores irão de mal a pior” (2 Timóteo 3:13) e “amontoarão mestres conforme as suas próprias cobiças” (2 Timóteo 4:3). Hebreus resume: “não vos deixeis levar por doutrinas várias e estranhas” (Hebreus 13:9). Pedro antevê “falsos mestres… heresias destruidoras” (2 Pedro 2:1–3). João diz que os apóstatas “saíram de nosso meio” (1 João 2:19) e escreve “acerca dos que vos enganam” (1 João 2:26), mandando “provar os espíritos” (1 João 4:1).

A imagem “levados” ganha cor em três quadros: um “caniço agitado pelo vento” (Mateus 11:7); “conduzidos aos ídolos mudos” (1 Coríntios 12:2); e o “mar agitado” do indeciso, “impelido e agitado pelo vento” (Tiago 1:6), como um “navio… impelido por ventos fortes” (Tiago 3:4).

O agente desse vendaval é “astúcia dos homens, com engano fraudulento”. Jesus avisou: “muitos falsos profetas” e “falsos cristos… grandes sinais e prodígios para enganar” (Mateus 24:11; 24:24). Paulo recusa “mercadejar a palavra de Deus” (2 Coríntios 2:17) e “astúcia, adulterando a palavra” (2 Coríntios 4:2), porque há “falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, disfarçando-se em apóstolos de Cristo” (2 Coríntios 11:13–15). O “iníquo” virá “segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, sinais e prodígios de mentira, e com todo engano” (2 Tessalonicenses 2:9–10). Pedro descreve “palavras fingidas” (2 Pedro 2:18). O Apocalipse mostra a besta com aparência de cordeiro que “engana os que habitam sobre a terra” (Apocalipse 13:11–14) e o “falso profeta” que com sinais “enganou” (Apocalipse 19:20). Por isso Paulo fala em gente que arma ciladas — como os ímpios que “se põem de emboscada” (Salmos 10:9), “espreitam” (Salmos 59:3), “armam redes” (Miqueias 7:2), ou os conspiradores de “emboscada” contra Paulo (Atos dos Apóstolos 23:21).

Assim, 4:13–14 costura todo o tecido bíblico: Deus prometeu e Cristo pediu unidade, realizada pela verdade conhecida do Filho; essa verdade faz adultos, medidos pela plenitude de Cristo; e a maturidade nos livra das ondas de enganos e modas doutrinárias, capacitando a igreja a permanecer coesa, lúcida e fiel.

Em Efésios 4:15 Paulo mostra o modo pelo qual a igreja amadurece: “seguindo a verdade em amor” (a ideia é “ser verdadeiro”, “agir com sinceridade”). O contraste com a astúcia do v.14 aparece nas próprias referências: Efésios 4:25 exige “falai a verdade cada um com o seu próximo”, e Zacarias 8:16 pede o mesmo no pós-exílio: “falai a verdade cada qual com o seu companheiro”. É por isso que Paulo recusa “artifícios” e “adulteração” da Palavra (2 Coríntios 4:2) e prova a sinceridade do amor (2 Coríntios 8:8). A nota “ou: sendo sinceros” encaixa com o apelo de Juízes 16:15 (onde se põe à prova a verdade do amor), com a bem-aventurança do homem “em cujo espírito não há engano” (Salmos 32:2), com o louvor de Jesus a Natanael “em quem não há dolo” (João 1:47) e com o imperativo: “o amor seja sem hipocrisia” (Romanos 12:9). Tiago lembra que amor sem obras é só palavra (2:15–16), e Pedro liga “purificastes as vossas almas… para o amor fraternal não fingido” (1 Pedro 1:22); João amarra tudo: “não amemos de palavra… mas por obra e em verdade” (1 João 3:18). Esse caminhar verdadeiro é orgânico: “cresçamos em tudo naquele que é a Cabeça, Cristo”. A imagem do crescimento já veio em Efésios 2:21 (“cresce para santuário santo”), é cantada por Oséias (14:5–7: orvalho, lírio, cedro), renasce “sob as asas do Sol da justiça” (Malaquias 4:2), alimenta-se do “leite espiritual… para que por ele cresçais” (1 Pedro 2:2) e progride até “crescer na graça e no conhecimento” (2 Pedro 3:18). Chamar Cristo de Cabeça (Efésios 1:22; 5:23) recolhe a mesma doutrina de Colossenses: Ele é “a Cabeça do corpo… em quem aprouve residir toda a plenitude” (Colossenses 1:18–19). Assim, “verdade + amor” é o caminho prático para a maturidade conforme Cristo-Cabeça.

Em Efésios 4:16 Paulo explica de onde vem a coesão e como ela opera: “de quem todo o corpo, bem ajustado e ligado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa operação de cada parte, efetua o seu crescimento para edificação de si mesmo em amor.” “De quem” aponta para Cristo (v.15) e ecoa João 15:5: “sem mim nada podeis fazer”; é dEle que vem suprimento e direção (Efésios 4:12). “Bem ajustado e ligado” descreve um encaixe vivo. Jó usa verbos de tricotar e moldar para o corpo humano (10:10–11), e Davi diz que foi entretecido no ventre (Salmos 139:15–16): a igreja, corpo de Cristo, tem essa mesma engenharia precisa. Paulo desenvolve a anatomia eclesial em 1 Coríntios 12:12–28: diversidade de membros, um corpo, cada parte necessária; em Colossenses 2:19, a igreja se mantém unida “pelas juntas e ligamentos”, retendo a Cabeça e recebendo dEla “nutrição”. A frase “a justa operação de cada parte” liga com Efésios 3:7 (“a operação do seu poder”) e com 1 Tessalonicenses 2:13, onde a palavra “opera eficazmente” em quem crê: Cristo age por meio de cada membro e por meio da Palavra. O resultado volta ao alvo do parágrafo (4:12): edificação. Amor é o ambiente e o agente dessa construção: “o amor edifica” (1 Coríntios 8:1); sem amor, dons e façanhas nada são (1 Coríntios 13:4–9,13; 14:1). Por isso Paulo ora para que o amor “aumente” (Filipenses 1:9), diz que a fé “age pelo amor” (Gálatas 5:6) e que a liberdade serve “pelo amor” (Gálatas 5:13–14); o Espírito produz esse fruto (Gálatas 5:22). Edificar é também consolar, firmar, unir em amor (Colossenses 2:2; 1 Tessalonicenses 1:3; 3:12; 4:9–10; 2 Tessalonicenses 1:3; 1 Timóteo 1:5; 1 Pedro 1:22; 1 João 4:16). Note como tudo volta ao v.15: “seguindo a verdade em amor” → “edificando em amor”.

Em Efésios 4:17 Paulo faz a virada ética: “Isto, pois, digo e testifico no Senhor: que não andeis mais como andam os gentios, na vaidade dos seus pensamentos.” O “digo” mostra a autoridade apostólica que aparece em outras exortações (“isto digo”, “declaro”: 1 Coríntios 1:12; 15:50; 2 Coríntios 9:6; Gálatas 3:17; Colossenses 2:4); o “testifico no Senhor” é fórmula solene — como quando Paulo conjura “diante de Deus” (1 Tessalonicenses 4:1–2; 1 Timóteo 5:21; 6:13; 2 Timóteo 4:1). Profetas e líderes já “testificavam” assim, chamando o povo de volta (Neemias 9:29–30; 13:15; Jeremias 42:19); Pedro também “testificava e exortava: salvai-vos desta geração perversa” (Atos 2:40); Paulo “testifica” tanto o arrependimento como a fé (Atos 20:21) e alerta com juramento (Gálatas 5:3). O conteúdo é claro: não voltem ao antigo caminhar. A própria carta já descreveu esse passado (Efésios 2:1–3) e o contrasta com a nova identidade (Efésios 5:3–8). Romanos 1:23–32 pinta o quadro da mente vã e dos costumes torcidos; 1 Coríntios 6:9–11 lembra: “tais fostes alguns de vós, mas fostes lavados…”, e Gálatas 5:19–21 lista as obras da carne que excluem do Reino. Colossenses 3:5–8 manda matar a antiga prática; 1 Pedro 4:3–4 recorda “bastam os tempos passados” — a nova vida não combina com a velha roda. A expressão “vaidade da mente” é bíblica: o salmista acusa os ímpios de pensamentos vãos (Salmos 94:8–11), e Paulo e Barnabé exortam: “deixai essas vaidades e convertei-vos ao Deus vivo” (Atos 14:15). O chamado, portanto, é apostólico e profético: em nome do Senhor, não caminhem como antes; caminhem na verdade em amor, ligados à Cabeça, contribuindo cada um, com sua parte, para que o corpo cresça e seja edificado.

Em Efésios 4:18 Paulo descreve o estado do velho caminhar: “entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus por causa da ignorância que há neles, pela dureza do seu coração”. Cada referência mostra um ângulo desse colapso espiritual. “Entenebrecidos”: o salmista pede a Deus que lembre a aliança, porque “os lugares tenebrosos da terra estão cheios de moradas de violência” (Salmos 74:20) — quadro da mente em sombra. A idolatria emburrece: ídolos têm boca e não falam; “semelhantes a eles se tornam os que os fazem” (Salmos 115:4–8); Isaías mostra o artesão que não discerniu a mentira da sua própria imagem (Isaías 44:18–20) e convoca: “a quem me fareis semelhante?… lembrai-vos disso e sede homens” (Isaías 46:5–8). Deus “anunciou agora que todos se arrependam” depois dos “tempos da ignorância” (Atos 17:30); e o chamado apostólico é abrir os olhos, converter “das trevas para a luz” (Atos 26:17–18). Romanos descreve a mecânica: “conhecendo a Deus, não o glorificaram… se lhes obscureceu o coração insensato” (Romanos 1:21–23); por isso Deus os entregou a uma mente reprovada (Romanos 1:28). “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua sabedoria” (1 Coríntios 1:21) — a cegueira não é falta de QI, é orgulho; o “deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos” (2 Coríntios 4:4). Antes de Cristo, “não conhecendo a Deus, servíeis aos que por natureza não o são” (Gálatas 4:8); por isso a luxúria pagã é dita “como os gentios que não conhecem a Deus” (1 Tessalonicenses 4:5). Essa é a alienação: “separados de Cristo… estranhos às alianças” (Efésios 2:12); a “mente da carne é inimizade contra Deus” e “não pode agradá-lo” (Romanos 8:7–8); de novo, “inimigos no entendimento” (Colossenses 1:21); quem se faz amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus (Tiago 4:4). A causa imediata é uma ignorância voluntária e moral: “obscureceu-se o coração” (Romanos 1:21), embora alguns se julguem “guia dos cegos” (Romanos 2:19); quem odeia o irmão “está em trevas e não sabe para onde vai” (1 João 2:11). Paulo encerra nomeando o núcleo: dureza (ou “calosidade”) do coração — como Nabucodonosor, cujo coração se exaltou e se endureceu (Daniel 5:20); como a geração de coração gordo que fecha os olhos (Mateus 13:15); como os que “cegaram os olhos e endureceram o coração” (João 12:40); e como a obstinação parcial de Israel (Romanos 11:25). Tudo isso explica a frase: tenebrosos, cortados da vida divina, por ignorância culpável e coração endurecido.

Em Efésios 4:19 Paulo mostra o desdobramento psicológico e moral: “tendo perdido toda a sensibilidade, se entregaram à dissolução, para, com avidez, cometerem toda impureza”. “Perdido a sensibilidade” ecoa a consciência cauterizada (1 Timóteo 4:2). “Se entregaram”: é o eco humano da entrega judicial de Romanos — “Deus os entregou à impureza… às paixões infames” (Romanos 1:24–26) — e do passado gentil: “bastam os tempos passados… em dissoluções” (1 Pedro 4:3). A expressão “com avidez” denuncia a insaciabilidade: o homem “bebe a iniquidade como água” (Jó 15:16); são “cães gulosos, pastores que não entendem” (Isaías 56:11); falsos mestres “como irracionais… têm os olhos cheios de adultério” (2 Pedro 2:12–14), “o cão volta ao vômito… a porca lavada ao lamaceiro” (2 Pedro 2:22); seguem o caminho de Balaão por amor ao prêmio (Judas 11). O retrato final é Babilônia: “a grande meretriz” embriagada e comércio de luxúria que seduz as nações (Apocalipse 17:1–6; 18:3). Perda de sensibilidade → entrega deliberada → ciclo de impureza gananciosa.

Em Efésios 4:20 vem o choque de identidade: “Mas vós não aprendestes assim a Cristo.” O Evangelho redefine vida. O Ressuscitado determinou que se pregasse “arrependimento e remissão” (Lucas 24:47); quem “ouviu e aprendeu do Pai vem a mim” (João 6:45). Por isso “permanecer no pecado” é incompatível com quem morreu e ressuscitou com Cristo (Romanos 6:1–2). O amor de Cristo nos constrange: ele morreu “para que os que vivem não vivam mais para si” (2 Coríntios 5:14–15). A graça “se manifestou… educando-nos a renunciar à impiedade” e a viver sensata, justa e piedosamente (Tito 2:11–14). Não é mera regra externa: a unção “ensina” e permanece (1 João 2:27). “Aprender a Cristo” é deixar que a pessoa e a obra do Filho modelem pensamento e prática.

Em Efésios 4:21 Paulo explicita o meio: “se é que o tendes ouvido, e nele fostes ensinados, como está a verdade em Jesus.” Ouvi-lo é obedecer ao mandado do Pai: “A ele ouvi” (Mateus 17:5); quem vos ouve, a mim ouve (Lucas 10:16); “as minhas ovelhas ouvem a minha voz” (João 10:27). Moisés profetizou um Profeta a quem o povo deveria ouvir sob pena de juízo (Atos 3:22–23); e o Espírito ainda hoje diz: “hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais” (Hebreus 3:7–8). Isso já acontecera em Éfeso: “tendo ouvido a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação” (Efésios 1:13). A expressão final — “a verdade está em Jesus” — reúne a linha bíblica inteira: o Rei cavalga “por causa da verdade” (Salmos 45:4); “misericórdia e verdade se encontraram; justiça e paz se beijaram… a verdade brota da terra” (Salmos 85:10–11): tudo isso ganha rosto no Cristo, em quem “graça e verdade vieram” (João 1:17). Ele não apenas ensina a verdade; Ele é a Verdade (João 14:6) e nos dá o “Espírito da verdade” (João 14:17). Nele, as promessas são “sim e amém” (2 Coríntios 1:20); a “verdade de Cristo” governa o falar apostólico (2 Coríntios 11:10). E o testemunho final é este: “Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho… o Filho de Deus nos tem dado entendimento para conhecermos o Verdadeiro” (1 João 5:10–12, 20). Ouvir o Filho, ser nele instruído e viver conforme a verdade que Ele é — é assim que se rompe com a treva de 4:18–19 e se caminha na nova humanidade que Paulo está exigindo.

Em Efésios 4:22 Paulo ordena uma troca de vestes: “quanto ao procedimento de antes, despirdes o velho homem, que se corrompe pelas concupiscências enganosas”. A própria carta já delimitou esse “procedimento de antes” (Efésios 4:17; 2:3): é a velha rota da mente vã e dos desejos. Paulo apela à ação concreta: lançar fora e deixar. É o mesmo verbo ético que reaparece no versículo 25 (“deixando a mentira”): a obediência começa por pôr de lado o que não condiz com Cristo. Em várias passagens essa dinâmica é descrita com a mesma linguagem de “tirar” e “lançar fora”: “lança de ti a perniciosidade” (Jó 22:23); “lançai de vós todas as vossas transgressões… e fazei-vos um novo coração” (Ezequiel 18:30–32); “despojados do corpo da carne, pela circuncisão de Cristo” (Colossenses 2:11); “deixai… ira, cólera, malícia” e “não mintais, pois vos despistes do velho homem” (Colossenses 3:8–9); “deixemos todo peso e o pecado que tenazmente nos assedia” (Hebreus 12:1); “depois de rejeitar toda imundícia… recebei a palavra implantada” (Tiago 1:21); “deixando toda malícia… desejai o puro leite” (1 Pedro 2:1–2). Até cenas narrativas servem de figura: Eli diz a Ana “afasta de ti o teu vinho” (1 Samuel 1:14) — a antiga embriaguez precisa ser posta de lado. O rótulo “procedimento de antes” conversa ainda com a história pessoal de Paulo (“meu procedimento noutro tempo”, Gálatas 1:13) e com a confissão da igreja: “nas quais também andastes, noutro tempo” (Colossenses 3:7); “resgatados do vosso fútil procedimento” (1 Pedro 1:18); “basta o tempo decorrido… em dissoluções” (1 Pedro 4:3), contraste que o justo Ló sentiu na pele diante da “conduta dissoluta” (2 Pedro 2:7). O coração dessa roupa velha é chamado de “velho homem”: “foi crucificado com Cristo” (Romanos 6:6), logo deve ser despido (Colossenses 3:9). E por que ele apodrece? Porque é alimentado por “concupiscências enganosas”: o pecado ilude (Romanos 7:11), o engano do pecado endurece (Hebreus 3:13), os homens são “enganados e escravizados a várias paixões” (Tito 3:3), o coração é autoenganável (Tiago 1:26). A própria soberba se vende como segurança (Jeremias 49:16; Obadias 1:3), mas é fraude; por isso a sabedoria contrapõe o “salário enganoso” do ímpio (Provérbios 11:18) à recompensa firme da justiça, e denuncia banquetes de “engano” (2 Pedro 2:13). Despir o velho é, portanto, romper com uma trama de autoengano tecida por desejos.

Em Efésios 4:23 Paulo mostra o movimento inverso e interior: “serdes renovados no espírito da vossa mente”. Não é cosmética, é criação. Davi pediu: “Cria em mim um coração puro, e renova em mim um espírito reto” (Salmos 51:10). Os profetas prometeram: “dar-lhes-ei um só coração e um espírito novo” (Ezequiel 11:19; 18:31; 36:26). No evangelho, isso se cumpre como “transformação pela renovação da mente” (Romanos 12:2) e como “novo homem que se renova para o conhecimento” (Colossenses 3:10). É obra do próprio Deus: “pela lavagem da regeneração e renovação do Espírito Santo” (Tito 3:5). Por isso Paulo pode dizer que somos “feitura dele” (Efésios 2:10). O alvo prático aparece quando ele fala do espírito da mente: a inclinação do Espírito é “vida e paz” (Romanos 8:6), e, como quem ajusta a armadura para a caminhada, somos chamados a “cingir o entendimento” (1 Pedro 1:13) para viver nessa nova disposição.

Em Efésios 4:24 a troca de vestes se completa: “revestir-vos do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e santidade da verdade.” Outra vez, não é performance humana: é criação (“criados em Cristo Jesus”, Efésios 2:10; “nova criação”, Gálatas 6:15). Esse “novo homem” é “novo” porque é a vida ressurrecta (Romanos 6:4; 2 Coríntios 4:16; 2 Coríntios 5:17), o nascimento para crescer como “recém-nascidos” (1 Pedro 2:2). “Segundo Deus” ecoa o Éden: fomos feitos “à imagem” (Gênesis 1:26–27), perdemos essa semelhança pelo pecado, e agora, “contemplando… somos transformados na mesma imagem” (2 Coríntios 3:18), “renovados… segundo a imagem daquele que nos criou” (Colossenses 3:10), até o dia em que “seremos semelhantes a ele” (1 João 3:2). Por isso o Novo Testamento fala em “revestir”: “revesti-vos de toda a armadura de Deus” (Efésios 6:11); “vesti-me de justiça” (Jó 29:14); “Sião, veste as tuas vestes formosas” (Isaías 52:1); Deus mesmo “vestiu-se de justiça” como de couraça (Isaías 59:17); “revistamo-nos das armas da luz” (Romanos 13:12) e, em última análise, “revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Romanos 13:14), o que se sela no batismo: “todos vós… vos revestistes de Cristo” (Gálatas 3:27). Essa nova veste é ética: “justiça” (o cetro reto do Messias, Salmos 45:6–7; Hebreus 1:8) e “santidade da verdade”, isto é, a santidade produzida pela verdade: “santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (João 17:17). Assim, “participantes da sua santidade” (Hebreus 12:10), conformados ao Filho (Romanos 8:29), “zelosos de boas obras” (Tito 2:14), vamos revestindo compaixão, mansidão, amor — “o vínculo da perfeição” (Colossenses 3:10–14).

Em Efésios 4:25 Paulo aterrissa tudo num teste simples e comunitário: “Por isso, deixando a mentira, falai a verdade, cada um com o seu próximo, porque somos membros uns dos outros.” Se nos despimos do velho e nos revestimos do novo, a primeira costura é a verdade no falar. A Lei já ordenava: “Não furtareis nem mentireis” (Levítico 19:11) e proibia o falso testemunho (Êxodo 23:1,7). Os Salmos e Provérbios afinam a consciência: “amas mais o mal do que o bem, e a mentira mais do que a justiça?” (Salmos 52:3); “afasta de mim o caminho da mentira” (Salmos 119:29); “língua mentirosa” está na lista das coisas que o Senhor odeia (Provérbios 6:17); “o lábio veraz permanece para sempre, mas a língua mentirosa é só por um momento” (Provérbios 12:19); “mentira é abominação” (Provérbios 12:22); “tesouros adquiridos com língua enganosa são vaidade” (Provérbios 21:6). Os profetas denunciaram um povo com “mãos contaminadas… lábios de mentira” (Isaías 59:3–4), que dizia “povo meu são filhos que não mentirão” e, no entanto, faltava (Isaías 63:8); Jeremias fala de uma cidade onde “o irmão engana o irmão… não falam a verdade” (Jeremias 9:3–5); Oséias vê a terra cheia de “mentir” (Oséias 4:2). Jesus localizou a raiz: o diabo é “mentiroso e pai da mentira” (João 8:44). Em Atos, Ananias e Safira encenam a gravidade dessa ruptura comunitária (Atos dos Apóstolos 5:3–4). O ensino apostólico repete: “não mintais uns aos outros” (Colossenses 3:9); há “mentirosos” tipificados na Lei (1 Timóteo 1:10), “hipócritas que falam mentiras” (1 Timóteo 4:2), e o próprio Deus se apresenta como “Deus que não pode mentir” (Tito 1:2), em contraste com a cultura (“os cretenses são sempre mentirosos…”, Tito 1:12). O juízo final sela a seriedade: os mentirosos estão entre os excluídos (Apocalipse 21:8; 22:15). Por isso Paulo costura 4:25 com 4:15: não basta deixar a mentira; é preciso falar a verdade “em amor”, como já disseram Provérbios 8:7 (“a minha boca proclamará a verdade”), Provérbios 12:17 (“o que fala verdade manifesta a justiça”) e Zacarias 8:16–19 (“falai a verdade cada um com o seu próximo”). O motivo não é apenas moral, é eclesiológico: “somos membros uns dos outros” (Romanos 12:5; 1 Coríntios 10:17; 12:12–27; Efésios 5:30). Mentir ao irmão é autoagressão no corpo; dizer a verdade é nutrir e unir o corpo que Cristo acabou de descrever (4:15–16). Assim, 4:22–25 fecha o ciclo: despir o velho (romper com o engano), renovar o interior (mente/espírito), revestir o novo (justiça e santidade forjadas pela verdade) e viver isso falando a verdade porque, em Cristo, pertencemos uns aos outros.

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Bibliografia

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